Relembrando a Comuna de Paris…

O DIA EM QUE A COMUNA FOI ASSASSINADA…

Em 28 de Maio de 1871, a Comuna de Paris, um dos mais importantes experimentos revolucionários do século XIX, após 72 dias de vida do novo regime, é massacrada pelos exércitos reacionários de Versalhes; pelo menos 20.000 parisienses foram chacinados nas ruas da capital francesa pelas forças brutais de restauração do capitalismo; além disso, mais de 7.000 communards foram encarcerados ou deportados para a Guiana. Relembremos alguns testemunhos sobre a Comuna por Marx, Lênin e Kropotkin!

“A Paris operária, com a sua Comuna, será para sempre celebrada como a gloriosa percursora de uma sociedade nova. A recordação dos seus mártires conserva-se piedosamente no grande coração da classe operária. Quanto aos seus exterminadores, a História já os pregou a um pelourinho eterno, e todas as orações dos seus padres não conseguirão resgatá-los. O verdadeiro segredo da Comuna residiu em ser essencialmente um Governo da classe operária, o produto da luta de classes dos produtores contra a classe dos expropriadores, a forma política por fim descoberta, pela qual se podia realizar a emancipação econômica do trabalho.” – KARL MARX

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“A memória dos combatentes da Comuna é exaltada não só pelos operários franceses como também pelo proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução social, a Comuna obteve a simpatia onde quer que sofra e lute o proletariado. O quadro de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo, o espetáculo da heróica luta do proletariado e seus sofrimentos depois da derrota, tudo isso têm levantado a moral de milhões de operários, têm alentado suas esperanças e têm ganho suas simpatias para o socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou de seu profundo sono as camadas mais atrasadas do proletariado e deu em todas as partes um impulso à propaganda socialista revolucionária. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até hoje em dia em cada um de nós. A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E neste sentido é imortal…” – VLADIMIR LÊNIN

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“No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris se levantou contra um poder detestado e desprezado, e proclamou a cidade de Paris independente, livre, só pertencente a si mesma. Neste dia, os governantes se eclipsaram diante do povo armado, que desceu às ruas: a tropa abandonou a cidade, os funcionários se apressaram em correr para Versalhes… O governo evaporou como uma poça de água pútrida ao sopro de um vento de primavera. Como é sempre o caso para as grandes ideias, esta não foi o produto de conceitos de um filósofo ou de um indivíduo: ela nasceu dentro do espírito coletivo, saiu do coração do povo inteiro, e muitos não se davam conta da revolução que eles inauguravam, da fecundidade do novo princípio que eles buscavam pôr em execução. Dez anos já se passaram deste aquele dia e a ele que se vinculam nossos melhores souvenirs. É o aniversário daquele dia memorável que o proletariado se propõe hoje a festejar solenemente… centenas de milhares de corações trabalhadores batendo em uníssono, fraternizando através das fronteiras e dos oceanos… De onde vem esta força irresistível que atrai para o movimento de 1871 as simpatias de todas as massas de oprimidos? Que ideia representa a Comuna de Paris? E por que esta ideia é tão atraente para os proletários de todas as pátrias, de todas as nacionalidades? A resposta é fácil – A revolução de 1871 foi um movimento eminentemente popular. Feita pelo povo ele-mesmo, nascida espontaneamente do seio das massas, foi na grande massa popular que encontrou seus defensores, seus heróis, seus mártires…” – KROPOTKIN  (Paroles D’un Revolté, Capítulo “La Commune de Paris”, Paris: Flamarion, 1978, pg. 103.)

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commune-posterLA COMMUNE (PARIS 1871)
Um filme de Peter Watkins
Assista-o completo…
Parte 01 – Parte 02
Legendas em inglês.

SIGA VIAGEM…

“Grasshopper Night” (Crônica sobre o espetáculo de Paul McCartney em Goiânia, 2013)


GRASSHOPPER NIGHT
Uma Gonzo-Reportagem

“…a imperecível necessidade humana de viver em beleza.” 
Johan Huizinga em “Homo Ludens”
(Ed. Perspectiva, pg. 71)

Paul McCartney teve que percorrer uma longa e tortuosa estrada até vir parar, com mais de 70 anos rodados pelas trilhas da vida, aqui nas terras dos Goyazes…

Em sua primeira infância, na Inglaterra de 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, o garoto de Liverpool brincava pelos territórios bombardeados pelo III Reich, como ele mesmo narra no início do Beatles Anthology: “We played on bomb-sites a lot and I grew up thinking the word ‘bomb-site’ almost meant ‘playground’. Reminders of the war were all around…” (pg. 17).

Foi por pouco que Hitler e sua gangue de arianos genocidas não adicionaram ao seu horrendo catálogo de atrocidades a morte da família McCartney: estima-se que 4.000 pessoas morreram durante os ataques da Luftwaffe que ficaram conhecidos como Liverpool Blitz.

Filho de um pai protestante que tocava piano, e que desde o berço fez o pequeno Paul “mergulhar” no mundo do jazz e do folk, e de uma enfermeira católica, que sempre cuidou de sua saúde com muito esmero, McCartney desde cedo esteve rodeado e possuído pelas musas da música.

Desde tenra idade, decorava os hits do rádio, tocava piano em festinhas familiares, compunha cantigas ao violão e ia atrás de conhecer e se amigar com os melhores músicos de Liverpool: antes dos 16 anos de idade, já impressionava os músicos ao seu redor com suas versões bem-timbradíssimas de Eddie Cochran, Little Richard e Elvis Presley, dentre outros roqueiros das antigas. E logo o mocinho integraria a Banda de Besouros, a Banda do Sargento Pimento e do Submarino Amarelo, aquela que se tornaria um dos monumentos musicais mais importantes do século 20 e uma das cerejas no bolo do Sonho Hippie…

E hoje em dia, me parece, McCartney prossegue, apesar de ser um perfeito gentleman britânico, um hippão de coração. Talvez o hippie, neste planeta, com a maior conta bancária (sua fortuna é estimada em mais de U$1.000.000… um bilhão de doletas!), e cujo ideário hippie decerto não inclui como ideal norteante a pobreza voluntária. McCartney ainda fala em favor da legalização da maconha, que, conta a lenda, teria sido apresentado aos Beatles em 1964 por Bob Dylan, o que parece ter sido para Paul o início de um caso de amor de fidelidade ímpar, com o cânhamo sagrado, já que ele segue pró-cannabis mesmo tendo sido preso algumas vezes, em alguns países, por posse de fontes de THC. McCartney também ilita em prol dos direitos animais,  sendo talvez o vegan com maior apelo de massas no atual showbizz global, capacitado para gerar discussão e debate público sobre um tema ainda tabu (os bilhões de criaturas mortas para serem consumidas por humanos na forma de hambúrgueres, salsichas e fatias de bacon).

Outro índice de hippiedade é que em  muitas ocasiões ele já escancarou, em suas declarações, uma mui-hippie predileção intensa pela psicodelia. Teve uma experiência existencial significativa quando olhou através dos telescópios e microscópicos lisérgicos, nos anos 60, época em que ingeriu muitas doses da Poção de Hoffmann que o Dr. Leary andava louvando por aí (o LSD… homenageado singelamente em “Lucy in the Sky With Diamonds”, dentre outras cantigas). Os pendores de Paul McCartney ao louvor arrebatado e hiperbólico às substâncias psicodélicas ficam claros, por exemplo, em declarações como a seguinte, que foi pescada do Anthology e em que ele relata sua experiência com  o LSD:

“After I took LSD, it opened my eyes: we only use one-tenth of our brain. Just think what we could all accomplish if we could only tap that hidden part. It would mean a whole new world. If the politicians would take LSD, there wouldn’t be any more war or poverty or famine.” (Anthology. Chronicle Books, San Francisco, Pg. 255.)


McCartney, hoje em dia? Um setentão que aguenta 3 horas de show sem precisar beber uma gota d’água. E esta turnê pelo Brasil, em 2013, certamente deixará lembranças indeléveis nos corações e mentes dos cerca de 150.000 brasileiros que o viram de perto em Belo Horizonte (no Mineirão), Goiânia (no Serra Dourada) e em Fortaleza (no Canecão).

Foi uma oportunidade magnífica ver em carne-e-osso esse mito-vivo, em sua primeira aparição por Goiás, com um showzaço que satisfez com folga o público que encheu o Serra Dourada. Até agora não conversei com ninguém que não tenha descrito o espetáculo com os mais entusiásticos e gratos dos termos. Foram 38 músicas, com um repertório repleto de clássicos dos Beatles (com destaque para “Hey Jude”, “Let It Be”, “Eleanor Rigby”, “Get Back”, “Helter Skelter”, “The Long and Winding Road”, “Yesterday”, “Back in the U.S.S.R”…) e dos Wings (incluindo as estupendas “Live and Let Die” e “Maybe I’m Amazed”).

Num espetáculo grandioso, cheio de pirotecnias, com psicodelia bem-bolada rolando nos telões, e acompanhado por uma bandaça impecável, Paul McCartney passou por Goiânia impressionando geral com sua vivacidade, sua simpatia e seu embriagante e revigorante tônico musical, bebido com tanta sede e deleite pelas massas-em-festa… Em suma: reativando a beatlemania nestas noites brasileiras repletas de histerias ultra-admirativas e aclamações esfuziantes, Macca encantou geral com sua voz e suas melodias, dando farto alimento à “imperecível necessidade humana” (pois nem só de pão vive o homem…) “de viver em beleza” – como diz no Homo Ludens o Huizinga.

“Goiânia Grasshopper Stage Invasion!”
Vídeo oficial do PaulMcCartney.com

Sem dúvida, o elemento pitoresco do show em Goiânia, e que ficará indelével na memória do público e do músico, foi a alegre invasão daqueles beatlemaníacos alados que não perderam a chance de fazer o que muito mortal fica só passando vontade: tocar a carne de um mito. Viraram até notícia internacional! Goiânia fez jus a sua fama de “roça asfaltada” e, ao mesmo tempo, esta imprevista irrupção de vida fez com que o ambiente, saturado da artificialidade ultra-tecnológica daquele palco hi-tech, se reconectasse com a natureza. Como notório defensor dos direitos dos animais, Paul McCartney em nenhum momento foi agressivo contra os visitantes inesperados – aliás bastante inofensivos, desprovidos que são de malícia e de ferrão. Ao invés de enxotá-los com tapões ou piparotes que poderiam equivaler, para tão frágeis criaturas, a severos hematomas, ou mesmo a golpes fatais, McCartney divertiu-se como um pirralho com os bichinhos – dotados, aliás, de excelente gosto musical.

Tem gente dizendo que eram grilos-esperança, outros que eram gafanhotos, outros ainda “insetos vetores”; pouco importa. O que importa é aquilo que o episódio revelou sobre a personalidade de Paul, seu espírito lúdico tão vivaz e seu senso-de-humor tão espontâneo. Também se tornou clara a capacidade enorme de empatia com outros terráqueos que é uma marca de personalidade de McCartney, que aliás criou uma das máximas mais célebres da história do vegetarianismo (que era também praticado por Linda): “se os abatedouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos”. O estádio Serra Dourada foi proibido de vender espetinhos de carne no espaço do show, por pedido do próprio McCartney, que é militante pelos direitos animais há muitos anos. O que se escancarou com este episódio é que não é somente em prol de vacas, bois, galinhas, porcos e perus – dentre outros animais que os humanos devoram!  – que McCartney milita e defende. Que coerência genuína de pensamento e ação o episódio com os grasshoppers revelou!

Pego de surpresa, McCartney mostrou excelente capacidade de improviso: usou o acaso a seu favor e transformou os bichos numa atração à parte. Um deles (ou seria uma delas?), particularmente obstinado em manter-se coladinho no Beatle, foi batizado de Harold e convidado a saudar a platéia no microfone. Mas Harold se intimidou diante dos mais de 45 mil humanos presentes e manteve-se calado. Quando veio o clássico “Hey Jude”, um dos muitos ápices emocionais do show, com 40 mil vozes se juntando no coro de “nánáná”, ocorreu um momento mágico: o grasshopper beatlemaníaco estava pousado nos ombros de McCartney quando veio o verso “The movement you need is on your shoulder”, e Macca, veloz e sagaz, não perdeu a ocasião da alusão.

(Lembrei de uma das melhores cenas do documentário sobre Raul Seixas, O Início, o Fim e o Meio, quando o diretor Walter Carvalho recebeu, também, um presente do acaso muito bem aproveitado: entrevistando Paulo Coelho em Genebra, cidade onde quase não existem moscas,  Carvalho viu o “set” ser invadido por uma inesperadíssima aparição alada; Paulo Coelho não perdeu a ocasião de apontar: “deve ser o Raul…”. Depois de ser esmagada a mosca pelo místico higienista, a sacada do documentário, aliás brilhante, está edição de som, que faz com que Raulzito, eterno mosca-na-sopa da caretice e do quadradismo, entre cantando logo na sequência: “E nem adianta vir me dedetizar… Pois você mata uma e vem em outra em seu lugar!”)

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O que mais me assombra e me impressiona é uma pessoa com tamanha capacidade (intacta!) para as alegrias fáceis, para as cantorias vivazes, para as melodias memoráveis, quando sabemos quantas tragédias e lutos ele não teve que enfrentar nesta longa e tortuosa estrada da vida! Fora os horrores da guerra, experenciados na infância, que relatamos no começo desta gonzo trip, cabe lembrar que Paul, na adolescência, quando tinha 14 anos de idade, perdeu a mãe para o câncer – foi quando viu seu pai chorar pela primeira vez. Resistiu vivo através de outras tempestades, sobrevivendo ao assassinato que levou Lennon em 1980, ao câncer que matou sua esposa (e mãe de seus filhos) Linda em 1998, tendo também se despedido do caixão de George Harrison em 2001. É uma lição de vida testemunhar que nada disso aniquilou o senso de humor e a capacidade de empatia com os viventes deste artista com espírito perpétuo de menino e que encantou com sua graça os mais de 45 mil mortais que encheram o Serra Dourada para prestigiá-lo.

É bem verdade que este espetáculo Out There usa e abusa da pirotecnia, não economizando no tamanho dos telões, na coloridice extrema das imagens, na variedade de holofotes e luzes, na profusão de fogos de artifício e lançadores-de-chama (que fazem sua estrondosa aparição-clímax em “Live and Let Die”). Há algo de arrasa-quarteirão roliudiano no show, que pretende ser uma torrencial chuva de estímulos sensíveis sobre um público que McCartney deseja levar ao delírio, ao êxtase coletivo, depois recolhendo com deleite as aclamações, as salvas de palmas e os ursinhos de pelúcia lançados sobre o palco por mocinhas apaixonadas.

Um crítico de arte que conhecesse de Adorno e Horkheimer, que soubesse das críticas de Guy Debord à “sociedade do espetáculo”, talvez pudesse destroçar criticamente este show como mero showbusiness alienante, como uma criação do capitalismo hi-tech que serve para algo similar ao que o “Pão & Circo” fazia para o Império Romano. Acho plausível, aliás, que nosso governador tucano e cachoeirista, Marconi Perillo, tenha investido dinheiro público neste show com intenções de, através de uma pão-e-McCartney grandioso e crowd-pleaser, fazer com que os goianos esquecessem de suas tenebrosas e escusas relações com o Al Capone do Cerrado, o gangter Carlinhos Cachoeira, pra não falar do esquema de espionagem escancarado recentemente pela revista Carta Capital.

Só que, me parece, o show de McCartney jamais poderia ser reduzido a isso, um instrumento político na mão de um governo corrupto, pois é um evento cultural que transcende o presente: foi uma oportunidade de receber um “banho de imersão” na história da música pop inglesa em algumas de suas mais geniais criações nas últimas décadas, um embarque numa viagem que nos carrega de volta para os anos 60 e 70, que nos dá um vislumbre do que foi o frenesi da beatlemania, que nos deixa instigados a criar uma cultura cuja efervescência aspire a igualar aquela que incendiou o pop nos crazy sixties.

McCartney escapa do “imediatismo” do showbizz, que costuma dar ao público algo que ele possa consumir e logo esquecer (a fila das mercadorias anda!). McCartney parece desejar que cada um no público leve para casa uma lembrança indelével, algo a ser carregado pelo resto da vida, por isso não se economiza, não poupa seu coração, não retêm seu sentimento; sentimos algo de genuinamente humano e caloroso sobressaindo sobre aquela parafernália técnica toda. McCartney anda fazendo, ao vivo, um ritual auto-celebratório em que resgata seus mais de 70 anos de vida e seus quase 50 anos de carreira, arrastando o público numa jornada colorida, lisérgica, psicodélica, às vezes kitsch, sempre emotiva e emocionada, por uma vida cuja criatividade e talento os milhões de beatlemaníacos não param de celebrar.

Aliás, McCartney consegue muito bem, sem tecnologia pesada o acompanhando, encantar uma multidão com simplicidade e frugalidade: sozinho ao violão, quando canta “Blackbird” ou “Yesterday”, não precisa de pirotecnia alguma para nos deixar encantados. Na homenagem à imortal canção de George Harrison, “Something”, soube deixá-la graciosa em seu despojamento ao re-interpretá-la no ukelele.

Talvez tenha razão quem disse que a música é a única língua universal: Mozart ou Bach, tocados em qualquer latitude, em qualquer continente, independente do idioma que ali domine, são deleitáveis experiências para os tímpanos humanos; e “nánáná” em inglês, em japonês e em português é sempre “nánáná”. Os sons, como anarquistas desrespeitadores de todos os arames farpados, não respeitam as fronteiras: caçoam delas, velejando no vento, voando por sobre os muros e atravessando as paredes. Talvez não haja nada, dentre as criações humanas, nada com mais benéfico potencial de congraçamento do que a música. Quando 50 mil pessoas houvem a mesma música, no mesmo espaço, quando suas vozes se unem para cantar uma melodia, podem sentir-se unidas em um sentimento como só deve ocorrer em raríssimas ocasiões e para raríssimas massas, quiçá só equiparável à fervura de um levante revolucionário… O mínimo que se pode dizer de Sir Paul McCartney é que ele tem uma capacidade de comunicação afetiva com as massas que é rara; que sua música prossegue tendo uma graça que transborda e que não envelhece; que com mais de 70 anos, prossegue com espírito de menino, legítimo espécimen do homo ludens; que muitas de suas melodias tem vocação para a eternidade e muito provavelmente poderão agradar também a nossos bisnetos e tataranetos; e que os Beatles não deixarão mais a história da música do século 20 como um de seus acontecimentos mais dourados.

“And in the end
The love you take
Is equal to the love
You make.”

Siga viagem em outras criações do Mega-Macaco Macca…

ÁLBUNS DE ESTÚDIO (COMPLETOS)

MCCARTNEY (1970)
 ALGUMAS CANTIGAS MEMORÁVEIS
“WHEN I’M 64” DO SGT PEPPERS
“SHE’S LEAVING HOME” OUTRA DO SARGENTO PIMENTA
THE BEATLES ANTHOLOGY (ÁUDIO)
(6 horas de Beatles!)

“Para atrair muitos para fora do rebanho – vim para isso!” – Zaratustra

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A FIDELIDADE À TERRA
Estudos sobre Assim Falou Zaratustra
(Cia das Letras, 2011, trad. Paulo César de Souza)
por Eduardo Carli de Moraes

  1. CONTRA OS QUE PREGAM NA CRUZ OS HUMANOS!

zara1Podemos considerar Assim Falou Zaratustra como um escrito religioso? Estamos diante de uma tentativa nietzschiana de compor uma nova bíblia ou algo a ser reverenciado como sagrado? A estas questões podemos seguramente responder negativamente: em sua autobiografia, Ecce Homo, Nietzsche é explícito em afirmar que ali não fala nenhum fundador de religião e que seu autor prefere ser considerado mais um sátiro do que um santo. Ademais, a filosofia do autor de O Anticristo e O Crepúsculo dos Ídolos inclui um vasto empreendimento de desmistificação e crítica da religião: o conjunto da obra nietzschiana está repleta de dinamitações das idolatrias e das superstições, sendo evidente que Nietzsche jamais pretendeu escrever algo a ser sacralizado ou solidificado em dogma.

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Heinrich Heine, um dos poetas que Nietzsche mais admirava

 A edição brasileira da Companhia das Letras traz em sua contra-capa, por exemplo, a ideia de que “o profeta Zaratustra deixa seu esconderijo nas montanhas para pregar aos homens um novo evangelho”, formulação equívoca e que certamente desagradaria ao próprio Nietzsche, que jamais se mostrou desejoso de escrever um “novo evangelho”. E nada lhe causava mais horror do que a perspectiva de um dia ser canonizado!  Preferimos considerar o Zaratustra como uma obra-de-arte, um livro onde as fronteiras entre a filosofia e a literatura, o pensamento racional e a poesia lírica, o misticismo e a música, são dissolvidas. Uma obra em que aparecem unidas a crítica social, a busca pelo conhecimento e a ânsia de criar beleza. Um monumento da criatividade humana onde a ética e a estética dão as mãos. Nietzsche compôs um livro impregnado de lirismo e eloquência poética, cheio de elementos lúdicos e satíricos, que revela muitos traços da influência exercida sobre ele por alguns de seus autores prediletos – como Hölderlin, Heine, Byron e Goethe. Ademais, o livro carrega um alto grau de musicalidade, podendo ser designado como um “poema sinfônico”, como frisa Paulo César de Souza:

 “Nietzsche tinha uma preocupação extrema com a sonoridade das frases, e sempre recordava que ler, para os antigos gregos, significava ler em voz alta. (…) A arquitetura de Assim falou Zaratustra tem alguma afinidade com obras musicais. Não tanto porque as quatro partes corresponderiam aos movimentos de uma sinfonia, mas pelo empenho em dar expressão a muitos tons e sentimentos. (…) O compositor Gustav Mahler, por exemplo, disse que o Zaratustra ‘nasceu completamente dentro do espírito da música’. O que não chega a surpreender, sendo Nietzsche o filósofo que mais intensamente se envolveu com música e tendo sido ele próprio um (modesto) compositor.” (SOUZA, P.C. Posfácio à “Assim Falou Zaratustra”. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2011. Pg. 345.)

Vale lembrar que a obra de Nietzsche também inspirou a composição homônima de Richard Strauss, composta em 1896 e cujas 9 partes são todas batizadas com nomes de capítulos do Zaratustra; a abertura, que representa o nascer do Sol, tornou-se célebre ao ser utilizada por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisséia Espacial (1968).

Compreendido no contexto das outras obras de Nietzsche, marcadas por uma hostilidade escancarada em relação ao cristianismo e por uma crítica feroz de toda “moralidade de rebanho”, torna-se evidente que Assim Falou Zaratustra é uma obra que destoa dos escritos ditos “sagrados” pela profusão de conteúdos ímpios, blasfematórios e heréticos que povoam suas páginas. O Livro I, por exemplo, termina com uma máxima claramente atéia, na qual o crepúsculo dos deuses e a aurora de uma nova humanidade são anunciados como fenômenos consecutivos: “Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem!”

Se os profetas das mais variadas tradições religiosas exigem de seus seguidores a fidelidade absoluta e a obediência completa, Zaratustra, pelo contrário, é aquele que recomenda a suspeita e a desconfiança em relação a todos os profetas, a começar por ele próprio: “afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! (…) Retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos. E por que não quereis arrancar louros da minha coroa?” (Livro I, Da Virtude Dadivosa, #3). Palavras escritas por um filósofo que se auto-denominava um “mestre da suspeita” e que dizia que todo autêntico pensador tem o “dever da desconfiança”!

camelo

Vê-se claramente que não estamos diante de um mestre que exija subserviência e submissão, mas sim de alguém que convida seus alunos ao pensamento independente e à vontade própria. Isto se torna ainda mais claro na parábola sobre o camelo, o leão e a criança (“Das Três Metamorfoses”): nela, o camelo é símbolo de uma reverência servil, de quem “se ajoelha e quer ser bem carregado” (Livro I, Das Três Metamorfoses, p. 27). Esta besta-de-carga, que renuncia à sua vontade própria e deixa que seu lombo seja carregado com pesados fardos, este triste camelo resignado e sofredor, é o que Zaratustra nos exorta a enxotar de nosso espírito com um rugido leonino!

No Livro III, Nietzsche retoma o tema quando versa sobre seu arqui-inimigo, o “espírito de gravidade”, frisando que a batalha de Zaratustra é contra tudo o que é imposto – como cruz! – às costas dos humanos, tornando-os vergados, corcundas, forçando-os a cair de joelhos. A rebeldia do leão que diz “não!” é, portanto, uma etapa essencial na metamorfose do espírito em sua caminhada rumo à possibilidade de se transformar num genuíno criador.

“Quase no berço já nos dão pesados valores e palavras: ‘bem’ e ‘mal’ – é como se chama esse dote. (…) E nós – carregamos fielmente o que nos dão em dote, em duros ombros e por ásperas montanhas! E, se suamos, nos dizem: ‘Sim, a vida é um fardo!’ Mas apenas o homem é um fardo para si mesmo! Isso porque carrega nos ombros muitas coisas alheias. Tal como o camelo, põe-se de joelhos e deixa que o carreguem bastante. Em especial… o homem no qual é inerente a veneração: demasiados valores e palavras pesados alheios põe ele sobre si – e então a vida lhe parece um deserto!” (Livro III, Do Espírito de Gravidade,  #2, p. 184).

zara2Claramente se vê que a reverência acrítica, a obediência à figuras de autoridade, a servidão voluntária, parecem abomináveis a Nietzsche, um dos filósofos que mais ardor pôs em denunciar a tendência a obedecer-sem-pensar. São inumeráveis as ocasiões em que Zaratustra critica a covardia de seguir-o-fluxo, indo onde o rebanho vai: nada mais detestável do que uma pessoa que, em tudo que faz, é uma mariazinha-vai-com-as-outras ou uma obediente seguidora de ordens que descem da boca do opressor, do governante, do sacerdote. O que Zaratustra busca não são crentes, papagaios de sua doutrina, repetidores de dogmas, disseminadores de uma decoreba, veneradores imbecis de autoridades transformadas em estátuas:

“Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração tombar? Cuidai para que não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois os meus crentes: mas que importam todos os crentes? Ainda não havíeis procurado a vós mesmos: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças. Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós.” (Livro I, Da Virtude Dadivosa, #3)

Seria pois legítimo chamar de profeta uma figura que detesta os crentes, que não deseja ser o pastor de um rebanho uniforme e que recomenda a cada um que siga a trilha da independência? Zaratustra não seria muito mais o anti-profeta, hostil a todos os pastores, arredio ao autoritarismo daqueles que desejam ser seguidos, obedecidos e venerados? De fato, Zaratustra veicula críticas severas àqueles que agem sempre por “instinto de rebanho”, motivados por um impulso gregário que os leva se unirem em seitas para fugirem de si mesmos. Só julgam insuportável a solidão aqueles que não suportam a companhia de si mesmos – e estes jamais conquistarão nenhuma sabedoria. “Todo isolamento é culpa: assim fala o rebanho…” (Livro I, Do Caminho do Criador, pg. 60)

O fato de Zaratustra ter escolhido o isolamento voluntário nas montanhas, onde viveu como um eremita por 10 anos, explicita que se trata de uma figura que, como outras na história religiosa, buscou a iluminação através da meditação solitária – de modo semelhante, por exemplo, a Sidarta Gautama (o Buda). Contra a tendência de pastores e pregadores a culpabilizarem aqueles que se desgarram do rebanho, Zaratustra afirma que a sabedoria só é possível para aquele que tem a ousadia desse desgarramento. “De companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos… Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho! Para atrair muitos para fora do rebanho – vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores.” (Prólogo, #9, pg. 23)

A essência dos ensinamentos zaratustrianos vão num sentido radicalmente contrário à mensagem de quase todos os profetas religiosos: Zaratustra não exige fé nem esperanças supraterrenas; afirma que não existem transcendentes paraísos nem infernos; nega que exista vida após a morte do corpo; afirma que Deus está completamente morto e se auto-denomina o “sem-deus”… Em suma: se Zaratustra pudesse ser chamado de profeta, teríamos que compreendê-lo como uma espécie revolucionária de profeta ateu, que jamais fala sobre um vindouro Reino de Deus, nem de qualquer Redenção dos Pecados. Se há a presença forte do futuro nos ditos de Zaratustra, trata-se sempre do futuro da Terra e da Humanidade, jamais de um suposto Além-Mundo post mortem.

No capítulo Dos Sacerdotes, do Livro II, torna-se explícita a antipatia que Zaratustra sente por seus “inimigos”, os sacerdotes, que “lhe causam pena e também ofendem seu gosto”:

rio de janeiro

“Para mim, são prisioneiros… Aquele a quem chamam Redentor lhes pôs correntes – cadeias de falsos valores e palavras ilusórias! Ah, se alguém os redimisse de seu Redentor! (…) Canções melhores eles teriam de me cantar, para que eu aprendesse a acreditar em seu Redentor: os discípulos deste teriam de me parecer mais redimidos! (…) Em verdade, seus redentores mesmos não vieram da liberdade e do sétimo céu da liberdade! Em verdade, eles mesmos nunca andaram sobre os tapetes do conhecimento! O espírito desses redentores era feito de lacunas; mas em cada lacuna haviam posto sua ilusão, seu tapa-buraco, que chamavam de Deus.” (Livro II, Dos Sacerdotes, p. 87)

As crenças religiosas, como é tão recorrente na obra de Nietzsche, são explicadas a partir da psicologia, ou seja, a partir de “carências” humanas que estas crenças nascem para remediar – em linguagem zaratustriana, portanto, Deus é a invenção de homens que o criaram como “tapa-buraco” para suas lacunas. Uma perspectiva semelhante sobre a gênese das idéias religiosas, consideradas como fruto das fraquezas e insuficiências humanas, encontra-se em muitos autores contemporâneos ou posteriores a Nietzsche – como, por exemplo, Feuerbach, Max Stirner, Karl Marx e José Saramago.

No Livro IV, quando Zaratustra encontra o personagem do “Último Papa”, uma espécie de figura crepuscular de uma religião moribunda, explicita-se ainda mais o que Nietzsche rejeita no monoteísmo e na divindade como a imagina a tradição judaico-cristã. A ideia de um deus colérico, vingativo, que age através de dilúvios e bolas de fogo, que comete os mais gigantescos genocídios, que ameaça com punições infernais e seduz com recompensas celestiais, tudo isso parece abominável aos olhos de Zaratustra: “Quem o exalta como deus do amor não tem o amor em alta conta. Não pretendia também ser juiz esse deus? Mas quem ama, ama acima do prêmio e do castigo. Quando ele era jovem, esse deus do Oriente, era duro e vingativo, e construiu um inferno para o gozo de seus favoritos…” (Livro IV, Aposentado, p. 247).

Em uma carta da época em que redigiu Assim Falou Zaratustra, endereçada a seu amigo Franz Overbeck, Nietzsche descreve “o espanto que sentiu ao presenciar, em Roma, devotos que subiam de joelhos a escadaria de São Pedro (carta de 20 de maio de 1883)” [Nota de Paulo César de Souza, pg. 322]. Inspirado por este assombro diante dos penitentes, Nietzsche põe na boca de Zaratustra uma série de diatribes contra aqueles que “não souberam amar seu Deus de outra forma senão pregando na cruz o ser humano!” (Livro II, Dos Sacerdotes, pg. 88). As igrejas construídas pelos sacerdotes são descritas como “cavernas” de “luz falseada” e “ar abafado” onde os sacerdotes exigem os atos mais indignos: a submissão e o auto-rebaixamento.

“Sua fé ordena: ‘Subi de joelhos, ó pecadores!’ Quem criou tais cavernas e degraus de penitência? Não foram aqueles que queriam se esconder e se envergonhavam diante do céu puro?“ (p. 87) Claramente, Zaratustra fala contra a pregação sacerdotal que inculca a vergonha, a culpa, a necessidade de penitência e subserviência. Zaratustra não cessa de expressar seu nojo e seu desgosto com uma humanidade que dobra os joelhos diante de falsos profetas e ídolos monstruosos. Zaratustra quer, antes de tudo, retirar o homem de sua cruz, aliviar o camelo do fardo em seu lombo, devolver aos humanos o canto, o riso e a alegria terrestre.

Zaratustra não possui igrejas ou templos onde deseja ver congregados seus seguidores; pelo contrário, aprecia as caminhadas ao ar livre, o cume das montanhas, a paisagem ampla contemplada com brisa no rosto. Poderíamos dizer que nenhum templo de pedra o satisfaria e que, como Dionísio, ele só aprecia cultos a céu aberto. Nietzsche, filósofo  demolidor de ídolos, procura dessacralizar e parodiar a imagem solene do Cristo martirizado e crucificado: ao invés da coroa de espinhos, Zaratustra usa uma coroa de flores e se diz  discípulo deste “deus carnavalizador” que é Dionísio.

Para Nietzsche, a tradição judaico-cristão acarretou uma terrível decadência para a humanidade, que passou a cultuar o martírio, a auto-renúncia, o sacrifício-de-si, como se a mensagem de Jesus Cristo fosse esta: “carregue resignado a cruz do teu sofrer na esperança de uma recompensa por vir!” Zaratustra é inimigo da cruz, este instrumento de pena capital usado pelos romanos contra milhares de pessoas assassinadas pelo Império! E é uma estranha perversão transformar a mensagem de Jesus de Nazaré, eivada de exortação ao amor ao próximo e à caridade terráquea entre mortais, numa apologia do sofrimento voluntário e do ressentimento impotente que se contenta com a imaginação de outros-mundos! Zaratustra, longe de cultuar o sofrimento redentor, é uma figura dionisíaca, firmemente plantado no jardim terrestre, que não acredita em nenhum mundo transcendente. Como lembra Maria Cristina Ferraz, recuperando as divindades gregas Apolo e Dionísio que tanta importância tiveram na obra de Nietzsche sobre A Origem da Tragédia,

“Dionísio difere de seu irmão Apolo, o deus arquiteto do panteão, fundador de grandes cidades, pois sua morada preferida será sempre um templo ao ar livre, um belo antro sempre verde; e, para os iniciados, um lugar onde cantar o evoé.” (FERRAZ: O Bufão dos Deuses, p. 87) É neste contexto que se deve compreender a fala de Zaratustra (Livro III, Os 7 Selos, # 2), quando este diz “amar até mesmo as igrejas e os túmulos de deuses, quando o olho puro do céu atravessa os tetos em ruína; gosto de me sentar sobre igrejas em ruína.” Como sintetiza Ferraz, “sobre as ruínas do cristianismo senta-se, triunfante, o antigo deus nômade; sobre os escombros da tradição judaico-cristã Dionísio se reapropria dos velhos templos…” (FERRAZ: op cit, p. 88).

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2. O ZARATUSTRA HISTÓRICO SEGUNDO MIRCEA ELIADE

O ataque virulento contra as autoridades sacerdotais, os valores transcendentes e as esperanças supraterrenas, marcas tanto da filosofia nietzschiana quanto dos discursos de Zaratustra, não impedem que muitos considerem o “tom” da obra muito aparentado com o de outros escritos “sagrados”. O tradutor brasileiro de Nietzsche, Paulo César de Souza, pondera sobre as “manifestações de um sentimento profundamente religioso” em Assim Falou Zaratustra nos seguintes termos:

“A reverência ante os problemas fundamentais da vida, a intensidade da indagação, a proposta de redenção da humanidade, os conceitos de “sobre-humanidade” e de eterno retorno das coisas, e ainda mais o tom em que tudo isso é expresso, são manifestações de um sentimento profundamente religioso, e remetem a um tempo em que religião, poesia e pensamento mal se distinguiam um do outro, ao período pré-clássico da Antiguidade, tão estimado por Nietzsche.” (pg. 346)

De fato, Assim Falou Zaratustra traz muitas referências e alusões aos livros sagrados das mais variadas culturas. Múltiplas alusões à Bíblia, muitas vezes paródicas, povoam a obra.  Como Souza soube tão bem notar, marcam presença também muitos elementos da tradição religiosa oriental, que Nietzsche decerto conhecia e estudava há tempos, a ponto de ter escolhido um verso do Rig Veda hinduísta como epígrafe de Aurora (“há tantas auroras que ainda não nasceram…”).

Como leitor atento da obra de Schopenhauer, Nietzsche decerto adquiriu muito conhecimento sobre a “espiritualidade” oriental que tanto influenciou o autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Já Paul Deussen, com quem Nietzsche estudou filologia na juventude e que foi um de seus amigos mais próximos e fiéis, chegou a escrever grandes e minuciosas obras sobre o tema, com destaque para O Sistema dos Vedanta, que Nietzsche certamente leu, como indicam sua correspondência com este camarada. De modo que o autor do Zaratustra possuía um amplo leque de leituras e saberes a respeito das crenças, mitos, ritos e profetas das mais variadas vertentes religiosas, algo essencial de se manter em mente na decifração de Assim Falou Zaratustra, texto tecido a partir de uma rica inter-textualidade. Por exemplo: os discursos do Buda normalmente terminavam com um “assim falou o sublime”, o que pode ter influenciado o recorrente desfecho das falas zaratustrianas.

eliadeSabe-se ainda que o personagem principal da obra de Nietzsche se baseia numa personalidade histórica, Zaratustra ou Zoroastro, um profeta-poeta que viveu na antiga Pérsia (atual Irã), aproximadamente entre 628 e 551 a.C. Suas doutrinas integram o Zend-Avesta, reunião dos textos sagrados do zoroastrismo. Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, os gathas (hinos) de Zaratustra estão repletos de “poemas enigmáticos suscetíveis de fascinar o não especialista” e “inscrevem-se numa velha tradição indo-europeia de poesia sagrada” (ELIADE: História das Crenças e das Ideias Religiosas, Volume I: Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis, Ed. Jorge Zahar, p. 289 e 291).

 Quanto ao problema da “historicidade de Zaratustra”, Eliade pondera: “Depois de algumas gerações, a memória coletiva já não consegue conservar a biografia autêntica de uma personagem eminente; esta acaba por se tornar um arquétipo, no sentido de exprimir unicamente as virtudes de sua vocação, ilustrada por acontecimentos paradigmáticos específicos ao modelo que ela encarna. Isso é verdadeiro não só para Gautama Buda ou Jesus Cristo, mas também para personagens de menor envergadura… Os gathas, considerados pela maioria dos eruditos como obra de Zaratustra, contêm alguns detalhes autobiográficos que confirmam a historicidade de seu autor. Aliás, eles são as únicas referências de que dispomos sobre sua vida.” (ELIADE, op cit, p. 290).

De acordo com a reconstituição de Eliade, Zaratustra pertencia a um clã de criadores de cavalo e era extremamente pobre; “segundo a tradição, Zaratustra veio ao mundo rindo” (p. 293); adorava uma divindade chamada Aúra-Masda e foi uma das figuras mais importantes da religião masdeísta; “a comunidade a que ele dirigiu sua mensagem era constituída de pastores sedentários”. Zaratustra é um crítico feroz dos sacerdotes “sacrificantes”, “ataca violentamente as pessoas que sacrificam bovinos” e “incita seus companheiros a rechaçar pelas armas os inimigos, o ‘mau’…” (p. 291).

Zarathustra 02Em sua análise dos textos litúrgicos do zoroastrismo, os Yasna, Eliade comenta que “causam espanto a urgência e a tensão existencial com que Zaratustra interroga seu Senhor: roga-lhe que o informe dos segredos cosmogônicos e que lhe revele seu futuro… Cada estrofe do célebre Yasna é introduzida com as mesmas palavras: ‘Eis o que te pergunto, Senhor – queira responder-me!’ Zaratustra deseja saber ‘quem determinou o curso do Sol e das estrelas’, ‘quem fixou a Terra embaixo, o Céu nas nuvens, de sorte que não caia?’, e suas perguntas relativas à Criação sucedem-se num ritmo cada vez mais intenso.” (p. 292) O Zaratustra persa é portanto uma figura que tenta decifrar os enigmas cosmogônicos, as esfinges das estrelas, de maneira similar às abissais reflexões do Zaratustra nietzschiano sobre a Eternidade.

Nietzsche também explica sua escolha deste personagem, em Ecce Homo, dizendo que Zaratustra foi o primeiro a estabelecer uma dicotomia radicalmente maniqueísta entre Bem e Mal: “Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o plano metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. (…) Ele criou esse mais fatal dos erros, a moral; em consequência, deve ser também o primeiro a reconhece-lo.” (Posfácio, pg. 339). Eliade concorda que o Zaratustra persa era alguém obcecado com a moral: “o castigo dos maus e a recompensa dos virtuosos são, para Zaratustra, obsessões. Ele não se esquece de interrogar o Senhor sobre a punição imediata de ‘quem não dá o salário a quem o mereceu’. Mostra-se impaciente diante da impunidade dos membros das ‘sociedades de homens’ que continuam a sacrificar bovinos.” (ELIADE: #101, p. 292). “O combate contra os demônios, isto é, contra as forças do mal, constitui o dever essencial de todo masdeísta.” (p. 293)

Eliade também sublinha que Zaratustra e seus primeiros seguidores são tidos por muitos estudiosos como praticantes do “êxtase característico dos xamãs centro-asiáticos” e que estava familiarizado com técnicas xamânicas indo-iranianas. “Na tradição avéstica o próprio Zaratustra gozava da fama de entregar-se ao êxtase” e é “provável que o canto desempenhasse um papel importante” na conquista do transe. Vishtaspa, um dos primeiros discípulos de Zaratustra, responsável pela disseminação de suas idéias e hinos, é descrito pela tradição como alguém que “utilizava o cânhamo (bhang) para alcançar o estado extático” (p. 294). Não é nada absurdo, portanto, supor que haja semelhanças entre este xamanismo masdeísta do Zaratustra histórico e os ritos dionisíacos que Nietzsche sublinha em sua meditação sobre a Grécia do período trágico. Eliade sublinha ainda que a “experiência mística masdeísta é o resultado de uma prática ritual iluminada pela esperança escatológica”.

A divindade adorada pelo Zaratustra persa, Aúra-Masda, “criou o mundo por meio do pensamento, o que equivale a uma creatio ex nihilo” (p. 295). Esta divindade dá ao homem a liberdade de escolher entre o bem e o mal e há uma “viagem dos mortos” a um local de julgamento, onde “cada um será julgado de acordo com a escolha que efetuou na Terra. Os justos serão admitidos no paraíso, na ‘casa do canto’; quanto aos pecadores, permanecerão ‘para sempre hóspedes da casa do mal’ (Yasna, 46:11)”. (ELIADE: p. 297). As semelhanças com a mitologia judaico-cristã que surgirá séculos depois não param por aí, já que

“o ponto de partida da predicação de Zaratustra é a revelação da onipotência, da santidade e da bondade de Aúra-Masda. Ao escolher Aúra-Masda, o masdeísta escolhe o bem contra o mal, a verdadeira religião contra aquela dos daevas. Por conseguinte, todo masdeísta deve lutar contra o mal. Nenhuma tolerância com relação às forças demoníacas… Essa tensão não tardará a solidificar-se em dualismo. O mundo será dividido em bons e maus, e acabará por assemelhar-se a uma projeção, em todos os níveis cósmicos e antropológicos, da oposição entre as virtudes e os seus contrários. Uma outra oposição é apenas indicada, mas terá um grande futuro na especulação iraniana: aquela entre o espiritual e o material, entre o pensamento e o ‘mundo ósseo’ (Yasna, 28:2)” (p. 298-299).

O personagem de Nietzsche, longe de ser construído em fidelidade a seu protótipo persa, é em muitos aspectos a subversão exata deste: se o antigo Zaratustra era um maniqueísta, o Zaratustra nietzschiano é alguém que pretende “ir além do bem e do mal”; se o antigo Zaratustra acreditava na criação a partir do nada (ex nihilo) e numa temporalidade linear, com início no ato criador do cosmos de Aúra-Masda e com desfecho num julgamento final, o Zaratustra nietzschiano concebe o tempo como um círculo ou um anel, afirmando uma eternidade cuja trilha é curva. Em suma, Nietzsche não respeita as características do profeta persa, mas o remolda e subverte até transformá-lo numa figura dionisíaca, dançarina, cantarolante, que santifica a própria risada e é inimiga de todos os camelos carregadores de cruzes.


A SER CONTINUADO…