O fundamentalismo religioso ameaça o Brasil ao negar a ciência e o coronavírus || Por Renato Costa

Por Renato Costa para A Casa de Vidro
Com informações da BBC News Brasil e UOL

Durante a disseminação do Coronavírus no Brasil, os templos religiosos passam a ser locais de aglomeração a ser evitados. Entretanto, a postura dos principais líderes religiosos neopentecostais é de afronta às recomendações da comunidade científica e do próprio poder público. Essa atitude, afrontosa e fundamentalista, pode acarretar consequências gravíssimas na disseminação da doença entre fiéis, agravando a curva de contaminação em toda a sociedade, principalmente ao considerar-se que o público de fiéis é formado, em boa parte, por idosos, portanto, dentro do grupo de risco do COVID-19!

Desde do fim de semana passada, várias denominações religiosas cancelaram cultos e celebrações por tempo indeterminado. Outras reduziram atividades e aconselharam que os maiores de 60 anos não compareçam. Porém, segundo o tom adotado pelos líderes das grandes igrejas, para o fim de semana dos dias 21 e 22 de março, é possível que cultos e congregações sejam realizados à revelia do bom senso e da emergência sanitária que se impõe ao conjunto da sociedade brasileira.

Nos últimos dias os mercadores da fé como Silas Malafaia, Edir Macêdo e R. R. Soares se posicionaram a favor da manutenção dos cultos multitudinários, com a intenção inconfessável de manter os rendimentos de suas respectivas Igrejas. Silas Malafaia, o líder da Vitória em Cristo, ligada à Assembléia de Deus, afirmou que não fechará seus templos:

“Não vou fechar igreja coisíssima nenhuma. Se amanhã os governos disserem que vão impedir transporte público, fechar mercados, fechar todas as lojas… Como pastor, acredito que a igreja tem que ser o último reduto de esperança para o povo. Se fechar tudo, numa medida drástica, a igreja precisa estar de porta aberta.”

Acrescentou, em vídeo: os que pretendem fechar igrejas nas quais ele é pastor, devem recorrer à justiça e reivindicou o artigo 5, inciso 6 da Constituição para defender suas igrejas como “agência de saúde emocional”, portanto útil no combate à pandemia. Resta saber se vai acatar a aprovação do Estado de Calamidade Pública aprovada pela Câmara dos Deputados na quarta-feira, 18/03, e que segue para votação do Senado na noite de quinta-feira, 19.

Poucos dias antes, o pastor R.R. Soares, famoso por sua presença ostensiva na TV e missionário da Graça de Deus, disse que a população “não precisa ter medo de jeito algum. ” E ainda: “Já houve outras ameaças no meio da humanidade. A profecia do Apocalipse, diz que vai chegar um tempo em que uma terça parte das pessoas vai morrer”. E conclui com o que pode ser entendido como uma ameaça velada: “Ainda não estamos nessa época, não estamos na época de ganhar as almas para Jesus ”.

O mais célebre entre os fundamentalistas, o autoproclamado bispo Edir Macedo foi às redes sociais publicar um vídeo em que pede a seus fiéis que nem mesmo leiam notícias sobre o coronavírus:

“Quem anda pela fé anda pela frente. Quando você vê no noticiário ‘morreu fulano, beltrano teve coronavírus’, não olhe para isso, não leia essas notícias. Ao invés de você ler essas notícias que falam de morte e de quarentena, da epidemia e pandemia, olhe para a palavra de Deus e tome sua fé na palavra de Deus, porque essa, sim, faz você ficar imune a qualquer praga e a qualquer vírus, inclusive o coronavírus”.

Ainda que a congregação afirme que vai tomar precauções como limitar o número de pessoas nos templos “caso as autoridades estipulem uma lotação máxima”; ‘orientar’ que elas se sentem distantes umas das outras e que ‘evitem’ orações com “imposição de mãos”, os riscos permanecerão altos, já que a instituição promete aumentar o número de cultos para “atender a todos os que procuram a igreja”.

Alternativas para manter as expressões de fé, lazer e cultura virtuais são possíveis e variadas com as ferramentas da web e outras. Todos os que estão em isolamento ou em restrição de mobilidade, com vistas à redução dos impactos do COVID-19, estão buscando formas de se manter em ‘contato virtual’ com amigos, familiares, conteúdos e com suas lideranças políticas e religiosas. Alguns estão propondo reuniões em locais abertos, com número reduzido de participantes e sem a presença de idosos.

Porém, o segmento fundamentalista, especialmente entre os neopentecostais do cristianismo, alimenta a divergência e propõe a continuidade das atividades para fazer eco à negação da ciência. Os riscos do fundamentalismo atingiriam não só os fiéis, considerando que suas premissas ideológicas estão mais disseminadas que o coronavírus no Brasil de Bolsonaro. Busca-se manter os cultos massivos já que favorecem os negócios de arrecadação do dízimo, corpo-a-corpo, forma de renda majoritária dessas denominações mais populistas e manipulatórias.

A ciência afirma que a doença é transmitida pelo contato físico com superfícies infectadas ou pelo ar compartilhado entre pessoas, os fundamentalistas afirmam que a comunhão deve sim se realizar nos templos, onde as pessoas devem se encontrar para aliviar suas preocupações espirituais. A partir disso, a religião passa a ser um vetor de risco. Um foco de contaminação potencial que poderá se ver livre de restrições de quarentena por ter peso político no país e receber salvo-conduto diante das medidas sanitárias implementadas pelo estado, alinhado ao “poder divino” e a seu eleitorado.

Em um contexto de elevação da curva de transmissão, no Brasil – onde, até a última quinta-feira, 19 de março, havia milhares de casos suspeitos e registrava-se 530 casos e 6 mortes confirmadas – a determinação é de isolamento, ou de mobilidade mínima necessária. As preocupações aumentam e as projeções diárias são de risco exponencial. Cultos religiosos, eventos esportivos, culturais ou políticos podem se tornar grandes fatores de agravamento massivo da crise sanitária. Nesse quadro, é preciso questionar a determinação unilateral dessas denominações religiosas que negam as recomendações da ciência e a gravidade do coronavírus, colocando em risco fiéis e não-fiéis.

Liberdade de culto ou contenção da pandemia

A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso, mais conhecida como bancada da bíblia e representada por seu presidente, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), divulgou nota para reivindicar a exceção dos templos religiosos ao Estado de Calamidade Pública, ao mesmo tempo em que declara apoiá-lo. Incompreensível, do ponto de vista do “exemplo cristão”: nela os parlamentares afirmam que são necessárias orações para enfrentar o que chamam de “pandemia maligna”.

“Sabemos que a Igreja é lugar de refúgio para muitos que se acham amedrontados e desesperados. Por isso, neste momento de tanta aflição, é fundamental que os templos, guardadas as devidas medidas de prevenção, estejam de portas abertas para receber os abatidos e acolher os desesperados”. E ainda: “Cremos que a fé é uma grande aliada neste grave momento da nação, por isso não podemos limitá-la. ”

Ainda que a bancada evangélica afirme “apoio irrestrito à decretação do Estado de Calamidade Pública”, seu pedido de exceção da quarentena demonstra o contrário, e revela qual o nível de compromisso desses parlamentares com seu eleitorado e a ordem pública do país. O decreto que permite o rompimento do teto de gastos poderá garantir medidas paliativas, mas sem o esforço coletivo, nenhum gasto público poderá conter a doença que irá sobrecarregar um sistema público de saúde que já opera acima de sua capacidade.

Ao reiterarem “disposição plena de apoiar todas as medidas necessárias que visem garantir a proteção da saúde da população, bem como sua estabilidade social e econômica”, os parlamentares próximos aos “maiorais da fé”, remetem à hipocrisia oportunista de um populismo cristão, que tem nas palavras vazias sua expressão chauvinista e manipulatória. Cabe aos fiéis o discernimento, e ao poder público a garantia da ordem democrática, calcada da isonomia de tratamento legal dos cidadão durante as medidas sanitárias.

Poder-se-ia advogar pela liberdade de culto, não fosse a atestada gravidade do caso do coronavírus e amparada pelo exemplo da Coréia do Sul e da Itália. O país asiático registrou grande parte de seus casos transmitidos entre fiéis. A Igreja de Jesus de Shinchonji escondeu a identidade dos fiéis infectados, que viajaram pelo país negligenciando as recomendações governamentais. Lee Man-hee, seu fundador e suposta encarnação de Jesus Cristo, se viu obrigado a pedir desculpas ao país por negligenciar os fatos e acobertar casos de coronavírus. A partir daí, seguindo as determinações, vários líderes e grupos religiosos consequentes cancelaram suas atividades públicas, reconheceram as orientações das autoridades e se manifestaram a favor dos esforços coletivos no combate ao vírus.

Se há boa vontade em acatar determinações científicas, algumas religiões consideram as possibilidades de se exercer uma atividade mínima, e pedem que qualquer sintoma leve o fiel a se ausentar dos cultos. Porém, diante das contaminações assintomáticas e da disseminação crescente, é provável que as medidas restritivas se generalizem e passem a ser obrigatórias, haja visto o decreto de Estado de Calamidade. Além do caso pontual da Coréia, que ilustra a negligencia por parte de religiosos, a superlotação dos hospitais na Itália – onde deve-se escolher entre quem tem mais chances de sobreviver – também demonstra os custos de se postergar o isolamento da população.

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EM DEFESA DA DIGNIDADE DO ATEÍSMO, por Slavoj Žižek: “O ateísmo é um legado pelo qual vale a pena lutar”

O ateísmo é um legado pelo qual vale a pena lutar

Por séculos, nos foi dito que sem religião não somos mais do que animais egoístas lutando pelo nosso quinhão, nossa única moralidade a de uma matilha de lobos; apenas a religião, dizem, pode nos elevar a um nível espiritual mais alto. Hoje, quando a religião emerge como a fonte de violência homicida ao redor do mundo, garantias de que fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hinduístas estão apenas abusando e pervertendo as nobres mensagens espirituais de seus credos soam cada vez mais vazias. Que tal restaurar a dignidade do ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez nossa única chance de paz?Mais de um século atrás, em Os Irmãos Karamazov e outras obras, Dostoiévski alertava sobre os perigos de um niilismo moral sem deus, defendendo essencialmente que, se Deus não existe, então tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até mesmo aplicou a crítica de Dostoiévski do niilismo sem deus ao 11 de setembro, como sugere o título de seu livro, Dostoiévski em Manhattan.

O argumento não poderia estar mais errado: A lição do terrorismo atual é que, se Deus existe, então tudo, incluindo explodir milhares de espectadores inocentes, é permitido – pelo menos àqueles que alegam agir diretamente em nome de Deus, já que, claramente, uma ligação direta com Deus justifica a violação de quaisquer refreamentos e considerações meramente humanos. Resumindo, os fundamentalistas não se tornaram diferentes dos comunistas Stalinistas “sem deus”, para os quais tudo foi permitido, já que viam a si mesmos como instrumentos diretos de sua divindade, a Necessidade Histórica do Progresso em Direção ao Comunismo.

Fundamentalistas fazem o que veem como boas ações de forma a satisfazer o desejo de Deus e ganhar a salvação; ateus o fazem simplesmente porque é a coisa certa a fazer. Não seria essa também nossa experiência mais elementar de moralidade? Quando faço uma boa ação, não a faço visando ganhar um favor de Deus; faço porque, se não fizesse, não poderia me olhar no espelho. Uma atitude moral é por definição sua própria recompensa. David Hume argumentou isso pungentemente quando escreveu que a única maneira de demonstrar verdadeiro respeito a Deus é agir moralmente ignorando sua existência.

Dez anos atrás, Europeus debatiam se o preâmbulo da Constituição Europeia deveria mencionar o cristianismo. Como de costume, um meio termo foi arranjado, uma referência em termos gerais à “herança religiosa” da Europa. Mas onde estava o legado mais precioso da Europa, o do ateísmo? O que faz da Europa moderna única é que ela é a primeira e única civilização em que o ateísmo é uma opção plenamente legítima, e não um obstáculo a qualquer posição pública.

O ateísmo é um legado europeu pelo qual vale a pena lutar, não menos por criar um espaço público seguro para os que creem. Considere o debate que inflamou-se em Ljubljana, a capital da Eslovênia, meu país natal, conforme a controvérsia constitucional fervia: muçulmanos (em sua maioria trabalhadores imigrantes das antigas repúblicas Iugoslavas) devem ter permissão para construir uma mesquita? Enquanto os conservadores opunham-se à mesquita por razões culturais, políticas e até arquitetônicas, a revista semanal liberal Mladina foi consistentemente explícita em seu apoio à mesquita, em continuar com suas preocupações pelos direitos daqueles que vinham de outras antigas repúblicas Iugoslavas.

Não surpreendentemente, dadas as atitudes liberais, Mladina também foi uma das poucas publicações eslovenas a republicar as caricaturas de Maomé. E, reciprocamente, aqueles que demonstraram maior “compreensão” pelos violentos protestos muçulmanos causados por aqueles cartuns foram também aqueles que regularmente expressavam sua preocupação com o futuro do cristianismo na Europa.

Estas alianças estranhas confrontam os muçulmanos da Europa com uma escolha difícil: A única força política que não os reduz a cidadãos de segunda classe e os concede o espaço para expressar sua identidade religiosa são liberais ateus “sem deus”, enquanto aqueles mais próximos a suas práticas religiosas sociais, seu reflexo cristão, são seus maiores inimigos políticos.

O paradoxo é que os únicos verdadeiros aliados dos muçulmanos não são aqueles que primeiramente publicaram as caricaturas para chocar, mas aqueles que, em defesa do ideal da liberdade de expressão, republicaram-nas.

Enquanto um verdadeiro ateu não tem necessidade de apoiar sua própria posição provocando crentes com blasfêmia, ele também se recusa a reduzir o problema das caricaturas de Maomé ao respeito às crenças de outras pessoas. O respeito às crenças dos outros como o valor maior só pode significar uma de duas coisas: Ou tratamos o outro de forma condescendente, evitando magoá-lo para não arruinar suas ilusões, ou adotamos a posição relativista de vários “regimes da verdade”, desqualificando como imposição violenta qualquer posição clara em relação à verdade.

Mas que tal submeter o Islã – junto com todas as outras religiões – a uma respeitosa, mas por isso mesmo não menos implacável, análise crítica? Essa, e apenas essa, é a maneira de mostrar verdadeiro respeito aos muçulmanos: tratá-los como adultos responsáveis por suas crenças.

* Publicado originalmente em inglês no The New York Times em 13 de março de 2006. Reblogado do Blog da Boitempo. O trecho citado também integra um dos capítulos do livro Violência. Acompanhe A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com.

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“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.” (Albert Camus)

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“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
Albert Camus – 
“Núpcias, O Verão” [Compartilhar]

download“O homem que Camus ama é o homem que sofre e que o médico trata, o humilhado que precisa, aqui e agora, de ser levantado. Não prega um amor platônico do próximo, mas uma caridade que é defesa ativa de tal e tal homem. O acento da sua concepção está em que esta caridade age sem esperança de recompensa sobrenatural, ou mesmo de sucesso terrestre, mas unicamente porque um homem que se revolta deve agir assim para agir como homem. As personagens de A Peste não têm nada de filantropos ou de benfeitores: agem e morrem para combater o que consideram ser o mal. Para Camus, é a única ética que podem conceber os que pensam a moral sem Deus.”

Helder Ribeiro, Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus
(Lisboa, Portugal: 1996, Editorial Estampa, p. 139)

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“TODO O MEU REINO É DESTE MUNDO!”
ALGUNS LAÇOS ENTRE CAMUS & NIETZSCHE
(por Hélder Ribeiro)

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”

Trecho do autor português HÉLDER RIBEIRO,
extraído de sua obra “Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus”
(Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90).

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA – Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA

Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

Eduardo Carli de Moraes

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I. TEMA

TODOROV“Depois da morte de Deus e do desmoronamento das utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum?” (TODOROV: 2006, p. 9) Com esta questão, que inaugura sua obra O Espírito das Luzes, Tzvetan Todorov situa alguns dos dilemas e desafios que enfrentamos diante do colapso da credibilidade da metafísica, com a consequência de que a ética e a política vivenciam uma espécie de crise do sagrado e necessidade de reinvenção em outras bases – imanentes e não mais transcendentes; profanas e não mais teológicas.

Estes dilemas são alvo de reflexão de muitos pensadores/cientistas de relevância: da “morte de Deus” diagnosticada por Nietzsche ao “desencantamento do mundo” de que fala Max Weber, da noção de que “a religião é o ópio do povo” de Karl Marx à polêmica que opõe o criacionismo à teoria da evolução de Charles Darwin.

AtheismNa atualidade, uma caudalosa literatura atéia, multidisciplinar e plurinacional, têm sido publicada no âmbito das críticas materialistas à religião, com pelo menos duas vertentes importantes: a anglo-saxã (Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens, Sam Harris etc.) e a francesa (Michel Onfray, André Comte-Sponville, Marcel Conche etc.)1.

Uma coletânea importante de 18 artigos, o Cambridge Companion to Atheism (2006), fornece um bom panorama dos debates e já possui edição em língua portuguesa sob o título Um mundo sem deus: ensaios sobre o ateísmo (tradução de Desidério Murcho, Lisboa: Edições 70, 2010).

 De modo bem sumário, podemos dizer que estes autores formulam argumentos que buscam provar a inexistência de Deus2; defendem a laicidade do Estado e criticam todo tipo de fanatismo, obscurantismo e fundamentalismo; afirmam a possibilidade de uma ética secular, a-religiosa, plenamente terrena, sem recompensas ou punições do além-túmulo; desenvolvem argumentos sobre a sabedoria, as virtudes, o bem-comum, considerados sempre na perspectiva desta vida e deste mundo etc.

Dennett

No âmbito destas discussões, percebemos a recorrência de um problema filosófico muito debatido e que parece ter o dom de jamais receber resposta definitiva: não só a questão da existência de Deus, da alma imortal e do livre arbítrio, mas o debate sobre necessidade (ou não) da como fundamento para a ética e a política. Um dos nossos focos principais de nosso trabalho será a crítica empreendida pelas filosofias materialistas das conexões entre moral e religião, entre teologia e política.

A primeira delimitação de nosso tema consiste na eleição, como objetos de estudo, apenas dos filósofos da tradição materialista, que integram a “linha de Demócrito” de que fala Lenin (1962), que a contrastava com a “linha de Platão”. Estão colocados no ringue de batalha, pois, os dois velhos adversários: o materialismo e o idealismo.

A segunda delimitação temática consiste na primazia que concederemos em nossos estudos aos filósofos do materialismo de duas épocas:

I) na França do séc. XVIII, no período pré-Revolução Francesa, na obra dos radicais das “Luzes” (o Iluminismo ou Esclarecimento), em especial o barão D’Holbach (cuja magnum opus é O Sistema da Natureza), La Mettrie (autor de O Homem Máquina), Helvétius (cujos tratados Do Espírito e Do Homem marcaram época) e Denis Diderot (que além de filósofo foi autor também de obras literárias como A Religiosa, Jacques, o Fatalista e O Sobrinho de Rameau).Vale ressaltar que estes materialistas do séc. XVIII tiveram precursores, no século anterior, em figuras como Pierre Bayle, Jean Méslies e Pierre Gassendi (1592 – 1655), fontes em que também buscaremos pesquisar, dada a relevância deles como prefiguradores tanto do materialismo iluminista quanto do marxisma. Como escreve Onfray:

Onfray Grasset 4De fato, no verso do cartão-postal da historiografia dominante encontram-se felizmente pensadores candidatos à forca que celebram a volúpia desculpabilizada, anunciam a morte de Deus, professam a coletivização das terras, conclamam a estrangular os aristocratas com as tripas dos padres, incitam a filosofar para os pobres e para o povo, creem na possibilidade de mudar o mundo, ensinam uma moral eudemonista, se não hedonista, contam com a justiça dos homens. Chamo-os de ultras das Luzes, pois eles encarnam um pensamento radical. Ora, o que é um pensamento radical? Retomemos simplesmente a definição dada por Marx na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel: ser radical é tomar as coisas pela raiz. (ONFRAY: 2012, p. 34)

II) No século XIX, com a emergência do materialismo marxista, doutrina com enraizamento filosófico nas fontes atomistas gregas (Demócrito e Epicuro) e também nos materialistas franceses como Holbach, Helvétius etc. (vide item I). Em sua relação crítica e construtiva com o materialismo iluminista francês, pode-se dizer que Marx aumenta o ímpeto prático e transformador que o anima e que ele ganha “carne” como movimento político, força coletiva organizada, ímpeto revolucionário.

Parece-nos que é bem conhecida e estudada a relação crítica que o marxismo estabeleceu com o idealismo alemão, em especial sua empreitada crítica contra Hegel e os hegelianos de esquerda como Bruno Bauer. Também é notória e bastante pesquisada a influência determinante exercida pelo materialismo ateu de Feuerbach ou pela teoria econômica-política anarquista de Proudhon sobre o pensamento do jovem Marx, que depois desenvolverá também uma crítica destes seus antigos mestres.

Porém, nosso trabalho pretende focar a atenção nas relações, que parecem-nos menos pesquisadas e conhecidas, de Marx com a tradição materialista dos sécs. XVII e XVII no Iluminismo francês (Helvétius, D’Holbach, La Mettrie etc.). Ou seja, desejamos explorar sobretudo de que modo foi importante para a configuração da teoria e da práxis marxistas o influxo do materialismo iluminista francês, dos “ultras das Luzes”, como os chama Michel Onfray nos volumes da Contra-História da Filosofia a eles dedicados3.

II. CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA

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Desde a Antiguidade greco-romana, a crítica da religião estabelecida marcou a obra de muitos filósofos, em especial aqueles que constituiriam a escola atomista-materialista: Demócrito e Epicuro (na Grécia, nos sécs VI a IV a.C.) e Lucrécio (em Roma, no séc. I a.C.).

Desde os pré-socráticos os debates sobre a natureza da realidade (a Phýsis) não raro propendiam a tornar-se querelas religiosas: um exemplo é o de Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), nascido em Colófon (atual Turquia), que confrontou as crenças de seus contemporâneos com estas palavras célebres: “Se os bois, os cavalos, os leões tivessem mãos para desenhar e criar obras como fazem os homens, os cavalos representariam os deuses à semelhança do cavalo, os bois à semelhança do boi, e eles fabricariam os deuses com um corpo tal qual cada um possui ele mesmo.” (XENÓFANES apud JAEGER: 2001, p. 213-214).

A crítica realizada por Xenófanes prenuncia em mais de 2 milênios a filosofia de Ludwig Feuerbach e Nietzsche (alguns notáveis intérpretes-críticos do fenômeno religioso nos últimos séculos): o pré-socrático já sugeria que os seres humanos fabricam deuses à sua imagem e semelhança e que a proposição “somos todos filhos dos deuses” (ou seja, por eles fomos criados) seria muito mais verdadeira se fosse invertida: “somos os pais de todos os deuses” (ou seja, nós é que criamos os deuses).

Este é apenas um exemplo antiquíssimo da ação questionadora e cáustica de pensadores que, sem temor de soarem ímpios, através de suas argumentações põem em maus lençóis os dogmas consagrados e as autoridades religiosas teocráticas, colocando em questão, por exemplo, a mitologia veiculada por Homero e Hesíodo que

atribuíram aos deuses todas as indignidades, roubos, adultérios e imposturas. [De acordo com Xenófanes] é ilusão dos homens pensar que os deuses nascem e têm forma e roupagens humanas. Os negros da Etiópia acreditavam em deuses negros e de nariz achatado, já os trácios em deuses de olhos azuis e cabeleira ruiva. Na verdade provêm de causas naturais todos os fenômenos do mundo exterior que os humanos atribuem à ação dos deuses que temem. (JAEGER, p. 213)

No nascedouro da filosofia grega, essa aposta no “naturalismo”, na possibilidade de explicar por causas naturais todos os fenômenos, também marca presença em muitos dos filósofos que hoje reconhecemos como inovadores e revolucionários da aurora da ciência, de Tales de Mileto (623 – 546 a.C.) a Demócrito de Abdera (460 a.C. — 370 a.C.), que dedicaram-se a explicar a Phýsis sem recorrer a causa sobrenatural ou explicação mítica.

O materialismo moderno, que nos propomos a estudar em suas mutações das “Luzes” (séc. XVIII) ao marxismo e suas vertentes (sécs. XIX e XX), é uma continuação crítica e criativa de uma ancestral aventura filosófica daqueles amigos-da-sabedoria que dedicaram-se à decifração da Phýsis e que não se deixaram calar por mordaças impostas pelo clero ou pelo temor das fogueiras dos inquisidores.

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Apesar de não ser classificado como materialista, mas sim como panteísta, Spinoza é um caso emblemático, na história da filosofia, de uma crítica radical da religião instituída e inspirará muitos materialistas, muitos deles fiéis à noção de “monismo da matéria”, ou seja, à ideia de que a substância spinozista (Deus sive Natura) podia ser melhor descrita pelo conceito de matéria.

No Tratado Teológico-Político, Spinoza procura convencer o leitor de que qualquer explicação que apele para a noção de “vontade de Deus” não passa de “asilo da ignorância” (para relembrar a Ética, Livro I, apêndice), alertando para as ciladas da credulidade típicas daqueles que “interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.” (SPINOZA: 2003, p. 6).4

O epicentro do problema que nos dedicaremos a pesquisar em nosso Doutorado está aí exposto: a crítica à religião empreendida pelos filósofos materialistas das épocas que delimitamos. Desejamos expor e debater os argumentos que sustentam serem as religiões como invenções humanas (demasiado humanas), ficções supersticiosas, ideologias interesseiras urdidas por classes sociais em antagonismo com outras etc.

No âmbito ético e político, buscaremos esclarecer o teor das críticas materialistas à sistemas de moral baseados em sanções post mortem, que são prometidas ao pecador (como o inferno ou o Hades) e ao santo (o Paraíso ou os Campos Elíseos). Revelaremos em détail as argumentações que criticam as doutrinas éticas ou os sistemas políticos que, por preconceito teológico, culpabilizam a sensualidade, reprimem o corpo e a expressão de suas energias, rebaixando a um status secundário e subalterno tudo o que diz respeito ao organismo em sua carnalidade e aos sentidos em sua organicidade.

O impacto da doutrina atomista de Demócrito na história da filosofia e das ciências não deve ser subestimado, já que inaugura uma concepção de mundo anti-criacionista, onde não existe um deus que age como criador ex nihilo do universo. O materialismo baseia-se na tese de que tudo que existe é composto pelas interações dos átomos (incriados e indestrutíveis), em movimento perpétuo, que estão em constante processo de combinação e re-combinação através da imensidão incomensurável do espaço. Segundo Demócrito, átomos e vazio constituem a totalidade concreta, o todo do Ser.

LangerComo explica Friedrich Albert Lange em sua História do Materialismo, obra em dois volumes que será uma das principais fontes de pesquisa para nosso trabalho, Demócrito afirmava: “Nada vem do nada; nada do que existe pode ser nadificado. Toda mudança não é senão agregação ou desintegração de partes.” (LANGE: 1910, p. 12)

Sabemos que a palavra átomo, em grego, traduz-se por “indivisível”: os átomos são as partículas elementares, que não podem ser nem aniquilados nem reduzidos a partes menores. São tidos, nestes seus primeiros estágios de desenvolvimento, como indestrutíveis e infinitos em diversidade. Chocam-se, combinam-se, produzem turbilhões, separam-se e desintegram conjunções, para na sequência formar novos agrupamentos – e assim “mundos inumeráveis se formam para depois perecer.” (LANGE: op cit, p. 17)

A doutrina de Demócrito será depois adotada e aprimorada por Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.), um dos mais importantes filósofos materialistas da História. Nascido na ilha de Samos, foi o fundador da escola de filosofia em Atenas que foi batizada “O Jardim de Epicuro” e que atravessou sete séculos, tendo sido muito difundidas suas noções éticas em que o caminho para a felicidade estava na paz-de-espírito [ataraxia], que necessariamente demandava a cessação do temor aos deuses e à morte.

Estima-se que Epicuro tenha escrito cerca de 300 obras e seu magnum opus, o tratado de física A Natureza Das Coisas, era constituído por 37 livros. Da obra monumental de Epicuro, foram preservadas apenas fragmentos, incluindo três cartas, salvas do naufrágio por Diógenes Laércio em Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. As razões da destruição da obra quase completa de Demócrito e Epicuro explica-se, segundo alguns pesquisadores, pelo afã fanático dos detratores da teoria materialista, aí incluído o próprio Platão e seus sequazes, que tudo fizeram para censurar e destruir estas obras.5

Apesar de não afirmar explicitamente o ateísmo, já que continua leal ao politeísmo do Olimpo, o epicurismo inova e revoluciona em teologia ao sustentar que, além de serem entes totalmente materiais e corporais, os deuses não se importavam com preces, rogos, súplicas, arrependimentos ou o que quer que seja realizado pelos humanos terranos. Os deuses corpóreos existem, mas bem longe desta Terra, onde gozam da perfeita bem-aventurança, nem tomando consciência das necessidades e preces dos humanos (como será depois o Deus-Natureza de Spinoza, os deuses de Epicuro são concebidos como organismos indiferentes aos seres humanos e a quem será sempre inútil rezar).

No caso da obra-prima de Lucrécio, De Rerum Natura, ela só chegou inteira a nossos tempos por tortuosos caminhos históricos que foram tema de um premiado livro da historiografia contemporânea: A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno (Cia das Letras), de Stephen Greenblatt. Este livro é essencial aos propósitos de nossa pesquisa pois mostra o renascimento do materialismo na aurora da Modernidade, algo que serve de base para a culminância dos radicais materiais, os “ultras das Luzes” como La Mettrie, Diderot, D’Holbach e Helvétius, e que também repercutirá na emergência do materialismo marxiano (Marx, afinal, torna-se doutor em filosofia com uma análise comparativa entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro). Greenblatt fornece uma boa síntese da “visão de mundo” materialista que pretendemos explorar em nosso trabalho:

Greenblatt2Quando você olha para o céu noturno e, sentindo-se inexplicavelmente comovido, fica maravilhado com a quantidade de estrelas, não está vendo o trabalho dos deuses ou uma esfera cristalina separada de nosso mundo passageiro. Está vendo o próprio mundo material de que faz parte e de cujos elementos você é feito. Não há um plano superior, não há um arquiteto divino, não há design inteligente. Todas as coisas, inclusive a espécie a que você pertence, evoluíram durante grandes períodos de tempo. (…) Nada — de nossa própria espécie ao planeta em que vivemos e ao Sol que ilumina nossos dias — se manterá para sempre. Somente os átomos são imortais. Num universo constituído dessa maneira, argumentava Lucrécio, não há motivo para pensar que a Terra ou seus habitantes ocupem um lugar central, não há motivo para separar os humanos dos outros animais, não há esperança de subornar ou aquietar os deuses, não há lugar para o fanatismo religioso, não há vocação para uma negação ascética do eu, não há justificativa para sonhos de poder ilimitado ou de segurança total, não há lógica para guerras de conquista ou de engrandecimento, não há possibilidade de triunfar sobre a natureza, não há escapatória para a criação e recriação constante das formas. (GREENBLATT: 2012, cap. 1) 6

Em nossa tese, portanto, pretendemos mapear esta influência, fecunda apesar de longínqua, de Demócrito, Epicuro e Lucrécio sobre as vertentes do materialismo filosófico das Luzes francesas e também no materialismo dialético de Marx e da chamada “filosofia da práxis”. Queremos mostrar que algumas das ideias mais debatidas dos últimos séculos, como a célebre noção propagada por Marx, na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de que “a religião é o ópio do povo”, não são anomalias isoladas na história do pensamento, mas integram-se em uma longa tradição de materialismo, que procura abordar o fenômeno religioso com uma atitude crítica ou mesmo revolucionária.

A crítica da concepção de mundo religiosa e a moral a ela conexa, empreendida pelos materialistas, está conectada aos projetos e às utopias de construção de uma concepção de mundo, de uma ética e de uma política alternativas, baseados na imanência radical. Um dos nossos problema essenciais consistirá em expor como os filósofos materialistas abordam as questões da possibilidade do “ateu virtuoso” e da “sociedade atéia” (uma doutrina de Pierre Bayle que D’Holbach subscreve). O próprio Marx escreve, em A Sagrada Família, sobre a importância de Bayle para o desenvolvimento ulterior do materialismo filosófico:

O homem que fez com que a metafísica do século XVII e toda a metafísica perdessem teoricamente seu crédito foi Pierre Bayle. Com a desintegração cética da metafísica, Pierre Bayle não apenas preparou a acolhida do materialismo e da filosofia do juízo humano saudável na França. Ele anunciou a sociedade ateia, que logo começaria a existir, mediante a prova de que podia existir uma sociedade em que todos fossem ateus, de que um ateu podia ser um homem honrado e de que o que desagrada ao homem não é o ateísmo, mas sim a superstição e a idolatria. (MARX: 2003, p. 146)

Também nos interessa o problema da conexão que pode haver entre uma concepção de mundo materialista e uma ética consequencialista de teor hedonista. Além disso, desejamos debater a velha querela entre determinismo vs livre-arbítrio: será mesmo que o materialismo conduz a uma visão-de-mundo onde impera o determinismo estreito, que abole toda liberdade humana, reduzindo tudo a um fatalismo que exige do sujeito apenas resignação? Ou, pelo contrário, o materialismo inclui a possibilidade concreta de emancipação coletiva e transformação concreta do mundo como uma consequência necessária de seu abandono dos mundos imaginários, em prol da profana e terrestre vida dos humanos de carne-e-osso?

Uma vez que o materialismo filosófico será definido por um de seus mais ilustres pensadores contemporâneos, André Comte-Sponville, como “um monismo da matéria”, será necessário também refletirmos sobre o significado filosófico do monismo, concepção que se opõe ao dualismo que cinde o real entre Deus e Natureza, Espírito e Matéria, cindindo também o homem entre um corpo, perecível e pecaminoso, e um espírito, imorredouro e passível de ser “salvo”:

Comte-Sponville

André Comte-Sponville, filósofo materialista francês, autor de “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” e “Tratado do Desespero e da Beatitude” (Ed. Martins Fontes)

Chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. O materialismo se caracteriza assim, negativamente, pela rejeição do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (a realidade em si não é inconhecível), enfim e em geral do idealismo. É incompatível com toda crença num Deus imaterial, criador ou legislador. O materialismo é antes de mais nada um pensamento de recusa, de combate. Trata-se (Lucrécio, La Mettrie e Marx não cansaram de lembrar) de vencer a religião, a superstição e, em geral, a ilusão. O materialismo é uma empresa de desmistificação.

Explicar o superior pelo inferior (o espírito pelo corpo, a vida pela matéria inanimada, a ordem pela desordem…) é, de Demócrito a Freud, a conduta constante do materialismo. Em todo o caso o materialismo sempre tem, como teoria, essa tendência a descer, isto é, a buscar a verdade, como dizia Demócrito, no fundo do abismo, quer esse abismo seja o da matéria e do vazio (os atomistas), o do corpo (La Mettrie, Diderot…), o da infra-estrutura econômica (Marx) ou o de nossos desejos inconscientes (Freud). Essa descida, na teoria, tem por contraponto uma subida, no real ou na prática. O pensamento materialista, percorrendo ao revés o aclive do real, tudo o que faz, ao longo da sua descida, é pensar a ascensão que a torna possível. ‘É da terra ao céu que se sobe aqui’, escreviam Marx e Engels em A Ideologia Alemã, e a imagem pode ser generalizada. A história se inventa de baixo para cima. (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 119 a 121)

Dando continuidade ao trabalho realizado em minha dissertação de mestrado, Além da Metafísica e do Niilismo, focada no trabalho de Nietzsche (1844-1900), desejo insistir num método que consiste em somar as forças da crítica e da construção, da teoria e da práxis, da denúncia e do anúncio. Percebo que, longe de terem permanecido presos ao trabalho negativo do aniquilamento e da destruição (que a eles são atribuídos por seus detratores e adversários de modo vastamente imerecido), os materialistas de que trataremos jamais foram niilistas; trabalharam em prol da construção de alternativas, da sugestão de sabedorias e sistemas políticos que pretendiam instaurar o reino da liberdade, da fraternidade e da igualdade sem recurso ao divino. Muitas vezes eram movidos pela vontade de sepultar para sempre sistemas políticos obscurantistas, teocráticos, batalhando contra superstições e sectarismo, ativamente engajados com a construção de um convívio coletivo melhor, mais feliz, mais justo e mais sábio.

Assim, pretendemos delinear as múltiplas possibilidades que existem para a fundamentação de uma ética e de uma política que não terá menos mérito pois aposta que nem Deus, nem a alma imortal, nem o livre-arbítrio, existem de fato. Exporemos e discutiremos a obra dos autores materialistas referidos, explorando seus diagnósticos de uma progressiva erosão da religião como explicação de mundo, fundamentação da moral e força organizadora das sociedades. Desejamos focar nossa atenção naqueles pensadores materialistas que, através da história, ousaram criticar a religião como a conheciam, ao mesmo tempo que apontavam para um outro mundo possível, numa atitude a um só tempo crítica e construtiva que também gostaríamos que animasse nosso trabalho.

III. JUSTIFICATIVA

Contribuir para uma reconsideração do materialismo tem relevância intra e extra-filosófica, dada a carga negativa, o sentido pejorativo que o termo adquiriu no senso-comum:

É sabido que a palavra materialismo é empregada principalmente em dois sentidos, um trivial, outro filosófico. No sentido trivial, designa certo tipo de comportamento ou de estado de espírito, caracterizado por preocupações ‘materiais’, isto é, no caso, sensíveis ou baixas. Querer ganhar muito dinheiro, gostar da boa mesa, preferir o conforto do corpo à elevação do espírito, buscar os prazeres em vez do bem, o agradável em vez do verdadeiro… tudo isso é materialismo, no sentido trivial, e vê-se que essa palavra é usada sobretudo pejorativamente. O materialista é, então, o que não tem ideal, que não se preocupa com a espiritualidade e que, buscando apenas a satisfação dos instintos, sempre se inclina para seu corpo, poderíamos dizer, em vez de para sua alma. Na melhor das hipóteses, um bon vivant; na pior: um aproveitador, egoísta e grosseiro. (COMTE-SPONVILLE: op cit, p. 121)

Desejamos mostrar que o materialismo, para além de seu sentido pejorativo, é uma tradição de pensamento que não é somente crítica das ilusões idealistas, espiritualistas ou religiosas, mas também pode ser um guia ético e político para uma existência emancipada e solidária. A superação do fanatismo e do sectarismo, e também dos fratricídios deles decorrentes, parece-me conectado à nossa capacidade de refletir de modo lúcido e aprofundado sobre a condição humana. Em matéria de ética, o materialista costuma dar a primazia ao corpo (mortal) e não a um espírito (supostamente imortal). Para além de qualquer doutrina da redenção pela via do ascetismo e da auto-mortificação, o materialismo defende a unidade psicossomática entre corpo e alma e reflete sobre as condições para a saúde, a paz-de-espírito, a ataraxia, a beatitude, não em um mítico futuro distante, mas no aqui-e-agora da vida terrestre.

Julgamos relevante confrontar o preconceito que afirma que o materialista seja um crasso perseguidor de volúpias imediatas, um inconsequente libertino que não pensa no amanhã, e reafirmar que a sophia e a philia, na tradição de Demócrito e Epicuro, são valores supremos, donde ser inconcebível falar da utopia materialista sem a presença destas forças constitutivas da filosofia e que marcam-na etimologia de sua própria palavra, onde somam-se amizade e sabedoria.

La MettrieLa Mettrie sugere: “Pensar no corpo antes de pensar na alma é imitar a natureza que fez um antes do outro.” (LA METTRIE: 1987, p. 271) Eis uma tese autenticamente materialista, já que aquilo que chamamos de “alma” é tido pela tradição do materialismo como algo que surge posteriormente, no tempo, à “base” material corporal.

Para muitos materialistas, dá-se o nome de “alma” a algo que está no corpo, que nunca existiu nem pode existir independente do corpo. Daí decorre a revolução materialista empreendida contra o temor da morte que aflige os humanos: não há nada a temer já que nenhuma alma imortal sobreviverá ao corpo abandonado pela vida. Materialismo: doutrina da alma mortal, ou seja, da Psiquê encarnada, da vida individual fugaz, vivida por um organismo que só pode ser compreendido como unidade psicofísica.

Além disso, filosofia do reconhecimento pleno de nossa mortalidade inelutável, o materialismo também se caracteriza, escreve Comte-Sponville, “pela rejeição do espiritualismo, se por esta última palavra entendermos a afirmação de que existe uma substância espiritual (a alma ou o espírito), independente da matéria, que seria, no homem, princípio de vida ou de ação. […] O materialismo também é, contra todas as filosofias da alma, uma filosofia do corpo.” (COMTE-SPONVILLE, op cit, p. 124).

O materialismo pode ser descrito como um monismo físico e defende a tese de que a Matéria, ou seja, os átomos em movimento no espaço, constituem a substância única. Tudo que chamamos de espírito é derivado das “danças” imensas e múltiplas dos átomos. A consequência incontornável, e que também esclareceremos em mais detalhes, é a de que todas as atividades psíquicas ditas superiores (o pensamento, a vontade, o juízo, a criação artística, a pesquisa científica etc.) não podem jamais ser compreendidas como imateriais.

Nenhum filósofo, é evidente, pode negar absolutamente a existência do pensamento: seria negar a si mesmo e pensar que não pensa. O monismo dos materialistas não é portanto a negação da existência do pensamento, mas apenas a negação da sua independência ou, se preferirem, da sua existência autônoma: não se trata de dizer que o pensamento não existe, mas simplesmente (se é que isso pode ser simples!) que ele é tão material quanto o resto. (COMTE-SPONVILLE: 2001, pgs 120-126)

A relevância do estudo histórico, crítico, construtivo, dialético, do materialismo filosófico, está também em sua potência de “iluminar”, através da obras destes amigos da sabedoria, a força prática e concreta da filosofia na História. Buscaremos amplificar as ideias e os exemplos daqueles filósofos que prezavam mais o pensamento autônomo do que a cega obediência à tradição; que não viam diante de si nenhum tabu que proibisse o escrutínio, a pesquisa, a reflexão, a expressão, a discussão. Como escreveu Helvétius, citado por Marx, “as grandes reformas apenas podem ser realizadas com o enfraquecimento da adoração estúpida que os povos sentem pelas velhas leis e costumes.” (MARX: 2003, p. 152)

marx-engelsA tentativa de conexão entre o materialismo das “Luzes” e o Marxismo tem embasamento na própria obra dos fundadores do materialismo histórico-dialético, Marx e Engels: basta exemplificar com A Sagrada Família, obra na qual, no contexto da polêmica contra o hegeliano Bruno Bauer, Marx realiza reflexões essenciais aos nossos propósitos:

O Iluminismo francês do século XVIII e, concretamente, o materialismo francês, não foram apenas uma luta contra as instituições políticas existentes e contra a religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma medida uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII e contra toda a metafísica, especialmente contra a de Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz. (…) A rigor existem duas tendências no materialismo francês, dos quais uma provém de Descartes, ao passo que a outra tem sua origem em Locke. A segunda constitui, preferencialmente, um elemento da cultura francesa e desemboca de forma direta no socialismo. (MARX; ENGELS: 2003, p. 144)

Nestas páginas d’A Sagrada Família, expõe-se a tese de que o materialismo filosófico francês e inglês, nos séculos XVII e XVIII, permaneceu “unido por laços estreitos a Demócrito e Epicuro”, o que não impediu a emergência de diferentes encarnações de um materialismo multiforme, que teve como principais representantes, na Inglaterra, figuras como Bacon, Locke e Hobbes; e na França os supracitados P. Bayle, J. Mèlies, Helvétius, La Méttrie, Condillac, Diderot, D’Holbach.

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Julgamos muito relevante, em nossa futura tese, realizar um estudo comparativo das duas vertentes do materialismo francês das “Luzes” que Marx identifica:

I) aquela que aderiu à física de Descartes e é representada sobretudo por La Mettrie – que “explica a alma como uma modalidade do corpo e as ideias como movimentos mecânicos; (…) seu L’Homme Machine é um desenvolvimento que parte do protótipo cartesiano do animal-máquina” (MARX; op cit, p. 145);

II) aquela outra vertente do materialismo francês, muito inspirada pelo materialismo inglês e sobretudo por Locke, e que representa a convicta antítese à metafísica do século XVII; segundo Marx, é esta linha que “desemboca diretamente no socialismo e no comunismo” (MARX: op cit, p 149). Como ilustração desta segunda vertente, citaremos um trecho d’O Sistema da Natureza, de Holbach, que parece-nos essencial para os propósitos de nossa pesquisa:

Paul Henri Thiry, Baron d'Holbach, an 18th-century advocate of atheism

Paul Henri Thiry, o Baron d’Holbach, filósofo materialista e ateísta do século XVIII

O homem que não espera uma outra vida está mais interessado em prolongar a existência e em se tornar querido pelos seus semelhantes na única vida que conhece. Ele deu um grande passo para a felicidade ao se desvencilhar dos terrores que afligem os outros. Com efeito, a superstição tem prazer em tornar o homem covarde, crédulo, pusilânime. Ela adotou o princípio de afligi-los sem descanso; assumiu o dever de redobrar para ele os horrores da morte. Seus ministros, para disporem dele mais seguramente neste mundo, inventaram as regiões do porvir, reservando-se o direito de lá fazer recompensar os escravos que tiverem sido submissos às suas leis arbitrárias e de fazer serem punidos pela divindade aqueles que tiverem sido rebeldes às suas vontades. Longe de consolar os mortais, a religião em mil regiões esforçou-se para tornar a sua morte mais amarga, para tornar mais pesado o seu jugo, para tornar o seu cortejo acompanhado de uma multidão de fantasmas hediondos.

Ela chegou ao cúmulo de persuadi-los de que a sua vida atual não é mais do que uma passagem para chegar a uma vida mais importante. O dogma insensato de uma vida futura os impede de ocupar-se com a sua verdadeira felicidade, de pensar em aperfeiçoar as suas instituições, suas leis, sua moral e suas ciências. Vãs quimeras absorveram toda a sua atenção. Eles consentem em gemer sob a tirania religiosa e política, em atolar-se no erro, em definhar no infortúnio, na esperança de serem algum dia mais felizes, na firme confiança de que as suas calamidades e a sua estúpida paciência os conduzirão a uma felicidade sem fim. Eles se acreditam submetidos a uma divindade cruel que gostaria de fazer que eles comprassem o bem-estar futuro ao preço de tudo aquilo que eles têm de mais caro aqui embaixo. É assim que o dogma da vida futura foi um dos erros mais fatais pelos quais o gênero humano foi infectado. Esse dogma mergulha as nações no entorpecimento, na apatia, na indiferença sobre o seu bem-estar, ou então as precipita em um entusiasmo furioso, que as leva muitas vezes a dilacerarem a si próprias para merecer o céu. (HOLBACH: 2010, p. 318-19)

De modo algum iniciamos este percurso de pesquisa já com todas as respostas, pelo contrário, é por estarmos repletos perguntas que desejamos ir a fundo nas pesquisas sobre a filosofia materialista. Um dos problemas, a um só tempo ético e político, que buscaremos aclarar está este uma concepção de mundo materialista e dialética, que superou a transcendência em prol do “imanentismo” (GRAMSCI: 1981, p. 57), de que modo fundará a valorização ético-política da igualdade, da liberdade, da fraternidade, dentre outros valores e virtudes, caso se vede o caminho da sacralização?

Há como formular de modo mundano, profano, a-teológico, imanentista, a “unidade do gênero humano” pressuposta pelo materialismo francês das Luzes? A “filosofia da práxis” inclui a possibilidade de uma ética laica, profana, sem sanção nem punição, sem vigilância transcendente? Sem religião, é ainda possível formular uma ética universalista de molde kantiano que afirme a igualdade de todos, que postule normas universalizáveis como o imperativo categórico, para todos os humanos, mas desta vez em outras bases, plenamente enraizadas na “dialética do concreto”? Com o aniquilamento do divino, cai-se necessariamente num pragmatismo ao gosto anglo-saxão (W. James, S. Mill, J. Bentham), ou são pensáveis muitas outras potencialidades (socialistas, comunistas, anarquistas, democráticas)?

IV. HIPÓTESES DE TRABALHO

H1 – o materialismo é um monismo da matéria, que combate o idealismo e o espiritualismo, afirmando que a “alma” ou o “espírito” também são materiais, estando localizados no interior do corpo e sendo inseparáveis dele; em suma: o materialismo compreende o organismo como unidade psico-somática.

H2 – a ética materialista tende a ser muito mais hedonista do que ascética, muito mais consequencialista do que deontológica, voltada para a felicidade terrestre e não para a “redenção” ou salvação religiosa.

H3 – a fé, em geral, é criticada como ficção, ilusão, superstição e/ou “ideologia” por muitos destes filósofos materialistas; eles crêm que a política pode fundar-se em valores como a justiça, a solidariedade, a fraternidade, sem necessidade de valores transcendentes ou autoridades sagradas, como na “sociedade de ateus” de P. Bayle;

H4 – nada condena uma filosofia materialista a um determinismo fatalista; pelo contrário, é no âmbito do materialismo que nasce e se desenvolve uma filosofia da práxis em que os conceitos de ação, transformação, emancipação e revolução ganham um peso, uma centralidade e uma importância como nunca dantes na história da filosofia.

A estas hipóteses, expostas acima e desenvolvidas brevemente no decurso deste projeto, gostaríamos de adicionar algumas outras, desta vez com um desenvolvimento breve das mesmas.

H5 – O materialismo trabalha em prol da extinção concreta do “vale de lágrimas” historicamente constituído.

Uma das lições do materialismo é que a religião pode ser julgada a partir de seus efeitos psíquicos e sociais, numa lógica consequencialista, para além de seus princípios basilares e teorias fundamentantes (privilegiadas pela deontologia). Dentre os filósofos materialistas do Iluminismo francês que mais investiga o tema das relações entre religião e sociedade está Helvétius (1715-1771), tanto que pode-se dizer que Helvétius é um dos inauguradores daquilo que virá a ser a disciplina sociologia da religião.

Escorraçado pela censura e pela violência repressiva ao publicar seu tratado “Do Espírito”, Helvétius têm profunda influência sobre a posteridade por ser o criador do imperativo utilitarista em que se formula que deve-se visar como meta [télos] da ética e da política “a maior vantagem pública, ou seja, o maior prazer e a maior felicidade da maioria dos cidadãos” (apud ONFRAY: 2012, p. 200). Em D’Holbach e Helvétius, mas também em seus predecessores no século anterior (Méslier e Pierre Bayle), exige-se a democratização do gozo, a ampliação concreta das possibilidades de júbilo.

Contra o império tenebroso do ideal ascético, que ordena a mortificação da carne, iguala prazeres e deleites a gangrenas, os ultras das Luzes retomam o epicurismo para a formulação de seus ideais políticos, em que a realidade terrestre importa muito mais do que uma suposta salvação post mortem. Tendo a felicidade comum ou o bem público como paradigmas de excelência, Helvétius julga o real com um ouvido especialmente atento ao “grito da miséria” (ONFRAY, op cit, p. 205).

Uma de nossas hipóteses, portanto, é a de que o materialismo não se resigna nunca a somar lágrimas impotentes aos que choram pelas injustiças, mas que põe-se no campo de jogo em prol da transformação aprimoradora do que há. Ou seja, trata-se de afirmar uma filosofia que não apenas descreva ou interprete o “vale de lágrimas”, mas sim que modifique o mundo, como diz uma célebre tese marxista, para abolir o próprio vale de lágrimas e para instaurar na terra um convívio mais sábio e jubiloso, mais omnilateral e criativo, do que a asfixiante atualidade nos permite.

A partir de suas bíblicas ancestralidades, a imagem da vida como “vale das lágrimas” atravessou a história e está nos mitos fundadores judaico-cristãos, que explicam a infelicidade a partir de um pecado original ocasionador de uma queda ontológica e de uma perda do paraíso. O Paraíso Perdido – título aliás do poema de Milton onde tais mitos proliferam, assim como o fazem na Divina Comédia de Dante – torna-se então o télos transcendente que o desejo busca re-encontrar.

A vontade humana, alucinada pela fé no paraíso perdido e pelo desejo impossível de fusão com um deus que é suposto como alheio e transcendente, fica então siderada por “objetos transcendentais” que, como Marx ironizará na Sagrada Família, não passam de fantasias geradas por cérebros humanos situados em um contexto sócio-econômico, político-histórico:

MarxA angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão de uma angústia real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma situação não espiritual. É o ópio do povo. A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões sobre sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale das dores, cuja auréola é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razão, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.

A opressão deve ainda tornar-se mais opressiva pelo fato de se despertar a consciência da opressão e a ignomínia tem ainda de tornar-se mais ignominiosa pelo fato de ser trazida à luz pública. (…) É preciso fazer com que dancem as relações sociais petrificadas fazendo-as ouvir sua própria melodia! O povo deve ter horror de si mesmo, a fim de que ganhe coragem. (…) É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que a força material tem de ser derrubada pela força material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, e deste modo a sua energia prática, é o fato de começar pela decisiva superação positiva da religião. A crítica da religião culmina na doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem. Culmina, por conseguinte, no imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem aparece como um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezível. (MARX: 2005. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução.)

Nossa hipótese é de que a abolição da religião não pode ser nunca algo meramente intelectual, uma batalha exclusivamente “cerebral”, uma vitória em uma querela somente teológica, mas que só se dará pela modificação prática e concreta de uma realidade que torna os sujeitos alienados, despossuídos de autonomia, dependentes da fé. É preciso compreender os afetos que estão envolvidos na fé religiosa, os desejos aos quais ela serve de satisfação, as perguntas irrespondíveis que ela busca fornecer solução, e sobretudo o contexto social e intersubjetivo que estabelece a estrutura concreta sobre a qual serão erguidos os degraus da superestrutura (aos quais tanto a filosofia quanto a religião, segundo Marx, pertencem).

A hipótese que tentaremos provar está em sintonia com a afirmação de Marx de que “a supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real”, o que Daniel Bensäid ilustra no capítulo “De Que Deus Morreu” de seu livro Marx – Manual de Instruções, em que parte da influência de Feuerbach sobre Marx e depois expõe a originalidade do materialismo marxista em relação ao das Luzes:

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Em A Essência do Cristianismo, Feuerbach não só mostrou que o homem não é a criatura de Deus, e sim seu criador. Não só sustentou que ‘o homem faz a religião, a religião não faz o homem’. Ao fazer da relação social do homem com o homem o princípio fundamental da teoria, fundou o verdadeiro materialismo. Uma vez admitido que esse homem real não é a criatura de um Deus todo-poderoso, resta saber de onde vem a necessidade de inventar uma vida após a vida, de imaginar um Céu livre das misérias terretres. Marx escreveu que ‘a religião é o suspiro da criatura oprimida’ e o ‘ópio do povo’. Como o ópio, ela atordoa e ao mesmo tempo acalma. Portanto, a crítica da religião não pode se contentar, como acontece com o anticlericalismo maçonico e o racionalismo das Luzes, em ser hostil com o clero, com o imame ou com o rabino. Engels critica aqueles que querem ‘transformar as pessoas em ateias por ordem do mufti’ e diz que ‘uma coisa é certa: o único serviço que se pode prestar a Deus, hoje, é declarar que o ateísmo é um artigo de fé obrigatório e sobrevalorizar as leis anticlericais, proibindo a religião em geral.’ Já Marx combate as ilusões de um ateísmo que é apenas uma crítica abstrata e ainda religiosa da religião, que permanece no plano não prático das ideias. (…) A crítica do ateísmo contemplativo e abstrato leva Marx a se distanciar de Feuerbach , que ‘não vê que o próprio sentimento religioso é um produto social’ e que ‘a família terrestre é o segredo da Sagrada Família.’ Em suma, enquanto o ateísmo é apenas a negação abstrata de Deus, o comunismo é sua negação concreta. (BENSAÏD: 2013, p. 23-31)

Que esta última frase sirva de síntese, pois, para nossa hipótese de trabalho aqui exposta: o comunismo como negação concreta de Deus e da explicação mítica e fatalista do “vale das lágrimas”. Em conexão a esta hipósese, também avançaremos a hipótese suplementar (H6) de que há, no Brasil, alguns pensadores conectados ao marxismo e de alta relevância na história intelectual brasileira que deram muitas contribuições a este tema: Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e Leandro Konder são três daqueles que mais dedicaram-se aos problemas que pretendemos também abordar.

Como breve exemplo da fecundidade de conectar estes pensadores brasileiros à discussão, citarei a contribuição de Vieira Pinto: fiel às suas raízes na filosofia marxista, ele pretende denunciar um embuste e uma “mistificação”, uma alienação religiosa diretamente conexa a um conformismo ou fatalismo sócio-político. rata-se de questionar o quanto a religião presta serviços à conservação material e concreta da dominação opressora, da humilhaçãodesumanizante, dos sistemas econômicos e políticos que são esmagadores da dignidade humana. Explica porquê as “religiões milenares, orientais e ocidentais esforçam-se em retratar o mundo em que a humanidade se tem desenvolvido utilizando a conhecida imagem do vale das lágrimas”:

Se não convencerem os homens de que, por uma tristíssima fatalidade, têm de passar a existência no mais doloroso sofrimento, submetidos a toda espécie de privações, provações e por fim à morte, deixa de ter sentido seu papel com que se justificam, o de ser o único veículo da ‘salvação’ para nós, desgraçados viventes. (…) Daí a arraigada concepção, convertida em imagem de mundo, de que os homens, como consequência de um castigo original, habitam o mais tenebroso e inóspito lugar do universo, de onde lamentavelmente não conseguirão jamais se evadir, um vale de lágrimas, expressão que os pontífices desta mentirosa e infame simploriedade se empenham em deixar bem claro não se tratar de mero traço de retórica evangélica, mas de uma autêntica, embora cruel e lamentabilíssima, realidade. Esta mistificação (…), esta vulgar, interesseira e estúpida noção, é produto de uma exigida falsificação perpetrada pelas potências dominantes sobre a grande multidão da humanidade. “O ‘vale’ das lágrimas foi talhado por um rio formado pela torrente de lágrimas que as massas trabalhadoras, durante incontáveis milênios de sujeição a senhores, déspotas, sacerdotes, empresários e ricos proprietários, em todos os tempos, verteram dos olhos (…) A ironia do conceito reside em não ter sido cunhado pelos sofredores, mas pelos que habitam as alturas. (VIEIRA PINTO: 1975/2008, p. 21-23-24)

Como defenderemos em mais minúcia, a obra de Marilena Chauí7 e Leandro Konder8 também contêm reflexões de muito mérito no âmbito deste problema. Dito disto, finalizamos afirmando nossa convicção de que, contra qualquer tipo de fatalismo, de conformismo, de resignação, o materialismo filosófico possui compromisso prático e emancipatório, perseverança na noção de que mudar o mundo não só é possível como é necessário, criticando a figura humana que cruza os braços, recusa a práxis, limita-se à vida contemplativa, resigna-se ao instituído, limitando-se à paciência absoluta de quem aguarda socorro divino sem nada fazer para melhorar sua situação concreta no âmbito terrestre.

Justifica-se uma pesquisa aprofundada sobre o materialismo filosófico também pelo interesse prático que há em confrontarmos as religiões instituídas e seu poder político, cultural, social, midiático, ainda hoje muito forte. Como filósofos materialistas apontam (D’Holbach antes de Marx, Gramsci e Onfray posteriormente), não existe nenhuma garantia de virtude ética ou excelência política no mero conformismo a uma religião tradicional imposta pelas cúpulas da sociedade. É preciso admitir a possibilidade do ateu virtuoso e do materialismo politicamente libertário como valores que talvez seja recomendável afirmar diante do obscurantismo e do fanatismo, das teocracias e das inquisições.

Com este trabalho, planejamos contribuir com uma re-consideração da história da filosofia, vista também sob uma perspectiva contra-hegemônica, que focará naqueles filósofos que foram considerados dissidentes, heréticos, ímpios, ateus, céticos (ou que foram estigmatizados como tal). Entre as mais importantes obras que estudaremos, destacam-se os 2 volumes de Friedrich Albert Lange (1828-1875), A História do Materialismo e Crítica do seu Valor Para Nossa Época (publicado em 1866 em alemão: Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart); a Enciclopédia dos Iluministas, que teve em Diderot e D’Alembert seus principais artífices (lançada no Brasil, em 5 volumes, pela Editora Unesp), além da obra em 9 volumes de Michel Onfray, Contra-História Da Filosofia (5 deles publicados no Brasil pela Martins Fontes).

Durante os 36 meses do doutorado, nosso plano é publicar uma série de artigos (ao menos 2 por ano) que divulgarão os frutos de nossas pesquisas e de nossa interação com colegas, professores e orientador(a). Além disso, desejamos participar da maior quantidade possível de eventos que possam ter relação com nosso objeto de pesquisa (seminários, colóquios, fóruns, debates etc.), de modo a colocar tais ideias em circulação para serem debatidas e dialogadas, dentro e fora da academia, na perspectiva de que a filosofia pode sim ter função pública determinante para a nossa ventura comum.

Julgamos que tal trabalho possa elucidar sobre outros modos de conceber um ideal ético e político que supere as caducas concepções teológicas e obscurantistas que, ainda em nossos dias, teimam em querer submeter a vida humana a autoridades transcendentes, punições e recompensas post mortem, perpetuando as hegemonias das teocracias, do sectarismos, da fanaticidade violenta. Será uma aventura em que não seremos filósofos que se contentam em interpretar o mundo – pois como lembra Marx numa de suas mais célebres Teses Contra Feuerbach, o que importa agora é transformá-lo. Ao sapere aude deve ser somada a ousadia do fazer: o atrever-se a conhecer é imperfeito e limitado sem a coragem de agir em conjunto para mudar o mundo comum.

Monumento a Denis Diderot

Monumento a Denis Diderot

NOTAS

1 Destacam-se as obras: “Deus: um delírio”, de Richard Dawkins (Cia das Letras, 2007); “Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural”, de Daniel C. Dennett (Globo, 2006); “Deus não é grande”, de C. Hitchens (Ediouro, 2006); “A Morte da Fé”, de Sam Harris (Cia das Letras, 2009); “Tratado de Ateologia”, de M. Onfray (Martins Fontes, 2007); “O Espírito do Ateísmo”, de A. Comte-Sponville (Martins Fontes, 2009); “Orientação Filosófica”, de M. Conche (Martins Fontes, 2000).

2 Um exemplo é o artigo “O Sofrimento Das Crianças Como Mal Absoluto”, publicado por Marcel Conche em 1968, onde se argumenta que “o sofrimento das crianças deveria ser suficiente para confundir os advogados de Deus. É que o sofrimento das crianças é um mal absoluto, mácula indelével na obra de Deus, e seria suficiente para tornar impossível qualquer teodicéia. (…) O fato do sofrimento das crianças – como mal absoluto -, por eliminação da hipótese contrária, funda o ateísmo axiológico.” (CONCHE: 2000, p. 60-77)

3 São 9 volumes já publicados na França, pela Grasset, e os 5 primeiros no Brasil, pela Martins Fontes.

4 Uma análise brilhante do contexto sócio-histórico em que nasce o “tratado escandaloso de Spinoza” (T.T.P), considerado como uma magnum opus essencial para o “nascimento da era secular”, pode ser lida em Um Livro Forjado No Inferno, de Steven Nadler. O livro contêm detalhes de todo o processo sofrido pelo filósofo ao ser estigmatizado como pária pela sinagoga de Amsterdam quando tinha apenas 23 anos, já que foi considerada herética e blasfema sua concepção do “Deus sive Natura” (Deus = Natureza). “ Deus de Spinoza não é um ser transcendente, supranatural. Não é dotado dos aspectos psicológicos ou morais atribuídos a Deus por muitas religiões ocidentais. O Deus de Espinosa não manda, não julga nem faz alianças. Deus não é a providencial e espantosa deidade de Abraão. (…) Segue-se que a concepção antropomórfica de Deus que, como pensa Espinosa, caracteriza as religiões sectárias, e todas as postulações sobre recompensa e castigo divinos que ela implica não passam de ficções supersticiosas.” (NADLER: 2013, p. 32)

5 Na Idade Média, explica André Comte-Sponville, o trabalho de copiar as obras dos autores gregos e latinos da Antiguidade era realizado principalmente por monges, encerrados em conventos, filiados a seitas religiosas, que “preferiam copiar os filósofos e poetas que não estavam muito distantes das crenças deles, que não quebravam suas ilusões ou esperanças, que não eram demasiado incompatíveis com a fé.” (in: ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, O Mel e O Absinto, Paris: Hermann, 2008, pg. 20) No que diz respeito às mais de 50 obras de Demócrito, comenta-se que Platão e seus seguidores não pouparam esforços de destruição: “Em um movimento de ardor fanático, Platão quis comprar e queimar todos os escritos de Demócrito.” (LANGE, F. Pg. 11) “Platão pretendeu queimar as obras de Demócrito pela incompatibilidade entre as ideias nelas expendidas e as suas próprias.” (LINS, I. In: O Epicurismo.)

6 Saiba mais sobre a obra no site A Casa De Vidro: http://bit.ly/1qB8m2f.

7 “Todos conhecem a famosa fórmula segundo a qual ‘a religião é o ópio do povo’, isto é, um mecanismo para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem se revoltar porque acredita que será recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores são uma punição por erros cometidos numa vida anterior (religiões baseadas na idéia de reencarnação). Aceitando a injustiça social com a esperança da recompensa ou com a resignação do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, costuma-se esquecer que, antes de fazer tal afirmação, Marx define a religião como ‘a criação de um espírito num mundo sem espírito’ e ‘consolação num mundo sem consolo’. (…) A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia e por isso ela anestesia como o ópio”. — MARILENA CHAUÍ, “O Que é Ideologia”, pg. 108, ed Brasiliense.

8 Conferir, por exemplo, os artigos “É possível fazer o socialismo com fé em Deus” e “O Novo Conteúdo Político do Direito ao Prazer.” In: O Marxismo na Batalha das Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BENSAÏD, Daniel. Marx – Manual de Instruções. São Paulo: Boitempo, 2013.CHAUÍ, M. O Que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
COMTE-SPONVILLE, André. O Que É Materialismo?”. In: Uma Educação Filosófica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.
CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
D’HOLBACH. O Sistema da Natureza – Das leis do mundo físico e do mundo moral. Trad. Regina Schöpke. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno. SP: Cia Das Letras, 2012.
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Discours Sur Le Bonheur. Paris: Fayard, 2000.
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Vidas de los filósofos ilustres. Madrid: Alianza, 2ª ed, 2011.
LANGE, Friedrich Albert. A História do Materialismo e Crítica do seu Valor Para Nossa Época (Histoire Du Matérialisme et critique de son importance a notre époque). Paris: Schleicher Frères, 1910.
LÊNIN. Matérialism et empiriocriticisme. In: Oeuvres complètes, t. 14, Paris-Moscou, 1962, p. 132.
LUCRÉCIO, Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura). In: Pensadores. São Paulo: Abril, 1985. Pg. 21 a 135.
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———–. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo. 4ªed, 2010.
NADLER. Um Livro Forjado No Inferno – O tratado escandoloso de Espinosa e o nascimento da era secular. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia – Volume IV: Os Ultras das Luzes. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
PINTO, Álvaro Vieira.
A sociologia dos países subdesenvolvidos: introdução metodológica ou prática metodicamente desenvolvida da ocultação dos fundamentos sociais do “vale das lágrimas”. Rio de Janeiro: Contraponto, 1975/2008.
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 BIBLIOGRAFIA A PESQUISAR

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O Homem Máquina; A Arte de Usufruir; A volúpia; História Natural da Alma; O Anti-Sêneca ou Discurso sobre a Felicidade. Ebooks.
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ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia – Volume V: O Eudemonismo Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
USENER, Hermann (editor).
Epicurea. Cambridge Classics, 2010, 513 pgs.

Eduardo Carli De Moraes
Goiânia – Junho de 2016

“O SISTEMA DA NATUREZA” (1770) do Barão D’Holbach (1723-1789) – Leia alguns trechos da magnum opus de um dos mais importantes pensadores materialistas do Iluminismo francês:

“O SISTEMA DA NATUREZA” (1770)
do Barão D’Holbach (1723-1789)
Leia alguns trechos da obra-prima de um dos mais importantes pensadores materialistas do Iluminismo francês:

“Percorrendo o caminho que a natureza traçou para nós, assemelhamo-nos a nadadores forçados a seguir a corrente que os carrega. Acreditamos ser livres porque ora consentimos, ora não consentimos em seguir a maré que sempre nos arrasta. Nós nos acreditamos os senhores do nosso destino porque somos forçados a mexer os braços no temor de ir para o fundo. ‘O destino conduz aqueles que o aceitam e arrasta aqueles que resistem a ele’ (Sêneca).” – 266

“Tudo está em movimento no universo. A essência da natureza é agir e, se nós considerarmos atentamente as suas partes, veremos que não existe nela uma única que desfrute de um repouso absoluto. […] Mesmo os corpos que parecem desfrutar do mais perfeito repouso recebem – seja na sua superfície, seja no seu interior – impulsos contínuos da parte dos corpos que os rodeiam ou daqueles que os penetram, que os dilatam, que os rarefazem, que os condensam, enfim, mesmo daqueles que os compõem. […] Não existe nela nenhuma partícula que desfrute por um instante de um verdadeiro repouso. […] Como, sem movimento, conceber a maneira como o nosso olfato é afetado por emanações escapadas dos corpos mais compactos, dos quais todas as partes nos parecem em repouso? Enfim, nossos olhos veriam, com a ajuda de um telescópio, os astros mais afastados, se não houvesse um movimento progressivo desde esses astros até a nossa retina?” (48-51)

“A matéria sempre existiu, se move em virtude de sua essência e todos os fenômenos da natureza são devidos aos diversos movimentos das matérias variadas nela contidas, fazendo que – semelhante à fênix – ela renasça continuamente das suas cinzas.” (62)

“O homem é uma produção da natureza. […] Mas – dirão – o homem sempre existiu? O homem terá sido sempre aquilo que é, ou então, antes de chegar ao estado no qual o vemos, ele foi obrigado a passar por uma infinidade de desenvolvimentos sucessivos? O homem pode, enfim, gabar-se de ter chegado a um estado fixo, ou então a espécie humana deve ainda se modificar?” (115)

“A matéria é eterna e necessária, mas suas combinações e suas formas são passageiras e contingentes. […] A hipótese mais provável é a de que o homem é uma produção feita no tempo, peculiar ao globo que habitamos. […] As plantas, os animais e os homens podem ser considerados como produções particularmente inerentes e próprias do nosso globo, na posição ou nas circunstâncias nas quais ele se encontra atualmente. Essas produções se modificariam se este globo, por alguma revolução, viesse a mudar de lugar.” (117)

“Que absurdo ou que inconsequência existe, portanto, em imaginar que o homem, o cavalo, o peixe e o pássaro um dia não mais existirão? Esses animais seriam, portanto, uma necessidade indispensável da natureza, e será que, sem eles, ela não poderia continuar sua marcha eterna? Tudo não está mudando em torno de nós? Nós mesmos não nos modificamos? […] Como, pois, pretender adivinhar aquilo que a sucessão infinita de destruições e reproduções, de combinações e dissoluções, de metamorfoses, de modificações e de transposições poderá trazer em seguida? Sóis se extinguem e se solidificam, planetas perecem e se dispersam nas planuras dos ares; outros sóis se acendem, novos planetas se formam para fazer suas revoluções e para percorrer novas rotas e o homem, porção infinitamente pequena de um globo, que não passa ele próprio de um ponto imperceptível na imensidão, crê que é para ele que o universo é feito, imagina que deve ser o confidente da natureza, gaba-se de ser eterno, diz-se o rei do universo! Ó homem! Tu não conceberás jamais que não passas de um efêmero? Tudo muda no universo… e tu tens a pretensão de que a tua espécie não pode desaparecer, que deve ser uma exceção à lei geral, que quer que tudo se altere! […] Tu, que em tua loucura adotas arrogantemente o título de rei da natureza! Tu, para quem tua vaidade imagina que tudo foi feito… ” (120)

“…o homem não tem nenhuma razão para se acreditar um ser privilegiado na natureza. Ele está sujeito às mesmas vicissitudes que todas as suas outras produções. Suas pretensas prerrogativas são baseadas apenas em um erro. […] A ilusão que o predispõe em favor de si próprio…. não tem outro fundamento além do seu próprio interesse e da predileção que tem por si mesmo.” (123-124)

“…todas as faculdades intelectuais, ou seja, todas as maneiras de agir que são atribuídas à alma, se reduzem a modificações, a qualidades, a maneiras de ser, a mudanças produzidas pelo movimento no cérebro, que é visivelmente em nós a sede da sensibilidade e o princípio de todas as ações…” (153)

“…a impossibilidade em que cada um de nós se encontra de trabalhar eficazmente sozinho para se conservar e para se proporcionar o bem-estar nos impõem a feliz necessidade de nos associar, de depender dos nossos semelhantes, de merecer o seu auxílio, de torná-los favoráveis aos nossos desígnios, de atraí-los para nós para afastar, através dos esforços comuns, aquilo que poderia perturbar a ordem em nossa máquina…” (159)

“As hediondas quimeras da superstição nos desagradam porque elas não passam dos produtos de uma imaginação doente, que só despertam em nós ideias mortificantes. A imaginação, quando se desvirtua, produz o fanatismo, os terrores religiosos, o zelo irrefletido, os frenesis, os grandes crimes.” (167)

“…tomamos por ideias inatas aquelas das quais esquecemos a origem. Não nos lembramos mais nem da época precisa nem das circunstâncias sucessivas em que essas ideias foram consignadas na nossa cabeça. […] Nenhum de nós se lembra da primeira vez em que a palavra deus, por exemplo, feriu nossos ouvidos…” (209)

“Os teólogos só têm tanta dificuldade para concordarem uns com os outros porque, nas suas disputas, eles partem incessantemente não de proposições conhecidas e examinadas, mas dos preconceitos dos quais eles se imbuíram… raciocinam continuamente não sobre objetos reais ou cuja existência esteja demonstrada, mas sobre seres imaginários… Se tivessem posto os preconceitos de lado, teriam descoberto que os objetos que fizeram nascer as mais medonhas e as mais sangrentas disputas entre os homens são quimeras, teriam descoberto que lutavam e se degolavam por palavras vazias de sentido … Tudo deveria convencer da tirânica insensatez, da injusta violência e da inútil crueldade desses homens sanguinários que perseguem os seus semelhantes para forçá-los a se dobrarem às suas opiniões. Tudo deveria reconduzir os mortais à doçura, à indulgência e à tolerância – virtudes, sem dúvida, evidentemente mais necessárias à sociedade do que as especulações maravilhosas que a dividem e a levam muitas vezes a degolar os pretensos inimigos de suas opiniões veneradas.” (227)

“…o homem que não espera uma outra vida está mais interessado em prolongar a existência e em se tornar querido pelos seus semelhantes na única vida que conhece. Ele deu um grande passo para a felicidade ao se desvencilhar dos terrores que afligem os outros. Com efeito, a superstição tem prazer em tornar o homem covarde, crédulo, pusilânime. Ela adotou o princípio de afligi-los sem descanso; assumiu o dever de redobrar para ele os horrores da morte. Seus ministros, para disporem dele mais seguramente neste mundo, inventaram as regiões do porvir, reservando-se o direito de lá fazer recompensar os escravos que tiverem sido submissos às suas leis arbitrárias e de fazer serem punidos pela divindade aqueles que tiverem sido rebeldes às suas vontades. Longe de consolar os mortais, a religião em mil regiões esforçou-se para tornar a sua morte mais amarga, para tornar mais pesado o seu jugo, para tornar o seu cortejo acompanhado de uma multidão de fantasmas hediondos…

Ela chegou ao cúmulo de persuadi-los de que a sua vida atual não é mais do que uma passagem para chegar a uma vida mais importante. O dogma insensato de uma vida futura os impede de ocupar-se com a sua verdadeira felicidade, de pensar em aperfeiçoar as suas instituições, suas leis, sua moral e suas ciências. Vãs quimeras absorveram toda a sua atenção. Eles consentem em gemer sob a tirania religiosa e política, em atolar-se no erro, em definhar no infortúnio, na esperança de serem algum dia mais felizes, na firme confiança de que as suas calamidades e a sua estúpida paciência os conduzirão a uma felicidade sem fim. Eles se acreditam submetidos a uma divindade cruel que gostaria de fazer que eles comprassem o bem-estar futuro ao preço de tudo aquilo que eles têm de mais caro aqui embaixo.

É assim que o dogma da vida futura foi um dos erros mais fatais pelos quais o gênero humano foi infectado. Esse dogma mergulha as nações no entorpecimento, na apatia, na indiferença sobre o seu bem-estar, ou então as precipita em um entusiasmo furioso, que as leva muitas vezes a dilacerarem a si próprias para merecer o céu.” (318-19)

Paul Henri Thiry, o Barão de Holbach (1723-1789),
um dos mais importantes pensadores do Iluminismo,
no clássico O Sistema da Natureza (1770).
Editora Martins Fontes. Tradução Regina Schöpke.

LEIA MAIS (EM FRANCÊS) >>>

A VERTIGEM DA FINITUDE ou A CONSCIÊNCIA DA MORTALIDADE- por Drauzio Varella e Fernando Pessoa

:: A Vertigem ::
por Drauzio Varella

A angústia causada pela impossibilidade de comprovar por meios racionais se existe vida depois da morte acompanha a humanidade desde seus primórdios. Imaginar que nos transformaremos em pó e que capacidades cognitivas adquiridas com tanto sacrifício se perderão irreversivelmente é a mais dolorosa das especulações existenciais.

Tamanho interesse no destino posterior à morte, entre tanto, contrasta com a falta de curiosidade em saber de onde viemos. O que éramos antes de o espermatozóide encontrar o óvulo no instante de nossa concepção?

Aceitamos com naturalidade o fato de inexistir antes desse evento inicial, em contradição com a dificuldade em admitir a volta à mesma condição no final do caminho. Como não existíamos (portanto, não fomos consultados para vir ao mundo), consideramos a vida uma dádiva da natureza, e nosso corpo, uma entidade construída à imagem e semelhança de Deus, exclusivamente para nos trazer felicidade, atender aos nossos caprichos e nos proporcionar prazer.

Essa visão egocentrada de quem “não pediu para nascer” faz de nós seres exigentes, revoltados, queixosos, permanentemente insatisfeitos com os limites impostos pelo corpo e com as imperfeições inerentes à condição humana. Assim, acordamos todas as manhãs com tal expectativa de plenitude e de funcionamento harmonioso do organismo que o desconforto físico mais insignificante, a mais banal das contrariedades, são suficientes para causar amargura, crises de irritação, explosões de agressividade e depressão psicológica, não importa que privilégios o destino tenha nos concedido até a véspera ou venha a nos conceder naquele dia.

 Ao contrário da dificuldade em nos livrarmos desses estados emocionais negativos que nos consomem parte substancial da existência, as sensações de felicidade geralmente são fugazes, varridas de nosso espírito à primeira lembrança desagradável. Seria lógico esperar, então, que o aparecimento de uma doença grave, eventualmente letal, desestruturasse a personalidade, levasse ao desespero, destruísse a esperança, inviabilizasse qualquer alegria futura. Mas não é isso que costuma acontecer: vencida a revolta do primeiro choque e as aflições da fase inicial, associadas ao medo do desconhecido, paradoxalmente a maioria dos doentes com câncer ou AIDS que acompanhei conta haver conseguido reagir e descoberto prazeres insuspeitados na rotina diária, laços afetivos que de outra forma não seriam identificados ou renovados, serenidade para enfrentar os contratempos, sabedoria para aceitar o que não pode ser mudado.

 Não me refiro exclusivamente aos que foram curados, mas também aos que tomaram consciência da incurabilidade de suas doenças. Naqueles, é mais fácil aceitar que o fato de ter sobrevivido à ameaça de perder o bem mais precioso e de ser forçado a lutar para preservá-lo confira à vida um valor antes subestimado. Quanto aos que sentem a aproximação inevitável do fim, no entanto, soa estranho ouvi-los confessar que encontraram paz e se tornaram pessoas mais relaxadas, harmoniosas, admiradoras da natureza, amistosas, agradecidas pelos pequenos prazeres, e até mais felizes.

 – Troquei as noites frenéticas, de uma boate para outra até o dia clarear, por minhas plantas, pela algazarra dos passarinhos logo cedo, por meus livros, pelo café-da-manhã com minha mãe e o jornal – disse um de meus primeiros pacientes a descobrir que estava com AIDS.

 Um colega de profissão, mais velho, tratado por mim de um câncer de próstata incurável, certa vez disse:

 – Antes de ficar doente, eu nunca estava no lugar em que me encontrava: vivia alternadamente no passado e no futuro. Quantas coisas boas desperdicei por permitir que meus pensamentos fossem invadidos por memórias tristes ou contaminados pela ansiedade de planejar o que deveria ser feito em seguida. Era tão ansioso que chegava a puxar a descarga antes de terminar de urinar. A doença me ensinou a viver o presente.

 Um rapaz de vinte e cinco anos que tratei de uma forma grave de linfoma de Hodgkin, tipo de câncer que se instala no sistema linfático, uma vez resumiu o amadurecimento prematuro que considerava ter adquirido:

 – Sempre fui explosivo: brigava no trânsito, xingava os outros, ficava irritado por qualquer bobagem, já acordava chateado sem saber por quê. Quando entendi que podia morrer, pensei: não tem cabimento desperdiçar o resto da vida. Virei Albert Einstein, o defensor da relatividade: quando alguma coisa me desagrada, procuro avaliar que importância ela tem no universo. Descobri que é possível ser feliz até quando estou triste.

 No ambulatório do Hospital do Câncer, quando perguntei a um maranhense iletrado, pai de quinze filhos e rosto marcado pelo sol, se a doença havia lhe trazido alguma coisa de bom, ele respondeu:

 – O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo.

 Custei a aceitar a constatação de que muitos de meus pacientes encontravam novos significados para a existência ao senti-la esvair-se, a ponto de adquirirem mais sabedoria e viverem mais felizes que antes, mas essa descoberta transformou minha vida pessoal: será que com esforço não consigo aprender a pensar e a agir como eles enquanto tenho saúde?

[DRAUZIO VARELLA. Por Um Fio]

* * * * *

“Quando vier a Primavera”
Alberto Caeiro (F. Pessoa)

Pessoa

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

 

“PAPAI-DO-CÉU” DESTRONADO: DES-LINKANDO ÉTICA & FÉ: Com Daniel Dennett, Peter Singer, Sam Harris, Woody Allen

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PETER SINGER: “ÉTICA PRÁTICA“

“Tradicionalmente, a mais importante ligação entre a religião e a ética está em pensar que a religião oferece uma motivação para fazer o que é certo: os virtuosos serão recompensados com uma eternidade de bem-aventurança no Céu, ao passo que os demais vão queimar no Inferno.

Nem todos os pensadores religiosos pensaram assim: Immanuel Kant, um cristão dos mais devotos, zombava de tudo que lhe cheirasse a obediência ao código moral por interesse próprio (egoísmo).

A observação cotidiana dos nossos semelhantes deixa claro que o comportamento ético não exige a crença no céu e no inferno.”

SINGER, P. Martins Fontes, 2006, p. 12

Singer Meme

O ORIGINAL – From Practical Ethics, by Peter Singer:  “Religion was tought to provide a reason for doing what is right, the reason being that those who are virtuous will be rewarded by an eternity of bliss while the rest roast in hell. (…) Not all religious thinkers have accepted this argument: Immanuel Kant, a most pious Christian, scorned anything that smacked of a self-interested motive for obeying the moral law. (…) Our everyday observation of our fellow human beings clearly shows that ethical behaviour does not require belief in heaven and hell.” (Cambrigde Press, p. 4)

LECTURES

I ) Ethics & Living Ethically, at New College of the Humanities

II) The Christian God

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Calvin Santa

* * * * *Dennett2

“Few forces in the world are as potent, as influential, as religion. As we struggle to resolve the terrible economical and social inequities that currently disfigure our planet, and minimize the violence and degradation we see, we have to recognize that if we have a blind spot about religion our efforts will almost certainly fail, and may make matters much worse… If we don’t subject religion to such scrutiny now, and work out together whatever revisions and reforms are called for, we will pass on a legacy of ever more toxic forms of religion to our descendants.

Religion plays its most important role in supporting morality, many think, by giving people an unbeatable reason to do good: the promise of an infinite reward in heaven, and (depending on tastes) the threat of an infinite punishment in hell if they don’t. Without the divine carrot and stick, goes this reasoning, people would loll about aimlessly or indulge their basest desires, break their promises, cheat on their spouses, neglect their duties, and so on. There are two well-known problems with this reasoning: (1) it doesn’t seem to be true, which is good news, since (2) it is such a demeaning view of human nature.

Everybody already knows the evidence for the countervailing hypothesis that the belief in a reward in heaven can sometimes motivate acts of monstruous evil. (…) This can be seen as an infantile concept of God in the first place, pandering to immaturity instead of encouraging genuine moral commitment. As Mitchell Silver notes, the God who rewards goodness in heaven beats a striking resemblance to the hero of the popular song ‘Santa Claus Is Coming To Town’…”

DANIEL DENNETT
Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon
(Pgs. 38-39 & 279-280)
Available at the Toronto Public Library.

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Sam Harris

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WOODY ALLEN:

Woody

WOODY ALLEN: MARCANDO PONTOS NO PÓS-VIDA

Comentando sobre seus filmes Crimes e Pecados e Match Point, o cineasta americano Woddy Allen disse:

“- Para mim, é uma grande vergonha o universo não ter nenhum Deus ou nenhum sentido, e no entanto só quando se admite isso é que se pode levar o que as pessoas chamam de uma vida cristã – isto é, uma vida moral decente. Você só leva uma vida assim se, para começar, admite o que tem diante de si e joga fora toda a casca de conto de fadas que leva a pessoa a fazer escolhas na vida não por razões morais, mas para marcar pontos no pós-vida.”

(LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. Ed. Cosac e Naify)

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DOWNLOAD: CRIMES E PECADOS,
de Woody Allen (1989, Crimes & Misdemeanors)

Woody

 

COLLISION: o Cristianismo é bom para o mundo? – Documentário completo em que debatem Chris Hitchens e o pastor Douglas Wilson

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“COLLISION carves a new path in documentary film-making as it pits leading atheist, political journalist and bestselling author Christopher Hitchens against fellow author, satirist and evangelical theologian Douglas Wilson, as they go on the road to exchange blows over the question: “Is Christianity Good for the World?”. The two contrarians laugh, confide and argue, in public and in private, as they journey through three cities. And the film captures it all. The result is a magnetic conflict, a character-driven narrative that sparkles cinematically with a perfect match of arresting personalities and intellectual rivalry. COLLISION is directed by prolific independent filmmaker Darren Doane (Van Morrison: Astral Weeks Live at the Hollywood Bowl, The Battle For L.A., Godmoney).” – Official Web Site

Download: http://bit.ly/1f7iCUG (torrent).

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OVERVIEW

In May 2007, leading atheist Christopher Hitchens and Christian apologist Douglas Wilson began to argue the topic “Is Christianity Good for the World?” in a series of written exchanges published in Christianity Today. The rowdy literary bout piqued the interest of filmmaker Darren Doane, who sought out Hitchens and Wilson to pitch the idea of making a film around the debate.

In Fall 2008, Doane and crew accompanied Hitchens and Wilson on an east coast tour to promote the book compiled from their written debate titled creatively enough, Is Christianity Good for the World?. “I loved the idea of putting one of the beltway’s most respected public intellectuals together with an ultra-conservative pastor from Idaho that looks like a lumberjack”, says Doane. “You couldn’t write two characters more contrary. What’s more real than a fight between two guys who are on complete opposite sides of the fence on the most divisive issue in the world? We were ready to make a movie about two intellectual warriors at the top of their game going one-on-one. I knew it would make an amazing film.”

In Christopher Hitchens, Doane found a celebrated prophet of atheism. Loud. Funny. Angry. Smart. Quick. An intimidating intellectual Goliath. Well-known for bullying and mocking believers into doubt and doubters into outright unbelief. In Douglas Wilson, Doane found the man who could provide a perfect intellectual, philosophical, and cinematic counterpoint to Hitchens’ position and style. A trained philosopher and and deft debater. Big, bearded, and jolly. A pastor, a contrarian, a humorist–an unintimidated outsider, impossible to bully, capable of calling Hitchens a puritan (over a beer).

It was a collision of lives.

What Doane didn’t expect was how much Hitchens and Wilson would have in common and the respectful bond the new friend/foes would build through the course of the book tour. “These guys ended up at the bar laughing, joking, drinking. There were so many things that they had in common”, according to Doane. “Opinions on history and politics. Literature and poetry. They agreed on so many things. Except on the existence of God.”

BIOS

CHRISTOPHER HITCHENS
Christopher Hitchens (b. April 13, 1949) is a popular political journalist and the author of several books, including “God Is Not Great: How Religion Poisons Everything”. Hitchens is regarded as one of the most fundamental figures of modern atheism. A regular contributor to Vanity Fair, The Atlantic Monthly and Slate, Hitchens also appears regularly on The Daily Show, Charlie Rose, Washington Journal, and Real Time with Bill Maher. He was named one of the US’s “25 Most Influential Liberals” by Forbes and one of the world’s “Top 100 Public Intellectuals” by Foreign Policy. Hitchens died in December, 2011.

DOUGLAS WILSON
Douglas Wilson (b. June 18, 1953) is a pastor of Christ Church, editor of Credenda/Agenda magazine, and a Senior Fellow at New Saint Andrews College. A prolific writer, he is the author of many books, including The Case for Classical Christian Education, Letter from a Christian Citizen, Reforming Marriage and Heaven Misplaced: Christ’s Kingdom on Earth. Wilson lives in Moscow, Idaho.

DARREN DOANE
Darren Doane is a Los Angeles-based independent filmmaker. Doane made his name as a music video director. His work for Blink-182, AFI, Jimmy Eat World and Pennywise is credited for helping bring punk rock into the mainstream in the 1990s. His previous documentary film, The Battle For LA, explored the underground battle rap scene in Los Angeles. Doane is currently in production on the documentary film To Be Born Again about legendary musician Van Morrison and has also written and directed several feature films, including Godmoney, 42K and Black Friday.

“IF YOU WANT TO BE AWE-INSPIRED…”

O ESPÍRITO DO ATEÍSMO: EPICURO, LUCRÉCIO E ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

Epicuro
“Ou Deus quer eliminar o mal e não pode; ou pode e não quer; ou não pode nem quer; ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente, o que não corresponde a Deus; se pode e não quer, é mau, o que é estranho a Deus. Se não pode nem quer, é ao mesmo tempo impotente e mau, logo não é Deus. Se quer e pode, o que corresponde somente a Deus, de onde então vem o mal ou por que Deus não o suprime?” EPICURO

Excelentes questões, as de Epicuro, e que não cessam de dar nó no cérebro dos teólogos. Lucrécio, o maior herdeiro de Epicuro no mundo romano do I século antes de Cristo, escreveu seu poema e magnum opus, Da Natureza das Coisas, na intenção de divulgar e enaltecer o epicurismo, dissipando superstições e temores a golpes de desmistificação. Lucrécio também afirmava, como lembra André Comte-Sponville, que 

“A natureza mostra bastante bem, com suas imperfeições, ‘que não foi criada para nós por uma divindade’. O poeta, sobre esse tema, encontrará um dos seus mais belos e mais trágicos timbres: a vida é difícil demais, a humanidade é fraca demais, o trabalho é extenuante demais, os prazeres vãos ou raros demais, a dor é demasiado frequente ou demasiado atroz, o acaso é demasiado injusto ou demasiado cego, para que se possa crer que um mundo tão imperfeito seja de origem divina!” (COMTE-SPONVILLE)

Em “O Espírito do Ateísmo”, Sponville sintetiza sua posição atéia, calcada em larga medida na filosofia de Epicuro e Lucrécio, com as seguintes – e eloquentes – palavras ímpias:

sponville

“Há horrores demais neste mundo, sofrimentos demais, injustiças demais – e muito pouca felicidade – para que a idéia de ele ter sido criado por um Deus onipotente e infinitamente bom me pareça aceitável.(…) Há todos esses sofrimentos, desde há milênios, pelos quais a humanidade não é responsável. Há todas essas crianças que morrem de doenças, muitas vezes com sofrimentos atrozes. Esses milhões de mulheres que morreram de parto (que às vezes ainda morrem), com a carne e a alma dilaceradas. Há as mães dessas crianças, há as mães dessas mulheres, quando ainda vivas, incapazes de ajudá-las, de aliviá-las, que só podem assistir, impotentes, ao horror… Quem ousaria lhes falar de pecado original? Há um número incontável de cânceres (nem todos se devem ao meio ambiente ou ao modo de vida). Há a peste, a lepra, o impaludismo, a cólera, o mal de Alzheimer, o autismo, a esquizofrenia, a mucoviscidose, a miopatia, a esclerose múltipla, o mal de Charcot, a coréia de Huntington… Há terremotos, maremotos, furacões, secas, inundações, erupções vulcânicas. Há a desgraça dos justos e o sofrimentos das crianças. Ao que o pecado original dá uma explicação ridícula ou obscena. ‘Tínhamos de nascer culpados, ou Deus seria injusto’, escreve Pascal. Há uma outra possibilidade, mais simples: que Deus não existe.” 

ANDRÉ COMTE-SPONVILLE. O Espírito do Ateísmo. Ed. Martins Fontes.

SIGA VIAGEM DENTRO DA CASA DE VIDRO:

A fé como suspensão da ética – O mito de Abraão e Isaac segundo Søren Kierkegaard e José Saramago (por Eduardo Carli de Moraes)

Com a faca afiada colada a seu pescoço, prestes a ser degolado, o que passava pela mente do pequeno Isaac? Com o coração apavorado, golpeando com violência as paredes do tórax, que tipo de opinião sobre a fé e sobre a paternidade podem ter ocorrido ao garoto ao perceber-se na posição de ovelha-de-sacrifício? Eis algumas questões intrigantes que me ocorrem ao fim da leitura de Temor e Tremor, de Søren Kierkegaard (1813-1855), obra de tom altamente interrogativo, mas que pode ser complementada pelo leitor com uma multiplicação de novos pontos de interrogação.

Na pintura de Caravaggio, que retrata o momento em que Abraão vai sacrificar Isaac mas é impedido por uma intervenção angélica, enxergo uma cena de tortura. Na pintura, foquemos o olhar sobre o rosto de Isaac, contorcido pela angústia extrema, oprimido pela violência das mãos viris de Abraão: o que nos contam estes olhos infantis aterrorizados pela lâmina da faca ameaçadora? Diante deste quadro, é quase como se desse para ouvir o grito de Isaac, um berro quase Munchiano, reação visceral de uma criança incapaz de compreender o desatino do mundo encarnado na loucura de seu pai. Eu diria, Camusianamente, que Isaac está aí representado em pleno confronto com o Absurdo. Pois Abraão encarna nesta cena o famoso creio pois é absurdo.

Edvard Munch,

Edvard Munch, “O Grito”

KierkNo prelúdio de seu livro, Kierkegaard pinta com palavras o retrato de Isaac abraçado aos joelhos de Abraão, caído aos pés do pai, implorando por sua jovem vida. Mas é algo bem diferente da misericórdia ou da ternura o que o filho descobre na atitude, a um só tempo intransigente e resignada, de Abraão-da-faca-na-mão. Este é um dos momentos cruciais desta narrativa mítica que nos mostra uma figura que, embriagada pela fé, acaba por suspender a ética: o velho está prestes a cometer um crime hediondo, o assassinato de seu próprio filho, pois acredita que os céus o ordenaram. A fé é uma das forças psíquicas capazes de varrer do quadro as mais básicas das atitudes éticas: não matar cessa de valer quando o crente acredita-se requisitado por seu deus a assassinar o ímpio ou a sacrificar a vítima apontada pelo dedo invisível do divino.

Diante de Abraão, não há como evitar a questão: estamos diante de um santo ou de um louco? Eis um herói a ser celebrado, ou então um psicopata perigoso digno de ser metido no hospício? Devemos louvar esta heróica demonstração de obediência à vontade divina, ou lamentar a psicopatologia que levou este demente senil às beiras de cometer um ato grotesco? Devemos imitar o exemplo desta obediência pia e estrita aos ditames de um deus suposto, ou devemos ler esta narrativa como um símbolo dos perigos que há nestes vícios (humanos, demasiado humanos!) da idolatria e do fanatismo?

Nossa tendência é lidar com a história de Abraão e Isaac, narrada no Gênesis, com a tranquilidade daqueles que já conhecem seu “final feliz”: sabemos que tudo não passou de um teste, de um julgamento, uma espécie de “trote” divino. Ufa, tudo não passou de um blefe! Sabemos que Abraão não consuma seu ato sacrificial sangrento e que só pode ser acusado de um quase-assassinato. Além do mais, a tradição judaico-cristã inteira posteriormente tratou de desenhar auras de santidade sobre a cabeça do “Pai da Fé”: somos todos convidados a imitá-lo como modelo, já que nada apraz mais ao deus único, criador ex nihilo de tudo, do que uma criatura que sacrifica a autonomia de seu intelecto para tornar-se plenamente obediente aos ditames do céu…

O que mais me emociona no prelúdio de Temor e Tremor é o modo como Kierkegaard pinta a perspectiva da vítima: voltando para casa depois do quase-sacrifício, pai e filho, rumando ao reencontro com a mãe Sarah, estão caminhando lado a lado, mas separados por um intransponível abismo. Isaac, escreve Kierkegaard, “tinha perdido a fé.” [1] Para Isaac, não houve final feliz coisa nenhuma, apenas a vivência traumática de uma tortura absurda; para Isaac, o episódio com certeza fez com que se rompesse a confiança que um filho deposita na boa vontade de seu pai, e é de se suspeitar que nunca mais, depois daquilo, Isaac conseguirá permanecer na presença de Abraão sem o temor e tremor que sente alguém diante de um psicopata perigoso.

Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

Temor e Tremor, é claro, não é um livro sobre a perda da fé, mas muito mais um tratado psicológico que se debruça sobre Abraão, descrito como o “cavaleiro da fé” [the knight of faith, na tradução inglesa], tão crente que está disposto a extinguir a vida do próprio filho amado se Deus assim ordenar. Kierkegaard escreve mais como poeta do que como pregador, questionando mais do que dogmatizando, ainda que no geral o tom seja de elogio e admiração à figura de Abraão. Tanto é assim que o segundo capítulo é um panegírico onde o leitor é convidado a empatizar com o sofrer de Abraão, que tanto havia ansiado por um filho, que conquistou somente em sua velhice, e que descobre-se ameaçado de perder o rebento que ama tão intensamente pois a divindade exige seu sacrifício.

Alguns dos trechos mais belos do livro são aqueles em que Kierkegaard, ainda que timidamente, ousa questionar os supostos ditames do criador, perguntando: que diabos de deus é este capaz de exigir que um homem, já com os cabelos brancos, aniquile aquilo que mais ama neste mundo, seu filho único? “Não há compaixão alguma pelo venerável idoso, nenhuma pela criança inocente?” [2] Interrogações como estas, porém, são raras em Temor e Tremor, obra que não chega a questionar seriamente a existência deste deus que Abraão supõe como ordenante do sacrifício. Leitores ateus, agnósticos e céticos podem perguntar-se: e se tudo não passa de um delírio subjetivo de Abraão? E se a “voz de Deus” não for nada além de uma ilusão psíquica que acomete o cérebro senil do patriarca? Se Deus não existe, há qualquer possibilidade de sustentar que Abraão agiu de modo “heróico”? Ou ele foi nada mais do que um fanático que só não tornou-se assassino por um triz?

Na tragédia grega, podemos encontrar um caso semelhante ao de Abraão e Isaac: em Ifigênia em Áulis, Eurípides narra as ocorrências que precederam o início da Guerra de Tróia. Os exércitos chefiados por Agamemnon já estão a postos, preparados, ansiosos por embarcar para a carnificina. Mas as intempéries impedem as naus de navegar a contento rumo às terras de Príamo, onde Helena encontra-se após ser sequestrada (ou seduzida?) por Páris. Apesar das diferenças consideráveis entre o politeísmo grego e o monoteísmo judaico-cristão, há um certo paralelismo: tanto Ifigênia quanto Isaac são escolhidos como vítimas sacrificiais pois acredita-se que assim ordena o divino. A maior diferença entre Agamemnon e Abraão não é tanto entre um crente politeísta e um crente monoteísta, mas entre um homicida consumado e um quase-homicida. Ifigênia, a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra, não tem a sorte de Isaac: ela não escapa da faca. É um episódio que o poeta-filósofo Lucrécio descreve, em seu Da Natureza, com o horror que sente o homem lúcido diante das atrocidades cometidas por mentes transtornadas pela superstição:

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

“Na maior parte das vezes foi exatamente a religião que produziu feitos criminosos e ímpios. Foi assim que em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam vergonhosamente com o sangue de Ifigênia o altar… E em nada podia valer à infeliz, em tal momento, ter sido a primeira a dar ao rei o nome de pai. Foi levantada pelas mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse, cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para, criminosamente virgem, no tempo em que deveria casar-se, sucumbir, triste vítima imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. A tão grandes males pode a religião persuadir.” LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. [3]

A tragédia grega mostra o ato de Agamemnon em todo seu horror, como violação de um preceito ético fundamental, e as consequências dele para este família serão desastrosas: como narrado na trilogia de Ésquilo, Oréstia, a mãe de Ifigênia, Clitemnestra, transtornada pelo luto e pela ira, tratará de vingar-se de seu marido, o assassino da primogênita do casal. Assim que ele retornar de Tróia, triunfante na guerra porém esquecido de que deixou em casa alguém que o odeia intensamente, Agamemnon será por sua vez trespassado pelo punhal da vendeta. O ciclo de violências multiplica-se: a vingança de Clitemnestra contra Agamemnon alimenta a fúria de Orestes, que encaminha-se então para o matricídio… O theatrum mundi inunda-se de sangue.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard não ousa penetrar tão fundo na sondagem das relações entre fé e violência: no livro, quase não aparecem palavras como “superstição” e “fanatismo”, tão aptas a descrever o tipo de demônio que traz Abraão sob seu domínio. Em sua Expectoração Preliminar, porém, faz esta interessante reflexão: alguém que ouvisse, na missa de Domingo, um padre a narrar o mito de Abraão e Isaac, poderia sair dali convencido de que não há melhor prova de amor à Deus do que sacrificar na terra a pessoa que mais ama. Impelido pelo sermão, levantaria o punhal contra o próprio filho e depois diria à polícia, enquanto é conduzido ao presídio ou ao hospício, que agiu sob a influência da edificante parábola que ouviu na igreja. Se a imitação de Abraão se transformasse em algo epidêmico, em que mundo viveríamos? Não é perigoso acreditar que a fé tem o direito de suspender a ética? Que sociedade resulta da disseminação da crença em uma divindade transcendente faminta por sacrifícios e imolações?

O que Kierkegaard destaca de modo recorrente é o paradoxo que se manifesta no mito de Abraão e Isaac, em que Deus exige o crime e a tentação consiste em agir eticamente. É nesse contexto que Kierkegaard mobiliza o conceito de absurdo, tão caro aos pensadores existencialistas, especialmente Albert Camus: há um paradoxo incontornável em um deus que exige do devoto que corte a goela do filho que adora, já que então revela-se como um deus anti-ético. Ora, se este deus é compreendido como tendo como atributos a justiça, a bondade e o amor, como compreender que exija de Abraão algo de tão absurdo quanto a violação explícita do preceito evangélico não matarás? Um deus que exige beber o sangue das crianças será mesmo um deus autêntico ou somente um demônio disfarçado?

A multiplicação de tais dúvidas teológicas só nos conduz ao exacerbamento da sensação de absurdo e de paradoxo – e talvez não haja saída deste labirinto a não ser pela via do ateísmo: um deus malvado é uma contradição, um paradoxo, uma impossibilidade, e desta aporia só escapamos ao concluir que este deus das carnificinas nunca existiu fora das imaginações humanas. É um argumento sintetizado belamente por José Saramago, em artigo publicado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001:Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou.” [4] Em um de seus últimos romances, o autor português faz seu Caim sintetizar uma posição atéia, de rebeldia contra o deus bíblico que é tão frequentemente um genocida, praticante do assassinato em massa pela via dos dilúvios e das hecatombes, deixando vivos só um punhado de eleitos:

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“A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto”, sustenta Caim, que quando confrontado com a tese de que “Deus está em todo o lado”, replica: “Uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para o condenar sem remissão.” [5] Se evoco aqui a obra literária e o pensamento anti-teísta do Prêmio Nobel de Literatura lusitano é para melhor ilustrar o “tremendo paradoxo da fé” que Kierkegaard explora em Temor e Tremor: como é possível a transformação do homicídio em um ato sacro? Só por ser cometido com fé, o homicídio deixa de ser um pecado para tornar-se uma prática santa que agrada aos céus?

KierkeA ética, sustenta Kierkegaard, é universal, aplica-se a todo mundo, o tempo todo: não há época histórica ou localização geográfica onde não seja uma atrocidade, do ponto de vista ético, o homicídio dos inocentes – como aquele que perpetra Medéia contra suas crianças. Em outras palavras: a ética prescreve, como mandamento universal, o dever maternal e paternal que proíbe tratar os filhos como sacrificáveis. O problema, portanto, está na reputação cheia de honra e glória de que goza Abraão, como pai da fé e patriarca do monoteísmo, quando o mesmo Abraão é um violador da ética, já que ergueu a lâmina para assassinar Isaac. Eis o paradoxo e o absurdo: a divindade demanda a suspensão da ética; deus é o mandante de um crime; a fé é o heroísmo maluco e a loucura sagrada através do qual alguém peca contra o universal.

Se Abraão simboliza tão bem o que significa ter fé, é pois leva ao extremo a fidelidade cega e a obediência absoluta à divindade (ou ao que supõe ser a “vontade do deus”). Sua submissão é tão total que ele está pronto a obedecer a um deus que ordena assassinatos ao invés de rebelar-se contra ordens que ofendem radicalmente a consciência moral. Recusar-se a cumprir o sacrifício do primogênito seria uma atitude bastante razoável de qualquer pai apegado ao filho de sua carne e motivado pela chama do amor paternal. Abraão só tornou-se tão célebre por seu extremismo, por sua intransigência, por esta extraordinária teimosia na fé e que merece ser chamada, apesar de Kierkegaard não fazê-lo jamais, de fanatismo. 

 A absurdidade do mito consiste nisto: a divindade, que se presume o princípio criador do Bom, do Belo e do Justo, exige do homem-de-fé que cometa um ato hediondo, horrendo e injusto. Se este deus é amor, como é possível que exija, como prova de fé, um ato que é transgressão obscena do amor? A tentação, para Abraão, é justamente a ética: respeitar o dever universal, que exige de um pai a proteção e o cuidado para com seu(s) filho(s), equivale neste caso à desrespeitar o mandamento divino. O que falta em Temor e Tremor é justamente um questionamento mais amplo e sistemático da possibilidade de que Abraão esteja alucinando, que tudo não passe de um delírio senil, que o absurdo está na cabeça de um velho e não no ser das coisas. Para ser bem rude com a obra de Kierkegaard, eu perguntaria: para que gastar tanta palavra de interpretação teológica deste mito, se em algumas páginas seria possível argumentar que este deus em que Abraão crê não passa de um déspota imaginário fabricado pela fantasia de um velho crédulo?

É uma interrogação inescapável: aquilo que se chama de “amor à deus” é realmente a maior de todas as virtudes e deve ser colocado acima de todo e qualquer dever ético? O Novo Testamento fornece-nos também razões de sobra para desconfiar que um paradoxo pernicioso, prenhe de consequências sangrentas, está alojado e embrenhado na ideologia religiosa de nossa tradição judaico-cristã: em Lucas (14: 26 e 33), Jesus de Nazaré exige: “Se alguém vier a mim, e não odiar a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. […] Qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo.” [6]

É essa a religião que querem nos vender como amorável e caridosa? É este o profeta que devemos honrar de joelhos nas igrejas? Kierkegaard viu bem que estamos lidando com um conceito de deus que requer um amor absoluto que se expressa através da renúncia a amar pessoas de carne-e-osso. Eis um deus que exige ser amado mais que tudo, na exclusão de tudo, e que como prova de fé demanda que o amor entre pai-e-filho seja aniquilado em um altar. A um deus destes eu me recuso a tirar meu chapéu. Não acho que mereça minha devoção. E mais: bateria boca com Kierkegaard, que quer pintar auréolas sobre Abraão e dizer que a fé é a mais elevada das paixões humanas. Aquele que é capaz de levantar a lâmina fatal contra o próprio filho não me parece um herói a ser celebrado, mas um caso clínico; não um adorável modelo de conduta mas um nocivo psicopata; não a ilustração dos caminhos que o sábio deve seguir mas o contra-exemplo que nos conta daquilo que faremos bem em evitar: o fanatismo, a obediência cega, a fé que dá licença à suspensão da ética e ao cortejo das atrocidades.

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“…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” [7]

Um dos méritos maiores da obra de Saramago está na coragem quase punk em que ele escancara os absurdos da fé com sua sagaz mordacidade atéia, desfazendo alguns dos mais arraigados preconceitos ainda hegemônicos em nosso mundo, como por exemplo a ideia de que crimes obscenos e horrendos são realizados por gente “sem fé no coração”. Tais comentários ateofóbicos que pretendem explicar os ímpetos criminosos a partir de um déficit de fé em Deus caem por terra quando atentamos para o fato de que a fé é com frequência a justificativa e a motivação para atos criminosos – e não somente no âmbito mítico, como vimos nos casos de Abraão e Agamemnon.

Para retornar ao tema do artigo saramaguiano publicado logo após o 11 de Setembro de 2001, é explícito neste caso o quanto os atentados terroristas foram realizados por homens cheios de fé, e que se imolaram nos ataques camicase na esperança de que Alá os aplaudiria e já preparava para eles um paraíso de delícias e privilégios no Além. De modo bastante similar, a resposta militar dos EUA e seus aliados, na invasão do Afeganistão e do Iraque, baseou-se largamente em justificativas teológicas, com o uso e abuso da noção maniqueísta de um Eixo do Mal (islâmico) a ser derrotado pelas forças do Bem (cristãs) – como se os bombardeios genocidas e as torturas institucionalizadas nas prisões (como Abu Ghraib e Guantánamo) fossem suspensões da ética completamente válidas, já que seus praticantes estavam a serviço do Deus verdadeiro (além de favorecendo com suas bombas e matanças um outro deus… a Mão Invisível do Mercado, que não funciona jamais sem seu aliado, o punho-de-ferro das violências coercitivas e da pilhagem do petróleo alheio…). “Se Deus não existisse”, sugere um personagem de Dostoiévski, “tudo seria permitido”; ora, a experiência histórica nos conduz a pensar, ao contrário, que na verdade são aqueles para quem Deus existe indubitavelmente, os cavaleiros da fé que jamais duvida de si, que agem na base do “tudo é permitido”.

Em suma: a versão oficial do mito de Abraão e Isaac nos conta de uma intervenção divina que, na hora H (a hora do Homicídio), salva Isaac da faca, salvando ao mesmo tempo Abraão de transformar-se em assassino e salvando o deus em que ele crê de virar um mandante de um crime hediondo. Para encerrar este texto, repleto de blasfêmias sadias e heresias essenciais, eu sugeriria uma interpretação mais realista do mito: não foi uma angélica aparição o que impediu Abraão de consumar o sacrifício, mas um lampejo súbito de bom senso, um clarão salvífico de dúvida, uma hesitação providencial de último instante, um insight da absurdidade daquilo que ele estava prestes a cometer. Se a fé de Abraão tivesse sido de fato imperturbável, irremovível, intransigente, Isaac teria sido transformado de criança em cadáver. No último instante, porém, Abraão deve ter duvidado de deus e de si: e se eu estiver louco? E se meu deus não for senão delírio? E se eu tiver compreendido mal seus ditames? E se não houver ninguém nos céus mas apenas um desarranjo e um desatino nos meus miolos?

A fé teria assassinado Isaac; a dúvida acabou por salvá-lo.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Dezembro de 2014

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] KIERKEGAARD, S. Fear and Trembling. Princeton, 2013. Pg. 43.

[2] KIERKEGAARD, S. Op cit. Pg. 52. Na tradução inglesa de Walter Lowrie, o trecho ficou assim:“Who is he that would make a man’s gray hairs comfortless, who is it that requires that he himself shall do it? Is there no compassion for the venerable oldling, none for the innocent child?” (pg. 52)

[3] LUCRÉCIODa Natureza. Livro I. In: Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. Abril Cultural, 3ª ed., 1985.Pg. 33.

[4] SARAMAGO, J. Folha de São Paulo, 2001.

[5] SARAMAGO, J. Caim. Cia das Letras, 2009. pg. 135.

[6] NOVO TESTAMENTO. Lucas 14:26 e 33.

[7] JOSÉ SARAMAGO. Caim.  Pg. 80-81.

Saramago