“O acaso é uma empresa para a qual tudo conspira.”


“considerações necessárias

é preciso tirar a poesia da clausura dos concursos, das gaiolas do acaso, do exílio das gavetas, trazê-la para o sabor do consumo rápido e fácil, envolvê-la de popularidade, sem o vulgarismo perigoso do que é descartável, mas também sem a absurda pretensão do que se quer eterno. 

poesia para fazer rir e refletir, evoluir e incomodar, propor e decompor. poesia para os botecos, para os gabinetes, para as praças, para os salões de festas, para os mocambos, para as favelas, estúdios, vídeo clipes e palanques.

 poesia sem medo, poesia sem trauma, poesia-pão, poesia-sim, poesia-não. pois ia ousar um dia popularizar a poesia.

 viva a poesia viva!”

* * * * *
Descobri há pouco, através da dica certeira do Dieguito, a obra do poeta goiano Pio Vargas (1964-1991). Morto em 1991, aos 26, de uma overdose de cocaína, foi “celebrado” por ninguém menos que Paulo Leminski, que sobre ele escreveu:
* * * * * 
Leminski

“Pio Vargas tem um “eu” coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.” >>> LEMINSKI

Conta-se sobre sua vida “meteórica” que foi “esgotada na vida boêmia de Goiânia. Ali crepitou nas casas noturnas, principalmente onde reinasse a efervescência cultural.” Para quem quiser saber mais, Edival Lourenço, em matéria na revista Bula, revela mais detalhes sobre o amigo. Na sequência, deixo com vocês o belo poema DESPERTÁCULO (belo neologismo que acasalou em êxtase verbal o DESPERTAR e o ESPETÁCULO…), um dos meus prediletos:
* * * * * 

Des­per­tá­cu­lo

Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:
 

bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.

In­ver­ti a or­dem.

Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mim mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.
 

Ven­ci a ba­ta­lha
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.
 

Es­tou pron­to:
eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.

PIO VARGAS 

[+ POESIA:] JOSÉ PAULO PAES

(“A posse é-me aventura sem sentido. Só compreendo o pão se divido.”)

Ian McEwan, “Solar”

IAN MCEWAN. Solar.
(Ed. Vintage Books, Londres, 2010, 390pgs.)

Para os grandes capitalistas, acionistas, donos de indústrias e CEOs de mega-corporações, o aquecimento global talvez seja considerado como um estraga-prazeres desagradável, como um discurso de ecochatos que tentam lançar pedras nas engrenagens dos lucros desenfreados… Reduzir a mero discurso um FATO empiricamente comprovável e referendável por qualquer cientista honesto, para na sequência desligitimá-lo como falso e falacioso: eis a técnica de auto-engano utilizada por muitos daqueles que fazem fortunas às custas da exploração do trabalho e da poluição ambiental.

Secretamente, no fundo de seus coraçõezinhos mesquinhos, os endinheirados talvez pensem com desdém nesse “problema menor”, o aumento da temperatura do planeta, subestimando as consequências fatais desta para a nossa e para centenas de outras espécies. Consolam-se dizendo que, afinal de contas, serão os pobres, como de praxe, aqueles que mais irão penar. Pois aqueles que possuem capital (gerado, é claro, pela exploração dos miseráveis em Bangladesh, por exemplo, que trabalham por salários de miséria para que a Nike venda tênis por 300 doletas na 5ª Avenida…), esses que tem o poder da bufunfa, ah!… Esses sempre podem comprar potentes aparelhos de ar-condicionado ou terras fresquinhas no Canadá ou na Noruega…

À perspectiva da extinção eles são cegos: só enxergam a necessidade de manter rodando a maquinaria infernal de geração de “riqueza” (óbvio que uma riqueza bastante desigualmente distribuída e de que podem gozar só plenamente só os 1% lá no topo…). Esta grotesca concentração de capital em poucas mãos, que o velho Marx já denunciava, prossegue hoje numa dimensão grotesca, mas ao menos está sendo globalmente contestada – dos protestos de rua de Gênova e Seattle, anos atrás, quando os descontentes manifestaram sua discórdia contra os rumos que G-8, FMI e Bando Mundial queriam impor ao planeta, até a grande “sensação” política do momento, o Occupy Wall Street.


No epicentro deste furacão está a questão do aquecimento global, esmiuçado em ótimos documentários, como The 11th Hour e Meat The Truth, e que também é o eixo temático central de Solar, o mais recente romance do inglês Ian McEwan, um dos mais brilhantes e lúcidos dos escritores de ficção hoje em atividade. Mr. Beard, protagonista de Solar, é um cientista de renome, já laureado com o Prêmio Nobel de Física, cujo ofício é pesquisar e testar modelos alternativos de energia que façam a humanidade superar sua perigosa dependência em relação ao carvão e ao petróleo.

O problema é que Mr. Beard, longe de ser um modelo de escrúpulo, é um beberrão, um mulherengo e um sujeito de preceitos éticos bastante duvidosos, apesar de ter sido “con-sagrado” pelo pózinho mágico de Estocolmo como uma das mentes mais à vanguarda em seu tempo. À medida que McEwan progride em sua narrativa, com a elegância e a espirituosidade da melhor prosa irônica britânica, com arroubos quase “machadianos”, acompanhamos a quixotesca jornada de Beard em busca do Santo Graal da energia eternamente renovável. Mas a vida amorosa – aliás bastante desastrosa – de Beard não cessa de se intrometer em seu trabalho científico. E a Ciência leva rasteiras frequentes dos ímpetos passionais e irracionais dos homens – e sempre consegue se reerguer sem ir à nocaute.

Solar, um dos romances mais “selvagemente engraçados” de McEwan, como disse o Sunday Times, é livro que nos convida a refletir em profundidade sobre os grandes dilemas de nosso tempo através das desventuras surreais de um herói falhado que tenta salvar a Humanidade da hecatombe, mas percebe que sua própria vida pessoal é uma hecatombe em miniatura. Em meio à complexidade desnorteante de nosso planeta endoidecido, que prossegue atulhando a atmosfera com tóxicos e continua sem tomar medidas drásticas contra a grotesca concentração de capital e desigualdade de renda, aguardamos atônitos os próximos capítulos da novela da História sem saber se o futuro nos terá como agentes – ou se seremos um curioso caso de espécie suicida que, através de sua cegueira e estreiteza egocêntrica, destrói àquilo sem o quê é incapaz de sobreviver.

Não se trata de ser apocalíptico e pessimista ao ponto de beirar o fatalismo derrotista (tendência devidamente escarnecida por McEwan); trata-se de reconhecer a urgência do problema e de agir o quanto antes, como diz Manu Chao, para “frear a loucura do Sistema”. As calotas polares, uma vez derretidas, não poderão ser re-congeladas. Não existe tecnologia disponível para reverter isso!  E dá-lhe tsunami e inundação para matar multidões como se fossem formigas e reduzir civilizações a barro – como quando um formigueiro é devastado por um dilúvio…

UM TRECHO NOTÁVEL…

“Beard was not wholly sceptical about climate change. It was one in a list of issues, of looming sorrows, that comprised the background to the news, and he read about it, vaguely deplored it and expected governments to meet and take action. And of course he knew that a molecule of carbon dioxide absorbed energy in the infrared range, and that humankind was putting these molecules into the atmosphere in significant quantities. But he himself… was unimpressed by some of the wild commentary that suggested the world was ‘in peril’, that humankind was drifting towards calamity, when coastal cities would disappear under the waves, crops fail, and hundred of millions of refugees surge from one country, one continent, to another, driven by drought, floods, famine, tempests, unceasing wars for diminishing resources.

There was as Old Testament ring to the forewarnings, an air of plague-of-boils and deluge-of-frogs, that suggested a deep and constant inclination, enacted over the centuries, to believe that one was always living at the end of days, that one’s own demise was urgently bound up with the end of the world, and therefore made more sense, or was just a little less irrelevant. The end of the world was never pitched in the present, where it could be seen for the fantasy it was, but just around the corner, and when it did not happen, a new issue, a new date would soon emerge.

The old world purified by incendiary violence, washed clean by the blood of the unsaved, that was how it had been for Christian millennial sects – death to the unbelievers! And for Soviet Communists – death to the kulaks! And for Nazis and their thousand-year fantasy – death to the Jews! And then the truly democratic contemporary equivalent, an all-out nuclear war – death to everyone! When that did not happen, and after the Soviet empire had been devoured by its internal contradictions, and in the absence of any other overwhelming concern beyond boring, intransigent global proverty, the apocalyptic tendency had conjured yet another beast…”

IAN MCEWAN. Solar. pgs. 20-21.

seu corpo um dia viverá na erva, na pedra, num sapo…


Quando um homem de pensamento alcança a idade viril e atinge uma consciência lúcida, ele se sente involuntariamente como que apanhado numa armadilha, da qual não há saída. De fato, contra a sua vontade, ele é chamado por certas casualidades do não-ser para a vida… Para quê? Ele quer conhecer o sentido e a finalidade da sua existência, e não lhe dizem nada, ou então dizem bobagens; ele bate à porta, e ninguém lhe abre; a morte chega, e é também contra a sua vontade. Pois bem, assim como na prisão os homens ligados pelo infortúnio comum sentem-se aliviados quando se reúnem, assim também na vida não se percebe a armadilha quando as pessoas que tendem para a análise e as generalizações reúnem-se e passam o tempo na troca de idéias livres, altivas. Neste sentido, a inteligência constitui um prazer insubstituível…

“Oh, por que o homem não é imortal?”, pensa ele. “Para que existem os centros cerebrais, as circunvoluções, para que a visão, a fala, a autoconsciência, o gênio, se tudo isto está destinado a ir para debaixo da terra e, por fim, esfriar junto com a crosta terrestre e depois, durante milhões de anos, girar sem sentido e sem um objetivo, com a Terra, ao redor do Sol? Para esfriar e depois girar, é de todo desnecessário retirar do nada o homem, com a sua inteligência elevada, quase divina, e depois, como que por zombaria, transformá-lo em barro.”

“A troca de substâncias! Mas que covardia é consolar-se com este sucedâneo da imortalidade! Os processos inconscientes, que ocorrem na natureza, são inferiores mesmo à estupidez humana, pois na estupidez existe, apesar de tudo, consciência e vontade, e nos processos não há absolutamente nada. Apenas um covarde, que tem mais medo da morte que dignidade, pode consolar-se com o fato de que o seu corpo um dia viverá na erva, na pedra, num sapo… Ver a sua imortalidade numa troca de substâncias é tão estranho como predizer um futuro brilhante à caixa de um violino caro, depois que este se quebrou e inutilizou.”

— trecho da novela “Enfermaria Número 6”, de Anton Tchekov (1860-1904). in: O Beijo e Outras Histórias. Tradução de Boris Schnaiderman. Ed. 34. Pg 205-206.

só se sabe que são coisas que são







Tô numa onda de assistir Life e Human Planet, séries natureba e alta-produça da BBC britânica e que são repletas de imagens bonitas de estontear. A pátria nativa de Charles Darwin (e Richard Dawkins) parece bem mais… evoluída do que outras culturas, ainda presas a caduquices teológicas/supersticiosas/criacionistas, no sentido de divulgar massivamente, utilizando os meios cinematográficos e fotográficos de ultimíssima geração, as evidências às toneladas que corroboram como verdades o cerne do evolucionismo. Acima, uma pequena seletinha de screenshots das séries, tão competentes em pintar um mosaico da complexidade e diversidade febricitantes da vida: paisagens, flores, jellyfishs, estrelas-do-mar, ocelots, abelhas mamando néctar em girassóis, macacaquinhos… e gente. Tudo junto e misturado como é nisto que é. São imagens que, dentre muitas outras, me fascinam, me deixam boquiaberto ou me despertam o lado bucólico-idílico-kitsch. Mas que, sobretudo, chamam a atenção para o quão estarrecedor e infinitamente complexo é o processo de Evolução das Espécies [by the means of natural selection…], que como uma clareza completa revela-se não como uma mera teoria, mas uma força concreta, uma realidade natural, em ação há centenas de milhões de anos, e do qual somos apenas um dentre milhões de outros resultados.

incendiei de amor uma alma livre

(Maiakóvski e Lília Brik)

LÍLITCHKA!
Em Lugar de Uma Carta

por Vladimir Maiakóvski
(Petrogrado, 1916)

De qualquer forma
o meu amor
– duro fardo por certo –
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.

Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.

Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.

Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.

Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval –
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?

Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

(trad. Augusto de Campos)

in: Poesia Russa Moderna – Nova Antologia

(Ed. Brasiliense, 4a edição)

contempla o teu viver que corre, escuta o teu ouro de dentro

Enquanto faço o verso, tu decerto vives. / Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue. / Dirás que sangue é o não teres teu ouro / E o poeta te diz: compra o teu tempo. // Contempla o teu viver que corre, escuta / O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo. / Enquanto faço o verso, tu que não me lês / Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala. / O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas: / “Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”. / Irmão do meu momento: quando eu morrer / Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: / MORRE O AMOR DE UM POETA. / E isso é tanto, que o teu ouro não compra, / E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto / Não cabe no meu canto.” [HILDA HILST]

“Enquanto faço o verso, tu decerto vives. / Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue. / Dirás que sangue é o não teres teu ouro / E o poeta te diz: compra o teu tempo. // Contempla o teu viver que corre, escuta / O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo. / Enquanto faço o verso, tu que não me lês / Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala. / O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas: / “Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”. / Irmão do meu momento: quando eu morrer / Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: / MORRE O AMOR DE UM POETA. / E isso é tanto, que o teu ouro não compra, / E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto / Não cabe no meu canto.” HILDA HILST

“Se existe alguma distinção entre os que seguem abertamente a religião ortodoxa e os que a negam, esta não favorece os primeiros. Agora, assim como outrora, os que praticam abertamente a religião ortodoxa são, na maior parte, pessoas estúpidas, cruéis e imorais, que se consideram muito importantes. Por outro lado, a inteligência, a honestidade, a franqueza, a bondade e as virtudes morais em geral se encontram nas pessoas que se consideram descrentes.” LIEV TOLSTÓI. Uma Confissão (1882) – in: Os Últimos Dias. Editora Penguin Clássicos.

“The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a 3rd generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…” CARL SAGAN (COSMOS)

The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a 3rd generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…” CARL SAGAN (COSMOS)