Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Roma, julho de 2003: o Ministro da Cultura e artista popular Gilberto Gil manifesta-se diante de vários personalidades políticas européias: “a cultura não pode ser excludente, deve ser entendida como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem todos os atos criativos de um povo.”
Criticando todo tipo de imobilismo ou conservadorismo que quisesse manter a cultura em estado de rigor mortis ou de estátua, o genial artista tropicalista, no início de sua trajetória enquanto ministro do presidente Lula, afirmava que esta “constelação dinâmica” de “todos os atos criativos de um povo” deveria estar no foco do agente público que tem por função e ofício estimular a florescência de uma multidiversa criatividade popular.
Para melhor explicar quais as funções que concebe para o poder público na área cultural, Gil evocava a técnica de massagem de origem oriental, o do-in: “É preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país.” (GIL, O Chamado de Roma, pg 215)
Tal concepção – objeto de estudo pormenorizado na tese de Ariel Nunes: Por um “Do-In Antropológico”: Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Políticas Públicas Culturais (UFG, 2012) – reflete toda a amplidão da sabedoria de Gilberto Gil: ao invés de fechar-se em paradigmas ocidentais e eurocêntricos, ele abriu-se para sabedorias ancestrais vindas do Oriente, concebendo uma renovação da cultura brasileira a partir deste do-in antropológico, uma espécie de acupuntura cultural, em que cada um dos pontos-de-cultura no território nacional constituiriam uma teia solidária numa mega-organismo criativo, a ter suas atividades de colaboração produtiva na construção conjunta de uma realidade alternativa estimulada pelo MinC.
Ou seja, Gil quis, na prática, auxiliar a insurgência de nossa nação contra os epistemicídios, como diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O recurso à metáfora da massagem oriental do-in já explicita que Gil quer ir além do discurso hegemônico eurocêntrico, etnocêntrico ou norte-americanizado, em busca da valorização de epistemes e práticas que foram injustamente colocadas à margem – sobretudo as africanas e as orientais. Oriente-se, rapaz! E acorde para todos os Eldorados negros!
Em seu belíssimo livro A Poética e a Política do Corpo em Gilberto Gil (Perspectiva, 2012), a estudiosa Cássia Lopes sintetizou o marco histórico que representou a ascensão de Gil ao ministério:
“Em seu discurso de posse como Ministro da Cultura, Gil propõe um entendimento da noção de cultura que abala as hierarquias consolidadas pela eleição do saber erudito e acadêmico. Abre-se o campo político para ouvir o traçado de uma epistemologia crítica no modo de assimilar o processo cultural: exige-se o diálogo com outras formas de conhecimento, que venham pôr em colapso a perspectiva monolítica do conceito de cultura, ainda colonialista, mantido na valorização da prática letrada. A assunção de Gilberto Gil como ministro permite refletir sobre o exercício epistemológico dominante que silenciou tantas vozes e muitos ritmos, para desqualificar, ou mesmo negar, diferentes formas artísticas e culturais no Brasil e em várias partes do mapa mundial. (…) É indispensável interpretar a ascensão política do cantor popular com lentes atentas a mecanismos que venham validar a multiplicidade de diferentes saberes que compõem o tecido social brasileiro. Em seu discurso, podem-se entrever a exaustão do modelo epistemológico norte-eurocêntrico, cuja prática ratificou representações, sustentou a tradição crítica etnocêntrica, consolidou a ausência de países, de comunidades, de tantos saberes e de rostos nas tomadas de decisões políticas, sem o necessário compartilhamento do poder.” (LOPES, C; 2012, pg. 207 – 208)
Cássia Lopes aponta ainda que Gil busca colaborar para a emergência de uma “consciência bailarina”, em contraste com a consciência petrificada em conceitos rígidos e ortodoxias limitadoras do movimento. Esta consciência que dança, “tal como exercitada pelo ministro e artista, capta o mundo a partir da percepção de suas ondulações, da transformação que pode emergir nos encontros e nas fronteiras interculturais, sem fazer da corporeidade uma serva da razão. De acordo com os versos do cantor, se há um deus eterno, ele se traduz na dinâmica da “Mu-dança”, que reintegra a interioridade e a exterioridade nos movimentos entre o sujeito e o seu campo de atuação na sociedade. O corpo dançarino desenha o social e o político como um campo dinâmico e mutável, capaz de produzir outras partituras de sociabilidade.” (CÁSSIA LOPES, p. 188)
A Casa de Vidro, ao aventurar-se aos trabalhos como ponto de cultura no ano de 2019, apostou na necessidade crucial de manter viva e acesa a chama do do-in antropológico e da teia da Cultura Viva. Nós, agentes culturais que estudamos a fundo as políticas culturais propulsionadas pelo Governo Lula, sabemos que há ali um precioso legado a ser defendido e reativado, posto de novo em ação, em reXistência ativa diante da barbárie estupidificante do bolsonarismo.
O (des)governo Bozofascista, assim que ascendeu ao poder em 2019, decretou a extinção do Ministério da Cultura e tratou com imenso desdém todos os avanços ocasionados pelas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC. A seita Bolsonarista perpetrou, além da obscena destruição do MinC, e da submissão da secretaria de cultura ao Ministério da Família chefiado pela pastora obscurantista Damares Alves, teve ainda alguns episódios lamentáveis como o cosplay de Goebbels de Alvim e a apologia dos anos-de-chumbo da Ditadura no “sejam leves” de Regina Duarte (cantarolando a canção “Pra Frente Brasil”, destinada a alienar nosso povo enquanto a tortura e os assassinatos políticos seguidos de desaparecimento de cadáveres eram práticas correntes do Terrorismo de Estado inaugurado pelo Golpe de 1964 e aprofundado pelo AI-5 de Dezembro de 1968).
A publicação disponível gratuitamente – um livro gráfico colorido, repleta de lindas fotos e diagramada com primor – busca revelar em minúcias o que ocorreu em 2015, durante o XV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, uma realização da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Naquela ocasião, ocorreu ali a reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, com representantes de todo o Brasil reunidos para pensar as potencialidades e os obstáculos no contexto do programa Cultura Viva.
O conceito chave e fio condutor do livro é a participação social, de modo que buscamos dar voz a muitos dos ponteiros, artistas, produtores culturais, jornalistas, ativistas, agentes comunitários, dentre outros, que participaram desta Polifonia Participativa dentro do “Encontrão”. No manifesto gerado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, nesta ocasião – a Carta de São Jorge – os trabalhadores da cultura escreveram:
“A Política Nacional Cultura Viva (Lei n. 13.018/2014) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Essa política é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos os governos federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a exercer protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização.” – Carta de São Jorge
Escrita, produzida e dirigida por Hugo Blick(também responsável pela minisérie The Honourable Woman (A Mulher Honrada), Black Earth Rising foca no trabalho de uma equipe de juristas que dedicam suas vidas ao esforço de penalização de genocidas e criminosos-de-guerra, processados em tribunais penais internacionais como o de Haia (Holanda). A personagem principal, Kate Ashby (interpretada por Michaela Coel), atravessa radicais transformações de identidade em uma trajetória para desocultar os segredos de seu passado: ela era uma criança em meio à matança generalizada deflagrada em 1994 lá em sua terra natal Ruanda, e que se estendeu pelos anos seguintes no país vizinho (Zaire / Congo).
Sem memórias claras de sua primeira infância, Kate – que foi adotada pela advogada inglesa Eve Ashby – só poderá compreender muito mais tarde os maiores mistérios de seu destino prévio. Transformada numa mulher em ação, na luta pela memória e pela justiça, ainda que tardias, Kate Ashby vai numa jornada em busca do tempo perdido bastante peculiar, desvelando os nós que entrelaçam seu destino pessoal com os destinos coletivos dos povos do Continente Matriz da humanidade, a África.
Em entrevista à BBC, Blick revelou um pouco do que o inspirou a realizar a série:
“Onde eu cheguei não é o destino que eu esperava. Alguns anos atrás, olhei para os julgamentos de Nuremberg como parte de uma pesquisa de fundo para a série “A mulher honrada “. Consequentemente, fiquei interessado em explorar como perseguimos hoje os criminosos de guerra internacionais. Comecei com o Tribunal Penal Internacional (TPI) e fiquei surpreso ao descobrir, no momento da minha pesquisa, que a maioria, senão todas as acusações formais, eram contra africanos – negros africanos. Isso então me atraiu para o Congo. O TPI não estava apenas perseguindo os perpetradores do genocídio de Ruanda, fiquei ainda mais intrigado ao descobrir que ele também estava perseguindo indivíduos que ajudaram a pôr fim ao genocídio. Ambos os lados eram procurados pelo TPI por supostas atrocidades cometidas na República Democrática do Congo após o genocídio em meados da década de 2000. Eu queria entender por que aparentes vilões e heróis estavam sendo perseguidos. E quanto mais eu olhava, mais fundo eu tinha que ir. ” (BLICK, Hugo. BBC.) [2]
A compreensão do que ocorreu em Ruanda, em 1994, é um desafio cognitivo tremendo. As dificuldades começam pelo fato de que poucos tem estômago para mergulhar no estudo de fenômenos que são tão chocantes e angustiantes, devido à escala monumental do horror e da violência que envolvem. Philip Gourevitch escreve, sobre aquela época, de maneira bem punk, que “o governo ruandês adotara uma nova política, segundo a qual todo mundo do grupo majoritário hutu era convocado a matar todo mundo da minoria tutsi. O governo e um impressionante número de seus súditos imaginavam que exterminando os tutsis poderiam fazer do mundo um lugar melhor – e o assassinato em massa começou.” (GOUREVITCH, P. Cia das Letras, leia um trecho) [2]
O trecho de Gourevitch estabelece uma distinção entre a minoria Tutsi e maioria Hutu, afirmando que a maioria, através do assassinato em massa da minoria, “imaginavam que poderiam fazer do mundo um lugar melhor”, o que é o supra-sumo do contra-senso: utilizar um meio como o assassinato em massa para atingir a finalidade de um mundo melhor é algo estapafúrdio. Só temos a lamentar a crença de muitos na tese de que “o fim justifica os meios”, quando na verdade meios atrozes e cruéis sempre hão de conspurcar os fins, mesmo os supostamente mais elevados. Creio, porém, que o buraco é mais embaixo, que o ímpeto idealista de fabricar uma realidade social melhorada através da purificação, da limpeza étnica, está calcada num dos mais sérios problemas a desgraçar a caminhada humana sobre o planeta – o racismo. Tema que Black Earth Rising evita encarar de frente.
Outra dificuldade que se interpõe como obstáculo na nossa tentativa de compreensão das ocorrências em Ruanda, em 1994, parece-me ser a seguinte: por comodismo e facilidade, ou seja, pela lei-do-mínimo-esforço que preside o trabalho de muitas mentes que se abandonam ao Império da Preguiça, temos uma certa tendência a simplificar as coisas através da perigosa prática do binarismo – e também do maniqueísmo que muitas vezes o acompanha. Usualmente, desejamos enquadrar o mundo e a história em um esquema em que separamos o joio do trigo de modo bastante tosco: há vilões e heróis, bandidos e mocinhos, a luta entre o Bem e o Mal, “ou você está conosco ou está contra nós” (recentemente, um presidente genocida como George W. Bush reciclou esta desgraça de maniqueísmo binário ao lançar sua Guerra Contra o Terror).
A realidade, porém, é muito mais complexa e destroça nossos binarismos maniqueístas. Jamais faríamos o mínimo de Justiça, nem honraríamos os deveres da Memória, tentando enquadrar, em massa, Tutsis e Hutus em uma dessas categorias: Vítimas e Carrascos. Precisamos ir além do simplismo de opor uma “coitada minoria massacrada” e uma “desumana maioria assassina”. Temos que complexificar o quadro e olhar de frente no rosto da Besta Humana. Pois a Humanidade sabe muito bem ser desumana. Nossa união ainda está por ser inventada.
PARA ALÉM DO BINARISMO E DO MANIQUEÍSMO
Um dos ensinamentos de Black Earth Rising é que não podemos cair no binarismo fácil de classificar estas etnias como vítimas (Tutsis) e carrascos (Hutus) – as posições de vítimas e carrascos são muito mais intercambiáveis. Ser um Tutsi não é um atestado de vítima, nem imuniza a pessoa contra o cometimento de atrocidades, nem tampouco ser um Hutu é um atestado de genocida, nem impede a pessoa de militar em prol da convivência pacífica.
É isto que Kate Ashby não consegue compreender a princípio: ela está aferrada à noção de que os Tutsis são as vítimas, os Hutus os genocidas. Aferrada, além disso, à crença sobre si mesma: está certa de que é uma Tutsi sobrevivente do genocídio, e tudo fará para que os responsáveis pelo morticínio escapem da impunidade de que ainda gozam. Por isso Kate suporta tão mal que sua mãe tente incriminar em Haia o General Simon Nyamoya, um chefe Tutsi que ajudou a pôr fim ao massacre, em 1994, mas depois se envolveu em crimes de guerra e tráfico de minérios no Congo, além de ter participado de uma carnificina contra um campo de refugiados Hutu em território congolês.
Baseado em fatos reais que o Mirror reconta, assim como a reportagem da BBC, Black Earth Rising merece ser vista na íntegra para que se possa ter uma experiência plena das metamorfoses de Kate Ashby no decorrer da série. Ema espécie de 1º ato, Kate Ashby reluta em ver seu herói Nyamoya sendo destronado, caindo do pedestal em que ela, e tantos outros, mantinham-no. É uma primeira amarga lição, que a impede de idealizar cegamente os chefes Tutsis que lutaram para pôr fim ao genocídio em 1994: apesar de “libertador” dos Tutsis que estavam sendo massacrados, revela-se que Nyamoya também é culpado por crimes contra a humanidade e limpeza étnica – sobretudo no episódio do “desmantelamento” (eufemismo para extermínio!) do campo de refugiados Hutus no Congo.
Mais para o fim da série, será revelado que a própria Kate esteve neste campo, sendo dele resgatada por um ativista de ONG. Quase no desfecho da série, Kate está dentro de uma cova coletiva, temendo por sua vida, como se tivesse ganho algumas décadas de sobrevivência para finalmente perecer no buraco onde deveria ter ficado enterrado seu cadáver infantil, mas percebe que um mutirão de pessoas decidiu, como ela, trabalhar para trazer à tona no presente os ossos enterrados de uma História mal contada e ocultada.
Não é possível compreender as ocorrências de que fala a série com o nosso foco exclusivamente em Ruanda em 1994: os precedentes do genocídio incluem necessariamente as ações das grandes nações imperialistas do Ocidente. Não é fora de propósito averiguar quanto do sangue derramado em Ruanda tem origens numa insanidade racista que foi inicialmente propagada pelo colonizador europeu e pelas ideologias supremacistas que marcaram não apenas o nazifascismo, mas também o escravismo nos EUA calcado na white supremacy. Sim, precisamos falar sobre ideologias racistas típicas do imperialismo “ocidental” – aquele que praticou por séculos a escravidão contra milhões de africanos – para chegar perto de entender melhor o destravamento das carnificinas ruandesas de 1994.
No fim do século XX d.C., a Humanidade descobria, atônita, nossa resiliente capacidade para o pior, somada à nossa incapacidade de autenticamente aprender com erros passados e suas funestas consequências. Parecíamos condenados a repetir, com Maslow: “O Horror! O Horror!”, frase com que se encerra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, retrato do Congo belga no livro que depois se transformou em Apocalypse Now (filme de F. F. Coppola). O pesadelo do fratricídio entre Tutsis e Hutus segue desafiando nossa Razão a decifrar seus porquês – e diante de vidas humanas reduzidas em massa à morte, é preciso cuidado redobrado naquilo que dizemos e escrevemos. Aqui estou na postura de quem se estarrece que acontecimentos assim estejam entre nossos possíveis, mas não na postura de quem traz todas as respostas em uma bandeja.
Pelo contrário, trago uma bandeja cheia de questões: nós, que nos acostumamos a pensar sobre o racismo como um fenômeno vinculado ao “preconceito de cor”, para lembrar um samba de Bezerra da Silva, como podemos reconfigurar nossa compreensão do racismo diante daquilo que parece ocorrer entre grupos humanos que não estão separados pela barreira epidérmica das dosagens de melanina? O III Reich hitlerista assassinou em massa judeus e bolcheviques, homossexuais e ciganos, mas não consta que tenha visado, como alvos, as populações de descendência africana que estavam naquela Europa que o nazismo pretendeu subjugar a seu sinistro império. Porém, o Holocausto – o genocídio imposto pelo governo nazifascista alemão a mais de 6 milhões de judeus europeus – não é menos racista pelo fato de que, olhado através de um viés bem superficial, trata-se de brancos matando brancos, europeus chacinando europeus.
Algo semelhante me angustia diante do contexto em Ruanda nos anos 1990: Tutsis e Hutus não são distinguíveis por sinais visíveis – similarmente, olhando através de um viés epidérmico, de uma perspectiva que pára na pele, trata-se de negros matando negros, africanos chacinando africanos. O racismo estaria, portanto, riscado da lista de motivações possíveis para estes genocídios? Não creio. O que exige repensar o racismo de modo mais aprofundado, como uma espécie de crença coletiva que um grupo social compartilha e que inclui a desumanização de um outro grupo social. Um dos elementos mais interessantes de Black Earth Rising está na flutuação identitária que o seriado retrata ao descrever as descobertas bombásticas que realiza, em sua vida, a personagem Kate Ashby.
Para todos os efeitos, Kate Ashby aparece-nos, no começo da série, como uma cidadã britânica, uma falante da língua inglesa, uma londrina que cresceu sob os cuidados de sua mãe adotiva, a célebre jurista Eve Ashby. Porém, Kate Ashby é um nome postiço e tardio que vem para encobrir o anonimato de uma criança que sobreviveu sozinha ao genocídio: sem familiares nem amigos que pudessem dizer seu autêntico nome, privada das informações sobre seu batismo africano originário, ela se torna uma sobrevivente do genocídio ruandês a quem se oferece um novo começo no United Kingdom: cresce acreditando, a partir das narrativas que lhe contaram, que é uma Tutsi, sobrevivente de um massacre cometido pelos Hutus.
Qual não será a sua surpresa quando descobrir, conforme avançam suas investigações relacionadas com a tentativa de condenação em Tribunal Penal Internacional do general Hutu Patrice Ganimana, que na verdade Kate Ashby foi em sua primeira infância algo bem diferente de uma criança Tutsi sobrevivente de um genocídio: era uma criança Hutu que deixou o país após o fim da carnificina, tornando-se uma emigrante e depois uma refugiada no país vizinho, então o Zaire, hoje a República Democrática do Congo. A mulher que se conhece por Kate Ashby, cujo nome africano nunca se soube, descobre que lhe mentiram sobre as circunstâncias em que foi resgatada em meio à insana matança dos adultos que a rodeavam: ela acreditava ser um Tutsi que perdeu tudo devido a sanguinários Hutus, e descobre que era uma Hutu que sobreviveu a um massacre perpetrado contra um campo de refugiados no Congo onde estavam 50.000 pessoas, cerca de 9.000 delas crianças.
O que pensar sobre o tema da identidade diante deste caso? Apesar de fictício, o enredo de Black Earth Rising pode nos instigar a seguinte reflexão: nossa identidade não é independente das narrativas que interiorizamos sobre quem somos e sobre a qual grupo social pertencemos. Kate Ashby, em Black Earth Rising, é sempre descrita como uma pessoa sob o risco de colapso psíquico: no primeiro episódio, ela consegue pílulas para tentar controlar seus ímpetos suicidas e faz uma piada com a obra de Primo Levi, judeu sobrevivente do Holocausto. O fato de ser uma sobrevivente de genocídio é essencial à sua identidade, mas os fragmentos de seu passado que ela usou para compor sua auto-imagem revelam-se falsos.
Ela se vê então envolvida numa teia de acontecimentos em que seu destino individual se mescla com o destino de sua pátria e de todo o continente africano: Kate Ashby não está apenas numa viagem de “auto-descoberta”, mas também presa numa teia coletiva e histórica em que terá que reconsiderar radicalmente tudo o que acreditou sobre si, sobretudo a crença de sua pertença à raça/etnia Tutsi.
Um dos grandes temas de Black Earth Rising é o direito à memória e à verdade. A essência dos discursos da personagem Alice Munezero vão neste sentido, o de conclamar-nos para que acessemos o passado em sua verdade, pois em nada contribui para a reconciliação você recalcar o passado coletivo, não permitindo que venham à tona certos episódios que certos grupos não julgam convenientes tornar conhecidos e públicos. A lição que tiro disto é que não devemos “essencializar” a diferença entre Tutsis e Hutus, nem entre nazistas e judeus, como se houvesse de fato uma diferença de essência entre eles que justificasse a noção de que cada grupo pertence à uma diferente raça. Se a diferença não é de essência, é preciso que ela esteja em outra parte, que a diferença seja de pertença, de cultura, de aprendizado, de interiorização narrativa, em suma: de educação. Nurture, not nature.
O racismo, pois, é um construto: não existem raças humanas, mas sim grupos humanos capazes de acreditar na supremacia étnica ou racial. Não parecem existir justificativas para cindir a humanidade em raças superiores e inferiores por razões genéticas, como quiseram fazer os eugenistas de todos os tempos, o que nos conduz à tese de que o problema está de fato na presunção de superioridade que certos grupos acabam interiorizando como uma espécie de item narcísico identitário. Esta crença supremacista – que leva o sujeito à fé de que pertence a um grupo social, ou casta, ou raça, que é melhor, mais superior, mais civilizado, mais humana que o grupo, casta ou raça inferiorizado e desumanizado – está na raiz do problema.
Por isto a educação também está: se não “genes-Tutsi” nem “genes-Hutus”, ou seja, se ninguém nasce com um DNA Tutsi ou Hutu, estas diferenças são construídas, ou seja, as pessoas são ensinadas a aderir a uma certa pertença comunitária que define sua identidade. Se foram ensinadas, ou seja, culturalmente determinadas, isto significa, como é evidente, que a educação e a cultura, transformadas e revolucionadas, são as forças principais para que o racismo construído cesse de sê-lo. Raças humanas nunca existiram, agora é nossa tarefa desconstruir, criticar e aniquilar os racismos para que também eles cessem de ser.
O racismo a que me refiro, ou seja, esta presunção de superioridade e este supremacismo étnico-racial motivado por uma pertença identitária, pode se amparar em características corporais ou epidérmicas – como foi no racismo instituído no Sul dos EUA durante o domínio da white supremacy ou na África do Sul na vigência do apartheid. Mas a crença supremacista pode se amparar em outros elementos, menos epidérmicos, aparentemente desvinculados de questões cromáticas e das aparências do corpo humano.
Hoje, não resta muita dúvida de que Adolf Hitler e o regime que chefiou era alicerçado no racismo instituído, na fantasia de domínio dos “arianos”. E tampouco me parece contestável a tese, defendida por Domenico Losurdo (entre outros), de que há muita similaridade entre os nazis arianistas e os supremacistas brancos dos EUA; há mais em comum entre a Ku Klux Klan e o nazismo do que sonha a liberal filosofia… A insana “originalidade” do hitlerismo foi tratar judeus e bolcheviques como se fossem negros no Sul dos EUA na era escravagista. Se as raças humanas não existem de fato, como podem garantir muitos cientistas, o racismo de fato existe como fenômeno ideológico e como práticas instituídas, de modo que o combate ao racismo permanece necessário e urgente, sendo um dos grandes desafios educacionais que deve mobilizar os esforços de todos nós que trabalhamos com educação, comunicação social e mobilização de massas. Como disse Nelson Mandela:
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” – Nelson Mandela, “Long Walk to Freedom”, 1995. [3]
Genocídio é uma palavra nova, um fruto macabro da época que o historiador Hobsbawm chamou de “A Era dos Extremos”. Através de livros como A Problem From Hell, de Samantha Power, e de filmes como Watchers of the Sky, de Edet Belzberg (2010), podemos aprender que o termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin (1900-1959) e une o cide (assassinato em latim) e o genos (família, tribo ou raça em grego) para forjar um conceito que se refere ao assassinato em massa cometido por ódio étnico-racial. O antropólogo anarquista Pierre Clastres posteriormente irá distinguir o conceito de genocídio do conceito de etnocídio, em Arqueologia da Diferença. Aqueles que acompanham o cenário musical também sabem dos esforços de artistas atuais como M.I.A. (rapper inglesa, de origens no Sri Lanka), na denúncia de processos genocidários que ocorrem hoje contra os Tamil do Sri Lanka ou os Rohingya de Mianmar, ou do System of Down, banda de heavy metal que sempre quis relembrar episódios de m passado esquecido por muitos, como o Holocausto armênio de 1915 – 1923, tema também do filme The Cut de Fatih Akin.
Diante do genocídio ruandês, a pior das explicações é aquela que culpabiliza os próprios ruandeses por terem descido à barbárie de “uma insanidade tribal”, como diz um burocrata governamental inglês em Black Earth Rising. Esta explicação, de um racismo velado, parece atribuir toda a culpa às insanidades do tribalismo africano, conduzindo à noção eurocêntrica e supremacista de que as afiliações e pertenças étnicas dos ruandeses “atrasados” e “primitivos” são as culpadas pelo horror. Na verdade deveríamos estar nos perguntando qual é o grau de responsabilidade do Imperialismo Ocidental – que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, sendo que foram necessários muitos movimentos anticolonialistas na África e na Ásia após 1945, em luta por libertação!
As ideologias de supremacismo étnico-racial são bastante típicas de países que foram impérios escravocratas sediados na Europa, e não é fora de propósito supor que estas ideologias racistas possam ter sido exportadas pelos imperialistas colonizados, acabando por contaminar os povos colonizados: a Bélgica, a França, a Alemanha, a Grã-Bretanha, não podem se eximir de toda a responsabilidade pelo que se passou em Ruanda em 1994. Além disso, diante de 800.000 mortos em 100 dias, precisamos nos perguntar também: Estados Unidos da América, que pretendia ser após o colapso da URSS e da queda do Muro de Berlim, uma espécie de Xerife Global e o Super-poder de um mundo Unipolar, em um contexto em que Fukuyama previa o “fim da História” com o triunfo final do capitalismo liberal globalizado, por que diabos o Tio Sam, ou melhor, suas maiores autoridades, fizeram tão pouco e foram tão ineficazes para conter a carnificina, para amainar sua fúria, para salvar dezenas de milhares de vidas? A resposta de Samantha Power, vencedora do Prêmio Pulitzer, é chocante mas me parece verdadeira:
“Romeo Dallaire, a Canadian major general who commanded UN peacekeeping forces in Rwanda in 1994, appealed for permission to disarm militias and to prevent the extermination of Rwanda’s Tutsi three months before the genocide began. Denied this by his political masters at the United Nations, he watched corpses pile up around him as Washington led a successful effort to remove most of the peacekeepers under his command and then aggressively worked to block authorization of UN reinforcements.The United States refused to use its technology to jam radio broadcasts that were a crucial instrument in the coordination and perpetuation of the genocide. And even as, on average, 8,000 Rwandans were being butchered each day, the issue never became a priority for senior U.S. officials. Some 800,000 Rwandans were killed in 100 days. No U.S. president has ever made genocide prevention a priority, and no U.S. president has ever suffered politically for his indifference to its occurrence. It is thus no coincidence that genocide rages on…” SAMANTHA POWER[4]
É bem-vinda a chega entre nós de Black Earth Rising, que demonstra que BBC e Netflix eventualmente se interessam por temas tão importantes quanto o direito à memória, a difícil concretização de uma justiça penal internacional e os mecanismos de prevenção ao genocídio. A série é ótima, no geral, apesar de algumas falhas – dentre estas, eu mencionaria que a série jamais revela porquê Kate Ashby teria sido iludida com mentiras explícitas por todos ao seu redor, sendo convencida de que era uma Tutsi e não uma Hutu. Qual o sentido desta teia de mentiras que depois será duramente desfeita? Apesar destes pontos obscuros, Black Earth Rising é uma obra potente, repleta de protagonismo feminino, que retrata também o empoderamento da mulher negra em espaços de poder, inclusive através da personagem da presidenta de Ruanda e seus dilemas no sentido de avançar no sentido da justiça social, tendo como uma das dificuldades maiores o neo-imperialismo que se manifesta pela fome ocidental por minérios. Sabemos que as minas de cobalto e outros minérios, em Ruanda e no Congo, estão na mira de várias corporações internacionais que fabricam celulares e computadores (vejam o documentário Blood in The Mobile).
Em uma das cenas mais inesquecíveis, Kate Ashby revisita em Ruanda uma igreja onde centenas de Tutsis foram massacrados. Transformada em Museu, a igreja agora acolhe apenas as roupas ensanguentadas dos que pereceram no massacre, assim como o Museu do Holocausto em Berlim visa dar uma noção do tamanho do extermínio perpetrado pelos nazis ao empilhar sapatos, aos milhares, dos que pereceram nos campos da morte erguidos pelo III Reich.
Diante de uma estátua de Cristo sem cabeça, Kate Ashby parece ter sua vida invadida pelos fantasmas de todos os massacrados, num transbordamento psíquico tão insuportável que ela precisa, na saída da igreja, chorar convulsivamente e buscar amparo no peito daquele que ela foi ensinada a odiar, um Hutu – que também foi ensinado a odiá-la. Instantes depois, conduzida ao local onde os refugiados Hutus no Congo foram massacrados pelos Tutsis, ela se surpreende com a aparição de centenas de pessoas da comunidade que decidem cavar para revelar, através da cruel pedagogia dos ossos, uma verdade que estava enterrada.
“She risked her future to uncover her past“, diz a frase no cartaz de Black Earth Rising: de fato, Kate Ashby tornou-se um emblema, concedido à Humanidade por uma competente teledramaturgia, de alguém que tem a ousadia de ir atrás do desocultamento de verdades, por mais amargas e cruéis que sejam, arriscando seu futuro para desocultar seu passado. Ensina, assim, sobre a importância suprema de cumprirmos com nossos deveres de memória e com nossos trabalhos de justiça, pois a possibilidade dos genocídios do futuro dependem de nossa negligência presente em aprender com o passado. Se nos recusarmos à lembrança e não buscarmos trazer à justiça carrascos e genocidas, só estaremos contribuindo para que nosso futuro esteja tão repleto de atrocidades quanto nosso passado.
Na canção tema da série, o bardo canadense Leonard Cohen canta um sombrio folk que fala sobre “um milhão de velas queimando por uma ajuda que não veio”. Sinistro, Cohen evoca o serviço atroz daqueles que se engajam nas tarefas do obscurantismo e querem tornar tudo, para todos, mais escuro (“you want it darker? we kill the flame…”). Diante disso, precisamos ser os que re-acendem a Iluminação plena para que esta se espraie pela História, aumentando nossa compreensão corajosa dos horrores que se passaram, de modo a evitar os genocídios do porvir – infelizmente prováveis, possíveis e plausíveis em uma época em que estão empoderados genocidas-em-potencial como Jair Bolsonaro, racista, misógino, homofóbico, notório defensor de Ditaduras Militares, fã de criminosos-contra-a-humanidade como Ustra, Pinochet e Stroessner, que prega o extermínio de opositores políticos e jamais escondeu suas posturas de supremacista branco que mede “afrodescendentes” em “arrobas”.
Em meio à pandemia de covid-19 em 2020, vimos Bolsonaro ser denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional de Haia que é cenário para Black Earth Rising. O presifake brasileiro, denunciado por incitação ao genocídio, demonstrou através de sua criminosa irresponsabilidade perante à crise da saúde coletiva, e também por sua participação em atos públicos que demandavam o colapso das instituições democráticas, que é um atroz agente de uma necropolítica do assassínio-em-massa e do ocultamento da História.
O Bolsonarismo deseja desmantelar o direito do povo brasileiro à memória e à justiça, cuspindo naqueles que trazem à luz os ossos de nosso passado real como se não passassem de cães, quando na verdade são figuras como o “Seu Jair” que, através da História, propiciaram as condições para os “massacres administrativos” e para a “banalidade do Mal” de que nos fala Hannah Arendt. Black Earth Rising nos ajuda a aprender que a atrocidade terá longo futuro enquanto formos incapazes de iluminar, com nossa compreensão e lucidez, com a coragem de nosso conhecimento, as atrocidades passadas e hoje ainda infelizmente tão possíveis. Só o passado iluminado pela lucidez atual é capaz de dar força e energia para que a geração atual possa ir mudando os rumos que já se mostraram que conduzem ao abismo e à carnificina.
Os deveres da memória em tempos de genocídio: reflexões inspiradas pela série "Black Earth Rising" (BBC/Netflix) https://t.co/7FkWeZXyYy via @acasadevidro
Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.
SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA
Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?
O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:
“Acreditei nessa conversa mole Pensei que o mundo ia se acabar E fui tratando de me despedir E sem demora fui tratando de aproveitar Beijei na boca de quem não devia Peguei na mão de quem não conhecia Dancei um samba em traje de maiô E o tal do mundo não se acabou…”
A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.
“Minha gente era triste e amargurada Inventou a batucada Pra deixar de padecer Salve o prazer, salve o prazer…”
A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.
Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.
Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.
O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?
Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.
“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)
Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.
“Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral! No dia 21 de Abril… Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)
As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”
O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:
“É melhor ser alegre que ser triste Alegria é a melhor coisa que existe É assim como a luz no coração Mas pra fazer um samba com beleza É preciso um bocado de tristeza É preciso um bocado de tristeza! Senão não se faz um samba não…”
Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.
Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.
Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.
Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.
Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”
O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.
Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).
“Quando viu a minha mão sem aliança encarou para a criança que no chão dormia E perguntou se meu moreno era decente se era do batente ou se era da folia… Obediente como a tudo que é da lei fiquei logo sossegada e falei então: O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro, é o que sai com a bandeira do seu batalhão! A nossa casa não tem nada de grandeza, nós vivemos na fartura sem dever tostão. Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim um reco-reco, uma cuíca e um violão…”
As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente.
Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:
“Vem vadiar no meu cordão! Cai na folia meu amor! Vem esquecer tua tristeza, Mentindo a natureza, Sorrindo a tua dor.
Minha embaixada chegou…
Usei o nome da favela, Na luxuosa academia, Mas a favela pro doutô É morada de malandro E não tem nenhum valor.
Não tem doutores na favela, Mas na favela tem doutores! O professor se chama bamba, Medicina é na macumba, Cirurgia lá é samba.
Minha embaixada chegou…”
Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”
Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.
Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.
“Anoiteceu, o sino gemeu E a gente ficou feliz a rezar Papai Noel, vê se você tem A felicidade pra você me dar Eu pensei que todo mundo Fosse filho de Papai Noel E assim felicidade Eu pensei que fosse uma Brincadeira de papel Já faz tempo que eu pedi Mas o meu Papai Noel não vem! Com certeza já morreu Ou então felicidade É brinquedo que não tem…”
“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.
(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.
Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)
As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)
Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.
Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.
Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.
O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)
O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.
A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.
“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.
“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá Brasil, esquentai vossos pandeiros, Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”
Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”
Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.
Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.
Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.
Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.
Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.
Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.
Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.
Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:
“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…
Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)
O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.
Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.
Carli, Goiânia, Dez 2019
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALADO, Carlos. Tropicália – A História de Uma Revolução Musical. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.
JUNIOR, Gonçalo. Quem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2). No primeiro, Novos Baianos, Maria Bethânia, Maria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de Marlene, Recenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour
Ailton Krenak – líder indígena, ambientalista, ativista e escritor brasileiro, nascido em 1953, na região do Rio Doce (MG) – esteve na Universidade Federal de Goiás em Outubro de 2019. Participou do V Seminário do Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) e do I Seminário Lugar e Patrimônio, com o tema “Patrimônios marginalizados e a luta pelo território”(saiba mais: https://bit.ly/2r13v0p). ASSISTA AO VÍDEO – ACESSE: https://youtu.be/x55TZ73Wqvw.
Ailton Krenak vem demonstrando ser um “pensador acurado e original das relações entre as culturas ameríndias e a sociedade brasileira, criando reflexões provocativas e de largo alcance” (Azougue Editorial). Entre os temas que ele aborda, está o estado de “coma” do Rio Doce após os crimes sócio-ambientais das empresas mineradoras em Minas Gerais, com o despejo de lama tóxica em mais de 600 km de extensão daquele curso d’água à margem do qual o povo Krenak desenvolveu sua história e forjou sua cosmovisão.
Daria para dizer que o fim do mundo não é nenhuma novidade para os povos originários desta terra que os europeus invasores chamariam de América, mas que recentemente houve um incremento nesta sensação de mundo que se acaba com o exacerbamento das catástrofes sócio-ambientais e das mudanças climáticas. O que capacita Ailton Krenak a ser uma espécie de xamã visionário deste mundo em colapso é, para começo de conversa, a vivência concreta que seu povo teve, a partir de 2015, de um crime monumental que pôs o Rio Doce em estado de coma.
Era novembro de 2015 quando a barragem do Fundão, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton, rompeu-se e lançou 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro no Rio Doce, habitat ancestral do povo Krenak. O material tóxico “nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma”, diz Ailton. “Esse crime atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou.” (KRENAK, Cia das Letras, 2019, p. 42)
Lançado pela Companhia das Letras em 2019, o livro – disponível na Livraria A Casa de Vidro: https://bit.ly/2T1fHKi – revela um pensador que é lúcido em sua crítica de uma tóxica ideologia:
“a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. (…) É um abuso que chamam de razão. Enquanto a humanidade está se distanciando de seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter…” (KRENAK, 2019, p. 11 – 20)
Ailton Krenak é hoje um voz altissonante que questiona os rumos equivocados da doentia civilização mercadológica dos branquelos. Ele nos pergunta: “Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade.” (pg. 28)
Ora, os branquelos concebem a civilização e a humanidade como áreas V.I.P. e querem excluir mais da metade dos humanos. Contra esta pretensa civilização – supostamente iluminada, mas realmente obscurantista; falsamente universalista, mas autenticamente excludente – é que se insurgem as resistências em nosso território, seja dos Krenak no Rio Doce criminosamente poluído (tema de documentário da Futura), seja dos Yanomami resistindo ao garimpo e à contaminação em suas terras, seja dos Munduruku praticando a auto-demarcação de suas terras ancestrais, seja dos Guajajara na linha de frente contra o fascismo Bozonazista que os quer exterminados, seja dos Guarani-Kayowá resistindo contra o avanço do agrobizz genocida e desumano, dentre outros.
No vídeo filmado por A Casa de Vidro, Ailton também reflete sobre a noção de “patrimônio imaterial” e as defesas institucionais erguidas para sua salvaguarda (em instituições como o Iphan). Fala sobre as produções culturais dos povos ameríndios e as dificultosas relações com a civilização dos “brancos”, ou seja, com “o povo da mercadoria” (Davi Kopenawa). Acostumado a cutucar a onça do imperialismo externo e interno com a vara curta de suas provocações ácidas, Ailton afirma que “a maioria das pessoas tem dificuldade de nos considerar remanescentes de uma guerra de colonização. Todos os meus parentes são sobreviventes de uma guerra de ocupação.” (Livro “Encontros”, pg. 84)
Este vídeo foi filmado e editado por Eduardo Carli de Moraes para a Frente Audiovisual d’A Casa de Vidro (Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente), em evento realizado no auditório da Faculdade de Farmácia da UFG em 21/10/2019.
Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas. Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.
Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.
“Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. […] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.”
Desde seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak se destaca como um dos mais originais e importantes pensadores brasileiros. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca. “Ideias para adiar o fim do mundo” é uma adaptação de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal, entre 2017 e 2019.
Na obra, Krenak denuncia “um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes d vida.
A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante de um dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas no mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres.” (p. 47)
Além de mobilizar o importante conceito de Antropoceno, entrando em diálogo com a obra de grandes pensadores contemporâneos como Eduardo Viveiros de Castro,Bruno Latour e Isabelle Stengers, Ailton Krenak também nos ajuda a formular, para o século XXI, um Ética Inter-Geracional similar àquela formulada pelo filósofo Hans Jonas:
“Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós.
Na verdade, a gente vive reclamando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: ‘Depois de abrir, não tem troca.’ Há 200, 300 anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: ‘Mas é esse mundo que deixaram para a gente?’ Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? Ok, você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem? A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. Quem vai receber são os nossos netos, bisnetos, no máximo nossos filhos já idosos. Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhões de mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo? Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores; há algo de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, teríamos feito muito melhor.” (p. 69)
A palestra explora o tema A Arte de Conviver: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida. O vídeo na íntegra, com cerca de 52 minutos, está disponível no Youtube ou Vimeo; acessem também a apresentação completa (24 slides) contendo todas as imagens e citações mencionadas na ocasião: http://bit.ly/2omVoKK.
A ARTE DE CONVIVER: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida
Por Eduardo Carli de Moraes
“Gosto de ser gente porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível.“ – Paulo Freire
A ética faz parte das práticas humanas que visam tanto à reflexão quanto à ação de seres humanos interdependentes. Sem ela, não há possibilidade de bem viver: toda vida bem vivida, que expressa uma sabedoria encarnada, envolve necessariamente um horizonte ético. Se alguém dissesse que não se interessa pela ética, estaria dizendo que não se interessa pela felicidade e que não se importa de desperdiçar sua vida. O desprezo pela ética é o caminho mais simples e comum para uma vida mal-vivida.
A ética também é um campo onde reinam os “juízos de apreciação referentes à conduta humana, qualificada do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.“ (In: Dicionário Aurélio Buarque de Holanda) A finalidade última da ética (seu télos) pode ser descrito como a felicidade individual (eudaimonia), como o sumo bem (summum bonum), como o bem público ou a felicidade geral etc. Sem dúvida, o despertar da consciência ética ocorre ainda na infância, como sugere a tirinha de Quino que descreve Mafalda descobrindo um “inquilino interior“ (a consciência moral do agente humano), espécie de marco zero do despertar da consciência ética da intersubjetividade e da interdependência que marcam a existência humana:
O campo de atividade da ética é de uma amplitude estonteante: os agentes éticos estão em interação no mundo comum, conceito essencial na filosofia de Hannah Arendt. Esta filósofa, em uma dos mais belos trechos de A Condição Humana, assim o define:
“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós.
Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” HANNAH ARENDT em “A Condição Humana”
Por isso é impossível separar ética de política: o campo de atividade do agente ético é necessariamente o espaço entre nós, o território que inclui o outro, o mundo que nos é comum, integrando não apenas nós que somos contemporâneos, mas conectando também a geração presente com as passadas e as vindouras. Já Aristóteles afirmava que o ser humano é um zoon politikon, algo reafirmado a seu modo por um dos maiores mestres da ética no Brasil contemporâneo, Fábio Konder Comparato, que afirma: “a política é a suprema dimensão da vida ética”:
“A célebre afirmação de Aristóteles de que o homem é, pela sua própria natureza, um ser político significa que o indivíduo somente encontra condições apropriadas para atingir um nível elevado de aretê, isto é, de desenvolvimento integral de sua personalidade, quando convive com outros seres humanos numa comunidade organizada, regida por normais gerais de comportamento, (…) em função de um objetvo comum a todos os seus membros, que se vêem, assim, ligados entre si por vínculos jurídicos e relações de solidariedade.“ (COMPARATO, Ética, Cia das Letras, p. 584)
Por isso, uma reflexão ética também não é dissociável de uma atuação atenta às diferenças entre o público e o privado. Para os gregos, o conceito de idiotia era utilizado para se referir àquela pessoa que só se interessava pelos seus assuntos privados, obcecada pelo próprio umbigo, omissa e isenta dos assuntos públicos e políticos por decisão própria. Esta obliteração proposital do público pelo sujeito era caracterizado com o qualificativo de idiotes. Para os gregos, inventores da democracia, o status de cidadão comportava sérios deveres, como explica Comparato:
“De modo geral, sempre foram vistos com maus olhos os que se abstinham sistematicamente de comparecer e votar nas reuniões da Ekklesia, sendo por isso qualificados de idiotai, ou seja, indivíduos unicamente preocupados com os assuntos do seu interesse particular. A neutralidade política era considerar em Atenas atitude contrária ao bem comum. Segundo reporta a tradição, Sólon teria editado uma lei, chocante para a mentalidade moderna, pela qual deveriam ser punidos com a atimia (perda da cidadania) todos aqueles que se recusassem a tomar partido numa situação de guerra civil.“ (COMPARATO, p. 644)
Mário Sérgio Cortella, co-autor da obra Política Para Não Ser Idiota, também o destaca: “Para os gregos da Antiguidade Clássica era “idiota” o sujeito que preenchendo as prerrogativas para participar da vida pública na polis, abdicava de fazê-lo. Hoje, muitas vezes, são rotulados de idiotas aqueles que, nas rodas de conversa, não se empolgam com assuntos sobre a vida privada das celebridades e insistem em colocar em pauta temas públicos, ou seja, assuntos políticos. Interessar-se por política, para muitos, não é normal.” (CORTELLA)
Se há idiotia em toda atitude que pretenda focar apenas no privado e não ligar para o público, isto se dá pois não há isentismo que não seja cumplicidade com os opressores: “Se você é neutro em situações de injustiça, é que você escolheu o lado do opressor”, afirma em célebre frase o Vencedor do Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu. Ficar em cima do muro não é nunca “inocente” pois de cima do muro você assiste, tomando chá, à brutalidade dos opressores e os processos que ele impõe de espoliação, humilhação, repressão dos oprimidos.
Por isso, em um mundo como o nosso, onde avança em passo acelerado, de modo perigoso e destrutivo, a oni-privatização do que antes foram espaços públicos, terras comunais e natureza inapropriável, é necessário insistir numa ética atenta ao bem público – e não apenas interessada nos motivos próprios ao indivíduo isolado (no fundo, uma abstração que serve à tirania burguesa sobre sistemas econômicos e sobre a nossa “economia psíquica”). A produção de subjetividades ególatras, idiotas pois despolitizadas, incapazes de devoção ao que transcende o “caro eu”, cegas ao público e o comum, é uma marca dos frutos da “revolução burguesa” quando se instituiu. Segundo Comparato:
“A oposição público – privado corresponde ao contraste entre o que é comum e o que é próprio. Próprio diz-se do que pertence, com exclusividade, a alguém, indivíduo ou grupo social determinado. A essência da propriedade
privada, como vem expresso na legislação dos mais diversos países, é o direito do proprietário de excluir todos os outros sujeitos do uso, fruição ou disposição de uma coisa determinada.
Em contraste, dizem-se comuns os bens compartilhados por mais de um sujeito, em igualdade de condições. A comunidade supõe, com efeito, que os seus integrantes sejam essencialmente iguais, ou seja, que não haja
indivíduos privilegiados, superiores aos outros.
Da igualdade cidadã decorre o princípio republicano da supremacia do interesse comum de todos os membros da coletividade – o povo ou a nação em cada país, o conjunto dos povos que formam uma federação de países, ou a própria humanidade no plano mundial, sobre os interesses particulares.“ (COMPARATO, p. 621)
Se deveras formos republicanos, seremos eticamente norteados pela supremacia do interesse comum e não pelo predomínio dos interesses individuais. O que ocorre é vivemos por tempo demais sob o efeito da lavagem cerebral imposta pela hegemonia ideológica liberal-burguesa. Esta pode ser resumida pela fórmula, bastante emblemática: vícios privados, benefícios públicos. Presente na famosa fábula das abelhas de Mandeville, também é uma conclusão tirável da “lógica” em que operam os pensamentos de figuras como Bentham e Adam Smith. Mas será mesmo que o egoísmo dos indivíduos realmente conduz à prosperidade geral? (E será que Eduardo Giannetti soube, no seu livro, aprofundar de fato a crítica que tem que ser feita a esta ideologia?)
“Durante o século XVIII, a Ideologia do Egoísmo encontrou um defensor no pensador Adam Smith: ele sustentou que se compradores e vendedores numa economia se dedicassem a maximizar seu ganho, os bens e serviços seriam distribuídos por uma ‘mão invisível‘ atendendo ao interesse da comunidade como um todo da melhor forma.
– Buscando o próprio interesse – escreveu Smith – um indivíduo muitas vezes promove o da sociedade mais efetivamente do que quando realmente pretende promovê-lo.
O poder dessa ideia estava em oferecer uma justificativa econômica e política enfática para que se agisse em conformidade com os próprios interesses pessoais, o que explica a popularidade de Smith em meio às elites empresariais e políticas durante a Revolução Industrial. Depois, nas ideologias de livre-comércio do thatcherismo e do reaganismo.“ (KRZNARIC, 2015, p. 35)
Esta apologia da pretensa prosperidade que o egoísmo acarretaria em prol da prosperidade geral é cada vez mais insustentável diante das evidências de que o capitalismo, calcado nas ideologias do liberalismo e suas “neo” versões, produz injustiça social, exclusão, precariedade e violência de modo avassalador, o que só se agrava com as catástrofes ambientais que um modelo extrativista e queimador de combustíveis fósseis gera. O cartunista André Dahmer é um dos mais ácidos comentaristas sociais deste contexto:
Mas também a atual cruzada contra Paulo Freire, movida pelos extremistas de direita no Brasil, tem a ver com as posturas anti-capitalistas e críticas do neoliberalismo que o autor de Pedagogia do Oprimido abraçava. Em “Pedagogia da Autonomia“, Paulo Freire explicita sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:
“Estamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.” (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19)
O Paulo Freire virou uma bruxa a ser caçada pela direita Bolsonarista e Olavete pois ele é um crítico bem-informado do catastrófico aparato educativo gerado pelo capitalismo liberal em conluio com as classes dominantes interessadas na produção massiva da idiotia e do conformismo. Paulo Freire escreve, em 1959, em “Educação e Atualidade Brasileira” (tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação, na Escola de Belas Artes de Pernambuco), em prol de uma educação que formasse eticamente no sentido da expansão da consciência comunitária e não do individualismo ególatra liberal-burguês:
“Encaminharemos o nosso agir educativo no sentido da consciência do grupo e não no da ênfase exclusiva no indivíduo. Sentimento grupal que nos é lamentavelmente ausente. As condições histórico-culturais em que nos formamos nos levaram a esta posição individualista. Impossibilitaram a criação do homem solidarista, só recentemente emergindo das novas condições culturais em que vivemos, mas indeciso nessa solidariedade e necessitando por isso mesmo de educação fortemente endereçada neste sentido. De educação que deve desvestir-se de todo ranço, de todo estímulo a esta culturológica marca individualista. Que dinamize, ao contrário, o espírito comunitário.” (FREIRE, apud Souza, p. 64)
A educação não é desvinculável da ética. Edgar Morin sempre repete – e é o título de um de seus livros – que educar tem a ver com ensinar a viver. E ética é o aprendizado prático de um viver que não é desvinculável do ser-com-os-outros, em uma teia de interdependência. Os gregos já sabiam que o processo formativo, a paidéia, não era dissociável de uma educação do ethos, e que este tinha tudo a ver com a transmissão e a prática das virtudes (aretê). A filosofia, como amor à sabedoria, sempre foi, por esta razão, conectada à educação ética, à formação para o aprender a viver bem, o que é sempre também um aprendizado do convívio. E no convívio se aprende que nada pior do que tratorar interesses alheios e secundarizar o bem comum sempre em prol dos limitados e cegos motivos egóicos do indivíduo que se delira (enquanto preso no Samsara) isolado.
Dois dos principais pensadores da ética no pensamento contemporâneo, André Comte-Sponville e Vladimir Jankélévitch (1903-1985), têm obras devotadas à estas confluências entre filosofia, ética e educação. Eles sem dúvida concordariam com a magistral obra recente do australiano Roman Kznaric, O Poder da Empatia, que destaca o quanto poderíamos revolucionar para melhor o mundo comum caso tivéssemos um “caldo cultural” que favorecesse o florescer da empatia. Esta, que Jankélévitch descreve belamente nos seguintes termos e em fecundo diálogo com a tradição filosófica pregressa:
“A simpatia ou empatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” (Jankélévitch, que foi professor da Sorbonne de Paris entre 1951 e 1979. Em: Cursos de Filosofa Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.)
Empatia com a alteridade multidiversa, somada à solidarização radical com os oprimidos e excluídos, constituí um bom norte ético nesta época de pervasiva privatização da vida. Neste contexto, importante destacar a figura juvenil de impacto global, Greta Thunberg, detonadora do movimento Fridays for Future, inspirando milhões de jovens ativistas que ocuparam – e seguirão ocupando – as ruas do planeta, também no Brasil, na primeira grande sublevação de jovens diante da emergência climática.
“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.“ Eliane Brum em EL PAÍS Brasil
“Imperativo”, eis uma palavra que os pensadores da ética adoram. Imperativo é um jeito complicado de falar sobre o nosso dever, sobre a esfera que nos compete enquanto tarefeiros-de-um-dever-ser. A escutadeira Eliane Brum, que é também uma das forças mais significativas da educação ética no Brasil, diz que é imperativo escutarmos a Gretas, Sonias Guajajaras e Marielles.
O capitalismo neoliberal, calcado na ideologia individualista e burguesa da “Mão Invisível” – seja egoísta à vontade, a mão invisível do Mercado tratará de providenciar a prosperidade geral!, mostrou-se como construtor de ruínas. O capitalismo é a catástrofe globalizada, o advento do Antropoceno apocalíptico. Diante disso, não há isenção possível que não caia na idiotia ou, pior, na cumplicidade com os assassinos.
É o que Jean-Paul Sartre já ensinava ao dizer que “O homem é um ser condenado à liberdade.“ Não é possível uma vida humana sem escolhas nem consequências, o que torna a responsabilidade ética uma necessidade ontológica para qualquer bem-viver, ou seja, uma condição inextricável da filosofia como práxis da vida bem vivida pois bem refletida, sábia e amorável. “O que não é possível é não escolher”, dizia Sartre. “Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências.“
O que Greta ensina – “escutar é imperativo!” – é o que Hans Jonas já dizia: o princípio responsabilidade da nova ética que precisamos pôr em prática engloba não só nossos contemporâneos (a geração dos atualmente vivos), mas engloba também as gerações por vir. As pessoas que ainda vão nascer, e que serão impactadas por nossas escolhas hoje, precisam ser levadas em conta em todas as nossas “equações éticas”. O futuro, fruto de escolhas coletivas, só será mais sábio caso pudermos ser a sabedoria ativa no presente, tarefa interminável e que, a julgar pelas catástrofes Fukushímicas que nos assolam, corre o risco da derrota. Não haveria, porém, qualquer justificativa ética plausível para a cumplicidade com os exterminadores dos equilíbrios ecosistêmicas e os perpretadores das injustiças tremendas, hoje globalizadas.
Se o cinema de não-ficção já soou muitos alarmes sobre esta grave situação através de obras como Cowspiracy, Meat the Truth,Terráqueos – Earthlings, Food Inc., Ser Tão Velho Cerrado, dentre outros, também o cinema de ficção mostrou serviço com Okja (2017), fábula fílmica forjada pelo cineasta sul-coreano Bong Joon Ho – vencedor da Palma de Ouro em Cannes com seu filme mais recente, Parasita (2019).
Bem-vindos à era dos Superporcos: criaturas fabricadas em laboratório pela corporação Mirando pra proporcionar aos consumidores os hot dogs mais baratos do pedaço (o imperativo deste agrobiz é que os animais geneticamente modificados tenham um sabor suculento – “they need to taste fucking good”, na expressão da CEO da empresa). Por seu tamanho gigante, mais parecidos com hipopótamos (ou com Dumbo, recentemente reativado em filme de Tim Burton), os Superporcos são organismos geneticamente modificados (OGMs) destinados a virarem carne barata produzida em massa.
Os Superporcos são também o carro-chefe da estratégia corporativa da Mirando Corp. para limpar sua imagem pública trucidada por seus crimes socioambientais anteriores. Corroída em sua reputação por um passado em que comercializou napalm, devastou direitos trabalhistas e aniquilou equilíbrios ecossistêmicos com a fúria inconsequente de um psicopata que tivesse escapado da camisa-de-força, a Mirando agora aposta todas as suas forças num marketing enganador sobre os benefícios da produção em massa de carne-de-porco geneticamente modificada.
Nas propagandas, é claro, não se revela o grau de degradação e sofrimento em que vivem e morrem os animais nas fábricas-da-carne que mais se parecem com uma espécie de Auschwitz para animais. O grande escritor Isaac Bashevis Singer, laureado com o prêmio Nobel de Literatura, dizia que nós, humanos, seríamos culpados do crime de condenar os animais cujos cadáveres devoramos a um “eterno Treblinka”.
Em suas cenas finais, Okja é um dos mais pungentes retratos desta realidade. Após construir, no princípio do filme, uma relação afetuosa de alta intensidade entre o Superporco Okja e a menina sulcoreana Mikhta, a narrativa nos lança nas entranhas do pesadelo real que é a Indústria da Carne (factory farming). Segundo o célebre dito do vegetariano Paul McCartney, caso os matadouros (slaughterhouses) tivessem paredes de vidro, isso geraria um imenso surto de migração comportamental dos humanos rumo à dieta vegetariana.
Após abordar o fim da humanidade na magistral distopia Snowpiercer – Expresso do Amanhã (2013), em que o homo sapiens tornou-se uma espécie reduzida a alguns passageiros de um trem que se locomove através de uma nova Era Glacial, o cineasta sul-coreano Bong Joon Ho resolveu abordar este fator importantíssimo do nosso pesadelo climatizado (para emprestar a expressão de Henry Miller): nossa relação com os animais, em especial com aqueles que foram modificados geneticamente.
Nesta produção da Netflix, somos confrontados com uma ácida sátira de um mundo tresloucado pelo poderio excessivo de mega-corporações que põe o lucro acima de tudo e as salsichas acima de todos. Em Okja, não estamos mais diante do cenário apocalíptico de Snowpiercer, mas sim numa espécie de pré-apocalipse numa civilização ocidental-industrializada que mergulha fundo no irracionalismo do carnismo. Não escapará aos mais atentos a similaridade entre os nomes Monsanto (hoje fundida com a Bayer) e Mirando: no filme, o que está em questão é justamente a insanidade das corporações que tratam a Natureza como objeto de manipulação na conquista de capitais a concentrar nas contas bancárias de acionistas e banqueiros.
Em um cenário de carnivorismo globalizado, a demanda dos consumidores por carne é o motor de um processo que conduz ao pavoroso cenário distópico que o filme descreve: nos matadouros do futuro, mais parecidos com campos de concentração para Superporcos mutantes, as engrenagens sombrias que estão por trás do processo produtivo dos bacons e salsichas são expostos na telona através de uma fábula cativante, didática, problematizadora e frequentemente horripilante.
Nossa tendência a conceber a psicose como uma neurose individual cai por terra quando começamos a estudar mais a fundo as forças dominantes de nosso tempo. Aí fica claro que não se trata de uma doença mental que aflige certos indivíduos, mas algo muito mais pervasivo e epidêmico: a psicopatia é aquilo que subjaz a estruturas sociais hoje hegemônicas. Psicopatas são as atitudes de boa parte das mega-corporações capitalistas que hoje infestam o mundo com suas mercadorias e que lançam ao meio ambiente os tóxicos e poluentes classificados, nas planilhas de CEOs e acionistas, como meras “externalidades”.
A tese da corporação-psicopata foi exposta com contundência em The Corporation – A Corporação, documentário canadense lançado em 2003, dirigido por Mark Achbar & Jennifer Abbott, baseado no livro de Joel Bakan. Ali, as características básicas do psicopata, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e seu Manual de Desordens Mentais (DSM-IV), são utilizadas para a análise das atitudes empresariais:
“If you did a psychological profile of the corporation, what would it look like? Self-interested, manipulative, avowedly asocial, self-aggrandising, unable to accept responsibility for its own actions or feel remorse – as a person, the corporation would probably qualify as a full-blown psychopath. (…) Behind its benevolent face, Joel Bakan argues, the most important institution of modern capitalism is a Frankenstein’s monster that has broken its chains and is now consuming the society that created it.” – The Guardian
No filme, a atriz Tilda Swinton encarna as duas irmãs gêmeas que disputam o domínio da empresa Mirando, tentando limpar a reputação corporativa manchada pelas atitudes psicopatas do pai das duas, um dos exemplares de psycho-CEO que Okja põe em tela. Um estudo recente do psicólogo australiano Nathan Brook revelou que 1 em cada 5 CEOs revelam traços de psicopatia, índice bem superior ao da população em geral (1 em 100). Outro estudo, da Universidade de Oxford, aponta que o presidente dos EUA, Donald Trump, ele próprio CEO da Trump Corporation, possui mais traços de psicopatia do que Adolf Hitler. No cinema e na teledramaturgia, o tela já ganhou representações icônicas em um filme como American Psycho – Psicopata Americano, de Mary Harron, e uma série como The Sopranos (HBO).
Em Okja, o que está em questão é o contraste brutal entre aquilo que a corporação apresenta de si através do marketing empresarial e aquilo que é sua prática cotidiana em suas fábricas (também conhecidas, vide caso Nike, como sweatshops). Há uma dissonância gigantesca entre a apresentação midiática e a realidade oculta. Oferece-se um showzinho espetaculoso e enganador aos consumidores desejosos de se empanturrar com carne suína barata, fazendo-os crer que não há nada de moralmente errado em financiar a indústria da carne e a ideologia do carnismo. A sátira do filme é certeira ao visar como alvos empresas e consumidores que lavam suas consciências na piscina suja do marketing mentiroso na tentativa de esquecer as brutalidades inerentes ao sistema de factory farming.
Bong basicamente une Ocidente e Oriente ao referenciar Disney (o porco gigante geneticamente modificado tem as orelhas grandes e os olhos pequenos de Dumbo, e passa por altos e baixos emocionais que também evocam a animação clássica) e Hayao Miyazaki (em entrevistas a atriz Tilda Swinton conta que ela e Bong são fãs de Totoro, e mesmo as irmãs gêmeas que ela interpreta no filme são como uma releitura das irmãs de “A Viagem de Chihiro”), unidos por sua matriz fabular. Seu filme parte de uma premissa simples que não parece envelhecer: uma criança e seu bicho de estimação têm entre si a relação mais pura que pode haver num mundo onde deixar a infância significa perder a inocência. “Tirando ela e Okja todos os outros personagens são estúpidos”, brinca Bong.
(…) Nessa oscilação entre a caricatura e a gravidade (quando os ecoterroristas de “Okja” apanham da polícia, por exemplo, a câmera lenta tem ao mesmo tempo um efeito lúdico e agravante), ele encontra um meio termo que aos poucos se expande, e é por onde sua visão de mundo transita. Assim como em “O Expresso do Amanhã”, o filme anterior de Bong e o primeiro falado em inglês, esse meio termo inequivocamente toma a forma da sátira. A sátira é o meio de expressão mais caro a Bong, para dar conta de todos os absurdos que ele vê na relação entre capitalismo e geopolítica hoje, embora o discurso ambientalista-anarquista de “Okja” já pudesse ser sentido há anos desde “O Hospedeiro”, o blockbuster de monstro sul-coreano que colocou Bong em evidência mundial.
Em certo momento de “Okja”, o líder dos anarquistas vivido por Paul Dano, num acesso de fúria, diz aos seus companheiros globalizados que “tradução é sagrado”, e ao combinar uma variedade de registros e discursos fica claro que Bong Joon-ho está atrás de um esperanto próprio, um idioma capaz de resumir o desmanche e a fluidez de valores que presenciamos no mundo, capaz de capturar tanto a caricatura mais grotesca do homem quanto o gesto mais discreto de empatia.
Apesar da qualidade de seu comentário, o crítico Hessel falha ao se utilizar da expressão pejorativa “ecoterroristas” e ao não mencionar em nenhum momento a questão da Libertação Animal, central no filme. É explícito em Okja o desejo de debater sobre organizações como a Animal Liberation Front (ALF) (acessar verbete da Wikipedia em inglês), descrita na obra de Bong Joon Ho com certo sarcasmo mas também com boa dose de empatia.
O sarcasmo é devido às divisões internas do movimento e pelo radicalismo do ethos de certos ativistas, que correm o risco de prejudicarem suas saúdes e sobrevivências devido à alimentação vegana levada a extremos. O filme revela também certos desvios éticos que incluem a tradução mentirosa de um ativista, responsável pela interlocução entre a sul-coreana e os ativistas anglo-saxões, e o consequente espancamento punitivo cometido pelo personagem Jay (Paul Danno) contra seu tradutor-traidor. Apesar de comporem os quadros da mesma organização, os ativistas envolvem-se em rixas e conflitos graves.
Dizer que o filme problematiza o divisionismo interno e as ideologias abraçadas por membros da ALF não significa dizer que os ideais e práticas do grupo estejam sendo desprezados. Muito pelo contrário, Okja empresta seu vigor narrativo e a sua capacidade de gerar eletrizantes cenas de ação para uma espécie de captura pop da problemática da Libertação Animal – tema de célebre livro do filósofo australiano Peter Singer.
Na cena em que os ativistas sofrem com a truculência da repressão policial, o espectador é levado a sentir compaixão e empatia por aqueles corajosos defensores dos direitos e interesses dos animais. Estes anarco-ativistas colocam seus corpos em risco na defesa de um outro mundo possível e referi-los com a expressão “ecoterroristas” é equívoco e mentiroso, dado que o próprio filme enfatiza o caráter pacifista, não-violento, contrário a qualquer sofrimento imposto a quaisquer criaturas sencientes, das ações da ALF.
“The Animal Liberation Front (ALF) is an animal liberation group who engage in direct action on behalf of animals. These activities include removing animals from laboratories and fur farms, and sabotaging facilities. Any act that furthers the cause of animal liberation, where all reasonable precautions are taken not to harm human or non-human life, may be claimed as an ALF action. The ALF is not a group with a membership, but a leaderless resistance. ALF volunteers see themselves as similar to the Underground Railroad, the nineteenth-century antislavery network, with activists removing animals from laboratories and farms, arranging safe houses and veterinary care, and operating sanctuaries where the animals live out the rest of their lives. ALF activists believe that animals should not be viewed as property and that scientists and industry have no right to assume ownership of living beings. They reject the animal welfarist position that more human treatment is needed for animals; their aim is empty cages, not bigger ones.” – JUST SEEDS
De certo modo, teria razão quem fizesse a acusação de que Okja realiza uma espécie de caricatura tanto dos ativistas da A.L.F. quanto dos líderes corporativos da Mirando. O filme de fato adota um tom satírico, caricatural e fabuloso, despreocupado com o realismo e a informatividade (elementos que devem ser procurados em um documentário como o A.L.F. de Jérôme Lescure, lançado em 2012). Isso não o impede de ser uma obra importante para debater o tema, cada vez mais urgente e relevante diante da crise climática, daquilo que se conhece como carnismo ou especismo (expressões tornadas populares por Melanie Joy e Peter Singer, respectivamente).
Em sua resposta para a questão que dá nome a seu livro – “por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas”? -, Melanie Joy aponta que os animais humanos não aderem ao carnismo por necessidade, mas sim por ideologia. Ou seja, é falso supor que apenas vegetarianos e veganos baseiam suas dietas e comportamentos em um sistema-de-crenças subjacente. Na verdade os carnívoros ou carnistas é que estão ideologicamente motivados de maneira muito mais tóxica e perigosa do que os veggies – pois o carnivorismo opera muitas vezes com base num belief system que é ideologia inculcada a operar de maneira sub ou inconsciente.
O carnismo seria uma ideologia, de pervasiva força cultural e de potência explicável pelos altos capitais investidos em brainwashing pelas corporações pecuaristas, que nos ensina a mentira de que é necessário comermos porcos, vacas e galinhas. Isto só é necessário para o lucro das corporações que vendem os cadáveres destes animais, mas nunca será verdade que é necessário para a nutrição humana.
No seguinte vídeo produzido pelo canal Like Stories of Old, destaca-se que os porcos são animais tão “inteligentes, sensíveis e sencientes quanto cães (se não forem mais)” – então o que explica que tratemos os cães como família e os porcos como propriedade e comida?
A crítica social envolvida no filme incide, de maneira pontiaguda, sobre a atitude dos psicopatas corporativos que lidam com seus consumidores como se não passassem de crianças tuteladas. Estas crianças consumistas que eles querem que sigamos sendo precisam ser protegidas a todo custo de se verem confrontadas com o dilema ético em que se apresenta a opção de deixarem suas posições como carnistas, indiferentes à ética e à práxis daqueles que combatem o especismo e criticam o carnismo. Mantendo os consumidores em estado de infantilismo, a ideologia carnista os enxergaria como crianças só interessadas em carne gostosa e barata, consumidores adestráveis através das palhaçadas de Ronald McDonald ou com a fantasia dos frangos sorridentes da Sadia.
O filme revela todo o investimento midiático das corporações psicopatas para ganhar as mentes dos consumidores, que são o epicentro da demanda por carne que as mega-corporações do ramo destinam-se a suprir mas também a pré-fabricar. Okja lida com a construção ideológica de um consumidor carnista a partir de instituições sociais como a mídia colonizada pela publicidade – parte de uma imensa engrenagem que acaba por naturalizar este construto sócio-cultural lucrativo-catastrófico que é o carnismo, perpetuando todos os males vinculados ao especismo (a presunção humana de que nossa espécie é superior às outras e por isso tem pleno direito ao predomínio e à opressão sobre outras espécies).
Problemático, porém, é o tratamento que o filme traz da Super-inteligência do Superporco, explícito naquela cena espetaculosa em que Okja salva Mikhta da morte quando a menina fica dependurada no precipício. Nesta cena revela-se um gosto duvidoso por cheap thrills cinematográficos conjugado com uma aposta quase supersticiosa na capacidade de inteligência prática do animal geneticamente fabricado.
É uma cena onde a Superporca pratica a salvação da heroína mirim que estava em perigo de morte, ou seja, onde se manifesta a velha tática conhecida como marmelada, mas este é o menor dos problemas. O maior problema é a afirmação subjacente à cena de que a Superporca Okta teria uma inteligência descomunal, quase miraculosa para um animal, o que serviria como uma espécie de elogio lateral às proezas da bioengenharia genética.
O professor de Ética e Direito da Universidade de Harvard, Michael Sandel, problematiza estas questões em seu livro Contra a Perfeição – Ética na Era da Engenharia Genética:
MICHAEL SANDEL – “Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética” (The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering) – 160 páginas, Editora Civilização Brasileira. SINOPSE: Os avanços da ciência genética nos apresentam uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve poderemos ser capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que apesar destes e outros benefícios, nosso repertório moral ainda está mal equipado para enfrentar as perguntas mais complexas suscitadas pela engenharia genética. O livro explora este e outros dilemas morais relacionados com a busca por aperfeiçoar a nós mesmos e a nossos filhos. Michael Sandel argumenta, de forma brilhante, que a revolução genética vai mudar a forma como filósofos discutem a ética e vai colocar as questões espirituais de volta na agenda política.
No livro de Sandel, há vários exemplos de como a bioengenharia genética já se faz presente em nossas vidas, por exemplo através da clonagem de pets. Consumidores que amam seus gatinhos e cachorrinhos, e que sofrem por antecipação com a perspectiva de que os pets vão morrer um dia, podem enviar uma amostra genética acompanhada por U$50.000 à empresa californiana Genetic Savings & Clone para que fosse produzida uma Carbon Copy do amado kittie. A empresa funcionou entre 2004 e 2006 e fazia propaganda dizendo: “Caso você ache que seu gatinho não se parece o bastante com o doador genético, nós devolveremos seu dinheiro integralmente, sem fazer perguntas.” (SANDEL, p. 18)
Para além da clonagem de gatinhos e cãezinhos, serviço disponibilizado para os donos de pets que estão com dinheiro sobrando, o autor se manifesta muito preocupado também com a engenharia genética da mente humana. Ou seja, com intervenções de caráter eugenista ou farmacológico, destinadas a criar uma espécie de Übermensch de laboratório, um projeto fáustico também presente na indústria farmacêutica e sua busca insaciável por “melhoradores cognitivos” e por modificadores do ânimo (como antidepressivos e anfetaminas):
“O melhoramento genético é tão possível para o cérebro quanto para os músculos. Em meados da década de 1990, cientistas conseguiram manipular um gene das drosófilas ligado à memória e criaram moscas com memória fotográfica. Mais recentemente, pesquisadores produziram ratos inteligentes ao inserir em seus embriões cópias extras de um gene relacionado à memória. Os ratos modificados aprendem mais depressa e se lembram das coisas por mais tempo do que os ratos normais. Empresas de biotecnologia com nomes como Memory Pharmaceuticals estão ensandecidas atrás de medicamentos para melhorar a memória, os chamados ‘melhoradores cognitivos‘, para uso em seres humanos.” (SANDEL, pg. 25)
Okja manifesta uma ansiedade diante deste cenário de OGMs e de eugenia, reafirmando a figura de Bong Joon Ho como um dos cineastas-pop de maior impacto da Aldeia Global, sempre pautando temas importantes através de filmes fabulosos, propulsionados por uma narrativa cinematográfica poderosa, repletos de sátiras e caricaturas, mas que falam sobre os cruciais problemas de nosso tempo. Ele conta que visitou vários matadouros antes de fazer o filme e os descreve como “incrivelmente chocantes”, lamentando que não conseguiu colocar nem 10% dos detalhes de um matadouro real em seu filme.
Ao projetar na relação entre a criança e seu pet aquele vínculo afetuoso que liga milhões de humanos a seus bichinhos de estimação, o filme serve como uma espécie de arma de conscientização em massa que levará muitos a se questionarem sobre suas condutas enquanto consumidores dos cadáveres de bichos mortos. Aproximando-se de teses anarcoprimitivistas, Okja parece propor que os animais foram feitos para viver soltos na Natureza, in the wild, e que encerrá-los nas Treblinkas da indústria carnista é uma das piores opressões que os humanos podem impor a outros seres sencientes.
Por isso, por mais que soe caricatural e altamente satírico, o filme funciona como uma espécie de panfleto fílmico de divulgação das causas da Libertação Animal e do Veganismo. Ao mesmo tempo, deixa soar o grito que conclama pelo processo de re-selvagizar o mundo, sintetizado por um dos grandes pensadores contemporâneos, George Monbiot, em uma palavra emblemática: REWILD!
O anarcoprimitismo não propõe o rewind, mas sim o rewild; não acredita ser possível voltar no tempo, mas quer um futuro onde a selvageria volte a recobrar seus direitos em face das atrocidades terrificantes da auto-proclamada Civilização Industrial. Esta, cujo carnismo e obsessão com lucros vem gerando um ethos da ganância e da hýbris que mostra-se cada vez mais insustentável. Por isso, mais que nunca, em coro com as criaturas sencientes da Terra, cantemos a plenos pulmões o clássico do rock’n’rolling Steppenwolfiano: “Like a true nature’s child / We were born, born to be wild!”
“Uma ironia do nosso momento é que enquanto jovens negros são assassinados, mutilados e encarcerados em números recordes, seus estilos se tornaram desproporcionalmente influentes na formação da cultura popular.” CORNEL WEST no livro “Race Matters” (1990)
O mesmo Cornel West, em uma de suas frases mais célebres e em sintonia com o espírito de Martin Luther King, pede que nunca nos esqueçamos: “a Justiça é o modo como o Amor aparece em público”.
Ao debater os temas da apropriação cultural e da representatividade nas artes, proponho deixar sempre em nosso horizonte este ideal de Justiça como Amor-em-Público, que pode nortear nosso caminhar rumo a um “outro mundo possível” (afinal, a utopia, como ensina E. Galeano, serve pra caminharmos…).
Hélio Oiticica e Torquato Neto gostavam de afirmar que “a pureza é um mito”. E certamente podemos adicionar: um mito dos mais perigosos e nefastos. A julgar tanto pelo puritanismo religioso, que está sempre conectado à intolerância que acende fogueiras onde ardem bruxas e hereges, quanto pelo mito nazifascista de uma raça pura ariana, que gerou algumas das piores catástrofes humanitárias e genocídios do século 20.
“A ideia de gêneros puros, culturas puras, no mundo moderno, um mundo por definição constituído por cruzamentos, contatos, circulações, é uma ideia insustentável. (…) O conceito de apropriação cultural deve, antes de tudo, enfrentar o espectro do problema da inexistência, no mundo moderno, de culturas puras. Pois parece uma contradição alegar ser expropriado daquilo de que não se é dono”, afirma Francisco Bosco(2017, p. 116-117).
De fato, a noção de que um certo povo possa ser o proprietário de uma cultura própria, 100% original e autêntica, autoproduzida em total isolamento em relação a outros povos e culturas, parece uma fantasia inverossímil. No Brasil, por exemplo, sabemos que o samba tem uma história conexa à diáspora africana e é o equivalente, neste continente, do semba angolano (que significa umbigada em kimbundo).
Pra Tinhorão, o samba nasce a partir dos descendentes de escravos que migram da Bahia para o Rio de Janeiro, entre o ocaso do séc. 19 e a alvorada do séc. 20. As mutações do samba, que logo começará a ser interpretado e composto por “branquelos” como Noel Rosa, Chico Buarque e Nara Leão, já coloca em pauta o tema da apropriação cultural.
No caso da bossa nova, descrita costumeiramente como uma forma estética que nasce da mescla entre samba e jazz, teria sido cometido um pecado de apropriação cultural dupla, ou seja, a apropriação da criação afrobrasileira do samba com a criação “afroestadunidense” do jazz? A realidade é mais complexa e sua essência manifesta a presença constante da mescla.
Uma outra questão, conexa e paralela, diz respeito às grandes corporações da indústria cultural: as empresas capitalistas especializadas na produção de álbuns musicais e produtos audiovisuais sempre estiveram ligadas nas subculturas em ascensão, que ameaçam tomar de assalto o chamado mainstream. O processo de transformar em commodity aquilo que começa a expressar-se com mais força na sociedade pode ser exemplificada pela gênese do rock and roll.
“Rock-n-Roll was invented by a queer Black woman born in 1915 Arkansas. Your disordered hardcore punk rock was sanctioned by a kinky-haired Black girl born to two cotton pickers in the Jim Crow South. The electric guitar was first played in ways very few people could have ever imagined by a woman who wasn’t even allowed to play at music venues around the country. The Patron Saint of rock music is Sister Rosetta Tharpe. The original punk rebel from which we were all born, SRT is muva.” – Afropunk. “Queer, Black & Blue”. 2019.
A verdadeira Vovó do Rock, Sister Rosetta Tharpe teria sido a responsável pela infusão de novas intensidades e cadências rítmicas aceleradas ao blues, produzindo assim esta mutação de alto potencial de propagação no zeitgeist cultural que foi o rock’n’roll, filho bastardo do blues com o gospel. Muitos “pais da matéria” no rock’n’roll reconheceram sua dívida com a Mãe do bagulho todo – figuras como Chuck Berry e Aretha Franklin sempre celebraram Rosetta Tharpe como uma influência maior, e Johnny Cash chegou a dizer, em seu discurso de aceitação do Hall of Fame, que ela era sua cantora predileta em todos os tempos.
Ou seja, no processo de constituição histórica do rock’n’roll, uma das formas artísticas que mais marca o século 20 em matéria de impacto popular e de ressonâncias nos comportamentos e mercados, teria ocorrido um ocultamento das verdadeiras raízes do fenômeno. A branquitude e o masculinismo hegemônicos e dominadores teriam praticado tanto a masculinização quanto o embranquecimento do rock’n’roll, originalmente uma criação do povo negro blueseiro no Sul dos EUA.
Se, hoje, a mentalidade colonizada por este ideário hegemônico pensa em rock’n’roll e logo evoca um panteão cheio de homens brancos (e ricos) – Elvis Presley, os Beatles, os Rolling Stones, o The Who, o Led Zeppelin… -, é preciso afirmar que uma história alternativa é possível, em que o panteão do rock teria que incluir em local de honra homens e mulheres afroamericanos – como Sister Rosetta Tharpe, Chuck Berry, Big Mama Thornton, Jimi Hendrix, Little Richard, Fats Domino, dentre muitos outros.
É óbvio que seria atitude segregadora e xiita querer que o samba e o rock, por suas raízes, fossem para sempre apenas “formas estéticas” permitidas para seus “criadores” originais. Quem proibisse brancos de tocarem samba ou rock estaria de fato praticando uma espécie de racismo reverso de que, na vida concreta, não se tem notícia significativa. Dito tudo isso, temos que voltar ao ponto-de-partida – a Justiça, ou o Amor como aparece em público – para julgar a pertinência do conceito de apropriação cultural.
“A improcedência do argumento das formações culturais puras não invalida a procedência descritiva do conceito de apropriação cultural”, escreve Bosco (p. 118):
“Este conceito de apropriação cultural designa fundamentalmente uma dinâmica cultural de desigualdades. Gêneros ou formas que carregam uma larga contribuição das culturas negras, embora misturados em seu processo de formação histórica, tendem a circular no mundo com protagonismo não negro…
Os sambistas brancos têm muito maiores chances de ascender no star system, cujas regras são feitas por brancos, para privilégio dos brancos. Evoquemos, por exemplo, o caso de Cartola, já então considerado um dos maiores sambistas da história, e que contudo passou uma década na miséria, doente, ostracizado…
Eram brancos os intérpretes mais populares dos anos 1930… Mário Reis, Francisco Alves e Carmen Miranda. Os dois primeiros, aliás, costumavam comprar os sambas de compositores negros dos morros, como o próprio Cartola, tornando-se parceiros na divisão dos lucros. Na verdade, ficavam com a maior parte dos lucros, pois, numa época em que os direitos autorais ainda engatinhavam, os compositores não recebiam participação por exemplares de discos vendidos (apenas pela venda de partituras, só publicadas após a gravação das canções)…
Chico Alves era quem levava os sambas comprados à Casa Edison, e assim ficava com o pagamento… A prática não deixa de ser uma espécie concreta de apropriação cultural – propiciada pelo fato de que os intérpretes famosos eram brancos. É portanto da articulação do capitalismo com o racismo que se produz a realidade identificada pelo conceito de apropriação cultural” Ele não depende de que a cultura lesada seja, originalmente, proprietária exclusiva dos bens simbólicos em questão. É de uma dinâmica de desigualdades que se trata, em que a parte de contribuição de uma cultura inferiorizada, por maior que seja (e no caso dos negros é enorme quanto aos gêneros citados), não encontra correspondente justo nos modos de circulação social das formas culturais.” (BOSCO, op cit, p. 118)
Tanto é assim que os conceitos de apropriação cultural e de lugar de fala são mobilizados sobretudo por pensadoras-ativistas vinculadas ao feminismo negro, tais como Nátaly Neri, Djamila Ribeiro, Rosana Borges. Outro exemplo interessante de apropriação cultural que se dá no entroncamento do capitalismo com o racismo é mencionado no vídeo a seguir da Negatta, onde ela cita o caso das Havaianas, empresa que colocou em seus chinelos, sem autorização prévia, grafias típicas dos povos indígenas do Xingu como os Yawalapiti, mercantilizando a produção cultural alheia de modo desrespeitoso e de maneira a esvaziar o significado cultural daquilo para a cultura lesada/diminuída:
O samba de fato serve como exemplo icônico nas lógicas sistêmicas que são denunciadas com o auxílio do conceito de apropriação cultural: no romance Jubiabá, de Jorge Amado, podemos entrar em contato com uma crônica concreta de um negro baiano (Antônio Balduíno, do Morro do Capa-Negro), que a certo ponto da narrativa vende seus sambas mas parece condenado à penúria miserável que busca driblar com toda a ginga de sua malandragem de oprimido.
“Durante muito tempo, o samba foi criminalizado, tido como coisa de ‘preto favelado’, mas, a partir do momento que se percebe a possibilidade de lucro do samba, a imagem muda. E a imagem mudar significa que se embranquece seus símbolos e atores para com o objetivo de mercantilização. Para ganhar o dinheiro, o capitalista coloca o branco como a nova cara do samba.
Por que isso é um problema? Porque esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e invisibiliza quem produz. Essa apropriação cultural cínica não se transforma em respeito e em direitos na prática do dia-a-dia. Mulheres negras não passaram a ser tratadas com dignidade, por exemplo, porque o samba ganhou o status de símbolo nacional. E é extremamente importante apontar isso: falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista. Uma frase do poeta americano B. Easy, compartilhada no Twitter, e bastante compartilhadas nas redes sociais faz todo o sentido nessa discussão: “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras, não”. – DJAMILA RIBEIRO. In: Azmina:Apropriação Cultural É Um Problema do Sistema, Não de Indivíduos.
Autora do romance Um Defeito de Cor, a escritora Ana Maria Gonçalves escreveu um importante artigo em resposta à “polêmica dos turbantes” iniciada por um desabafo de Facebook. A jovem curitibina Thauane Cordeiro, que perdeu os cabelos no processo de quimioterapia, reclamou que havia sido abordada por 4 garotas negras que lhe disseram para tirar o turbante com que cobria sua cabeça. Este caso gerou uma discussão viralizada sobre o tema da apropriação cultural, resumível na pergunta: pode uma mulher branca utilizar turbantes ou ela incide, neste caso, numa indevida apropriação de um símbolo cultural alheio? Ana Maria escreveu no The Intercept:
“Boa parte da população branca brasileira sabe de suas origens europeias e cultiva, com carinho e orgulho, o sobrenome italiano, o livro de receitas da bisavó portuguesa, a menorá que está há várias gerações na família. Quem tem condições vai, pelo menos uma vez na vida, visitar o lugar de onde saíram seus ancestrais e conhecer os parentes que ficaram por lá. E os descendentes dos africanos da diáspora? Quando chegaram por aqui, os traficantes de pessoas já tinham apagado os registros do lugar de onde haviam saído, redefinindo etnias com nomes genéricos como Mina (todos os embarcados na costa da Mina), feito-os dar voltas e voltas em torno da Árvore do Esquecimento (ritual que acreditavam zerar memórias e história) ou passarem pela Porta do Não Retorno, para que nunca mais sentissem vontade de voltar, separado-os em lotes que eram mais valiosos quanto mais diversificados, para que não se entendessem.
Ainda em terras africanas tinham sido submetidos ao batismo católico para que deixassem de ser pagãos e adquirissem alma por meio de uma religião “civilizatória”, ganhando um nome “cristão” que se juntava, em terras brasileiras, ao sobrenome da família que os adquiria. No Brasil, não podiam falar suas próprias línguas, manifestar suas crenças, serem donos dos próprios corpos e destinos. Para que algo fosse preservado, foram séculos de lutas, de vidas perdidas, de surras, torturas, “jeitinhos”, humilhações e enfrentamentos em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos que ficaram pelo caminho.
Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui. Temos, como diz a poeta, romancista, ensaísta e documentarista canadense Dionne Brand, em seu maravilhoso A Map to the Door of No Return, “o próprio pertencimento alojado em uma metáfora”. Viver na Diáspora Negra, segundo ela, é “viver como um ser fictício – uma criação dos impérios, mas também uma autocriação. É ser alguém vivendo dentro e fora de si mesmo. É entender-se como signo estabelecido por alguém e ainda assim ser incapaz de escapar dele (…).”
Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude pudesse, e ainda possa, ser mercantilizada. E não conseguimos escapar disso porque, de antemão, sem ao menos nos ouvir, vocês já parecem saber o que somos, o que queremos, o que sabemos. Assim mesmo: a negritude, a militância, as mulheres negras, esse povo – nunca seres individuais, mas sempre em lotes. E vivemos nesta metáfora que, a partir de agora, vou passar a chamar de turbante, mas poderia ser outro símbolo qualquer.
VIVER EM UM TURBANTE é uma forma de pertencimento. É juntar-se a outro ser diaspórico que também vive em um turbante e, sem precisar dizer nada, saber que ele sabe que você sabe que aquele turbante sobre nossas cabeças custou e continua custando nossas vidas. Saber que a nossa precária habitação já foi considerada ilegal, imoral, abjeta. Para carregar este turbante sobre nossas cabeças, tivemos que escondê-lo, escamoteá-lo, disfarçá-lo, renegá-lo. Era abrigo, mas também símbolo de fé, de resistência, de união. O turbante coletivo que habitamos foi constantemente racializado, desrespeitado, invadido, dessacralizado, criminalizado. Onde estavam vocês quando tudo isto acontecia? Vocês que, agora, quando quase conseguimos restaurar a dignidade dos nossos turbantes, querem meter o pé na porta e ocupar o sofá da sala. Onde estão vocês quando a gente precisa de ajuda e de humanidade para preservar estes símbolos?
Lembro de ter visto um turbante usado por um homem sensível à causa das mulheres negras na Marcha das Mulheres, que aconteceu há pouco tempo em Los Angeles, que perguntava: “Verei todas vocês, mulheres brancas legais, na próxima marcha #VidasNegrasImportam, certo?”.
Vocês, mulheres brancas legais que querem se abrigar em nossos turbantes, vão estar conosco enquanto choramos as mortes dos nossos meninos negros e clamamos por justiça, certo? Vão usar turbante quando nossas mães e pais de santo são expulsos de comunidades ou entregues aos formigueiros, certo? Quando reclamamos da dor ao recebermos menos anestesia do que mulheres brancas durante os partos, certo? Quando denunciamos que sofremos mais violência, mais abuso e mais assédio do que vocês, certo? Quando reivindicamos equiparação salarial com vocês, certo? Vão reverberar nossas vozes quando reclamamos que somos preteridas pelos homens (brancos ou negros), certo? Vão entender e ter uma palavra de consolo quando sentimos culpa por deixarmos os próprios filhos em casa para cuidarmos dos seus, certo? Vão nos ouvir e nos defender quando tiver mais alguém querendo invadir nossos turbantes a força, na marra, no grito, certo? Porque aí, o turbante também já será de vocês. Vão ouvir, entender e falar junto quando tentamos explicar que nossas reivindicações, distorcidas, não têm nada a ver com pizza, calça jeans e feng shui, certo?
(…) Quase todas as nossas discussões e toda a produção intelectual acontecidas ali, sob nossos turbantes, são desligitimizadas pela palavra de ordem #VaiTerBrancaDeTurbanteSim!, gritada para nós com a mesma arrogância e espera de obediência que os donos dos nossos ancestrais gritavam #NãoVaiTerCoisaDePretoAquiNão!. Coisas mil acontecem dentro desses nossos turbantes, das quais vocês nem têm ideia: temos que formar redes de apoio, invisíveis para vocês e alheias à sua existência privilegiada, para socorrer, consolar, orientar e fortalecer vítimas de racismo cometido por pessoas que se ofendem quando apontamos suas faltas, e viram vítimas.
Debaixo deste turbante orientamos crianças negras a não levarem banana na lancheira porque os amiguinhos vão chamá-las de macacos. Orientamos nossos jovens a não usarem roupa com capuz, não correrem, não fazerem movimentos bruscos em público e não parecerem suspeitos, seja lá o que isso significa para vocês. Sob a proteção destes turbantes, trocamos informações, discutimos teorias, nos comunicamos com turbantes estrangeiros e até fazemos vaquinhas para pagar enterro de jovens assassinados pela polícia. Concordamos, discordamos, rimos, choramos, contamos segredos, gritamos, amamos, odiamos, estudamos, dizemos uns aos outros que temos que ter infinita paciência para voltar cinco, dez, vinte casinhas do ponto de entendimento em que estamos para responder a egocentrismos do tipo “EU li Monteiro Lobato e não me tornei racista”, “se EU usar turbante vou ser chamada de racista?”. Porque sabemos que não são comentários nem perguntas inocentes, mas são também metáforas. São os muros que protegem aqueles lugares que vocês habitam e nos quais não somos admitidos, porque na porta sempre teve uma placa dizendo “brancos somente”. – ANA MARIA GONÇALVES
Para evitar a “Fulanização” das lutas políticas, ou seja, a briga inter-individual em que uma pessoa acusa outra de se apropriar de uma cultura que de direito não lhe pertenceria, é preciso focar em questões mais amplas, de violência sistêmica, racismo estrutural e cadeia produtiva da cultura. É neste terreno que se dá o debate mais importante sobre desigualdades e injustiças na distribuição diferencial dos reconhecimentos e dos capitais. Que Fulana ou Sicrana, sendo branca, utilize um turbante ou um chinelo havaiana com grafismos Yawalapiti é questão menor diante do espinhoso problema-mamute que é a indústria cultural e a mercantilização no âmbito do pop.
Em tempos tenebrosos como os nossos, em que a extrema-direita troglodita hoje empoderada rosna contra o “marxismo cultural” (copiando o III Reich hitlerista, que também rosnava contra o “bolchevismo cultural” em conexão à sua cruzada antisemita), vale a pena se perguntar o que diria o tão demonizado marxismo sobre este tema. O termo “apropriação” tem íntima conexão com “propriedade” – aquilo que Proudhon (interlocutor de Marx em “Miséria da Filosofia”) definiu como “roubo”. No âmbito do marxismo, “apropriação” conecta-se com um termo vizinho: “expropriação”. Uma das mais conhecidas formulações acerca dos objetivos da mobilização internacional em prol da revolução comunista diz que é preciso “expropriar os expropriadores”. A ditadura do proletariado teria este como seu principal alvo.
Como aplicar estas teses à cadeia produtiva da cultura? Assim como os proletários nas fábricas são expropriados dos frutos de seu trabalho pelos patrões, que pagam um salário-de-miséria e abocanham vastas fatias de mais-valia, muitos agentes culturais pertencentes a grupos historicamente oprimidos também são expropriados de seu trabalho criativo. Sister Rosetta Tharpe “inventa” o rock and roll, mas “O Rei do Rock” é Elvis Presley. O povo afrobaiano imigrado para o Rio de Janeiro após a Abolição “inventa” o samba (fruto do hibridismo cultural da diáspora pelo Atlântico Negro de que fala Gilroy), mas quem faz fortuna com o samba são os branquelos que estão na folha de pagamento da indústria fonográfica gerida por homens brancos e ricos. “Apropriação cultural”, portanto, refere-se a uma prática de expropriação perpetrada por aqueles que gozam de privilégios econômicos e políticos sobre as criações e invenções culturais daqueles que historicamente estão sendo oprimidos pelas desigualdades e pelas desvalias.
Por isso, não se trata de afirmar que um certo povo seja o “dono” ou o possuidor exclusivo de uma certa forma estética, o que nos faria cair numa absurda práxis de segregação típica dos puritanismos assassinos: estaria proibido que o samba ou o rock fossem interpretados ou compostos por “branquelos” e estes estilos se constituiriam como “área VIP” dos povos negros e exclusividade expressiva destes. Tal “racismo reverso” nunca de fato se concretizou e pode-se buscar em vão pelo mundo pelas milícias de militantes do movimento negro que praticam bully contra sambistas ou rappers brancos (o que não significa que estes estejam imunes a críticas ou que não devam ser justamente alvejados pelo senso crítico dos movimentos negros).
Longe de pretender uma “posse” de uma cultura “pura”, parece-me que os movimentos ditos “identitários” que reclamam contra a “apropriação cultural” indevida e injusta estão pedindo algo simples, mas complicado de se efetivar: respeito. É preciso respeitar as raízes e a história que estão por detrás de turbantes e sambas, é preciso ter o cuidado de não mercantilizá-los de modo troglodita e imediatista, é preciso atentar para toda a densidade de sentidos que aquilo possui para aqueles que amam tais símbolos e criações culturais, não querendo portanto vê-los cretinizados por uma maquinaria que transforma tudo em mercadoria e que, ao contrário do rei Midas que com seu toque transformava tudo em ouro, praticam a especialidade da branquitude machistóide hegemônica, o toque de Mammon, aquele que transforma em merda tudo o que toca com seu ímpeto apropriador, capitalizador, invasivo, colonialista.
Foto de abertura: Marcha da Maconha São Paulo 2019, por Alice Vergueiro
“O Proibicionismo não funcionou nem quando Deus tentou”: esta sarcástica mensagem, empunhada por um manifestante na Marcha da Maconha Goiânia 2019, é uma síntese do espírito que animou a 9ª edição anual desta manifestação na capital de Goiás.
As ruas estiveram animadas pela denúncia de um fiasco retumbante que encarcera, assassina e violenta direitos elementares. Mas também estiveram animadas pela atitude ousada e irreverente dos que pedem luz verde para esta planta de poder.
Afinal, a cannabis sativa há milênios é usufruída pela Humanidade, nas mais diversas culturas, seja como remédio, seja como expansor de consciência, seja em contextos ritualísticos ou estéticos – e apenas há algumas décadas sofre com uma insana e sanguinolenta proibição cuja colheita nefasta é o encarceramento em massa, o extermínio da juventude pobre e periférica, o enriquecimento do narcotráfico gangsterizado, a corrupção e truculência policial-carcerária etc.
Já passou da hora de pôr fim a este retumbante fracasso em prol de políticas mais sábias.
Organizador do evento, o Coletivo Antiproibicionista Mente Sativa expressa que, apesar da pesada repressão policial, a Marcha da Maconha esteve repleta de “resistência, garra e exemplo de participação política”: “Ela foi diversa de cores e gêneros, classes sociais e estilos, um ato de solidariedade e coragem com 5 mil pessoas de todos os lugares, quebradas, picos ou points de Goiânia e região”.
Em Brisas Libertárias, curta-metragem documental produzido por A Casa de Vidro com apoio da Mídia Ninja e do Mente Sativa, vocês podem ter acesso dos agitos de rua em prol da legalização e do fim da desastrosa Guerra às Drogas, além entrevistas e intervenções com:
Em Brasília e em Goiânia, sentimos um gosto amargo de Estado de Exceção durante as recentes Marchas da Maconha. Na véspera do ato goianiense, a segunda grande manifestação em defesa da educação pública (#30M) chaqualhou a capital de Goiás com um novo Tsunami da Balbúrdia, num potente protesto contra os cortes impostos pelo MEC sob a batuta do Desmontador Weintraub.
No dia seguinte, 31 de Maio, Bolsonaro visitou Goiânia para participar da 46ª Assembleia Geral da Convenção Nacional das Assembleias de Deus, explicitando o caráter sectário, teocrático e neopentecostal de sua conduta política – também marcada pelo autoritarismo no trato com usuários de drogas, com decretos que facilitam a internação compulsórias nos antros evangélicos conhecidos como Comunidades Terapêuticas.
Na Praça Universitária, talvez para mostrar serviço pro Bolsopatrão, um descomunal aparato repressivo foi montado pelo Estado para tentar tocar o terror pra cima da Marcha – reconhecida pelo STF há anos como um ato cívico legítimo e pacífico, em defesa de uma pauta que interessa à toda sociedade.
Houve um desrespeito absurdo contra o trabalho do coletivo Mente Sativa Goiânia, que cotidianamente trampa pelo esclarecimento da opinião pública sobre os malefícios do proibicionismo e da guerra às drogas. Além da detenção provisória de um dos organizadores da marcha e líderes do coletivo, o Marcello Soldan, a polícia antes da passeata confiscou 28 camisetas, 600 adesivos, 3 grandes faixas, 100 cartolinas, além de tintas, pincéis e canetões.
Em violação do artigo 5 da Constituição, que garante o direito de reunião e manifestação, a repressão policial procurou impedir a concentração da marcha e desarticular suas ações. O carro de som foi impedido de sair, sob a alegação de estar sem extintor de incêndio; dezenas de pessoas tomaram enquadros e baculejos numa praça universitária sitiada por umas 40 viaturas policiais. Por toda a marcha, viaturas e motos do aparato repressor do Estado intimidaram os manifestantes, querendo impor (sem sucesso) o silenciamento aos maconheiros ali reunidos. Quando a sociedade civil se cala diante destes abusos, torna-se cúmplice dos algozes das liberdades civis.
Ficam as questões: e agora, quem arca com o prejuízo que o coletivo teve com a organização do ato após ter seus materiais confiscados? A polícia tem direito de se apossar de material gráfico de um movimento social, na explícita intenção de desarticular suas ações e diminuir o impacto da comunicação social com a população que se dá durante a passeata?
O Estado repressor pode ficar impune quando causa um rombo nas contas de um coletivo de ativistas através do confisco dos materiais destinados a interlocução de rua com a sociedade civil? Voltamos àqueles tempos em que a truculência policial podia moer vivos aqueles acusados de “apologia” da cannabis?
No site do Congresso em Foco, um relato similar sobre as ocorrências na Esplanada dos Ministérios:
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NO BRASIL DA ULTRAVIOLÊNCIA, GOVERNO BOLSONARO É SERVIÇAL DA MORTE
O Atlas da Violência 2019 do IPEA revelou que no Brasil apenas em 2017 foram registrados 65.602 homicídios – com “ascensão de mortes com perfil racial, com negros sendo 75% do total de mortos” (Ponte Jornalismo). Como noticia Bob Fernandes, “em 10 anos foram mais de 500 mil homicídios e 400 mil mortos no trânsito – e terraplanistas querem mais…”.
Assim fica difícil contestar a tese de que a Guerra às Drogas é um dispositivo para o controle social e o extermínio brutal da juventude periférica e pobre. Uma Guerra que não é contra substâncias, mas sim contra jovens em sua maioria pretos e pardos, massacrados por um Estado fissurado em um proibicionismo contraproducente e ineficiente. Um Estado brucutu, mergulhado num oceano de sangue humano injustamente derramado.
Mesmo diante de uma montanha de evidência sobre todos os horrores conexos à estratégia bélica de combate ao narcotráfico, certos governos seguem na insanidade de realizar o mesmo na esperança de resultados diversos. No Brasil, o governo Bolsonaro vem exercitando seu único dom – o autoritarismo truculento para impor neoliberalismo selvagem na economia e conservadorismo moralista-teocrático nos costumes – também nesta área.
Em um excelente episódio recente de Greg News, na HBO, Gregório Duvivier e seu time de roteiristas espertos (com destaque para Bruno Torturra), revelaram um pouco do real significado das Comunidades Terapêuticas em que o desgoverno Bolsonarista quer internar compulsoriamente os dependentes químicos:
Não é possível propor soluções para o catastrófico cenário de violência no Brasil que não passem pela superação da desastrosa Guerra às Drogas. Na contracorrente deste fato elementar, a estupidez relinchante da extrema-direita quer investir em “estradas sem lei e armas liberadas”, numa cruzada por um país “igual a Mad Max” (Leonardo Sakamoto):
“Premiar motoristas que cometem infrações de trânsito, dobrando a pontuação máxima permitida na carteira de habilitação, e defender a retirada de radares, transformando as estradas em pistas de corrida.
Facilitar o porte de armas e possibilitar a compra de milhares de cartuchos de munição por pessoa, colocando em risco milhares de vidas e ajudando na formação e legalização de milícias urbanas e rurais.
Dificultar a fiscalização ambiental e liberar agrotóxicos em série, fomentando o desmatamento, a pesca e a caça em área de preservação ambiental e a queda na qualidade da saúde pública.
Bloquear a concessão de novas bolsas de pesquisa, reduzindo a produção de ciência e tecnologia nacionais (e, consequentemente, a produtividade e a competividade), enquanto cresce o obscurantismo.
A um observador desatento, o governo Bolsonaro parece travar uma cruzada a fim de minar toda política construída, ao longo de décadas, com o objetivo de estabelecer regras para a vida em sociedade.
Afinal, pode-se interpretar seu comportamento como o de alguém que deseja substituir o respeito à lei – em que nós aceitamos abrir mão de parte de nossa liberdade em nome da coletividade – pela lei do mais forte, e o seu cada um por si e Deus acima de todos….
(…) O Brasil de Bolsonaro se parece – e muito – com o mundo pós-apocalíptico de Mad Max….” – Leonardo Sakamoto
Por isso, dezenas de milhares de cidadãos aderem à Marcha da Maconha, um movimento social imprescindível e que é capaz de mobilizar multidões pelo Brasil afora – como provam as impressionantes fotos de Alice Vergueiro no ato de São Paulo em 2019:
“A guerra às drogas fracassou em todos os seus objetivos declarados – sendo, por outro lado, muito bem-sucedida nos objetivos não declarados e nefastos de controle social, manutenção e aprofundamento de desigualdades e preconceitos” [1], argumenta o DAR – Coletivo Desentorpecendo A Razão. Este coletivo foi importantíssimo no processo histórico de criação da Marcha da Maconha São Paulo, que já consolidou-se como uma das mais importantes do mundo e que realizou uma massiva mobilização na capital paulista neste início de Junho de 2019.
“Se expressa quando o programa governamental para informação sobre drogas nas escolas públicas se resume a palestras dadas por policiais militares; quando um vizinho cagueta o outro que cultiva uma planta de maconha; quando o pai (apesar de tomar seu goró) bate no filho quando descobre alguma substância na gaveta e pensa em interná-lo; quando um usuário de drogas chega num serviço de saúde ou assistência e é tratado com preconceito; quando a imprensa retrata como heróica a ocupação militar das Forças Armadas nos morros cariocas; e assim vai.” [2]
As Guerras às Drogas é um fracasso do ponto de vista ético e humanitário, já que acarreta políticas de encarceramento em massa e de extermínio das populações pobres e periféricas. Mas, para as elites do dinheiro, para a plutocracia que pretende dominar a sociedade, a guerra às drogas é um instrumento eficaz para o controle social e a conservação do apartheid que nos racha entre a casta dos privilegiados e as grandes massas de oprimidos e espoliados.
Logo, um movimento social que pretenda transformar a sociedade no rumo de uma legislação mais sábia não pode deixar de atentar para a missão simultânea de modificar mentalidades. São ainda pouco reconhecidas e combatidas as expressões do preconceito conservador-proibicionista no que diz respeito à desumanização-do-outro tanto nas figuras dos usuários (de maneira atenuada) quanto nas figuras dos traficantes (de maneira mais explícita) de drogas ilícitas.
O preconceito reinante, a mentalidade hegemônica, chega a considerar que quando a polícia mata um traficante, está fazendo a coisa certa, ainda que vivamos em um país que não existe pena de morte, muito menos base constitucional para que um agente estatal da segurança pública imponha a pena de morte sem julgamento a um cidadão. No entanto, vocifera-se que “direitos humanos é para humanos direitos”, aplaude-se quando a truculência militarista assassina traficantes a quem nem se deu o direito de se tornarem réus, contra quem se guerreia como se tratassem de embaixadores de Satã na terra pelo fato de que vendem substâncias psicoativas de alta demanda mercadológica.
Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil: Intolerância e respeito às diferenças sexuais”, além de revelar em minúcias alguns dados sobre a LGBTQfobia no país, também revelou algo interessante: das pessoas consultadas em todo o país, 24% afirmam ter repulsa a usuários de drogas… perguntados sobre as pessoas que menos gostam de encontrar, os usuários de drogas foram campeões, com 35%, seguidos pelos ateus (26%) e pelos ex-presidiários (21%). [3]
Não se pode subestimar o peso destes preconceitos, destas repulsas irracionais mas socialmente construídas, na manutenção de uma guerra às drogas que é “injustificável e indefensável”, como afirma o DAR: “é preciso estudar e construir caminhos para acabar com ela e gerir as drogas proibidas de outras formas, mais eficientes, justas, livres, respeitosas… São as leis que estão muito loucas, (…) e é preciso desentorpecer essa razão militarista, autoritária e violenta que só serve aos interesses do dinheiro, da exploração e da dominação.” [4]
Um dos maiores méritos do livro publicado pelo DAR está na proposta de intersecção do proibicionismo com outras pautas (a feminista, a LGBTQ, a antiracista, a antimanicominal) e a noção de que devemos agir na base de uma política pré-figurativa. Ou seja: devemos agir hoje já como gostaríamos de agir no mundo que nossa ação visa transformar. Ser hoje a mudança que você quer ver massificada no mundo de amanhã.
Esta atitude a um só tempo interseccional e autonomista que motivou o Desentorpecendo a Razão nos primórdios da Marcha da Maconha em São Paulo parece-me ainda muito fértil e válida. Visto como movimento social de ações permanentes para o esclarecimento da opinião pública e que se manifesta especularmente sobretudo nas marchas da maconha, o Anti-Proibicionismo e sua luta pelo fim da Guerra às Drogas põe nas ruas um “dispositivo pré-figurativo e performativo de mudança”:
“São nossas ações presentes que moldam o futuro: é caminhando que se faz o caminho e, como diz a frase atribuída ao anarquista Mikhail Bakunin, só se pode alcançar a liberdade por meio da liberdade. Fazendo de nossos movimentos e ações espaços o mais livres, horizontais e abertos à diversidade e à criatividade possível, estamos pré-figurando o mundo novo, vivendo e apresentando uma performance do futuro, uma ‘amostra grátis’ dele no presente, como bem definiu o poeta baiano Antonio Risério ao comentar o desbunde contracultural dos anos 1960 e 1970 no Brasil.” [5]
Segundo o professor da USP Henrique Carneiro, grande conhecedor da gênese e do desenvolvimento histórico do proibicionismo, destaca com razão o aspecto ético e filosófico da questão:
“Escolher, o sentido do termo heresia, se torna um direito. Eleger sua religião, ler e escrever com liberdade de expressão, ter a liberdade de pensamento e do corpo como fundamentos da noção da autonomia humana e da autodeterminação do próprio destino são os temas que estão em questão no debate sobre o proibicionismo. O advento contemporâneo do proibicionismo é um movimento retrógrado em relação aos fundamentos renascentistas, reformistas e iluministas que estabeleceram essa noção moderna do direito à liberdade de consciência.
(…) Diversos argumentos, desde o da redução de danos em relação aos usos abusivos, até o da cessação dos males da violência e do aprisionamento em massa de camadas oprimidas, além das vantagens da normatização mercantil com arrecadação de tributos e controles sanitários de qualidade, dosificação e pureza dos produtos, são esgrimidos no debate público sobre a política de drogas a favor de sua legalização.
Há, no entanto, um aspecto central, do ponto de vista ético e filosófico, que permanece pouco presente e que me parece necessário ressaltar. É o argumento da autonomia e da liberdade de si. Uma autodeterminação psicossomática deve dizer respeito às fronteiras do corpo, da volição e da ingestão.
É preciso literalmente que nos desamarrem os pés, nos desimpeçam de poder decidir sobre nossos próprios corpos. Como cuidar, como curar, como comer, como beber, como se consolar, como se alegrar, como viver e como morrer deveria ser domínio de um espaço de decisão pessoal íntima e inviolável.” [6] (CARNEIRO, Henrique. p. 168 e 170).
A marijuana, que começou a ser criminalizada nos EUA por razões racistas e xenófobas, em uma política de perseguição às populações mexicanas e hispânicas, protagoniza na Aldeia Global uma verdadeira Revolução na Medicina, com seus efeitos terapêuticos já amplamente reconhecidos pela Ciência e vários medicamentos já comercializados que contêm o THC. Torna-se, assim, cada vez mais obsceno e nefasto o modelo bélico de combate a esta planta psicoativa medicinal.
A juíza e diretora da LEAP Maria Lúcia Karam argumenta, com razão, que “a proibição das drogas acrescenta danos muito mais grave aos riscos e danos que podem ser causados pelas drogas em si mesmas. O mais evidente e dramático desses danos é a violência, resultado lógico de uma política fundada na guerra. Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição”:
“A ‘guerra às drogas’ mata muito mais do que as drogas…. De um lado, policiais são autorizados, ensinados, adestrados e estimulados, formal ou informalmente, a praticar a violência contra os ‘inimigos’ personificados nos ‘traficantes’. O ‘inimigo’ é o ‘perigoso’, a ‘não pessoa’, o desprovido dos direitos reconhecidos apenas aos que se autointitulam ‘cidadãos de bem’. Como se espantar ou se indignar quando policiais cumprem o papel que lhes foi designado por esses ‘cidadãos de bem’?
Quem atua em uma guerra, quem é encarregado de ‘combater o inimigo’, deve eliminá-lo. Jogados no front dessa insana, nociva e sanguinária guerra, policiais matam, mas também têm seu sangue derramado. Do outro lado, os ditos ‘inimigos’ desempenham esse papel que lhes foi reservado. Também são ensinados, adestrados e estimulados a serem cruéis. Empunhando metralhadoras, fuzis, granadas e outros instrumentos mortíferos disponibilizados pela guerra incentivadora da corrida armamentista, matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde atuam.
As mortes de policiais, as mortes de ‘traficantes’, assim como as mortes de outras pessoas pegas no fogo cruzado, são faces de uma mesma moeda: a insana, nociva e sanguinária política de guerra às drogas… que não é propriamente uma guerra contra drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Mas não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da ‘guerra às drogas’ são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Os ‘inimigos’ nessa guerra são os pobres, os marginalizados, não-brancos, desprovidos de poder.” [7] (KARAM, p. 181)
Lutar pela legalização é estar do lado da vida em tempos em que o Proibicionismo já demonstrou que é o negócio dos que lucram com a morte.
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] COLETIVO DESENTORPECENDO A RAZÃO. Dichavando o Poder: Drogas e Autonomia. Autonomia Literária, São Paulo/SP, 2016. p. 63.
“Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a Conquista européia castigou a adoração da Natureza, que era pecado ou idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre a Natureza e a gente, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda América, e no mundo, seguimos sofrendo as consequências desse divórcio obrigatório.”
Em 1967, o ministro do Interior, general Afonso Augusto de Albuquerque Lima, ordenou a realização de uma comissão de inquérito administrativo para apurar os delitos praticados pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Queria punir funcionários e moralizar o órgão. Nomeou para presidir a comissão o procurador federal Jáder de Figueiredo Correia. A iniciativa havia tardado quatro anos e derivava das graves denúncias de desmandos administrativos e financeiros no relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), de 1963. Figueiredo fez valer que a CPI havia apenas examinado os anos de 1962 e 1963 e ainda assim só três inspetorias do SPI, uma no Amazonas e duas no Mato Grosso. O ministro foi levado a estender o âmbito do inquérito a todo o Brasil.
A Comissão Figueiredo percorreu uns cem postos indígenas dos cerca de 130 existentes, em cinco inspetorias regionais do SPI, e apresentou um relatório de quase 7 mil páginas datilografadas. Incluía uma síntese em que descrevia muito mais do que problemas administrativos e os corriqueiros desvios financeiros. Denunciava com indignação crimes e violações de direitos humanos contra os indígenas. Dava nomes, detalhes e provas. Havia conluio de funcionários do SPI com fazendeiros, políticos locais, arrendatários, mineradoras; havia corrupção e desvio de dinheiro, apropriação de recursos, usurpação do trabalho dos índios; dilapidação do patrimônio dos índios, com venda de gado, de madeira, de castanha e outros produtos extrativistas, exploração de minérios, doação criminosa de terras; havia trabalho obrigatório ou escravo, venda de crianças, maus-tratos, espancamentos, prostituição, cárcere privado, seviciamento, torturas, suplício no tronco que esmagava os tornozelos, mortes por deixar faltar remédios, assassinatos, em suma um vasto rol de “crimes contra a pessoa e o patrimônio do índio”. Em termos estatísticos, os crimes por ganância eram os mais comuns, mas os crimes contra a pessoa mais hediondos.
Figueiredo salientou também a omissão na assistência devida pelo SPI aos índios, “a mais eficiente maneira de praticar o assassinato”. E por fim, explicitamente, mencionou a omissão institucional do SPI diante de massacres de extermínio. Citou o massacre por fazendeiros no Maranhão de toda uma “nação” indígena sem que o SPI se interessasse. Mencionou denúncias, nunca apuradas pelo SPI, de inoculação de vírus da varíola que provocou a “extinção da tribo localizada em Itabuna, na Bahia, para que se pudesse distribuir suas terras entre figurões do governo”. Falou do que passou a ser chamado de “Massacre do Paralelo 11”, quando os cintas-largas em Mato Grosso, atacados por dinamite jogada de avião, foram envenenados por açúcar com estricnina, abatidos por metralhadora, pendurados e cortados ao meio, de cima a baixo, com um facão, sem que ninguém incomodasse os perpetradores do crime.
Esse relatório foi divulgado oficialmente em 1968. O próprio ministro Albuquerque Lima, diga-se em sua honra, deu uma entrevista coletiva para a imprensa em 20 de março e consta que o Diário Oficial publicou o relatório conclusivo em setembro de 1968. Baseio-me aqui na primorosa pesquisa de mestrado em memória social de Elena Guimarães, defendido em 2015 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com orientação de José R. Bessa Freire, intitulada “Relatório Figueiredo: entre tempos, narrativas e memórias”.
O ministro do Interior continuou a divulgar massacres dos craôs, dos canelas, dos maxacalis, dos nhambiquaras, dos tapaiunas. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5, a situação mudou e aparentemente os documentos foram arquivados. O paradeiro do Relatório Figueiredo ficou ignorado durante mais de quatro décadas e o documento só reapareceu em 2012, graças ao pesquisador Marcelo Zelic, que o identificou no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Tornou-se imediatamente uma fonte essencial para o capítulo sobre os povos indígenas na Comissão Nacional da Verdade que investigou crimes do Estado contra os índios de 1946 a 1988.
O Relatório Figueiredo levou à criação e funcionamento efêmero de uma nova CPI do Índio em 1968, encerrada por ocasião do AI-5, com a cassação de alguns de seus membros; e ensejou a extinção do SPI e a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio) para substituí-lo.
O SPI havia sido fundado em 1910, em decorrência de outra acusação de chacinas de índios nos estados do Paraná e Santa Catarina para dar lugar nas terras aos imigrantes europeus. A denúncia foi feita no 16º Congresso Internacional de Americanistas, em Viena, em 1908, e provocou no Brasil forte reação de cunho nacionalista. Acabou desaguando, com a participação de Cândido Mariano da Silva Rondon e do movimento positivista, na criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais. No intuito de proteger negocialmente os índios, o Código Civil de 1916 passou a classificá-los como “incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, o mesmo status que tinham as mulheres casadas (essa situação perdurou até 1962) e os jovens entre 16 e 21 anos. Assim enquadrados no Código Civil, os índios passaram a merecer a proteção de um tutor, papel que foi atribuído ao Estado e que este delegou ao SPI e depois à Funai.
O Relatório Figueiredo causou grande indignação na opinião pública e repercutiu amplamente na imprensa do país e do exterior. Chegou a ser assunto da primeira página do New York Times no dia seguinte à sua divulgação. Assinado por Paul L. Montgomery e usando excertos do Relatório Figueiredo, a reportagem mencionava uma escandalosa série de assassinatos, estupros e roubos cometidos contra os índios no Brasil nos últimos vinte anos.
A palavra “genocídio” foi criada em 1944 para designar a política nazista de extermínio de judeus e ciganos. Uma Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, organizada pela ONU em 1948, caracterizou o crime e definiu as punições a ele. Desde então, “genocídio” foi o termo empregado para se referir ao que os turcos praticaram contra os armênios, em 1915, ou os hutus aos tutsis, em Ruanda, em 1994.
A lei brasileira no 2889, de 1o de outubro de 1956, seguindo a formulação da ONU, definiu como genocídio o crime praticado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. São eles: “a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”
Embora as denúncias da comissão de inquérito presidida por Figueiredo se encaixassem na definição acima, a palavra “genocídio” não constava no relatório final do procurador federal. Diante do risco de o tema entrar na pauta da primeira Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, em Teerã, e pressionado pelo Itamaraty, o Ministério do Interior tentou minimizar a situação, declarando: “Os pretensos crimes de genocídio praticados contra índios brasileiros não passam de conflitos muito mais violentos na história de outros povos entre a cobiça da civilização sem humanismo e a propriedade do silvícola, desequipado mental e materialmente para defendê-la.” (Jornal do Brasil, 10/4/1968)
A longa reportagem que a Piauí publica da página 38 à 50 insere-se nesse contexto. Foi escrita por um celebrado jornalista do século XX, o inglês Norman Lewis (1908-2003), que o diário The Sunday Times enviou ao Brasil em 1968, acompanhado de um importante fotógrafo de guerra, Don McCullin.
Lewis era um escritor prolífico e muito respeitado. Ficaria famoso por seus relatos de viagem e suas reportagens internacionais a respeito de povos tribais da Índia, de conflitos na Indonésia, da guerra francesa na Indochina e da Segunda Guerra Mundial – sobre a qual escreveu um clássico do jornalismo, o livro Nápoles 1944. Sua matéria a respeito dos índios brasileiros foi publicada na Sunday Times Magazine, em 23 de fevereiro de 1969 – posteriormente, seria editada no livro A View of the World: Selected Journalism. A reportagem estampava em letras garrafais o título “Genocide” e causou tal impacto na opinião pública britânica e europeia que motivou a criação da ONG inglesa Survival International, dedicada à defesa de povos indígenas no mundo inteiro, ativa até hoje.
O texto de Lewis é autoexplicativo e tenho poucos comentários a fazer sobre ele. O jornalista recua ao século XVI para mostrar que a dizimação dos povos indígenas das Américas não representava novidade na década de 60. Só os métodos haviam mudado. Em sua narrativa, dá muito realce à figura do fazendeiro, à sua cobiça pelas terras dos índios. Pode-se dizer que Lewis e McCullin viajam pelo Brasil numa época em que se encerra uma fase do indigenismo, caracterizada pela iniciativa, digamos, privada do fazendeiro e pela omissão institucional do SPI e, portanto, do Estado. Enquanto isso, está entrando em cena a Funai, criada às vésperas do grande projeto dos anos 70 de “integração da Amazônia” para ser a ponta de lança de uma política ativa do próprio Estado, que irá deslocar e varrer os povos indígenas que estariam obstando os projetos de infraestrutura e de ocupação de terras por aliados do regime. Foi sobretudo nessa época que se insistiu na alegação de que os índios representariam um entrave ao desenvolvimento.
O que mudou meio século depois do Relatório Figueiredo? Na prática, pouca coisa. Os índios continuam sendo mortos a bala e resistindo como podem à espoliação de suas terras. Declarações do presidente Jair Bolsonaro estimularam, antes mesmo de sua posse, a violência contra os índios, as populações tradicionais, os funcionários da Funai e os do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Os vários povos indígenas que, depois de uma primeira experiência desastrosa com a dita civilização, preferiram se isolar, estão agora reaparecendo, encurralados pelo “desenvolvimento”. São os mais vulneráveis e só terão alguma chance se for mantida a política de não estimular novos contatos.
À falta de mudanças nas velhas práticas, o que mudou, e muito, foi a teoria. A ideia de “integração” deixou de ser sinônimo de assimilação. A missão do Estado não é mais entendida como sendo a de descaracterizar sociedades indígenas para trazê-las ao regaço da civilização, até porque elas só têm a perder nesse regaço. Integrar não é mais tentar eliminar diferenças, e sim articular com justiça as diferenças que existem. Assim, a Constituição de 1988, no caput do artigo 231, declara algo, isso sim, muito novo: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições…” E no parágrafo 1º do mesmo artigo, ao caracterizar o que são terras indígenas, inclui todas aquelas necessárias à reprodução física e cultural dos índios.
A diversidade biológica e social deixou de ser vista como um passivo: é um ativo, como enfatizou recentemente a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foi-se o tempo em que derrubar a mata significava fazer uma benfeitoria, em que massacrar índios era “desinfestar os sertões”. Na era da biomimética e da busca por novos princípios ativos, a floresta em pé e seus melhores conhecedores, que são as populações tradicionais, tornam o Brasil um campo de imenso potencial para a inovação de ponta. E consta que se conhecem até agora apenas uns 10% dos supostos 2 milhões de espécies de fauna, flora e microorganismos da nossa biodiversidade.
Hoje, o Brasil se orgulha internacionalmente de sua megadiversidade socioambiental. No Censo do IBGE de 2010, contaram-se 305 etnias e 274 línguas diferentes, inclusive de troncos linguísticos completamente distintos. E, pela sua diversidade biológica, o Brasil figura com grande destaque no seleto grupo de dezessete países megadiversos.
Os conhecimentos e práticas dos povos indígenas têm sido reconhecidos em foros internacionais, como ficou patente no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), criado em 1988, e na Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), de 2012. A arqueologia brasileira tem posto em evidência que o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta – as fertilíssimas “terras pretas” – é fruto das práticas de populações indígenas desde a era pré-colombiana até hoje. E sabe-se agora que na Amazônia foram domesticadas dezenas de plantas, entre as quais a batata-doce, a mandioca, o cará, a abóbora, o amendoim e o cacau. Um artigo publicado recentemente mostra que até mesmo o milho, originário do México, passou por uma segunda domesticação na Amazônia.
Os povos indígenas e comunidades tradicionais são também provedores da diversidade das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar. A Revolução Verde do pós-guerra, que investiu nas variedades mais produtivas de cada espécie agrícola, teve grande sucesso no volume das colheitas, mas produziu danos colaterais. Um deles foi a perda maciça de variedades agrícolas, como as de arroz na Índia e de milho no México.
Foi a falta de diversidade das variedades cultivadas de batata que levou à Grande Fome da Irlanda, entre 1845 e 1849. Domesticada nos Andes, onde existem até hoje mais de quatro mil variedades com diferentes propriedades e resistência a doenças, a batata se tornou no século XVIII a base da alimentação de boa parte da Europa, onde só poucas variedades, entretanto, foram selecionadas. Quando um fungo destruiu por vários anos seguidos as batatas plantadas na Irlanda, a fome causou a morte de um milhão de pessoas e a emigração de outras tantas.
A consciência do risco criado pela perda da diversidade levou o próprio pai da Revolução Verde, Norman Borlaug, a propor a criação dos chamados bancos de germoplasma pelo mundo afora, para a conservação das variedades de plantas. Mas não basta: as plantas e seus inimigos, como os fungos, encontram-se em uma perpétua corrida armamentista. A cada novo ataque, as plantas desenvolvem novas defesas, num processo de coevolução, que também ocorre devido a mudanças de outra natureza, como as climáticas.
Essa coevolução não se dá em bancos de germoplasma, onde as variedades estão depositadas para se conservarem sem mudanças. Por isso é essencial que elas continuem a ser cultivadas. Órgãos científicos cuidam disso mediante pesados investimentos. Mas povos indígenas e comunidades tradicionais também mantêm por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e observam as novidades. É por isso que no Alto Rio Negro há mais de 100 variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimenta – sem falar na diversidade de espécies em cada roçado e quintal. Para os caiapós, bonito é um roçado com muita diversidade, pois os povos indígenas são mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie. Eles são, de fato, colecionadores.
A tragédia irlandesa das batatas se tornou uma história exemplar. Mostrou que se deve dosar a produtividade e a diversidade. É coisa que o mercado financeiro tanto quanto a ecologia ensinam: a homogeneidade é perigo sério. A quem pergunta o que produzem os povos indígenas, pode-se responder que eles são e produzem justamente a diversidade. De graça.
O chamado “interesse nacional” é um coringa muito utilizado, mas pouco analisado. Onde exatamente reside o interesse nacional no caso dos indígenas? Um exemplo interessante é o da mineração em suas terras. A partir da década de 70, o projeto Radam (Radar da Amazônia) começou a fazer o mapeamento aéreo da região e criou grande expectativa para as companhias de mineração. Rapidamente, o mapa da Amazônia ficou coberto de pedidos de pesquisa e de lavra.
Na Constituinte de 1988, as mineradoras, em sua maioria de capital estrangeiro, combateram com afinco as restrições à lavra em terras indígenas. Tinham o apoio do economista Roberto Campos, então senador. Foi a Coordenação Nacional dos Geólogos, a Conage, que defendeu essas restrições. Lembrou que, na exploração mineral, não existe segunda safra, e que era de interesse nacional manter reservas minerais em terras indígenas. Nesse embate, o interesse nacional foi defendido pela Conage contra as mineradoras. O que mudou agora?
O mapa das terras indígenas do Brasil é eloquente: as maiores estão em áreas que até há pouco tempo não interessavam a ninguém, e são extensas justamente por isso. Povos indígenas, como os macuxis, foram levados ou atraídos pelo próprio Estado no século XVIII para as fronteiras mais sensíveis do país com o objetivo de lá constituir uma fronteira viva, “uma muralha do sertão”. Hoje, são os ashaninkas do Acre que, por conta própria, rechaçam invasores madeireiros do Peru. Seja como for, foi sábia a Carta de 1988 ao ter mantido a tradição constitucional brasileira de definir as terras indígenas como propriedade da União, embora de posse exclusiva permanente dos índios. O Estado pode e deve estar presente nas fronteiras. Inclusive para defender os índios e para ser defendido por eles quando necessário.
Se continuarmos a olhar o mapa das terras indígenas, veremos que, não por acaso, nas áreas de colonização antiga, as terras indígenas são diminutas. E nas que foram ocupadas por fazendas nos anos 40, durante a “marcha para o oeste” (sul de Mato Grosso e oeste do Paraná), o conflito é permanente. Esses conflitos incessantes são, aliás, um bom motivo para manter a Funai na alçada do Ministério da Justiça, que teria maior agilidade, já que coordena a Polícia Federal, para intervir quando necessário.
Quais são os mais eficientes blocos políticos com que o Brasil poderia se alinhar na defesa do interesse nacional? O Ministério do Meio Ambiente publicou que o valor da biodiversidade brasileira é incalculável e que os serviços ambientais que oferece, “enquanto base da indústria de biotecnologia e de atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais”, são estimados em trilhões de dólares anuais. Dada a importante atuação do Brasil no bloco dos países megadiversos, é favorável ao interesse nacional abandonar esse grupo?
Perguntaram-me há alguns dias o que eu esperava da política do novo governo. Minha resposta é esta: espero que cumpra a Constituição de 1988.
Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga, professora titular aposentada da USP e professora emérita da Universidade de Chicago.
Xavantes no vale do rio Batovi, em Mato Grosso, em 1949. Os povos indígenas e comunidades tradicionais são provedores da diversidade das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar. FOTO: JOSÉ MEDEIROS, 1949.
Fotografia que abre o post: Ex-presidente Lula em ato de demarcação da Raposa Serra do Sol, via Carta Capital.
Todos os demônios estão soltos nesta terra que tem por nome Brasil.
A tragédia já estava prefigurada em nosso batismo: nos puseram um nome em homenagem a uma planta que havia nas terras de nosso litoral atlântico, o pau-brasil, com sua rubra madeira cor de brasa. O Brasil é um dos países do mundo com nome mais vermelho – e estou falando de linguística, não de política.
Os portugueses que nos invadiram com suas caravelas e bíblias, suas escopetas e doenças, logo viram no pau-brasil uma mercadoria rentável, pois podia ser usado no ramo da tinturaria de tecidos (fonte: etimologia de “Brasil” em Wikipedia). Rainhas da Inglaterra pisavam sobre tapetes vermelhos, signos de sua alta posição hierárquica e acesso a caríssimos luxos e privilégios, que haviam sido tingidos com pau-brasil.
Desde nosso batismo, partindo da palavra que nos nomeia, somos vermelhos na essência e constantemente espoliados por imperialismos. Por isso é tão estranho a meus ouvidos o grito-de-guerra de certos brasileiros, dizendo: “nossa bandeira nunca será vermelha!”
Compreendo que com isso manifestam sua fobia não de uma cor, ou seja, de uma configuração cromática específica, mas sim uma fobia daquilo que compreendem por “comunismo”. Às vezes, essa “rubrofobia” atinge as raias da loucura, como ocorreu com a senhora que revoltou-se diante da bandeira do Japão, que é branca com uma bola vermelha no centro, acusando os nipônicos de comunistas, o que não é puro nonsense (quem estudou História sabe, aliás, que os japoneses que estiveram aliados ao nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial).
Somos todos nós vermelhos no cerne: em nossas veias corre o mesmo rubro sangue. O que se classifica, com base em fenótipos aparentes, como “branco”, “negro”, “indígena”, segundo a tosca classificação vigente, colapsa diante de uma solidariedade ontológica mais funda, que nos une ao invés de nos segregar: todos nós sangramos sangue vermelho, todos nós temos a vida, em nós sustentada, pelos rubros fluxos deste líquido que nos comuna. Globalmente comunados estamos na condição humana, simbolizada pelo vermelho de todos os nossos sangues.
No Brasil de 2018, sinto medo de andar nas ruas de meu país vestido com uma camiseta vermelha onde se lê duas palavras: LULA LIVRE. Posso ser espancado, esfaqueado ou mesmo assassinado pelo delito gigantesco de vestir uma camiseta assim. Que país nos tornamos, quando não se pode manifestar discórdia diante de um processo que se julga injusto, um cárcere político? “Que país é este?” – como cantou, questionador, Renato Russo, em outra época mas ainda similar à atualidade.
Acreditamos realmente que um Brasil de tamanha intolerância alteritária é um projeto sócio-político a se apoiar? Ou então devemos rechaçar e repudiar qualquer sistema político que queira reduzir a policromia do mundo à sua pobre paleta de cores? Nossa diversidade não é a mais preciosa de nossas riquezas? E você tem certeza que sabe de fato o que significa propor a “extinção dos comunistas” e a “extirpação dos vermelhos”? Sabe mesmo o que é uma pessoa comunista, para além da caricatura imaginária do Outro demonizado?
Eduardo Galeano ensina que o Arco-Íris Terrestre tem bem mais que 7 cores. Excluir o vermelho é um projeto que enfeia o mundo. O vermelho é maravilhoso. O vermelho é mágico como os raios de Sol quando se põe, despedindo-se deste setor do planeta girante. Pelo menos até amanhã de manhã. O vermelho sanguíneo é a continuação da vida, a transfusão dos ânimos. Aquilo que flui por dentro de todos nós, como um tônico revitalizante, distribuindo o alimento. Sangue vermelho bombeado por nossos corações, que ficam sempre do lado esquerdo do peito, independente de gênero e de sexo, independente de raça e de etnia, independente de classe e de pertença a castas.
Digo a todos os humanos terráqueos: “Do You Realize?”, como pergunta a música do Flaming Lips, que todos nós sangramos vermelho e temos um coração à esquerda no peito?
PARTE 2 – BEM-VINDOS À DISTOPIA DO REAL
Vivemos em dias nos quais a distopia não está restrita às obras de sci-fi pessimista ou aos filmes futuristas pós-apocalípticos. Somos contemporâneos de uma distopia que encarnou-se no real. Hoje convivemos com a instauração da barbárie brutal do Bolsonarismo.
A utopia, como Eduardo Galeano ensina, segue fugindo no horizonte, inalcançável por mais que caminhemos na sua direção, em nosso anseio insaciável de abraçar uma realidade menos opressiva e sórdida. A utopia segue inacessível, ainda que prossiga servindo à nossa incansável caminhada.
Já a distopia de nós se aproxima cada vez mais de nós com tanques, tropas e truculências que vão triturando nossas tristes vidas.
A nossa distopia tropical em processo de encarnar-se é, cada vez mais, a nossa realidade histórica contemporânea: a fase catastrófica em que embarcou a sociedade brasileira assusta pela escala colossal da tragédia autoritária e militarista que vem se empoderando.
O retrocesso brutal agora está encarnado no que venho chamando de “Bozonazismo” – a nova extrema-direita, seguidora de Jair Messias Bolsonaro, que se manifesta no país com brutalidade e descontrole.
O plano deste grupo político elitista, supremacista, interessado sobretudo em lucrar com o entreguismo de riquezas nacionais ao imperialismo Yankee, inclui a instauração de uma espécie de teocracia militarizada à laGilead.
Refiro-me à distópica sociedade em que se transformou os E.U.A. após um Golpe de Estado fascista-teocrático na série The Handmaid’s Tale, inspirada no livro da autora canadense Margaret Atwood.
“Extirpar os ativismos”, “fuzilar a petralhada” e “dar carta branca pra polícia matar”: eis algumas das promessas de campanha proferidas pelo presidenciável do PSL (partido que terá a 2º maior bancada da Câmara dos Deputados, só menor que aquela eleita pelo PT). Apesar de fazer pose de “exterminador de corruptos”, Jair Bolsonaro passou a maior parte de sua trajetória política sendo liderado por Paulo Maluf no PP.
Nos palanques pelo Brasil, um dos gestos mais recorrentes do candidato de extrema-direita consiste em pegar crianças no colo e ensiná-las a fazer com as mãos o gesto de atirar uma arma-de-fogo. Comportamento que é um ícone de sua brutalidade. Um indício de que, em matéria de ética, ele age como um neandertal.
Não há de respeitar a Constituição Cidadã alguém que se diz “favorável à tortura” e que promete transformar em “herói nacional” àquele que foi o comandante supremo, durante a Ditadura civil-militar (1964-1985), do aparato repressivo, torturador e exterminador, o facínora Brilhante Ustra.
PARTE 3 – POLÍTICA DA MORTE: TÂNATOS OPRESSOR DE EROS
O candidato a ditador, escudado por seu vice (o General Mourão), promete derramar muito sangue no Brasil: sua insana proposta para o complexo problema da segurança pública é permitir a aquisição de armas à torto e a direito, para felicidade das megacorporações armamentistas dos EUA, que lucram com a morte e a destruição, em um processo que é pura Necropolítica, conceito de Achille Mbembe:
“Neste ensaio, propus que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Sublinhei igualmente algumas das topografias recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular) e sugeri que o necropoder embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade.” [Achille Mbembe]
SOBRE O AUTOR: Mbembe é considerado um dos mais agudos pensadores da atualidade. Leitor de Fanon e Foucault, com notável erudição histórica, filosófica e literária, vira do avesso os consensos sobre a escravidão, a descolonização e a negritude. Nascido nos Camarões, é professor de História e Ciências Políticas em Joanesburgo, bem como na Duke University, nos Estados Unidos. É autor, entre outros, de “Crítica da razão negra”, “De la postcolonie”, “Sortir de la grande nuit” e “Politiques de l´inimitié”.
Bolsonaro parece querer retroceder àquilo que o filósofo Thomas Hobbes chamou, no “Leviatã”, de “Guerra de Todos Contra Todos”. Em uma famosa entrevista ao programa Câmara Aberta, em 23 de maio de 1999, Bolsonaro disse: “Só vai mudar, infelizmente, quando, um dia, nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Atentem bem: vocês que digitam o número 17 nas urnas, votando em Bolsonaro, estão dando aval e sendo cúmplices de um sujeito que já disse repetidas vezes que, se depender dele, vão morrer milhares de inocentes durante seu governo – que mais parece, na verdade, um empreendimento bélico.
Os seguidores de Bolsonaro já estão pondo prática essa carnificina no período eleitoral, dando ao povo brasileiro um antegosto do inferno que os Bolsonaristas pretendem instaurar caso sejam eleitos. No período entre o 1º e o 2º turno das Eleições, já são pelo menos 3 vítimas fatais da escalada de ódio, violência e intolerância perpetrados por apoiadores do sr. Jair Bolsonaro:
Vítima: Moa do Katendê.
Local: Salvador – BA.
Data: 15/10/2018.
Arma do crime: faca. https://goo.gl/DS71oQ
Vítima: Priscila.
Local: São Paulo – SP.
Data: 16/10/2018.
Arma do crime: faca. https://goo.gl/BsW1yy
Vítima: Laysa Furtano.
Local: Aracaju – SE.
Data: 20/20/2018.
Arma do crime: faca. https://goo.gl/RCUJDe
Caso esta tragédia se consume e a campanha eleitoral fraudulenta e propulsionada por fake vença nas urnas, o Brasil se tornará, no planeta Terra, uma espécie de paradigma da barbárie, vanguarda do atraso, palco de atrocidades que nos envergonharão diante das outras nações.
Nenhum governo legítimo nascerá de um processo eleitoral tão marcado por ilegalidades e fraudes. O que permitiu a ascensão de Bolsonaro foi o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff em 2016, ao que somou-se a guerra jurídica ou lawfare que culminou com a prisão de Lula, um “impeachment preventivo” que transformou o Brasil no único país do mundo em que um ex-presidente da república foi encarcerado em ano de Eleições num contexto em que estava disparado em 1º lugar nas intenções de voto. É algo sem precedente global histórico que eu conheça.
PARTE 4 – ELITISMO E HIGIENISMO: UM PROJETO DE CARNIFICINA E GENOCÍDIO
Pregando a violência e o ódio ao seu rebanho de seguidores fanatizados, Bolsonaro cada vez se revela mais como um caso psiquiátrico grave: é um sujeito gravemente adoentado com sintomas de psicose e megalomania.
A fusão que o Bolsonarismo opera entre o discurso higienista da “faxina” – muito próximo à ideologia nazi-fascista e também às práticas dos supremacistas brancos da KKK nos EUA – e o antipetismo fanático, típico daqueles que são incapazes de fazer qualquer tipo de avaliação sensata sobre os méritos e deméritos das políticas públicas petistas (como a expansão da rede pública de ensino, o combate às desigualdades sociais, os programas sociais de auxílio aos mais vulneráveis e desvalidos etc.) vai produzindo uma monstruosidade coletiva muito perigosa.
É tão perigosa que seria a maior das fake news dizer que o campo Anti-Bolsonarista é apenas um antro dos petistas. O repúdio a Bolsonaro é amplo e irrestrito, atravessa todas as classes sociais, ainda que possua regiões de maior intensidade de resistência (o Nordeste) e que possua nas mulheres a principal força de mobilização contestatária (leia em Vice: As Mulheres Fizeram A Maior Marcha Antifascista do Brasil).
O maior fenômeno de mobilização cívica de 2018 foi sem dúvida o movimento #EleNão, que manifestou a grandeza do repúdio organizado ao projeto de poder, elitista e genocida, da extrema-direita Bolsonarista. A crítica ao Bolsonaro é feita não só pela esquerda (PSOL, PC do B, PT etc.), mas até mesmo por setores mais ao centro e à direita: inclui até mesmo certos tucanos (o FHC já farejou o fascismo das práticas da família Bolsonaro), a maioria dos ciristas (PDTistas) e de marinistas (Marina Silva declara ‘voto crítico’ em Haddad).
PARTE 5 – INTOLERÂNCIA SANGUINÁRIA CONTRA A DIVERSIDADE HUMANA
Seguidores de Bolsonaro tem propagado a noção de que “petista bom é petista morto”, mas também a de que “gay bom é gay morto”, “feminista boa é feminista morta”, “sem terra bom é sem terra morto”, e por aí vai.
É uma doutrina que se baseia num tipo de pensamento tosco, maniqueísta, baseado na criminalização do outro e na construção de grandes generalizações imaginárias (“todos os esquerdistas não prestam, todos os petistas são corruptos e ladrões, logo eles precisam ser varridos do Brasil”).
Assim, a extrema-direita apóia milicianos e gangues estão tocando o terror: dando facadas em mestres da cultura popular, desenhando suásticas em mulheres, assassinando brutalmente transexuais, numa atitude de hooliganismo destrutivo que hoje aterroriza o país e que ameaça sair totalmente do controle.
Pois o instigador supremo dessas violências é um completo irresponsável, que diante dos homicídios e agressões perpetrados por seus seguidores diz simplesmente: “O cara lá que tem uma camisa minha comete lá um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?” (Bolsonaro, TV UOL, 10 de outubro de 2018)
Tal grau de irresponsabilidade mostra o total desprepo do candidato para o cargo que ambiciona. O transtornado líder dessa seita, embriagado com a ambição e a sede de poder, como um Macbeth ou um Ricardo III (mas sem a grandeza dos personagens shakespearanos), fala na linguagem dos ditadores brutais. Não se houve de sua boca nada em defesa da democracia. Mas sim elogios e mímesis dos que cometeram as piores atrocidades da História humana.
Bolsonaro promete uma “limpeza como nunca antes houve neste país”, o que soa como uma proposta de higienismo social que assusta pela proximidade com projetos genocidas e totalitários de “limpeza étnica” que constituem, na linguagem penal internacional, “crimes contra a humanidade”.
O pretendente a führer tropical tampouco se importa com esta besteira que são os Direitos Humanos Universais. Já prometeu que vai tirar o Brasil das Nações Unidas (Leia em O Globo: https://glo.bo/2N0tJWO). Para ele, esta babaquice esquerdista que é o Estado Democrático de Direito pode e deve ser sacrificado no altar do seu Estado Teocrático Militarista onde “as minorias tem que se curvar à maioria”.
Na verdade, por trás desta retórica que vem encantando tantos cidadãos brasileiros, frustrados com a política tradicional, está uma velharia mofada que ressurge em nossa história: Bolsonaro é a cara da nossa antiquíssima Elite do Atraso, um macho, branco, milionário, hetero, cis, que encarna tudo aquilo que o velho elitismo defende desde a época da escravatura. É um cara-pálida machista, supremacista racial, favorável aos ricos, apoiador do extermínio da diversidade humana, intolerante com modos de viver e de crer que se desviem de sua norma caduca e esclerosada.
Concedo que nesta tragédia há elementos cômicos – um eleitorado que elege, como fez em São Paulo, um ator pornô, um palhaço (sem muita graça), um herdeiro de um luso monarca, e ainda tem coragem de vomitar xenofobia contra os nordestinos que seriam cabras que “não sabem votar”.
Sabemos muito bem, pelo resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, que o Nordeste foi a única das 5 regiões brasileiras em que Bolsonaro perdeu, seja para Fernando Haddad, seja para Ciro Gomes. Sinal de que o Nordeste tornou-se a vanguarda ética da nação, o Nordeste é nossa estrela-guia para tentar “re-iluminar” o resto do Brasil, que tem estado refém das trevas de um obscurantismo fundamentalista que pôs a democracia na guilhotina.
PARTE 6 – UMA CATÁSTROFE PARA A EDUCAÇÃO E A CULTURA
Após o Golpe de Estado de 2016, vimos o governo Temer nascer instaurando o que foi chamado de Machistério: só havia homens, brancos e ricos comandando 100% dos Ministérios. Como nada é tão ruim que não possa piorar, a promessa de Bolsonaro é encher os Ministérios com militares, inclusive o Ministério da Educação – MEC: Bolsonaro já se manifestou no sentido de sua predisposição ao extermínio da obra e da influência pedagógico-política de Paulo Freire, considerado mundo afora como um dos pensadores brasileiros mais brilhantes que já nasceu. O “Andarilho da Utopia”, como Paulo Freire gostava de se referir a si mesmo, também está sob ameaça.
Como informa a reportagem de Época, segundo Bolsonaro, defensor do Escola Sem Partido (que é também o Escola Sem Darwin, o Escola sem Marx, o Escola Sem Nietzsche…), lá no MEC o plano é esta beleza: tem que pôr lá um milico, de pulso firme, que extirpe o “esquerdismo”: “Tem de ser alguém que chegue com um lança-chama e toque fogo no Paulo Freire.”
E vocês pensando que Farenheit 451 era só uma obra de ficção científica sci-fi! Bolsonaro disse que seu programa vai ser usar o “lança-chamas” contra o Paulo Freire, igual aos bombeiros que, ao invés de apagarem incêndios, botam fogo em bibliotecas no romance de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut, e que voltou aos cinemas na era Trump-Bolsonaro em produção da HBO.
Nenhum compromisso com a verdade, com a cultura, com o conhecimento, com a ciência. Bolsonaro só pensa em dinheiro e poder para pôr em prática seus ensandecidos planos de “purificação” da nação. Seu slogan é “Brasil acima de tudo” (similar ao Deuteschland Ubber Allez dos nazis alemães) e “Deus acima de todos” (o Deus como o concebem os evangélicos neopentecostais estupidificados pelas organizações teocráticas de Edir Macedo, Malafaia, Feliciano etc.).
É a distopia total da união de um nacionalismo fake, conversa pra boi dormir diante da explícita submissão vira-latística do Bolsonarismo aos EUA de Trump, com a teocracia do setor mais fundamentalista e obscurantista do mercado-da-fé no capitalismo brasileiro contemporâneo. Tudo o que Bolsonaro mais quer é poder ir lamber as botas de Trump na Casa Branca, faturando bilhões para si mesmo ao liberar o nosso petróleo e nossa Amazônia, além de nossa água doce e nosso espaço aéreo, para a exploração “livre” por parte do Império hoje gerido por um fascista, xenófobo, supremacista branco, cúmplice do genocídio do povo palestino.
PARTE 7 – QUANDO O NARIZ DE PINÓQUIO BATEU NOS ANÉIS DE SATURNO
O candidato Bolsonaro, além de basear sua campanha em mentiras difundidas em larga escala através de impulsionamentos patrocinados via caixa 2 (dinheiro investido por empresas que, aliás, estão diretamente interessadas na devastação de nossos direitos trabalhistas), também tem uma espécie de “plano piromaníaco” para a educação e a cultura. Um plano parecido com o de Nero, o incendiário de Roma.
Um programa que obviamente não tem compromisso algum com o processo coletivo de busca da verdade que engaja profissionais de tantas áreas, do jornalismo, da filosofia, das ciências sociais, da literatura, das artes, da tecnologia etc. Toda barbárie está liberada quando o líder supremo, como Goebbels no III Reich, como o Grande Irmão no 1984 de Orwell, julga-se no direito de mentir em massa. Aniquilando reputações a base de calúnias, difamações e memes ridicularizadores e mentirosos. Tudo com dinheiro ilegal vindo de empresas simpáticas ao projeto de aniquilação (lucrativa pro patronato) dos direitos trabalhistas.
É de se imaginar, num virtual regime Bolsonarista, o seguinte quadro aterrador para a educação e a cultura. Os militares estarão no domínio no MEC e no MinC. Estarão mobilizando o polvo repressor da Escola Sem Partido, mandando artistas e intelectuais pros novos porões do DOI-CODI. Os educadores considerados subversivos, pois aplicam a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, vão berrar no pau-de-arara… De agora em diante, só Educação Moral e Cívica, só Doutrinação Criacionista! E que se calem aqueles que não querem ser as bruxas e os hereges queimados na Nova Inquisição!
Os piromaníacos, os “profissionais da violência”, as milícias Bolsonaristas, neste futuro possível (ainda que intragável) podem aproveitar que o fogo das intolerâncias está acesso e ir no embalo da queima não só dos livros de Paulo Freire. O lança-chamas será também usado contra Charles Darwin, de Karl Marx, de Friedrich Nietzsche, de Judith Butler, de Jessé Souza… Arderá todo o “lixo esquerdista”: será a Segunda Morte de Rosa Luxemburgo, de Gramsci, de Mandela, de Malcolm X….
Os BolsoNeros também podem empolgar-se na piromania e tacar nas fogueiras também os professores de biologia que queiram ensinar o evolucionismo. Ou os professores de sociologia vão gemer torturas nos porões das delegacias militares para abjurar do pecado de ensinar Marx, Engels e Max Weber. Os professores de filosofia que julgam digna de ser ensinada na escola a vida e obra de figuras como Walter Benjamin ou George Lúkacs, serão truculentamente levados aos centros de detenção e “interrogatório” onde sangram aqueles que ensinam “lixo esquerdista”.
Pode até parecer que estou paranóico, que estou dando asas demais à minha imaginação distópica, mas lembro-me agora da frase de William Burroughs de que Kurt Cobain tanto gostava e que contrabandeou para dentro de uma música do Nirvana: “just because you’re paranoid, don’t mean they’re not after you”.
Na Alemanha do III Reich, os nazistas fizeram muitas fogueiras de livros. Fizeram também campos de extermínio e câmaras de gás em que tentaram reduzir a cinzas todo o povo judeu no processo que ficou conhecido como Solução Final. Puderam convencer boa parte do povo alemão a ser cúmplice do Holocausto – em um processo social desastroso, onde passa a ser dominante a obediência cega e servil aos ditames da tirania nazi e que a filósofa política Hannah Arendt conceituou como “A Banalidade do Mal”, um dos mais importantes conceitos na história do pensamento do século XX.
PARTE 8 – A ESPERANÇA EQUILIBRISTA ESTÁ COM HADDAD E MANU
O Brasil, em Outubro de 2018, está diante de uma encruzilhada histórica colossal, em que nosso futuro coletivo está na balança. A maioria do eleitorado pode eleger um psicopata que promete a carnificina, a guerra, a violência, a intolerância, o destravamento de todos os ódios, o colapso de toda solidariedade e toda justiça. Pode acontecer, mas seria catastrófico, segundo todas as mais lúcidas previsões e prognósticos de gabaritados historiadores, sociólogos e filósofos.
Nós, que amamos a democracia e a liberdade, que somos educadores e intelectuais comprometidos com a defesa dos direitos humanos, que não aceitamos o argumento de que “ativismos” devem ser extirpados, prosseguimos incansavelmente na ação de conscientização para alertar o cidadão brasileiro do tiro-na-cabeça que é digitar 17 nas urnas.
Ao invés deste sádico opressor que é Bolsonaro, temos a oportunidade de eleger um sábio professor que é Fernando Haddad. É evidente para qualquer cidadão que não esteja cego pelo fanatismo que Haddad é um gestor público de comprovada competência, que realizou um primoroso trabalho como Ministro da Educação do governo Lula. Foi um prefeito de São Paulo premiado internacionalmente pelo seu trabalho inovador e humanista no processo desafiador de governar a maior cidade da América Latina. Sua mentora, a filósofa Marilena Chauí, garante-nos sobre as muitas excelências éticas e intelectuais de Haddad.
Haddad é um líder de centro-esquerda inteligente, dinâmico, capaz de diálogo amplo com todos os setores da sociedade brasileira. Sempre portou-se de maneira honesta, íntegro e digna, sempre na defesa dos valores civilizacionais elementares de uma república democrática como o Iluminismo a idealizou na “Era das Luzes”. É um intelectual crítico, iluminista, humanista, com incríveis capacidades no âmbito da práxis e da gestão pública.
Ao invés da carnificina que a extrema-direita fascista deseja instaurar, derramando o sangue dos inocentes, podemos eleger o projeto de valorização da educação e do trabalho, dos serviços públicos e da qualidade de vida, que hoje Haddad defende e representa.
O antipetismo de alguns atingiu tal grau de insanidade que, motivados pelo ódio irracional, alguns aplaudem quando seu líder Bolsonaro diz que “marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” e que “bandidos do MST e MTST” terão suas “ações tipificadas como terrorismo” (leia em UOL Notícias – https://bit.ly/2AlK4S0).
O discurso de Bolsonaro exibido num telão na Avenida Paulista em 21 de Outubro, faltando uma semana das eleições, nos dá o alerta: estamos diante de um tirano intolerante que pretende perseguir, silenciar ou mesmo assassinar impiedosamente, usando a máquina de repressão do Estado, os cidadãos que participam de movimentos sociais e partidos políticos estigmatizados como “esquerdistas e marginais”. Bolsonaro é a barbárie, e quem o apóia é cúmplice do projeto político mais exterminador, estúpido e nefasto da história da Nova República.
O que há de mais precioso na vida política popular do Brasil são aqueles que mobilizam-se por justiça no campo e na cidade, que querem a reforma agrária e o direito à moradia, que demandam condições dignas de existência e de florescimento. Temos a oportunidade histórica de empoderar, com a eleição do presidente Fernando Haddad, um projeto de Brasil muito mais justo, generoso, solidário, fraternal, inteligente, amoroso e sábio. Que saiba ouvir a sociedade civil organizada, ajudar a empoderá-la, criando condições para uma ressurreição democrática entre nós.
Votar Haddad é votar num Brasil que possa ter um futuro mais doce: o do diálogo democrático e colaborativo, re-instaurado. Bolsonaro só nos obrigará a beber um amargo cálice de Necropolítica, feito todo de intragáveis doses de silenciamento, brutalidade e carnificina, um projeto que inclui um grotesco massacre dos inocentes e uma tirania militarizada e teocrática que nos leva de volta à Idade das Trevas.
Sempre que deparo com os “Bozominions” (esta versão fascista do Coxinha) falando horrores criminalizadores sobre o PT, penso que o PT – Partido dos Trabalhadores merece mais respeito. É de um desrespeito brutal o que os Bozominions fazem com a biografia e a trajetória de Lula, Dilma, Haddad, Lindbergh etc. Tratá-lo como “organização criminosa” não é só falso, desonesto e obsceno, é um verdadeiro crime contra um partido que faz parte da nossa História há 38 anos e cuja trajetória merece ser estudada, avaliada, criticada, mas jamais descartada nem muito menos exterminada.
Ao final do mandato de 8 anos de Lula, o Brasil era um dos países mais admirados do mundo e vencia com ousadia alguns dos piores males que lhe haviam sido legados pelo passado de colônia e de ditadura. Vomitar o slogan “O PT é ladrão” jamais vai apagar os feitos de quem retirou 40 milhões de pessoas da miséria, fortaleceu o salário mínimo, levou-nos a um estado de pleno emprego, ampliou Universidades Federais e IFs como nunca antes na História, fortaleceu o SUS, criou Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, ProUni, Cultura Viva, dentre tantos outros programas sociais de valor e mérito que merecem nossa estima.
PARTE 9 – O FALSO DEUS DOS PSEUDO-MESSIAS
O grau de obscurantismo da extrema-direita brasileira nos ameaça com a instauração de um nova idade trevosa, com milícias à la Ku Klux Klan acendendo as fogueiras das novas intolerâncias. Sabemos que o tropicalführer está apoiando-se no poderio das igrejas neopentecostai$ do Brasil. Malafaia, Feliciano, Edir Macedo, Jair Bolsonaro: são “poderosos” da mesma laia.
São a laia dos mercadores de ilusões, megalomaníacos, doidos de ambição pela conquista do poder político, mercadores da fé que querem violar todos os princípios do Estado Laico, para que se empoderem para disseminar por toda parte o seu fundamentalismo ultracapitalista. Chamemos isso de Teologia da Prosperidade, nas antípodas da Teologia da Libertação defendida por Leonardo Boff, Frei Betto, dentre outros cristão progressistas.
O Bolsonarismo é aliado de empreendimentos como a UIRD e a Record, de Edir Macedo. A Indústria da Mentira une Bolsonaro e Macedo, e é justamente a mentira que lhes serve como lucrativa mercadoria, que tantos milhões de reais injeta nas máquinas de que eles são os patrões: suas “grandes empresas, imensos negócios”.
Para sua diabólica maquinaria de enganação em massa, estão usando o spam das mídias sociais para praticar a desinformação e também altas doses de calúnia e a difamação contra os adversários políticos. Estão produzindo, com isso, violento sectarismo, intensificação dos ódios e das violência, além de propagarem um tipo de subjetividade lamentável: os cabaços de Whatsapp, aqueles analfabetos políticos, que compartilham material falso e degradante.
Justificando – Bolsonaro, com seu discurso teocrático, agradou uma expressiva parcela de cristãos que – traindo o Evangelho de amor e paz, pregado por Cristo – estão propagando o ódio e o extermínio ao inimigo construído no imaginário (esquerdista, petralha, LGBTQIA+, comunista, minorias etc.), ou seja, tudo aquilo que, supostamente, não siga a cartilha idealizada do fundamentalismo religioso. São reedições sucessivas da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, embora tenhamos uma forte resistência de muitos cristãos contra esse avanço inquisitório da fé.
Isso revela um cenário preocupante de desejos e afetos que estavam represados. Não é à toa que, quando a comporta da represa foi aberta e Bolsonaro apareceu como mensageiro, o ódio e a vontade de exterminar tiveram tanta força. Portanto, torna-se bastante curioso que o lema da campanha de Bolsonaro seja “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Está em curso, no país, uma ressignificação interpretativa do que são valores cristãos por parte de um setor interno barulhento e com capilaridade política. É uma abordagem autoritária, com táticas eficazes de instrumentalização do medo do “inimigo”. A institucionalização da lógica bélica de professar a fé abandonou, de vez, os lindos ensinamentos bíblicos previstos em 1 Samuel (25:31), Mateus (5:38-48; 25:35-46), Romanos (12:20,21; 12-14), João (13:33-35), Efésios (4:31,32), Gálatas (5:14,15) e (Lucas 10:25-37). O Deus da vingança e da “justiça” sem misericórdia encontrou vários porta-vozes.
Mas não nos esqueçamos do que essa distorção gerou ao longo da história. Não nos esqueçamos do genocídio indígena, da escravidão e destruição dos negros, da Inquisição, da morte de mulheres nas fogueiras, do fascismo, da ditadura civil-militar de 1964, entre outras atrocidades. Nesse passado sombrio, a legitimação religiosa foi fundamental. Não esqueçamos que a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) apoiou o golpe de 64. Não nos esqueçamos da ligação do papa Pio XI com o ditador Benito Mussolini na ascensão do fascismo italiano. E hoje, reproduzindo erros do passado, temos um reencontro de vários setores cristãos com um presidenciável que elogia a ditadura civil-militar de 1964, bem como os torturadores dessa ditadura, além de ter, em seu gabinete parlamentar, 05 quadros com a foto dos 05 ditadores daquele período tenebroso de nossa história.
Jesus não é responsável por esse derramamento de sangue. Esse derramamento de sangue jorra das mãos daqueles que usam a religião para legitimar e promover a destruição do “outro” ou, quando distorcem os ensinamentos de Cristo, para capitalizar o ódio. Jesus é paz, amor, misericórdia e compaixão. Cristo viveu ao lado dos marginalizados. Jesus é celebração da vida, e não da morte. Talvez muitos cristãos não entendam o ritual do papa ao se ajoelhar e lavar os pés dos presos. Nesse ritual, o papa Francisco já disse aos presos: “Sou pecador como vocês”. O problema é que, em muitas igrejas, fazem falta pecadores com esse grau de espiritualidade. Ao resultado, estamos assistindo horrorizados. A teocracia bolsonariana avança. E Deus nos livre.
Os algozes – Edir Macedo, Silas Malafaia, Marco Feliciano, mercadores de ilusões que ficaram milionários na indústria da mentira e da exploração das ingenuidades alheias – já preparam as lâminas para o lamentável espetáculo. Jair Bolsonaro foi convidado para essa lúgubre cerimônia para que possa ir lá, ao cadafalso onde a democracia faz acorrentada (como Lula na PF de Curitiba), e acionar a queda da lâmina. Para depois sair de cena, descartado como uma palhaço patético mas bem útil, cedendo espaço a uma Junta Militar. O Vampirão Temer tratará ser o mordomo dessa tenebrosa transação. Um acordo de cúpulas entre golpistas, roubando a mente de massas gigantescas de cidadãos alienados que só vão perceber que foram enganados e estiveram equivocados quando já for tarde demais.
O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake), mas sim de Mr. Donald Trump.
O brasil era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930. uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.
O Leandro Karnal tem um ótimo vídeo em que explica o óbvio: “quem defende torturador é inimigo de Cristo”:
Nele, Karnal explica porque é absurda e sem noção a atitude de qualquer cristão que apoia Bolsonaro, um defensor da tortura, que prometeu transformar o facínora Ustra em herói nacional, o que já é prova de que o candidato do PSL é um sujeito de péssimo caráter e um canalha completo.
Alguém que em sua vida jamais trouxe nenhum benefício ao povo brasileiro, já que sua vida se resume em propagar o ódio, a violência e a discórdia, Bolsonaro é o completo oposto de Jesus de Nazaré, cuja mensagem resume-se em ensinamentos como “amai-vos uns aos outros”, “ofereça a outra face a quem te ofendeu”, propagando virtudes de resistência pacífica, empatia com os fracos e oprimidos, além denúncia dos ricos (a quem estará vedada a entrada no Reino) e da expulsão dos vendilhões do templo.
Se vivesse naquela época em que Jesus foi morto, Bolsonaro estaria entre os torturadores e assassinos de Cristo – e os Bolsominions estariam se deleitando com o espetáculo e gritando para o algoz: “mito! mito!”. E Bolsonaro estaria urrando de gozo sádico diante do torturado com a coroa de espinhos. Pois Bolsonaro é isso: um doente mental que goza com a crueldade que ele propaga. Os católicos e evangélicos que estão apoiando esse Coiso não entenderam nada sobre o cristianismo: tem que ser muito cego e alienado pra ficar lambendo a bota deste pseudo-Messias que vomita ódio por todos os poros. Bozo é o Anticristo e um baita dum engana-otário. E clamamos aos iludidos: acordem antes da tragédia! #EleNão
A atual ascensão do “Fascismo Evangélico” já estava prenunciada pelos “Gladiadores do Altar”, projeto que chocou o Brasil alguns anos atrás: nele, a mega-organização chefiada por Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus, começou a recrutar soldados para um “Exército do Senhor” (https://bit.ly/2J1LvrK).
Os mercadores de ilusões agora abraçam de vez o Capeta: a Rede Record, em atitude execrável, não vê problemas em violar a legislação eleitoral para colocar todos os holofotes de seu canal de TV e seu portal R7 como palanque para o fascista-facínora.
Além disso, a 3º esposa do Coiso, Michelle Bolsonaro, provável Primeira Dama do Brasil em um governo Bozonazista, é uma das crias e das prediletas de Silas Malafaia (https://bit.ly/2P286cW) – e seria, ainda mais que Marcela Temer, a imposição de um modelo feminino “bela, recatada e do lar”, somando-se a isso o agravante: “fanática e descerebrada”.
Já sabíamos que havia este perigo rondando o frágil Estado Laico do Brasil quando Marco Feliciano pôde levar todo seu obscurantismo para o Comitê de Ética e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Esta tendência lamentável se aprofunda.
Também ficamos chocados, durante o impeachment de 2016, com a quantidade de parlamentares ficha-suja, investigados por corrupção, co-partícipes de um golpe de Estado contra a presidenta legítima, que votaram sim ao impeachment “em nome de Deus” e da Família Tradicional Brasileira.
Os gremlins do Bozo vomitam sem parar a frase “o PT vai transformar o Brasil numa Venezuela”, quando o projeto deles é nos transformar num Afeganistão sob o Taleban. Uma teocracia militarizada que lembra a distopia de Gilead em The Handmaid’s Tale.
O plano deles: retroceder o Brasil para 50 anos atrás – época do AI-5 (1968 a 1978). A gente elege Bolsonaro primeiro, depois a gente sai das Nações Unidas, pra não se preocupar com essa besteira que são os Direitos Humanos, uma invenção comunista para defender bandido. E depois a gente começa a Cruzada do Homem de Bem para “extirpar os ativismos”, começando por “fuzilar a petralhada” (cito frases do führer, que parece não ter compreendido nada do que disse Jesus de Nazaré com “amai-vos uns aos outros”).
Eles vão re-acender por aqui as fogueiras da Inquisição e tacar os livros e os professores de esquerda lá dentro – vai ser Farenheit 451 em meio à barbárie do neo-fascismo tropical. E haverá uma horda de imbecis que vão aplaudir a carnificina diabólica, dizendo amém a um deus que nunca existiu: o deus da intolerância e do obscurantismo, o deus homóbico e genocida de Sodoma e Gomorra, o deus que o ser humano inventou como pretexto para cometer as piores atrocidades na crença absurda de que derramando o sangue dos ímpios está comprando com isso um tíquete de entrada no Céu.
Triste pátria fanatizada por pastores corruptos e falsos profetas da Salvação!
PARTE 10 – A TORTURA É CRIME HEDIONDO, MAS OS BOLSOMINIONS PASSAM PANO
Vivemos tempos tão tenebrosos que é preciso explicar o óbvio: tornou-se tarefa dos cidadãos que ainda possuem o mínimo de lucidez, sensatez e senso ético elucidarem, para uma parcela imensa demais de um povo, porque não há nada de bom a esperar do processo de empoderamento de um facínora psicopata, que faz apologia da tortura e deseja transformar Ustra em herói nacional.
Em um país mais civilizado, dizer estas obviedades – que a tortura é um crime hediondo, que fazer o elogio de torturadores é sintoma de sadismo, perversidade e outras patologias psíquicas-afetivas etc. – seria desnecessário, pois já seria consenso social básico. No Brasil, sob o feitiço maléfico do Bozonazismo, tornou-se necessário relembrar as atrocidades cometidas pela Ditadura Militar, quando estamos sob a ameaça de que aqueles horrores recomecem.
Entre nós, falar sobre tortura tornou-se necessário e inadiável, dada a conexão umbilical de Bolsonaro com o elogio destas práticas de brutalidade contra o outro. O duro é que muitas vezes encontramos, no eleitorado que vota 17 com fanatismo e convicção inabaláveis, com ouvidos trancados. São pessoas dogmatizadas e intolerantes, que mobilizam todo um arsenal de racionalizações destinadas a justificar o injustificável. Você tenta criticar a postura aberrante e lamentável de um político que idolatra torturadores e puxa o saco do Ustra – e as pessoas logo dão um jeito de retrucar metendo o Lula ou o Marighella na história, para desviar o papo para os supostos “crimes dos esquerdistas” que supostamente justificariam, em todos os tempos, os tratamentos brutais “corretivos” que lhes foram infligidos.
Desfazer adesões de brasileiros à maré fascista / Bolsonarista tornou-se uma espécie de absurdo trabalho de Sísifo, pois muitos eleitores do Coiso não são capazes de ver sua adesão ao facínora abalada nem mesmo por tantas evidências de que Bolsonaro é um pretendente a tirano, doentio em sua megalomania, com ‘delírios de onipotência’ (como bem disse Ivana Bentes), que vomita um discurso de ódio e de segregação muito similar àquele de líderes que estiveram à frente de regimes totalitários e genocidas.
Empoderá-lo não tem a mínima chance de acabar bem.
O TSE, que censurou a veiculação deste vídeo na TV, tenta amordaçar o PT quando este procura resgatar verdades históricas e informar a opinião pública sobre o tipo de caráter diabólico que encontra seu porta-voz em Bolsonaro. Já em relação ao #caixa2doBolsonaro para disparar milhões de mensagens caluniosas, notícias falsas e memes de assassinato de reputações, o TSE mostra-se conivente, acovardado e até mesmo cúmplice deste processo golpista que envolve dúzias de empresas brasileiras que já aderiram ao Capitalismo Fascista, ao Neoliberalismo Militarizado.
Em outras palavras: o PT é silenciado e censurado por revelar a verdade, em um vídeo alinhado com os ideais e práticas da Comissão Nacional da Verdade, importante iniciativa do primeiro mandato de Dilma Rousseff; já a extrema-direita recebe carta branca para seguir fraudando a lisura do processo eleitoral com uma campanha de sórdida enganação e manipulação da opinião pública (com o beneplácito de Steve Bannon e Trump, da Havan e Edir Macedo, da Record e da Globo, tudo construído sobre a fraude jurídica que excluiu Lula das eleições, botando fogo no Comitê de Direitos Humanos da ONU e picando em pedacinhos a Constituição de 1988.
PARTE 11 – NÓS SOMOS A ÚLTIMA BARREIRA CONTRA O FASCISMO
O Estado autoritário, ultra-conservador nos costumes, apesar de ultra-liberal na economia, que está sendo proposto pelo Bolsonarismo, tem a cara fétida de um Leviatã Hobbesiano: vende-se a idéia de que esse Monstro de autoritarismo e militarismo virá para o benefício de todos, para “limpar toda a corrupção do Brasil”. Mas este Leviatã ensandecido que é o projeto político Bolsonarista não vem para pactuar uma paz, mas sim para destravar a mais feroz guerra de todos contra todos.
O cidadão brasileiro ainda não percebeu o tamanho do risco de processos bélicos (guerra civil ou guerra internacional) que se tornam agora muito mais palpáveis e possíveis entre nós. Por falta de formação política, a maioria do povo brasileiro não conheço o ovo da serpente do fascismo, não sabe de seus estragos, não sabe da dificuldade de vencê-lo, uma vez que ele conquista o domínio do Estado (como foi com Mussolini na Itália, Salazar em Portugal, Franco na Espanha, Hitler na Alemanha). Muito sangue é derramado para des-empoderar o fascismo, uma vez este tenha se apoderado do Estado.
O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake!), mas sim de Mr. Donald Trump.
O Brasil da Era Lula era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930. uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.
Segundo o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, as 4 características do fascismo são:
1- Culto da violência.
2- Culto do Estado-nação paranóico.
3- Insensibilidade absoluta em relação às classes mais vulneráveis.
4- Entregar todo seu poder para um líder “cômico” que fala o que quiser sem nenhuma responsabilidade.
Com o golpe de 2016, as condições da disputa política no Brasil entraram em processo de rápida deterioração. A institucionalidade fundada na Constituição dita “cidadã” opera de maneira cada vez mais precária; suas garantias são cada vez mais incertas. A prisão do ex-presidente Lula, após julgamento de exceção, ao arrepio do texto expresso da própria Carta de 1988 e com inequívoca intenção de influenciar no processo eleitoral, simboliza com precisão a situação em que nos encontramos.
Ao mesmo tempo, a violência política aberta se alastra, seja por meio dos agentes do Estado (como mostra a repressão cada vez mais truculenta às manifestações populares e a perseguição aos movimentos sociais), seja contando com sua complacência. Das tentativas de intimidação à expressão de posições à esquerda em espaços públicos ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista Anderson Gomes), passando pelos atentados às caravanas de Lula, são muitos os episódios que revelam essa escalada.
Há rincões em que o assassinato político nunca deixou de existir – somos um país em que o latifúndio nunca parou de matar lideranças camponesas, por exemplo. Neles, o golpe agravou o quadro, dada a sensação de “porteiras abertas” que o retrocesso no Brasil gera para os mandantes dos crimes. E, nos lugares em que o conflito político apresentava um verniz mais civilizado, regredimos para patamar inferior.” – BLOG DA EDITORA BOITEMPO
por Eduardo Carli de Moraes, Professor de Filosofia, IFG.
22 de Outubro de 2018
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!