Arquivo mensal: março 2011
:: a poeira terrestre no calcanhar… ::
“O poeta é ao mesmo tempo feito de ameaça e de promessa. A inquietação que ele inspira aos opressores apazigua e consola os oprimidos. É a glória do poeta pôr um traveseiro ruim na cama de púrpura dos carrascos. É muitas vezes graças a ele que o tirano desperta dizendo: Dormi mal. Todas as escravidões, opressões, dores, infortúnios, aflições, todas as fomes e sedes têm direito ao poeta; ele tem um credor, o gênero humano. // Que o poeta esteja fora do homem por um lado, pelas asas, pelo vôo imenso, pela brusca desaparição nas profundezas, tudo bem, isso deve ser, mas com a condição de seu ressurgimento. Que ele parta, mas que retorne. Que tenha asas para o infinito, mas que tenha os pés no chão, e que depois de tê-lo visto voar, nós o vejamos andar. Que depois de tê-lo visto arcanjo, nós o reencontremos irmão. Que a estrela que está nesse olho verta uma lágrima, e que essa lágrima seja a lágrima humana. // Mostra-me teu pé, gênio, e vejamos se tens como eu no calcanhar a poeira terrestre…” [VICTOR HUGO]
:: Daniel Dennett explica o darwinismo… ::
Esta aí uma das mais hilárias (e sagazes) lições de darwinismo (e anti-criacionismo) que já tive o prazer de conhecer. O figuraça Daniel Dennett, com talento pra stand-up comedian e uma rara ousadia especulativa, sugere que valores como “doce”, “sexy”, “engraçado” e “bonito” não possuem nada de absoluto ou independente do humano. São os nossos organismos, cada um deles fruto de eras de evolução (“to create a little flower is the labor of ages”, canta o poeta William Blake), que passaram a valorar de modo positivo ou negativo aquilo que favorece ou prejudica nossa sobrevivência e nossa capacidade de transmissão de genes. “Não há nada de intrinsecamente sexy nestas senhoritas”, explica Dennett diante de três boazudas de biquini, “e é ótimo que seja assim. Pois se não fosse, a Mãe Natureza teria um sério problema: como diabos os chimpanzés se reproduziriam?” É vero: alguém já ficou sabendo de um chimp tentando estuprar uma humana? É o que eu sempre digo: um macaco acha qualquer macaca muito mais gatinha que a Marilyn Monroe…
:: qu’elle n’ait presque rien à prendre parce que nous aurions déjà presque tout donné… (christian bobin) ::
“A sorte maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. (…) O pensador ou artista que guardou o melhor de si em suas obras sente uma alegria quase maldosa ao olhar seu corpo e seu espírito sendo alquebrados e destruídos pelo tempo, como se de um canto observasse um ladrão a arrombar seu cofre, sabendo que ele está vazio e que os tesouros estão salvos.” NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. #208 e #209.
Eu, que não tenho fé, nem sou muito chegado a otimistas esperanças, encontro conforto para a aflitiva consciência da mortalidade nesta simples mas luminosa idéia: algo pode ser salvo do nada com o providencial auxílio do Verbo. A escritura pode fazer às vezes do bote salva-vidas que arrasta à praia mais próxima o que conseguimos salvar do naufrágio. A morte seria mais tenebrosa se não houvéssemos inventado a linguagem: através dela, os tesouros podem ser salvos. Pois comunicados. Mensagens na garrafa lançadas às ondas sempre moventes do Tempo, destinadas a inimagináveis viagens e encontros. Inventamos um meio para que os mortos possam nos falar, e para que falemos com os vivos quando mortos estivermos.
Christian Bobin chega a dizer que o melhor que temos a fazer nesta vida é vivê-la na perspectiva de que ela nos será tomada, que nos foi apenas emprestada por precário tempo (morte certa, hora incerta…). Tratar de auxiliar a morte em seu serviço ao tornarmo-nos leves e despojados como quem sabe que “deste mundo nada se leva”. A sabedoria estaria numa abertura d’alma que entrega ao outro aquilo que os avaros do espírito tentam reter na prisão condenada de si mesmos, no navio indo a pique do corpo, cegos pela falsa noção de que a vida seja uma posse. Que a ceifadora não tenha quase nada a nos tomar, diz Bobin, pois tudo já estará entregue, passado adiante, tornado público, compartilhado com a comunidade dos vivos. Os que ficam e os que ainda estão por nascer.
Talvez alguns considerem trivial o consolo de que a vida pode ser efêmera mas suas obras perduráveis. Já eu, considero este o único horizonte realista de “imortalidade”. Shakespeare ainda está entre nós, apesar de seu crânio já estar mais corroído que aquele de Yorick e não restar um só neurônio daqueles que produziram tantas genialidades. O gênio esvazia seus cofres de seus tesouros e os deposita em praça pública antes que o bandido-piromaníaco-ceifador chegue para reduzir tudo a cinza e esquecimento…
Suspeito, pois, que belas produções humanas são genuínos filhos da angústia… Mortais que se afligem com a certeza de sua iminente desaparição tentando fixar em alguma forma perene aquilo que sentem ser efêmero e precário… Talvez não haja melhor escritura do que aquela de alguém que, sentindo seu barquinho encher-se de água e começar a afundar, consagra ao papel, com a urgência angustiosa dos naufragantes, aquilo que julga poder ser útil para a jornada dos que ficam sobre as ondas. Há beleza quando se é capaz desta pequena caridade, feita de despossuimento, de transfusão, de passagem de sopro de vida… Todo tesouro guardado apodrece. E todo tesouro genuíno é um tesouro compartilhado. Guardar é perder. Dar é ganhar.
“Happiness is only true when shared.” (Into The Wild)
“E que importa restar em cinzas, se a chama foi bela e alta?” (Quintana)
Naufraguemos com os cofres vazios!
:: provérbios do capeta ::
Volta e meia trombo por aí, nos textos de grandes mentes filosóficas e artísticas do século 20, com citações, alusões e digressões envolvendo William Blake (1757-1827), poeta-místico-pintor-vidente com fama-de-doido e admiradores de alto-quilate (Borges entre eles) que escreveu um dos monumentos poéticos mais inebriantes que conheço: O Matrimônio do Céu e do Inferno. Tudo indica que suas “viagens” ainda são atualíssimas e que a poesia, afinal de contas, é o mais excelente dos psicodélicos legalizados. Aldous Huxley mencionava Blake com frequência quando tentava descrever suas experiências sob o efeito da mescalina, citando em várias ocasiões o verso blakeano que diz: “Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”. McLuhan, guru da Aldeia Global, era outro dos que adorava citar enigmáticas idéias de Blake para sugerir que o grande artista prepara a humanidade para mudanças de percepção e consciência sofridas com o impacto das novas tecnologias e novos psicotrópicos. Sabe-se também que Jim Morrison batizou o The Doors influenciado pelo livro de Huxley que explora as ligações entre consumo de substâncias expansoras da consciência e a obtenção da Iluminação nirvanística: The Doors Of Perception.
Abaixo, compartilho 10 dos meus “provérbios infernais” prediletos. Sintéticos, provocativos, sábios, enigmáticos… Confiram, deleitem-se e reflitam!
The road of excess leads to the palace of wisdom.
Drive your cart and your plow over the bones of the dead.
Eternity is in love with the productions of time.
The hours of folly are measur’d by the clock, but of wisdom: no clock can measure.
Excess of sorrow laughs. Excess of joy weeps.
The tygers of wrath are wiser than the horses of instruction.
He who desires but acts not, breeds pestilence.
Expect poison from the standing water.
The busy bee has no time for sorrow.
The bird a nest, the spider a web, man friendship.
:: bicicleta sem freio? ::
“Viver é como andar de bicicleta:
para manter-se em equilíbrio
você tem que continuar em movimento.”
Albert Einstein
(Vi no Trabalho Sujo, que viu no Audacity of Color.)
:: pour the sweet milk of concord into hell ::
MACBETH
“Nought’s had, all’s spent,
Where our desire is got without content.
It’s safer to be that which we destroy
Than by destruction dwell in doubtful joy.”
LADY MACBETH
As tragédias de Shakespeare sempre tem um motor diabólico que põe a rodar a máquina de fazer jorrar sangue… Em Otelo, é o ciúme, infundado e furioso, desgraça de Desdêmona e do mouro de Veneza. Em Rei Lear, a demência senil que acomete o monarca e ameaça de desintegração a Grã-Bretanha. Em Romeu e Julieta, a velha rixa de famílias entre os Montecchios e Capuletos, que impossibilita o enlace pacífico dos enamorados pombinhos. Em Hamlet, a vingança exigida do príncipe contra o usurpador do trono, o descarado regicida…
Exímio conhecedor dos vícios humanos e das precipitações na catástrofe causadas por eles, Shakespeare pariu em Macbeth a insuperável tragédia da ambição. Como tudo em Shakespeare, esta ambição do casal Macbeth é desmesurada. E, como tudo em desmesura, ela desregra e dana.
Não há novidade alguma, para quem já se familiarizou com o universo shakespeariano, no apelo à violência nas altíssimas escalas da nobreza e da corte, em que pessoas tão frequentemente são cegadas por uma “thriftless and vaulting ambition” e usam a força bruta ao invés da delicadeza diplomática. Mas Macbeth escancara, como poucas obras de arte que conheço, o quão sanguinário pode tornar-se um tirano ébrio de vontade-de-poder que, à maneira de um vampiro, quanto mais sangue bebe, mais se embriaga e mais sangue derrama… Nietzsche deveria ter sido mais lúcido ao fazer o elogio da “vontade de potência” sem temperá-la com a necessidade da sensatez e da temperança. Macbeth is the will-of-power gone wild.
Há algo de muito podre no reino da Escócia. “Have we eaten on the insane root that takes the reason prisoner?”, pergunta-se Banquo. Sim: alguém andou mordendo raízes de insânia… A paixão pelo trono, a fascinação pela coroa, faz com que Lady Macbeth e seu esposo mancomunem-se para assassinar o Rei Duncan. Espertalhões, concebem um jeito de culpar os servidores-“proletas” pelo crime: velho estratagema daqueles que desejam alçar-se ao topo sem revelarem que têm as mãos sujas de sangue… blame it all on the poor! Pensam ser capazes de dissimular suas culpas, esconder a carne humana que trazem entre os dentes, como lobos famintos após o banquete carnívoro, fazendo pose de cordeirinhos…
Mas sabem eles que mancharão para sempre seus corações tão brancos?…
Antes do crime, Macbeth implora às estrelas que se escondam e não espiem o ato grotesco de traição que está prestes a perpetrar: “Stars, hide your fires; let not light see my black and deep desires!” Depois do crime (“I have done the deed…”), vai progressivamente descobrir que a mancha não é fácil de lavar, ao contrário da ingênua medicina sugerida por Lady Macbeth: “a little water clears us of this deed…”.
Não, Lady Naive! Nem todos os oceanos reunidos seriam o suficiente para apagar este sangue das retinas e da memória daquele que o derramou! Macbeth não saiu incólume do ato: assassinou seu próprio sono (“Macbeth does murder sleep, the innocent sleep…”). E descobriu que para esconder um homicídio será preciso cometer muitos mais. E que todo homem assassinado tem aqueles que o amavam e que prometem vingá-lo. A tirania não tarda em despertar a revolta. A revolta não demora em desaguar na guerra. Da ambição indivual à catástrofe coletiva, há só um mísero passo, que homens políticos irresponsáveis não cessam de dar, para desgraça de todos. Em sua peça mais heavy metal, Shakespeare não poupa nas tintas ao descrever as podridões de seu Macbeth, recorrendo às vezes a frases quase cômicas de tão exageradamente tétricas: “Not in the legions of horrid hell can come a devil more damned in evils to top Macbeth…”.
A única coisa desencadeada pela violência é mais e mais violência, assim como toda mentira simples gera um séquito de mentiras necessárias para sustentar a mentira primeira, numa espiral infernal que só sossegará quando os campos de batalha, entulhados de corpos, exigirem uma troca de regime…
Mas seria muito raso fazer de Shakespeare um moralistinha a dizer que “o crime não compensa” e que há sempre um castigo para todo ato imoral. O que o gênio shakespeareano nos mostra, na verdade, são as complexas maquinações do afeto humano que conduzem ao desregramento sanguinário, às barbaridades passionais, descrevendo na sequência as inelutáveis consequências concretas, tanto no dilacerado mundo subjetivo quanto no domínio sócio-político, destes grandes crimes.
E se as páginas de Shakespeare estão tão repletas de sabedoria é pois ele conheceu a fundo o maligno. Sabe muito bem que a intemperança foi a desgraça de muitos reis: “boundless intemperance in nature is a tyranny; it has been the untimely emptying of the happy throne and fall of many kings…” (p.304). E conhece muito bem os efeitos corruptores do poder absoluto para os escrúpulos morais do sujeito, como a seguinte confissão de Malcolm, quando imagina-se alçado ao trono, mostra tão bem:
“…were I king, I should cut off the nobles for their lands,
Desire his jews and this other’s house;
And my more-having would be as a sauce
To make me hunger more; that I should forge
Quarrels unjust against the good and loyal,
Destroying them for wealth.
(…)
Had I power, I should
Pour the sweet milk of concord into hell,
Uproar the universal peace, counfound
All unity on earth.”
ACT IV, SCENE III
Thom Yorke, em um verso de “Paranoid Android”, transmitiu uma idéia semelhante: “When I am king… you will be first against the wall”. E Grace, ao final de Dogville, dá um chocante exemplo de quão genocida pode tornar-se o poder absoluto oferecido a um sujeito ressentido e ansioso por uma sádica represália. Se há uma conclusão clara a tirar, me parece, é que a percepção de que o poder corrompe é uma ótima razão para que o poder seja dividido, pulverizado, exercido em conjunto e em comunidade, anulando todos os terrores tão conhecidos do “Absolutismo”.
Mas nem todos os aspirantes a reis são tão transparentes quanto Malcolm (ou Yorke) no reconhecimento dos horrores que cometeriam se tivessem em uma posição de poder tão alta que a impunidade fosse quase certa. Macbeth, um dos “vilões” mais sombrios de Shakespeare, nos dá calafrios por lançar-se neste turbilhão fatal da ambição sem a mínima lucidez. Não prevê a própria desgraça e se fia em duvidosas profecias benévolas de bruxas brincalhonas. Quando o exército inglês está prestes a derrubá-lo de seu trono manchado de sangue (para usar a expressão que batizou a adaptação de Kurosawa….), ele enfim percebe que fez tudo em vão e que não escapará do castigo da História.
Num dos monólogos mais célebres de Shakespeare, o tirano sanguinário, às beiras de ser destronado, concebe a vida como nada além de “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e significando nada…”. É Macbeth falando, não Shakespeare. Este, imagino eu, era sábio demais para assinar embaixo deste desolador niilismo, e talvez sugerisse que são os turbilhões e torvelinhos do coração humano que enchem de fúria e confusão a silente canção cósmica… Nós, estas breves velas que queimam tão efêmeras, que incêndios não causamos! Incêndios de paixão sobre o lombo de um planeta majestosamente sereno em sua indiferença perfeita, que rodopia ao redor do Sol sempre em harmônica órbita, por mais escandalososamente desarmônicos que se tornem os descalabros humanos…
“Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.”
MACBETH
ACT V. SCENE V.