Vale da Lua. Chapada dos Veadeiros. Goiás. Terra Brasilis. Julho de 2011.



“…e mordia a polpa do fruto já dourado do mundo, perturbado por sentir seu sumo adocicado e espesso escorrendo pelos meus lábios. Não, não era eu que importava, nem o mundo, mas apenas a harmonia e o silêncio que, vindo dele até mim, fazia nascer o amor. Amor que não tinha a fraqueza de reivindicar só para mim, consciente e orgulhoso de compartilhá-lo com uma raça inteira, nascida do sol e do mar, cheia de vida e de encanto, que alcança a grandeza através de sua simplicidade e que, de pé nas praias, dirige um sorriso cúmplice ao sorriso deslumbrante de seus céus.
” ALBERT CAMUS. Núpcias.

:: O Amor segundo Kropotkin ::

Ou: O Anarquismo e o Casamento

“Sem entrar nos desenvolvimentos históricos da família, podemos afirmar que ela nem sempre foi o que é atualmente. Com relação a isso, etnógrafos e antropólogos estão de acordo ao descrever as diversas formas de que ela se revestiu no transcurso da evolução humana. Ao próprio casamento, que a religião e os burgueses queriam manter indissolúvel (o proprietário, desejando transmitir a seus descendentes o fruto de suas rapinagens, modelou a família a fim de assegurar sua supremacia sobre a mulher e, para poder, em sua morte, transmitir seus bens a seus descendentes, foi preciso tornar a família indissolúvel), tiveram que acrescentar a correção, o divórcio…

Que confissão mais bela em favor da união livre se poderia pedir? Não é evidente que é inútil selar com uma cerimônia o que uma outra cerimônia pode desfazer? Por que fazer consagrar por um simplório cingido por uma cilha a união que três outros simplórios de togas e barretes poderão declarar nula e inexistente?

Assim, os anarquistas rejeitam a instituição do casamento. Eles dizem que dois seres que se amam não precisam da permissão de um terceiro para se deitarem juntos; a partir do momento que sua vontade leva-os a tomar esta decisão, a sociedade nada tem a ver com isso, e menos ainda a interferir.

Os anarquistas dizem o seguinte: pelo fato de que se deram um ao outro, a união do homem e da mulher não é indissolúvel, não estão condenados a terminar seus dias juntos se acontecer de se tornarem antipáticos um ao outro. O que sua livre vontade formou, sua livre vontade pode desfazer.

Reconheçamos, de uma vez por todas, que os sentimentos do ser humano escapam a toda regulamentação e que deve existir a mais completa liberdade para que eles possam desenvolver-se completa e normalmente. Sejamos menos puritanos e seremos mais francos.

Dois seres que, tendo encontrado-se, aprenderam a se conhecer e a se estimar e acabam por se tornar um só, de tanto que se tornaram íntimos e completos, e de tanto que sua vontade, seus desejos, seus pensamentos tornaram-se idênticos, estes seres, menos que todos os outros, necessitarão de leis para obrigá-los a viver juntos.

Quando o homem e a mulher não se sentem mais acorrentados um ao outro, e se amam, a força das coisas conduzem-nos a se buscar reciprocamente, a merecer o amor do ser que tiverem escolhido. Sentindo que o companheiro ou a companheira amada pode abandonar o ninho se não encontrar mais a satisfação com a qual sonhou, o indivíduo colocará tudo em obra para agradar o outro completamente. Assim como entre essas espécies de pássaros, em que, na época do acasalamento, o macho apresenta uma plumagem nova e brilhante para seduzir a fêmea da qual quer atrair os favores, os humanos cultivarão as qualidades morais que devem fazê-los amar e tornar sua companhia agradável.”

KROPOTKIN. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios.
Tradução de Plínio Augusto Coelho. Editora Hedra. Pgs 69-72.

“I am certain that underneath their topmost layers of frailty men want to be good and want to be loved. Indeed, most of their vices are attempted short cuts to love. When a man comes to die, no matter what his talents and influence and genius, if he dies unloved his life must be a failure to him and his dying a cold horror. It seems to me that if you or I must choose between two courses of thought or action, we should remember our dying and try so to live that our death brings no pleasure to the world.”

JOHN STEINBECK. East Of Eden.

:: O Politeísmo da Beleza ::

“Neste grande templo abandonado pelos deuses,
todos os meus ídolos têm pés de barro.”

ALBERT CAMUS (Núpcias)

Pergunta-me às vezes o Trêmulo Crente, cheio de pavores e esperanças, qual o resultado da descrença, como é que sente o mundo aquele que fez a fé em pedaços e prosseguiu sua caminhada sobre o pó dos deuses. Respondo-lhe, silencioso, ao modo zen, apontando o dedo indicador para as flores e as borboletas, sem medo algum de ser piegas. Não prosseguem elas vivas e tão coloridas quanto antes, haja ou não deuses? Por que precisariam ter saído das insondáveis entranhas de um Criador transcendente, que nunca nos mostra sua face, para que sejam belas? Nada me impede de enxergar encanto e beleza naquilo que um processo natural tão estarrecedor e instigante quanto a Evolução trouxe a este palco-planeta tão pleno de bio-extravagância. A vida não é fenômeno uno: é miríade, caleidoscópio, mais colorida que a mais colórica das mandalas. Não é preciso acreditar em Deus para amar-se a Amazônia (e pobres e tristes dos que precisam!).


Acredito, isto sim, na feiúra da covardia, e da estreiteza, e suspeito que não é por razão outra que muitas pessoas agarram-se a suas crenças: pelo temor de olhar de frente uma verdade que não foi feita para elas. Uma verdade que não foi confeccionada para o paladar humano. Que não é tão docinha quanto nossos infantis desejos de confeitaria desejariam. Uma verdade que, como o trêmulo Renan um dia suspeitou, pode ser triste. Pascal, este porta-estandarte do cristianismo inteligente (sim, isto existe, eu concedo!), usou deste tipo de “raciocínio” ao bolar seu argumento da Aposta. Já eu, me recuso a apostar como Pascal: muito interesseiro este procedimento! Crer em Deus só porque isto é vantajoso, conveniente, agradável? Seria indigno da humanidade e da longa marcha rumo à Verdade empreendida por tantos ousados espíritos, através de tantas civilizações, com resultados tão notáveis!

Não, Trêmulos Crentes, que não conseguem pegar no sono de noite sem a chupetinha de uma oração, sem o sonífero de um Pai-Nosso, sem o ursinho-de-pelúcia de um delírio aprazível de paz futura no Éden imaginário, não! Não preciso destas muletas: tenho pernas próprias, fornecidas pela Natureza, e gosto de sentir minha sola em atrito e contato com a grama terrestre. Como com prazer os frutos da Terra, sem ligar para os macambúzios sacerdotes que me querem convencer da pecaminosidade do gozo, da condenação aos infernos destinada a todos os felizes. Jamais conseguiu a religião me convencer (e olha que tentou!) de que a felicidade é um pecado e de que a única atitude humana digna, neste “vale de lágrimas” onde padeceu o inocente cordeiro de Deus, seja a penitência, o auto-flagelamento, o auto-enterramento na escuridão mofada de um convento.

Nunca aceitei os difamadores dos sentidos e do corpo: que haveria de maligno ou malévolo no deleite tão puro que sentem meus ouvidos ao ouvir uma sonata de Mozart ou uma sinfonia de Schubert? Meus pobres olhos mereceriam acaso ser furados só por que me delicio com os carrosséis coloridos do cinema, só por que minhas retinas às vezes se põem em êxtase diante de uma pintura ou de uma paisagem? Ah! E o tato! É a condenação deste malquisto sentido que mais absurda me parece. Pobres daqueles que não conhecem as alegrias do tato! Amaldiçoados sejam aqueles que amaldiçoam o beijo, o abraço, a carícia, o enlace amoroso dos corpos, a festa inebriante do sexo! Levem para longe de mim seus espantalhos e suas promessas de danações, padres e moralistas, caceteadores e tiranos, policiais empolados e encouraçados tanques! Reivindico o meu desejo de gozar em pureza diante das inúmeras lindezas da existência, ainda que eu jamais possa esquecer de todo o mal e toda a feiúra que nela também grassa. Acredito que indignação e admiração possam andar de mãos dadas. E sou um ateu que acredita no politeísmo da beleza.

 que as palavras não sejam

que as palavras não sejam tranquilizantes para os cansados,
soníferos para os insones, bengalas para mancos, band-aids para feridos.

que as palavras não sejam somente afagadoras e doces,
fabricadas em confeitarias, morte dos diabéticos, para agrado do pau do Rei e da cruz do Papa.

que as palavras não sejam meio de imperialismo, neurose de Reino,
utilizadas para colonização de consciências, lavagem de cérebros, condicionamento.

que as palavras não sejam espadas, punhais que se empunham,
bradadas por exércitos em marcha, impressas em aviões de bombas carregados.

que não sejam conformadas, resignadas, submissas e dóceis!
que não sejam letra morta.

 

que as palavras não sejam tanques, que não ilustrem ou defendam crucifixos.
que não sejam escudo hipócrita, construção de fachada, eloquência vã de quem nelas procura esconderijo.
que as palavras sirvam menos para esconder que para revelar!
que tragam à luz muito mais que afundem em porões!
que tenham o aroma fresco da vida.