Artista popular genial, Gilberto Gil revolucionou o Ministério da Cultura com o “do-in antropológico” || A Casa de Vidro

Roma, julho de 2003: o Ministro da Cultura e artista popular Gilberto Gil manifesta-se diante de vários personalidades políticas européias: “a cultura não pode ser excludente, deve ser entendida como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem todos os atos criativos de um povo.”

Criticando todo tipo de imobilismo ou conservadorismo que quisesse manter a cultura em estado de rigor mortis ou de estátua, o genial artista tropicalista, no início de sua trajetória enquanto ministro do presidente Lula, afirmava que esta “constelação dinâmica” de “todos os atos criativos de um povo” deveria estar no foco do agente público que tem por função e ofício estimular a florescência de uma multidiversa criatividade popular.

Para melhor explicar quais as funções que concebe para o poder público na área cultural, Gil evocava a técnica de massagem de origem oriental, o do-in: “É preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país.” (GIL, O Chamado de Roma, pg 215)

Tal concepção – objeto de estudo pormenorizado na tese de Ariel Nunes: Por um “Do-In Antropológico”: Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Políticas Públicas Culturais (UFG, 2012) – reflete toda a amplidão da sabedoria de Gilberto Gil: ao invés de fechar-se em paradigmas ocidentais e eurocêntricos, ele abriu-se para sabedorias ancestrais vindas do Oriente, concebendo uma renovação da cultura brasileira  a partir deste do-in antropológico, uma espécie de acupuntura cultural, em que cada um dos pontos-de-cultura no território nacional constituiriam uma teia solidária numa mega-organismo criativo, a ter suas atividades de colaboração produtiva na construção conjunta de uma realidade alternativa estimulada pelo MinC.

Ou seja, Gil quis, na prática, auxiliar a insurgência de nossa nação contra os epistemicídios, como diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O recurso à metáfora da massagem oriental do-in já explicita que Gil quer ir além do discurso hegemônico eurocêntrico, etnocêntrico ou norte-americanizado, em busca da valorização de epistemes e práticas que foram injustamente colocadas à margem – sobretudo as africanas e as orientais. Oriente-se, rapaz! E acorde para todos os Eldorados negros!


Em seu belíssimo livro A Poética e a Política do Corpo em Gilberto Gil (Perspectiva, 2012), a estudiosa Cássia Lopes sintetizou o marco histórico que representou a ascensão de Gil ao ministério:

“Em seu discurso de posse como Ministro da Cultura, Gil propõe um entendimento da noção de cultura que abala as hierarquias consolidadas pela eleição do saber erudito e acadêmico. Abre-se o campo político para ouvir o traçado de uma epistemologia crítica no modo de assimilar o processo cultural: exige-se o diálogo com outras formas de conhecimento, que venham pôr em colapso a perspectiva monolítica do conceito de cultura, ainda colonialista, mantido na valorização da prática letrada. A assunção de Gilberto Gil como ministro permite refletir sobre o exercício epistemológico dominante que silenciou tantas vozes e muitos ritmos, para desqualificar, ou mesmo negar, diferentes formas artísticas e culturais no Brasil e em várias partes do mapa mundial. (…) É indispensável interpretar a ascensão política do cantor popular com lentes atentas a mecanismos que venham validar a multiplicidade de diferentes saberes que compõem o tecido social brasileiro. Em seu discurso, podem-se entrever a exaustão do modelo epistemológico norte-eurocêntrico, cuja prática ratificou representações, sustentou a tradição crítica etnocêntrica, consolidou a ausência de países, de comunidades, de tantos saberes e de rostos nas tomadas de decisões políticas, sem o necessário compartilhamento do poder.” (LOPES, C; 2012, pg. 207 – 208)

Cássia Lopes aponta ainda que Gil busca colaborar para a emergência de uma “consciência bailarina”, em contraste com a consciência petrificada em conceitos rígidos e ortodoxias limitadoras do movimento. Esta consciência que dança, “tal como exercitada pelo ministro e artista, capta o mundo a partir da percepção de suas ondulações, da transformação que pode emergir nos encontros e nas fronteiras interculturais, sem fazer da corporeidade uma serva da razão. De acordo com os versos do cantor, se há um deus eterno, ele se traduz na dinâmica da “Mu-dança”, que reintegra a interioridade e a exterioridade nos movimentos entre o sujeito e o seu campo de atuação na sociedade. O corpo dançarino desenha o social e o político como um campo dinâmico e mutável, capaz de produzir outras partituras de sociabilidade.” (CÁSSIA LOPES, p. 188)

A Casa de Vidro, ao aventurar-se aos trabalhos como ponto de cultura no ano de 2019, apostou na necessidade crucial de manter viva e acesa a chama do do-in antropológico e da teia da Cultura Viva. Nós, agentes culturais que estudamos a fundo as políticas culturais propulsionadas pelo Governo Lula, sabemos que há ali um precioso legado a ser defendido e reativado, posto de novo em ação, em reXistência ativa diante da barbárie estupidificante do bolsonarismo.

O (des)governo Bozofascista, assim que ascendeu ao poder em 2019, decretou a extinção do Ministério da Cultura e tratou com imenso desdém todos os avanços ocasionados pelas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC. A seita Bolsonarista perpetrou, além da obscena destruição do MinC, e da submissão da secretaria de cultura ao Ministério da Família chefiado pela pastora obscurantista Damares Alves, teve ainda alguns episódios lamentáveis como o cosplay de Goebbels de Alvim e a apologia dos anos-de-chumbo da Ditadura no “sejam leves” de Regina Duarte (cantarolando a canção “Pra Frente Brasil”, destinada a alienar nosso povo enquanto a tortura e os assassinatos políticos seguidos de desaparecimento de cadáveres eram práticas correntes do Terrorismo de Estado inaugurado pelo Golpe de 1964 e aprofundado pelo AI-5 de Dezembro de 1968).

Aproveitamos a ocasião para mais uma vez recomendar ao conhecimento de todos o livro digital e ilustrado “Encontros no Encontro: Participação Social da Rede Nacional de Pontos de Cultura”, co-escrito por mim (Eduardo Carli de Moraes) e meu colega Rafael Moreira do Carmo, ambos professores do IFG (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), sob a coordenação do Vinicíus Ferreira (PROEX – Pró-Reitoria de Extensão e Cultura), com colaboração de Maíra Soares Ferreira.

A publicação disponível gratuitamente – um livro gráfico colorido, repleta de lindas fotos e diagramada com primor – busca revelar em minúcias o que ocorreu em 2015, durante o XV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, uma realização da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Naquela ocasião, ocorreu ali a reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, com representantes de todo o Brasil reunidos para pensar as potencialidades e os obstáculos no contexto do programa Cultura Viva.

O conceito chave e fio condutor do livro é a participação social, de modo que buscamos dar voz a muitos dos ponteiros, artistas, produtores culturais, jornalistas, ativistas, agentes comunitários, dentre outros, que participaram desta Polifonia Participativa dentro do “Encontrão”. No manifesto gerado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, nesta ocasião – a Carta de São Jorge – os trabalhadores da cultura escreveram:

“A Política Nacional Cultura Viva (Lei n. 13.018/2014) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Essa política é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos os governos federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a exercer protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização.” – Carta de São Jorge


OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

“E DAÍ?” – A Necropolítica do Neofascismo Bolsonarista escancara seu desprezo pelas vidas humanas

“Infeliz a época em que os cegos se deixam guiar pelos idiotas”.
William Shakespeare, “Rei Lear”

“E daí?”, disse Seu Jair no dia em que o Brasil ultrapassou a China em número de óbitos por Covid19 – ao fim de Abril de 2020, já eram mais de 5.000 brasileiros mortos de acordo com os dados oficiais (altamente suspeitos de subnotificação). Disse também que “é Messias mas não pode fazer milagre”. O que isso nos diz sobre a estatura moral e a estrutura psíquica do sujeito que profere tais frases em tal contexto?

Primeiro, choca a indiferença pelas milhares de pessoas que estão de luto, chorando pelos familiares e amigos perdidos, e que o presifake não sabe nem mesmo consolar com um gesto de gentileza e de compaixão protocolares: não tem “meus pêsames, lamento muito por sua perda”, não tem “que o tempo possa ajudar a curar a terrível ferida de perder um ente amado”, não! Seu Jair cospe na cara dos enlutados e das lágrimas convulsivas que agora derrubam com este “e daí?”, expressão que usamos para o que é ínfimo e insignificante.

Ademais, o que poderia ser uma admissão de impotência e vulnerabilidade, “não posso fazer milagre”, contrasta com a extrema arrogância de quem tem agido como se pudesse tudo e como se nada pudesse para-lo: os gregos chamavam isso de hybris, a desmedida, e sabiam que os exageros e overdoses comportamentais sempre recebiam da Nêmesis cósmica sua trágica vingança. O Coiso não pode fazer milagre, é fato, mas arriga-se o direito de sabotar todas as medidas de isolamento social, desrespeitar diretrizes da OMS e ir apertar as mãos de seus apoiadores que urram por um novo AI-5.

Já sabemos que não é milagreiro, mas arroga-se o direito de voltar dos EUA numa comitiva com mais de 20 pessoas infectadas pelo coronavírus e decreta sigilo e esconder o resultado de seu próprio exame, enquanto continua tossindo como um condenado nas aglomerações que causa.

Nenhum milagre ele já realizou em toda sua medíocre vidinha, mas arrogou-se o direito de demitir o Ministro da Saúde em meio à pandemia pois preferia alguém que fosse mais seu capacho, manifestando seu ímpeto de estar rodeado por pessoas que sejam mais subservientes a seus ímpetos de ditador e autocrata.

Jairzinho que não é milagreiro arroga-se o direito de promover deliberadamente uma política de subnotificações de casos e óbitos da doença, ocultando a verdade sobre o número de cadáveres que a pandemia está causando no país. E também acha que pode enfiar a fórceps na PF um amiguinho da família que vá garantir impunidade aos Bolsonaros pelos crimes cometidos, seja as fake news, as fraudes eleitorais, a participação na execução de Marielle Franco, o racismo, a destruição ambiental, o destroçamento dos direitos trabalhistas etc.

Ninguém legitimamente tem o direito, já que o Estado é laico e Deus nem existe, de exigir que um governante faça milhages, mas ninguém entre os cidadãos deve suportar calado quando este governante manifesta uma abominável indiferença pelo sofrimento humano e se mostra como um psicopata empedernido que, diante de vidas perdidas e valas abertas, diz “e daí?”

Não conte com nossa amnésia, Seu Jair. Não conte com nossa covardia ou nossa cegueira voluntária. Aqui não! Todos os horrores e atrocidades que você produz, todas as frases cruéis que profere, estão sendo registradas e irão contigo para os únicos lugares onde mereces estar: na lata de lixo da História, afastado de todo e qualquer cargo público, no banco dos réus em Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Porque, seu Jair, ninguém te pede milagres, só que sejas humano, e nisso você tem fracassado miseravelmente, sendo um jato contínuo de desumanidades atrozes.e arrogâncias prepotentes. A gente olha para a vida de Jair e sente vergonha de um ser humano ser capaz de descer tão baixo a ponto de queimar as pontes de empatia que o poderiam conectar aos outros humanos, tornando-se esta caricatura de Calígula, este “projetinho de Hitler tropical” (Mário Magalhães), este frio e desumano sociopata. Ele pode ser rico e poderoso, mas eu nunca gostaria de estar na pele de Jair: como deve ser horrível viver dentro de um sujeito tão cruel, tão arroz, tão sectário e tão ignorante!

Ele vê a cataclismica tragédia que sua inépcia e irresponsabilidade ajudaram a causar e só sabe dar de ombros, incapaz de assumir responsabilidade, inepto para refletir mais a fundo sobre a condição humana, gélido como um monstro, observando corpos sem vida e vidas afogadas em lágrimas, e com sua boca-de-esgoto proferindo: “e daí? E daí? E daí?”

E daí que jamais aceitaremos que você nos representa e sempre nos recusaremos a esquecer os horrores que você perpetra. Não conte com nosso silêncio nem com nossa subserviência. Aqui não! Aqui não somos da turma dos que enxergam o sofrimento coletivo pelo prisma elitista e mesquinho dos “e daí?” palacianos.

Você pergunta “e daí?” com sua costumeira idiotia. E daí que você não presta nem dura. E haverá festa popular imensa quando você (e isso não tarda) não estiver mais aqui, tiranizando e desgraçando um povo sempre sedento de uma liberdade e de uma justiça e de uma verdade que você e os seus teimam em negar-nos.

Carli, A Casa de Vidro.
Goiânia, 29/04/2020


LANTERNINHA DA TESTAGEM: OUTRA VERGONHA NACIONAL

A inépcia e a irresponsabilidade do desgoverno fascista de Bolsonaro não se mostram apenas na minimização da gravidade da pandemia (segundo o führer dos imbecis, só um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta”), na subnotificação de casos e óbitos (semelhante à tática do avestruz que esconde a cabeça debaixo da terra, aderindo à crença de que o que não se vê e não se reconhece não existe), mas também no fracasso deliberado em testar a população: dos 15 países mais afetados pela covid-19, estamos disparados na vergonhosa posição de lanterninha da testagem.

E assim avançamos na semi-cegueira, sem termos a real dimensão do contágio, indo no rumo da catástrofe e da barbárie. No comando do “leme” desta nau dos insensatos está um facínora mortífero que está mais preocupado em garantir a impunidade para os crimes de corrupção e violência de sua familícia do que em cuidar da saúde coletiva. Tragédia anunciada – e esta porra de nossa indignação moral internética está se mostrando ineficaz para extrair do poder o cancro Bolsonarista.

Eis um dos maiores dilemas da nossa geração e da atual encruzilhada histórica: como se derruba um governo de extrema-direita, de práticas genocidas, que atenta contra as vidas de seu povo, quando não há condições sanitárias para manifestações de massa, ocupações de praças e prédios públicos, assembléias de rua? Vocês realmente acham que algum tirano, feito nosso “projetinho de Hitler tropical”, já caiu por força de cidadãos que estavam confinados dentro de suas casas? Vamos derrubar Bolsonaro pelo Twitter? Ou a maré insurrecional – aquilo a que estamos impedidos pela pandemia e seus perigos – ainda é a única força concreta capaz de derrubar um governo por ação do povo ao qual ele deveria servir?


ESCONDENDO OS CORPOS

O facínora fascista que ascendeu ao poder presidencial através da fraude eleitoral de 2018 “se acha capaz de esconder os corpos”, como disse Safatle em entrevista à Pública. Como esperar algo diferente deste Coiso, de caráter profundamente perverso e sádico, que é fã de carteirinha de Ustras e Médicis? Este sujeito não tem estatura ética nem para ser síndico de condomínio (aliás, no Vivendas da Barra tinham guarida junto à familícia os executores do homicídio contra Marielle Franco). Alçado à posição suprema do Executivo Federal no Brasil pós-democrático que emergiu do Golpe de 2016, o Capetão não é explicitamente um adorador da ditadura militar, aquela que ocultou tantos cadáveres de opositores políticos massacrados pela repressão? Não trata como seus “ídolos” ditadores latino-americanos, alguns já condenados por crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais, como Pinochet e Stroessner?

Vocês se lembram do que o deputado de extrema-direita, na época apenas uma aberração extremista no Congresso, membro do “baixo clero” de parlamentares aderidos os velhos tempos dos “anos-de-chumbo”, falou sobre os familiares que buscavam os restos mortais de seus parentes assassinados pela Ditadura quando esta massacrou a Guerrilha do Araguaia? “Quem procura osso é cachorro”.

Isto é Bolsonaro – e quem quer que tenha feito parte das hordas odientas, irracionalizadas por um antipetismo feroz, que apertou 17 nas urnas, tinham plenas condições de saber o que estavam fazendo. A irresponsabilidade de milhões nas urnas, somada à covardia das instituições, a exemplo do TSE que passou pano pra chapa fascista-militarista ao invés de punir por cassação seus inúmeros crimes eleitorais, trouxeram-nos a esta crise humanitária gravíssima.

Estou convicto de que a tragédia coletiva em que estamos imersos expressa, em um concentrado macabro, todo o horror em que o Brasil se atirou de cabeça quando permitiu o triunfo da Aliança Golpista que depôs Dilma Rousseff em 2016 – instalando, na sequência, a hecatombe nos investimentos públicos em Saúde e Educação representada por aquela “PEC do Fim do Mundo” ou “PEC da Morte” que aprovou-se no fim daquele ano. Muito “cidadão-de-bem” aplaudiu quando a Tropa de Choque da PM nos massacrou debaixo da repressão, em Novembro e Dezembro de 2016, em Brasília, quando protestávamos contra os descalabros impostos pelo desgoverno Temer e o Congresso golpista. Estávamos lá defendendo o SUS, a Educação Pública, os serviços públicos essenciais ao bem comum, e não éramos poucos – como testemunham os documentários “A Babilônia Vai Cair” e “Ponte Para o Abismo”, que realizei na época. Mas o cidadão-de-bem ficou com a bunda no sofá, diante da Globo, feliz pela polícia estar descendo o cacete em “vândalos” e vagabundos. Agora aguenta a pandemia de Covid-19 depois de mais de R$20 bilhões terem sido excluídos do SUS e o Mais Médicos ter sido desmontado!

Precisamos urgentemente de cidadãos com senso histórico e capacidade crítica que não sigam cegamente pseudo-mitos do necro-capitalismo. Caso contrário, esta tragédia se repetirá com as pandemias e catástrofes climáticas de que nosso futuro está repleto.


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SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

Artvismo feminista negro e interseccional cintila no álbum de estréia da Bia Ferreira, “Igreja Lesbiteriana” (2019) [Download e Crítica]

A música é uma arma, ensinava Fela Kuti, e Bia Ferreira foi boa aprendiz: ela funde seu ativismo com sua arte, propulsionando um mix explosivo de produção cultural e engajamento político em seu primeiro disco. Na Noize, Brenda Vidal percebeu bem que “na cena musical independente e contemporânea, Bia parece ser a voz e a mente que mais traduz a filosofia Kutiana em seu trabalho”:

Multi-instrumentista, compositora e cantora, ela faz da sua arte o ponto de fusão com seu ativismo. Ou, como ela mesma conceitua: faz artivismo. Das dores e das alegrias, dos medos e das coragens, Bia faz da sua composição escrevivência – conceito da escritora Conceição Evaristo – e faz do seu disco de estreia Igreja Lesbiteriana: Um Chamado (2019) um manifesto de seu propósito de vida: nunca se calar, principalmente frente à opressão.

A fenomenal Bia Ferreira lança seu álbum de estréia após uma trajetória repleta de repercussões significativas no cenário cultural e político através de seus vídeos-virais. Em contraste com a viralização das fake news e da masculinidade tóxica que hoje hegemoniza o rolê dito mainstream, Bia despontou viralizando uma das grandes canções de protesto brasileiras do século 21 (com mais 8 milhões de visualizações do vídeo da So Far):

“Cota Não É Esmola”, uma das forças propulsionadoras do debut da Bia, já merece estar no cânone do que se produziu de melhor cá na música popular de Pindorama nos últimos anos. Híbrido de folk com rap, este hino feminista-negro é um manifesto completo em defesa da inclusão social através de uma educação autenticamente democrática. É também a denúncia, que Bezerra da Silva já fazia com seus sambas subversivos, do “Preconceito de Cor”– assim cantado por Bia:

Experimenta nascer preto na favela pra você ver!
O que rola com preto e pobre não aparece na TV!
Opressão, humilhação, preconceito.
A gente sabe como termina, quando começa desse jeito.

Na melhor tradição da trova narrativa, Bia evoca uma garotinha, talvez seu alter-ego lírico, que chega atrasada na escola não por preguiça ou negligência, mas por estar “desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais”:

Cuida de criança, limpa casa, outras coisas mais
Deu meio dia, toma banho vai pra escola a pé
Não tem dinheiro pro busão
Sua mãe usou mais cedo pra poder comprar o pão
E já que tá cansada quer carona no busão
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: não!
E essa é só a primeira porta que se fecha…

A lírica de Bia, nesta sessão nada nostálgica de relembrança e catarse de traumas passados, está calcada na sensação de portas que se fecham. O apartheid racista é repleto destas portas batendo nos narizes daqueles que insistem em afirmar sua dignidade humana, seu direito ao tratamento como cidadãos e não párias. Diante deste batalhão de portas que se fecham, Bia reabre os portais da igualdade com a força descomunal de seu canto, com o vendaval de seus versos.

Saltando, com sua lábia hábil, do individual para o coletivo, Bia Ferreira solta as mãos da menininha que evocou em sua narrativa e alça sua poesia àquelas alturas habitadas por Bob Marley, Gilberto Gil, Manu Chao: artistas capazes de expressar a “alma” de um povo que protesta contra seu próprio silenciamento e extermínio. Se ela afirma e reafirma que cotas raciais nas universidades não consistem em mimimi dos movimentos negros – “nem venha me dizer que isso é vitimismo! não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo!”, é devido a toda uma ancestralidade sangrenta, toda uma antiquíssima história de injustiça, abuso de poder, espoliação colonial, que projeta as trevas de seu domínio tirânico sobre o nosso presente:

São nações escravizadas
E culturas assassinadas
É a voz que ecoa do tambor
Chega junto, venha cá
Você também pode lutar, ei!
E aprender a respeitar
Porque o povo preto veio para revolucionar…

Tudo eclode com um “não deixe calar a nossa voz não!” que tem tudo pra se tornar um dos lemas propulsores do movimento anti-censura à que já estamos condenados, enquanto agentes culturais “subversivos” e inquietos, no Brazzzil da ditadura BolsoNerus. Aguerrida, combativa, mas essencialmente pacífica, Bia levanta as armas de suas canções com a força de quem nas raízes sabe se nutrir com os cadáveres de heroínas caídas. Não é difícil lembrar de Marielle Franco – e do luto dolorido vivenciado não só por Mônica Benício, mas por milhões de mulheres que engrossaram o caldo do #EleNão, maior movimento cívico a se manifestar em 2018 no Brasil – ao ouvir Bia cantar: “Nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai.”

Bia Ferreira, assim como Talíria Petrone na política, assim como Mel Duarte na poesia, são sintomas deste Florescer da Voz, força que também vem desta semente replicável em que Marielle Franco se transformou. A História dirá se Marielle desempenhará, por aqui, papel semelhante ao ícone (cooptado ou não pelo consumismo capitalista) Che Guevara, transformado após sua morte num símbolo mobilizador de força inaudita.

O “chamado” de Bia, ecoando o de Marielle, consiste em nos convencer a “levantar a bandeira do amor” – contra todas as igrejas e seitas que enxergam pecado e lançam os anátemas (ou coisa pior) contra os amores considerados ilícitos. A exemplo do amor lésbico que Bia canta, celebratória, esfregando na cara dos homofóbicos a beleza sedutora, quase irresistível, de sua música de mulher livre, voadora, que “não mede amor em conta-gotas” (para lembrar uma linda canção do Adriel Vinícius, “Longe Daqui”).

Quem foi que definiu o certo e o errado?
O careta e o descolado?
A beleza e o horror?
Quem foi que definiu o preto e o branco?
O que é mal e o que é santo?
O ódio e o amor?
Cada um é dono da sua história
Quantos gigas de memória
Você separa pra sua dor, hein?

É assim esta Igreja Lesbiteriana – Um Chamado: um templo erguido para os questionamentos ácidos, para as questões bem colocadas, para a arte de pôr os pontos de interrogação bem no fundo (como recomendava Wittgenstein). Mas, para além do tom interrogativo, cáustico e crítico, Bia Ferreira também é muito exclamativa. Uma mulher-exclamação, cintilando chamados à luta em prol do amor celebrado em todas as suas formas e manifestações, para além das cercas binárias dos caretas e dos autoritarismos abusivos impostos pela masculinidade tóxica e pela heterossexualidade compulsória:

Então ame, e que ninguém se meta no meio!
O belo definiu o feio pra se beneficiar!
Ame e que ninguém se meta no meio!
Por que amar não é feio neguinho, o feio é não amar!
Levante a bandeira do amor, neguinhô-oh-oh!

Exclamativa ao extremo, “Diga Não” – que não entrou no disco, mas foi sucesso no vídeos que pavimentaram o caminho de Bia – nos convoca para todas as potências dos nãos: não ao “racismo, ao preconceito, ao genocídio do povo negro”:

Diga não à polícia racista
Diga não à essa militarização fascista
Diga não
Não fique só assistindo
Muita gente chora irmão enquanto você tá rindo
Diga não! Diga não!

O álbum de Bia, evitando o caminho da explicitação política logo de cara, inicia-se com a cantora a capella fazendo uma espécie de evocação dos orixás, convocando ancestralidades que a guiem: “Brilha Minha Guia”, música que abre o disco, tem sintonia e sinergia com o álbum póstumo de Serena Assumpção, Ascensão.

Convocados os orixás, Bia embarca no reggae pesadão de “Não Precisa Ser Amélia”. Eis uma obra-prima da canção de protesto em que a trovadora decide tomar as dores de suas irmãs, num espírito de sororidade, ofertando sua canção a várias mulheres sofridas que em nossa sociedade estão oprimidas por variadas explorações, espoliações e abusos:

Canto pela tia que é silenciada
Dizem que só a pia é seu lugar
Pela mina que é de quebrada
Que é violentada e não pode estudar
Canto pela preta objetificada
Gostosa, sarada, que tem que sambar
Dona de casa que limpa, lava e passa
Mas fora do lar não pode trabalhar.

Uma multidão de mulheres é evocada na canção que termina filosofando, com Simone de Beauvoir, sobre a diversidade intrínseca ao feminino e o processo de trânsito que faz com que alguém não nasça mas se torne mulher: “Seja preta, indígena, trans, nordestina / Não se nasce feminina, torna-se mulher.”

Nesta peça, Bia está em diálogo com o clássico samba “Ai, Que Saudade da Amélia!”, de Ataufo Alves e Mário Lago. “Lançada pela primeira vez em 1942 e considerada uma obra-prima pelo historiador da música brasileira Jairo Severiano“.

Esta música (ouça na voz de Ataufo)  foi inspirada na figura da empregada de Aracy de Almeida e consagrou na sociedade um conceito de “amélia” como sendo a mulher submissa e companheira do homem em todas as dificuldades, a tal ponto que foi integrada ao vocabulário no Dicionário Aurélio com o seguinte conceito: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”. (Wiki)

“Her first place”, de G. D. Leslie

Em “De Dentro do Ap”, o clima de sororidade e de sisterhood que despontara em “Não Precisa Ser Amélia” é preterido em prol de algo muito mais treta. Bia Ferreira, fazendo-se porta-voz do feminismo negro, lança os dardos de seus argumentos contra o feminismo branco, liberal, privilegiado. Seu discurso torna-se cáustico, corrosivo, de alta provocatividade, atacando a hipocrisia das mulheres privilegiadas envolvidas em certas vertentes do movimento feminista:

De dentro do apê,
Com ar condicionado, Macbook, você vai dizer:
Que é de esquerda, feminista, defende as muié.
Posta lá que é vadia, que pode chamar de puta.
Sua fala não condiz com a sua conduta!

Vai pro rolê com o carro que ganhou do pai
Pra você vê, não sabe o que é trabai
E quer ir lá dizer
Que entende sobre a luta de classe
Eu só sugiro que cê se abaixe
Porque meu tiro certo, vai chegar direto
Na sua hipocrisia…

É Bia exercitando através da arte uma espécie de Pedagogia pro Opressor, ou A Oprimida Empoderada Ensina: evocando várias experiências vividas das mulheres negras, ela quer educar a “branquitude” arrogante dos que nunca viveram nenhum dos seguintes cenários:

Quantas vezes você correu atrás de um busão
Pra não perder a entrevista?
Chegou lá e ouviu um “não”?
– Não insista,
A vaga já foi preenchida, viu?
Você não se encaixa no nosso perfil!

Quantas vezes você você saiu do seu apartamento
E chegou no térreo com um prato de alimento
Pra tia que tava trampando no sinal?
Pra sustentar os quatro filhos
que já tá passando mal de fome?
Quantas vezes cê parou pra perguntar o nome
E pra falar sobre seu ativismo?
Quando foi que cê pisou na minha quebrada,
pra falar sobre o seu Fe-mi-nis-mo?

Sempre deixando pra amanhã
Deixando pra amanhã
A miliano que cês tão queimando sutiã…

O clima vai esquentando até que Bia dispara a sua farpa mais afiada: “sua vó não hesitou quando mandou a minha lá pro tronco”. A acusação, à mulher branca privilegiada de hoje, estende-se às gerações passadas: a “vó” da patricinha, feminista de Macbook, esteve ao lado dos escravocratas, enquanto a vó da mina-de-quebrada penou nos troncos sob os açoites dos capatazes após o brutal desenraizamento que os sequestrou do seu lar africano.

Eis, portanto, uma compositora que, apesar de sua juventude, tem realizado uma arte com consciência histórica, buscando conexão com a ancestralidade, exercendo uma crítica social inter-geracional e interseccional, o que também se manifesta em “Mandela” (“Mandela, Mandela: mudou o mundo numa cela / Lutou pela liberdade, terminou sem ela”). Canção que não entrou no álbum, mas é um exemplo icônico da capacidade de Bia em escrever canções políticas, manifestos cantados, que se alçam contra o “maldito apartheid” em composições de densa tessitura histórica.

Na Europa, cuja sanha imperialista ela tanto denuncia, Bia Ferreira ensaiou uma recente Invasão Portuguesa. Em seus shows nas terras de Camões, chamou a atenção do Jornal Público: “Ela vem espalhar a palavra: não é soul, r&b, rap nem reggae. É tudo isso, é MMP – Música de Mulher Preta.” O caderno de cultura Ípsilon, apelidando-a de “missionária da revolução”, forneceu talvez uma das melhores definições desta artivista “para quem cantar é educar”.

Em 2018, Bia Ferreira viu a sua canção Cota Não É Esmola tornar-se viral nas redes sociais. Nela, a cantora, compositora e activista brasileira de 25 anos fala em defesa do sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva, que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros, pardos e indígenas de classes mais baixas. Por causa dela, Caetano Veloso diz ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira”. E de certa forma, é isso que ela quer: chegar ao máximo de pessoas possível para “passar informação e educação”.

Cota Não É Esmola” é uma explicação didáctica para pessoas brancas que são contra as quotas e é também uma música em que as pessoas pretas, pobres e indígenas podem ver a sua história contada ali e contá-la a outras pessoas. É isso que faz a informação circular”, diz Bia Ferreira em conversa com o PÚBLICO, um dia depois de o Ministro da Educação do novo governo de Jair Bolsonaro ter declarado que a “ideia de universidade para todos não existe” e que ela “deve ser ocupada por elites intelectuais”, lembra a compositora. “Corre-se o risco de retroceder mais do que conseguimos evoluir, daí a necessidade de falar sobre isso sempre que tivermos oportunidade”, assinala…

Lado a lado com sua companheira Doralyce,unida com outras artistas também fortalecendo-se na atualidade como Silvia Duffrayer ou Nina Oliveira, Bia Ferreira consolida-se como uma das mais potentes expressões da Música Popular Brasileira na atualidade, sempre contestando os estereótipos – como fizeram em “Miss Beleza Universal”.

Cintilam no álbum de Bia canções libertárias, cantadas com alta expressividade, propulsionadas por um lirismo aguerrido, cheias de groove e charme, epidêmicos convites a entrar dançando na luta até que o Patriarcado caia. Depois, a festa começa de fato, tendo a História cessado o pesadelo da opressão para se tornar, oxalá, nossa colaborativa construção coletiva.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Outubro de 2019
Ponto de Cultura A Casa de Vidro


SIGA VIAGEM: ENTREVISTA DA BIA PRA NOIZE

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“MULHERES” – SAMBA DE SILVIA DUFFRAYER E DORALYCE

 

“Nós somos Mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei
De Elza Soares, mulher fora da lei
Lembro Marielle, valente, guerreira
De Chica da Silva, toda mulher brasileira
Crescendo oprimida pelo patriarcado
Meu corpo, minhas regras
Agora mudou o quadro

Mulheres cabeça e muito equilibradas
Ninguém tá confusa, não te perguntei nada
São elas por elas
Escuta esse samba que eu vou te cantar:

Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade
Não sou sua projeção, você é que se baste
Meu bem, amor assim quero longe de mim
Sou mulher, sou dona do meu corpo
E da minha vontade
Fui eu que descobri Poder e Liberdade
Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim…”

Doralyce Gonzaga e Silvia Duffrayer
Rio de Janeiro, 2018

Versão paródica do samba do Martinho da Vila
Reblogado de Samba Que Elas Querem
https://www.youtube.com/watch?v=B5YJqc-rK-A

Elza Soares retorna com suas flamejantes canções de libertação em “Planeta Fome” (2019) – Ouça o álbum íntegra e leia a matéria @ A Casa de Vidro

Deixem Elza cantar até o fim. Nada será para este país mais salutar. Depois de A Mulher do Fim do Mundo (2015) e de Deus é Mulher (2018)a diva afrobrasileira chega com estrondo, sambando na cara da opressão, fula da vida com o blá blá blá do macho tóxico e racista, apresentando ao mundo sua mais nova coleção de canções de libertação.

“Não vamos sucumbir”, garante Elza na aurora de “Libertação”, acompanhada pelo BaianaSystem. Com esta aliança com os autores do sensacional O Futuro Não Demora, Elza também mostra-se interessada em “seguir cantarolando e bolando altos planos pra poder contra-atacar”.


Enquanto nos cinemas Bacurau estremece o chão do conformismo com seu neo-cangaço cineguerrilheiro, desembarca entre nós um disco que vem todo efervescente de insurgência cultural e política, evocando ícones e proliferando links – Marielle Franco, Rosa Parks, Wakanda… – para mandar um forte recado. Toda a resiliência, toda a ancestralidade guerreira, todo o ímpeto dionisíaco-carnavalesco do povo afrobrasileiro pulsa nesta obra-prima recém-parida por uma gênia do Planeta Fome.

É negro, é branco, é nissei
É verde, é índio peladão
É mameluco, é cafuzo
É confusão Oh, Pindorama eu quero o seu porto seguro
Suas palmeiras, suas feiras, seu café
Suas riquezas, praias, cachoeiras

Há muitos Brasis – e Elza quer mesmo é o “Brasil de cabeça em pé” e ciente de sua própria confusão. Dessa mixórdia de etnias e tradições dos Brasis todos nasceu toda a nossa desgraça e maravilha – eis o que Elza parece querer expressar através de um álbum destinado a ecoar pelo mundo e quebrar muitos paradigmas do que os gringos consideram como world music. E lá vem os rótulos espertinhos para catalogá-la como “dirty samba” ou algo que o valha.

Mas restam poucas dúvidas de que na história de nossa arte, Elza Soares expressa como poucos a tragicomédia épica desta pátria fraturada. Ela exige, com seu cantos e batuques, um “País do Sonho” na mais utópica das músicas do disco:

Eu preciso encontrar um país
Onde a saúde não esteja doente
E eficiente, uma educação
Que possa formar cidadãos realmente

Eu preciso encontrar um país
Onde a corrupção não seja um hobby
Que não tenha injustiça, porém a justiça
Não ouse condenar só negros e pobres

Eu preciso encontrar um país
Onde ninguém enriqueça em nome da fé
E o prazer verdadeiro do crack
Seja fazer gols como Garrincha, obrigada Mané!

Eu preciso encontrar um país
Onde tenha respeito com austero pudor
E qualquer pessoa em pleno direito
Diga: “Adeus preconceito de raça e de cor”

Eu preciso encontrar um país
Onde ser solidário seja um ato gentil
Eu prometo que vou encontrar
E esse país vai chamar-se Brasil.

No título de “Planeta Fome” (2019), Elza relembra o episódio lendário de seu passado: com cerca de 13 anos de idade foi participar do programa de rádio do Ary Barroso, que perguntou à jovem aspirante a cantora de onde ela tinha vindo e ela cravou: “Vim do Planeta Fome”.

De fato: a carioca, nascida em 1937, hoje com 82 anos, emergiu do Planeta Fome de sua infância e ascendeu até o destino de alguém que já marcou para sempre a história da Música Popular de seu país. E Elza sempre teve um talento espontâneo pela subversão, por uma cultura comprometida com a libertação, com a superação da opressão. Tudo isso jorra na nova obra da cantora, que traz em sua capa uma cromática odisséia criada pela pena da pessoa pós-binária Laerte (que declarou, sobre o processo criativo:  “Primeiro dei uma ouvida nas canções e achei que era o caso de evocar as turbulências da nossa realidade combinadas com os movimentos siderais. Minha intenção era produzir uma sensação de caos”).

Este álbum já nasce clássico. O primeiro clássico novíssimo em folha dos nossos Brasis em meio a este hospício em chamas que é o desgoverno BolsoNero. Elza recupera duas canções de Gonzaguinha, um dos artistas mais censurados pela Ditadura Militar, para reativar na Nova Ditadura a mordaz dissidência dos que se insurgiram na arte contra a Velha Ditadura. Em “Comportamento Geral” e “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória”, Gonzaguinha revive na voz de Elza em arranjo classudo e complexo.

Ainda que transpire tanta revolta ardente e indignação justa, a constelação afetiva do novo disco é sobretudo afirmação da vida, sim à resistência que a vivacidade ergue contra as hordas da necrofilia. Mauro Ferreira propôs, em seu artigo para o G1, que:

“A cantora concilia indignação e esperança ao discorrer sobre questões sociais do Brasil no disco produzido por Rafael Ramos. (…) No país dos banguelas, a cantora carioca tem fome de igualdade e justiça social, assuntos recorrentes no repertório do 34º álbum dessa artista cuja dureza na queda é reafirmada nos versos quase clichês da letra da ‘Virei o jogo’ (2019).

Música inédita escrita por Pedro Luís para Elza, Virei o jogo é ouvida em gravação cujos vocais remetem à arquitetura sonora do álbum anterior da cantora, ‘Deus é Mulher’ (2018), cuja composição-título também é da lavra de Pedro. “Se vem de não / Eu vou de sim / Afirmação até o fim”, brada Elza na penúltima faixa do disco ‘Planeta Fome’. [https://glo.bo/2lOIh3i]

Elza é a verdadeira voz que o Brasil, em sua pluralidade de povos, deveria propagar para os outros povos do planeta. A boca-ânus que não cessa de vomitar atrocidades dos Bolsonaristas brazileiros, a começar pelo pseudo-Mito, só nos envergonha diante do mundo e só macula nossa História. A cultura não se cala diante deste crudelíssimo neofascismo, desde bárbaro capitalismo neoliberalizado até as raias da insânia. Elza, ao contrário, é uma vida extraordinária que hoje lembra às novas gerações sobre lutas pretéritas que voltaram a se tornar nossas urgências presentes.

Genialmente, trazendo versos fortíssimos de Gonzaguinha de volta da tumba, des-censurando quem outrora foi ditatorialmente censurado, Elza realimenta todo o potencial subversivo dos Brasis que se recusam a sucumbir ao pesadelo neofascista que por enquanto nos desgoverna. E com poesias cantadas de intensa beleza como as que seguem, ela nos conclama, de novo, “vamos à luta!”:

“Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Uma crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução
São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os heróis
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue
Ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha
Quem espera, nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
Ê ê, não quero esquecer
Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria

E vamos à luta.”


Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.
Setembro de 2019. Faça o download do álbum completo.

Leia também: Pan African MusicTireless advocate of the women’s rights, and loud activist for the Afro-Brazilian culture, legend Elza Soares released her 34th studio album with Planeta Fome via Desk Records. The new album features notable artists from Soares’ native country, such as veteran rapper BNegão and rising artist Rafael Mike. On the single “Libertação” the diva invites Brazilian vocalist Virgínia Rodrigues and afro-futuristic band BaianaSystem.

Lágrimas pela democracia que despenca no abismo: Petra Costa e a crônica sensível e reflexiva do Golpe de Estado no Brasil

“Eu sou o próprio Josef K“, ironiza Dilma Rousseff, comparando-se ao personagem de Franz Kafka em O Processo. “Mas com a diferença de que pelo menos tenho um bom advogado”, complementa a ex-presidenta, em elogio a José Eduardo Cardozo. São cenas poderosas como esta que tecem os fios de Ariadne deste impactante documentário Democracia em Vertigemde Petra Costa (disponível no Netflix), essencial para que possamos decifrar a atualidade e traçar altos planos pra contra-atacar o atual predomínio do MinoTaurus.

O filme pode ser considerado como a terceira crônica cinematográfica que se debruça sobre o Golpe de Estado parlamentar-jurídico-midiático que culminou com destituição de Dilma Rousseff em 2016 e preparou o terreno para a fraude jurídica montada para o encarceramento de Lula em 2018. Antes dele, já haviam sido lançados (e já foram resenhados aqui n’A Casa de Vidro) as produções O Processo de Maria Augusta Ramos (de uma imersão exaustiva nas entranhas da Besta-Fera que é nosso Congresso e seus sinistros kafkianismos) e O Muro de Lula Buarque de Holanda (interessado sobretudo numa reflexão sobre a segregação ou apartheid que se explicita na polarização política que nos últimos anos vimos exacerbar-se). Os três filmes são importantíssimos para que possamos decifrar melhor as verdades, muitas delas tristes e intragáveis, sobre esta nação com fratura exposta.

Após realizar dois filmes repletos de poesia visual e delicadeza investigativa (Elena e O Olmo e a Gaivota), a talentosa jovem cineasta Petra quis se debruçar sobre nosso infortúnio coletivo, sobre a distopia real desta terra brasilis “com um longo passado pela frente”, pra relembrar a boutade do Millôr Fernandes. O modo como ela termina seu filme,  deixando no ar as questões relevantes e sem resposta, é um bom indicativo do tom da obra, também impregnada pelo violão afrosambante de Baden Powell e Vinícius de Moraes:

Cineasta Petra Costa

“Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos?”

A máscara da civilidade caiu totalmente com a eleição de Bolsonaro e sua necropolítica que parece ter um mandamento único: “matai-vos uns aos outros!”. O mito do “homem cordial”, mais do que nunca, revelou-se uma farsa edulcorada, um conto-de-fadas enganador. O Brasil é território de ultraviolência e ultrainjustiça, situação piorada agora que estamos sob o (des)governo de um ultradireitista obcecado com armas de fogo e seriamente adoecido por uma psicose falocêntrica altamente perversa. Como lidar com essa vertigem de ver as ratazanas dos porões da Ditadura re-vomitados no nosso presente e ocupando posições de altíssima responsabilidade?

O tema da vertigem, para além das evocações que pode ocasionar com clássicos do cinema que já o exploraram (notavelmente Vertigo – Um Corpo Que Caia obra-prima de Alfred Hitchcock), é também a maneira que Petra encontra para fugir dos dogmatismos e adentrar o campo em que é mestra: o do “filme-ensaio” repleto de insights subjetivos, percepções que iluminam com uma luz toda pessoal o âmbito da coletividade que compartilhamos. Petra mostra-se assim uma poetisa da imagem e um espírito livre e nada dogmático, sem temor de expor suas teses.

Teses, por exemplo, sobre Brasília, a “Cidade do Futuro”, o sonho de Juscelino, a fantasia da Modernidade, com toda a majestade arquitetônica de Niemeyer, que de utopia converteu-se em distopia: não poderia ter sido de outro modo, já que construíram a capital no Planalto Central, num vaziozão no meio de Goiás, bem longe do fuzuê e do escarcéu das massas populares que acossavam de muito perto o poder em Salvador ou no Rio de Janeiro, nossas duas primeiras capitais. No filme de Petra, a própria localização geográfica de Brasília, este colosso artificial erguido no “nada” goiano, impede a democracia plena e direta pois o poder se distancia dos representados.

Por estar “isolada” da população brasileira, dificilmente alcançável pela maioria dos habitantes da pátria, Brasília constitui-se como metrópole dos privilegiados, QG da Elite do Atraso. Assim caímos mais profundamente no pântano de uma corrupção endêmica e sistêmica em que a casta de políticos eleitos, encastelados na Brasília feita para os carros e não para as gentes, tece tenebrosas transações com os capitalistas, os banqueiros, os empresários. A Ditadura Militar, por exemplo, foi época de intensa corrupção, revelada por ex. pelo livro Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, de Pedro Henrique Pedreira Campos:

“A análise crítica identifica na ditadura civil-militar brasileira do período 1964-1988 a origem da inserção, contaminação e subordinação do tecido orgânico do Estado aos interesses do segmento dos empreiteiros. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Economia, Administração, Negócios, Turismo, Hotelaria e Lazer”. Em foco, o crescimento e consolidação das principais empresas do setor de construção pesada no Brasil, numa articulação que, segundo o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a modernização capitalista e a internacionalização das “gigantes do setor”. Ao demonstrar as injunções políticas, estratégias e práticas que permeiam as relações da iniciativa privada e poder público e sua legitimação por “intelectuais orgânicos”, a publicação constata e fornece elementos de compreensão acerca de “Estado, Poder e Classes Sociais no Brasil”, conforme  o prefácio, assinado pela historiadora Virgínia Fontes.

Tenho quase a mesma idade que Petra: nasci em 1984, vigésimo ano da Ditadura Militar, que estava então em seus estertores. O bebê que fui não pôde estar atento e alerta para as imensas massas que tomavam as ruas naquele ano, demandando em alto e bom som por “Diretas Já!”, só para sofrerem a derrota de ter sua reivindicação recusada pelo Congresso Nacional. Esta sensação de “ter a mesma idade que a Democracia” brasileira anima o projeto de Petra, dá a ele um teor de manifesto geracional que pretende expressar uma percepção compartilhada por muita gente que está hoje na faixa dos 35 anos de idade.

Ao recuperar imagens históricas de Lula quando um jovem sindicalista, de 33 anos de idade, pernambucano aguerrido imigrado para São Paulo, onde lideraria as históricas greves da indústria automobilística no ABC do fim dos anos 1970, Petra Costa acerta na mosca: seu filme ganha com interlocuções e ressonâncias com obras pregressas que marcaram o cinema brasileiro, em especial o magistral ABC da Greve de Leon Hirzsman e várias obras de Renato Tapajós. Além disso, dá à nossa percepção de Lula o devido grau de densidade histórica que ele merece, já que não se trata de pessoa anônima ou esquecível, mas alguém sobre quem escreverão os historiadores do futuro quando quiserem abordar as grandes personalidades globais da época que ora atravessamos.

O fato desde filme ser a produção de uma cineasta nascida nos anos 1980 só torna mais interessante outra de suas teses: a de a Democracia brasileira tem mais ou menos 3 décadas de vida, e talvez fosse uma ilusão que cada vez mais vai caindo em descrédito, para nós que temos 30 e poucos anos, acreditar que a tal democracia era robusta, madura, indestrutível. O filme de Petra faz chorar pois a democracia que ela retrata não é um colosso, uma fortaleza, um Hulk, mas sim a fragilidade encarnada – e nós os que temos a responsabilidade de fortalecê-la. Juntos. Destacando isso, a revista Marie Claire, que entrevistou a cineasta, fez um bom prefácio ao filme:

“A cineasta Petra Costa tem quase a mesma idade da democracia brasileira. A primeira nasceu em 1983 e a segunda voltou a respirar em 1984, com o fim da Ditadura Militar. Por isso, Petra explica, faz parte de uma geração que cresceu confiante nas instituições do país e com a certeza de que a democracia amadurecia e se fortalecia em um movimento paralelo ao de sua vida. (…) Ao longo de três anos, Petra entrevistou dezenas de políticos de todo o espectro ideológico. Constam no filme tanto um entusiasmado Jair Bolsonaro mostrando seu gabinete de deputado e os quadros que possuía dos generais do governo militar; como uma resiliente Dilma Rousseff pós-impeachment. Com acesso privilegiado aos bastidores do poder, Petra contou também com cenas registrada por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da presidência nos anos de governo Lula e que o acompanhou até sua prisão, inclusive quando deixou o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo rumo ao aeroporto de Congonhas para entregar-se à Polícia Federal.

Em entrevista à Marie Claire, Petra conta como foi o processo de criação e captação das imagens do filme e analisa o cenário político brasileiro atual.

Marie Claire – Quando nos falamos em 2016, sua intenção era filmar os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff. Como tomou a decisão de ampliar o filme e terminar com a eleição de Jair Bolsonaro?

Petra Costa – Minha sensação é de um dia ter ido filmar uma manifestação e no meio dela tropecei e caí no buraco de um coelho que me levou numa jornada de 1001 noites. O filme pra mim não nasceu do desejo de filmar o impeachment, mas da sensação vertiginosa que o chão da democracia brasileira estava se abrindo embaixo dos meus pés. O chão que, desde que eu nasci, era uma das poucas coisas que eu tomava como certeza. Que a democracia brasileira e eu tínhamos a mesma idade e que estávamos amadurecendo e nos fortalecendo juntas. Em 2016, ao ver pessoas pedindo pela volta da ditadura militar, outros pela volta monarquia, percebi que essa tal democracia era muito mais frágil do que eu imaginava. O filme surgiu do desejo de documentar esse processo de permanente crise política. E o processo claramente não se encerra no impeachment. Acredito que seu primeiro ciclo comece em 2013 e termine com a última eleição. Claramente no entanto a vertigem não CTG acabou e entra agora na sua segunda temporada.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA: https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2019/06/em-democracia-em-vertigem-petra-costa-questiona-os-limites-da-democracia-brasileira.html

Petra fez um filme comovedor, em que entretece sua biografia pessoal com a história nacional. Ao mesmo tempo que rememora a vida de seus pais, ativistas de esquerda que combateram a Ditadura, revela também alguns de seus laços familiares com Aécio Neves e com os fundadores da construtora Andrade Gutierrez. Partindo do passado distante, lembra-nos que essa terra foi batizada pelos colonizadores portugueses com o nome de uma planta cuja tintura vermelha foi a primeira commodity explorada pelos invasores – uma exploração que levou o pau-brasil às beiras da extinção.

O filme é magistral no retrato dos nexos e vínculos entre o golpeachment contra Dilma e a farsa jurídica montada por Sérgio Moro, em conluio com a mídia corporativa e os procuradores da Lava Jato (Dallagnol e companhia), para aprisionar Lula e evitar assim que o PT vencesse as eleições presidenciais pela 5ª vez consecutiva. O filme lança ao mundo as evidências concretas de que o processo contra Lula é parte do Golpe de Estado e ychega em momento extremamente oportuno, coincidindo com a Operação #VazaJato e com o alto impacto dos leaks recentemente disponibilizados a The Intercept por whistleblowers. 

Petra expõe, no filme, aquele ridículo Power Point de Dallagnol que, à semelhança de um processo medieval, tenta fazer de Lula uma espécie de Satanás, centro e líder do maior esquema de corrupção da história do mundo. O que contrasta com a inexistência de provas e com a argumentação pífia, beirando o ridículo, de um dos acusadores-inquisidores: não podendo provar a posse do imóvel no Guarujá, os procuradores inventaram a noção absurda de que a falta de escritura provaria o intento de ocultação de propriedade por parte de Lula.

Incapaz de comprovar qualquer vantagem ilícita que Lula pudesse ter auferido, como a atribuída reforma no triplex, condenaram o ex-presidente por “atos de ofício indeterminados”, uma bizarrice jurídica que envergonha todo o Judiciário nacional. É lawfare, e foi mal ocultada – tanto que já afloraram 1.700 páginas de evidência de que este julgamento fraudulento merece cair na nulidade – e Lula deve ser libertado e ter direito a novo julgamento, desta vez com um juiz mais justo do que o canalha Moro.

Lúcido quanto a este processo, o ex-presidente Lula revela, no filme, estar plenamente consciente de que o Golpe não estaria consumado apenas com a deposição de Dilma. Eles não queriam somente tirar a primeira mulher eleita presidenta, com o pretexto das manobras contábeis conhecidas como “pedaladas fiscais”: depois disso, a corja que desrespeitou o voto de 54 milhões de eleitores em 2014 não iria simplesmente permitir que Lula, líder disparado nas intenções de voto para 2018, voltasse ao poder.

“Não adianta tentar parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar eu sonharei pela cabeça de vocês!” – esta é uma das comoventes frases de Luiz Inácio Lula da Silva, discursando no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, alguns instantes antes de se tornar um preso político no conflagrado Brasil de 2018 (recentemente biografado por Mário Magalhães em seu Entre Lutas e Lágrimas). A crônica daqueles tensos instantes que precederam a prisão de Lula é certamente um dos pontos altos do filme e o primeiro registro histórico que chega ao cinema daquele evento em que vimos uma prisão impossível. 

Como escreve Maringoni, “a sensação de estupefação e entorpecimento de espectador no final da fita pouco a pouco se desvanece quando atentamos para o som ao redor e percebemos que o admirável mundo novo dos milicianos de toga, farda e terno começa a apresentar rombos no casco.”

Por concentrar-se na crônica, muito bem concatenada, do processo golpista que tirou o PT do poder, desrespeitando violentamente a vontade soberana do povo que se expressou nas urnas em 2014 e que voltaria a se expressar em 2018, caso tivesse havido um processo eleitoral legítimo (que não houve!), o filme não se dedica muito a investigar o que eu chamaria de psicose-de-massas que conduziu Bolsonaro ao poder.

Para explicar esta outra bizarrice histórica do Bolsonarismo – o fato de um deputado há quase 30 anos no poder, claramente parte de uma classe política parasitária, de pífia ou nula contribuição para o bem público, que enriqueceu sua própria família ao inserir 3 de seus filhos no jogo de alta lucratividade do Estado (visto como balcão de negócios da Burguesia), pudesse conquistar, na exclusão de Lula, 57 milhões de votos que o elegeram… -, Democracia em Vertigem não vai fundo. O filme não menciona nem a fraude das fake news pagas com caixa 2, nem as tenebrosas transações com os magnatas evangélicos. Ainda sobrou muito tema para outros documentários que explorem a Marcha de nossa democracia para o abismo, e as razões que explicam que seu algoz seja esta execrável figura que, no feriado de Corpus Christi de 2019, foi flagrado fazendo arminha na Marcha Para Jesus.

 

Avalio que os mercadores da fé, vendedores de ilusões alienantes, como Malafaia e Edir Macedo, dentre tantos outros pastores canalhas, foram diretamente responsáveis pela construção do “mito” Bolsonaro. Não se entende a “canonização” deste político medíocre, irresponsável e violento sem todo um processo de manipulação teocrática das consciências populares capturadas na teia do neopentecostalismo evangélico e sua Teologia da Prosperidade.

É verdade que a história do cristianismo está repleta de episódios lamentáveis, de cruzadas e inquisições, de bruxas e hereges reduzidos a cinzas, de cientistas silenciados e perseguidos, de violência assassina contra os transviados e dissidentes que discordaram dos dogmas, de censura e perseguição a ateus e agnósticos, de preconceito e discriminação contra minorias sexuais, de intolerâncias contra outras crenças, de papas acobertando escândalos de pedofilia e dando apoio para regimes cristofascistas – horrores de tal monta que não cabem num meme (mas estão lá nos livros de Saramago, Diderot, Nietzsche, Voltaire, Onfray etc.). Apesar desta história pregressa nada louvável, a instrumentalização da fé por parte da extrema-direita Rambonazista, em especial o conluio entre igrejas evangélicas neopentecostais e o sujeito que adora Tortura, Grupos de Extermínio, Milícias e Armas, é um dos episódios que mais me enche de nojo em todo o trôpego caminhar desta religião sobre a face da Terra.

Acredito que Jesus estaria hoje vomitando de repugnância diante daquilo que fazem em seu nome – o nazareno pode até ter sido um cara com ensinamentos éticos interessantes, mas o seu fã-clube está fazendo um péssimo serviço com sua reputação póstuma. Como pode ter gente que se diz cristã e idolatra este malévolo Capetão, este mito-fake explicitamente racista, este Machão Tóxico homofóbico e misógino, este estrupício ético e cognitivo, como se fosse um enviado de Deus? Deus, se existisse e fosse bom e justo como O pintam os seus crentes, jamais se utilizaria de tal instrumento ignóbil pra seus fins.

Tristes tempos de “cristofascismo” em que pseudo cristãos idolatram um Mi(c)to covardão, incapaz de encarar os debates nas eleições, com a idade mental de um bully de 12 anos que quer construir seu próprio senso de superioridade através da humilhação dos outros. O atoleiro em que caiu nossa democracia tem muito a ver com um tema que o filme de Petra deixa sem mencionar: o obscurantismo conexo à hegemonia desses teocratas evangélicos (a exemplo da Ministra Damares Alves e de escrotões como Marco Feliciano, Magno Malta etc.).

Um capetão na Marcha pra Jesus

Os eleitores do Coiso constituem, em amplas manadas, o rebanho desses teocratas corruptos, oportunistas e milionários, da laia de Malafaia ou de Edir Macedo. Jesus Cristo foi torturado e morto por aqueles que, na época, faziam apologia da tortura como vem fazendo entre nós o Capetão fã do Ustra. Jesus jamais compareceria a esta marcha feita em seu nome senão para cuspir na cara dos interesseiros organizadores desta mega manipulação demagógica e que fede a fanatismo religioso.

Foi Paulo Freire, grande mestre hoje demonizado pela extrema-direita Bozorâmbica e pelos pastores delirantes em seus templos-shopping, quem ensinou que a democracia necessita visceralmente de uma educação libertadora, que faça com que os oprimidos possam superar a consciência ingênua e mistificada, rumo à consciência crítica, condição necessária para sua plena atividade cívica. Sem educação pública, gratuita, laica, de qualidade, que forme para o senso crítico e para que sejamos sujeitos históricos, sempre voltaremos a sentir vertigem diante das beiras-de-abismos em que voltamos a estar prestes a despencar.

Pode-se explicar bem que um grupo político sabidamente canalha, como o clã Bolsonaro, faça uso em sua campanha eleitoral de táticas calhordas de difamação do adversário, de caixa 2, de burla à lei eleitoral, de sensacionalismo midiático – ou seja, que esses caras joguem sujo é esperado. Ingenuidade seria esperar fair play democrático de quem sempre odiou a democracia e que, uma vez no poder, tem feito tudo para miná-la e destrui-la ainda mais, rumo à autocracia dos idiotas.

Porém, a canalhice de um grupo político como o PSL (Partido Suco de Laranja) é mais compreensível do que a adesão massiva a este projeto de país elitista, machista, racista, homofóbico, ecocida e desumano. Só se compreende os mais de 57 milhões de votos no Capetão com uma análise da psicologia de massas que tente compreender como se deu a produção massificada de consciências em que se somam a ingenuidade, a credulidade, a alienação, o analfabetismo histórico-político e, last but not least, uma espécie de perversão sádica – o gozo com o sofrimento alheio. Bolsonaro explora os piores demônios de nossa Natureza e encontrou eco e guarida em grupos sociais como  os evangélicos, acostumados ao espírito de manada e à credulidade cega a líderes inquestionáveis apesar de seus comportamentos altamente obscenos, além é claro do pessoal do agronegócio, do agrotóxico e da hecatombe organizada contra indígenas e quilombolas.

Por melhor que seja o filme de Petra, que de fato é inteligente e sensível, comovedor e relevante para a atualidade e para a História, ele passa ao largo do tema da educação – e da falta dela. Se a pedagogia de Paulo Freire fosse de fato aplicada em larga escala neste país, teria gerado uma população muito mais capaz de crítica e autonomia, que jamais se deixaria engambelar por um macho tóxico escroto e incompetente como o palhaço fascista Rambozo. Sua eleição é por si só um sintoma do quão defasados estamos em matéria de uma educação para o senso crítico que fosse de fato massiva e democrática.

Todo o processo de Golpe de Estado que se desenrolou entre 2016 e 2019, e que prossegue enquanto escrevo estas linhas, está intimamente conectado com nosso fracasso em disseminar as práticas e ideais da Pedagogia do Oprimido no país: acabamos com imensas hordas de analfabetos políticos e de idiotas privatistas, presas fáceis para a demagogia pastoral e politiqueira dos que querem ser os velhos donos do poder. Se quisermos uma Democracia forte, ela precisará ser construída com muito trabalho e suor, e para isto é indispensável que ensinemos cidadania ativa e participação social efetiva àqueles oprimidos que estão acostumados demais a serem objetos de história, rebanhos de pastores, fantoches de políticos, espectadores de espetáculos e manipuláveis títeres dos podres poderes que hoje botaram nossa democracia num cadafalso. Retirá-la de lá é nossa responsabilidade histórica, e o trabalho será infindável.

Democracia em Vertigem é prova de que o cinema pode estar aliado àqueles que tem a coragem da verdade de que nos fala Foucault – e prova também de que o documentário, quando vem em hora oportuna e explora bem o célebre kairós dos gregos, pode tornar-se uma força histórica, speaking truth to Power e denunciando golpes e opressões que intentam nos lançar no abismo de uma nova Ditadura. É abraçados com filmes pungentes e comoventes como o de Petra que podemos haurir força e ânimo para seguir dizendo que ninguém solta a mão de ninguém e que “fascistas, machistas, racistas, não passarão!”

Eduardo Carli de Moraes
22 de julho de 2019

Leia mais: outras resenhas e reportagens sobre Democracia em Vertigem >>> Maringoni em Revista Fórum || Eduardo Escorel em Piauí || Gilberto Calil em Esquerda Online || José Geraldo Couto em IMS || El País Brasil || Brasil 247 || The New York Times || Draglicious || The Guardian (UK) || Esquerda Diário || Breno Altman em Folha de S. Paulo || Carlos Alberto Mattos || Juliano Medeiros no Blog da Boitempo.

TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta || Documentário A Casa de Vidro

A Casa de Vidro lança a segunda parte do documentário “Tsunami da Balbúrdia”, retrato histórico a quente das manifestações em defesa da rede federal de educação (#30M)

“A praça é do povo
Como o céu é do condor.”
Castro Alves (1847 – 1871)

Um coro de vozes, incontáveis e altissonantes, levantou-se para espalhar pelas cidades os cantos e batuques da emancipação: era 30 de Maio de 2019 e éramos um segundo Tsunami de Gente, dando continuidade aos atos grandiosos do #15M que levaram mais de 2 milhões de cidadãos às ruas de mais de 200 cidades.

Mais uma vez, no #30M, as aulas foram nas ruas. Nestas aulas de cidadania coletiva, nestas multitudinárias manifestações, as bandeiras eram muitas e o colorido humano terrestre superava em muito as cores do arco-íris celeste (como ensina Eduardo Galeano).

Queríamos “mais livros e menos armas”, “+ Freire – Guedes”, “Liberdade para Lula“, “Fora Bolsonaro”. Com entusiasmo e coesão, os “blocos” da luta carnavalizada fluíram pelas praças e avenidas, gritando palavras-de-ordem rimadas e ritmadas, feitas para chacoalhar toda a apatia dos fatalistas e todo o conformismo dos privilegiados. Entre os refrões, ressoavam:

– Trabalhador, preste atenção: a nossa luta é pela educação!
– Trabalhador, preste atenção: o Bolsonaro só governa pra patrão!
– Não é mole não! Tem dinheiro pra milícia, mas não tem pra educação!
– A nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria!

Fotos acima: Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo no #30M

No documentário curta-metragem Tsunami da Balbúrdia, parte 2, tentamos captar um pouco destas efervescências cívicas que nos transformaram em gotas nesse mar de revolta. Pois, como Albert Camus ensinava, é na superação do individualismo típico do sujeito egoísta, fissurado em correr atrás de seu interesse privado, que podemos nos alçar para longe do pântano da absurdidade do mundo, rumo à esfera superior da revolta que nos solidariza: “eu me revolto, logo somos” (do livro L’Homme Revolté / O Homem Revoltado). 

TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2
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Um filme de Eduardo Carli de Moraes (câmera, montagem e direção), com apoio de Lays Vieira (câmera) e participação de Aymê VirgíniaKleuber GarcezBeatriz DurãesLucas CardosoHenrique SouzaLey SilvaNicolle PiresAndreoly N. MonçãoDanny Cruz. Com fotografias de Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida, dentre outros. Trilha sonora com canções de: Flaira Ferro, Francisco El Hombre, Adriel Vinícius e Ceumar.

A vida só se renova com revolta contra as injustiças e as opressões que nos imobilizam. Quando animada por um espírito de solidariedade, a revolta é a força material que impele um princípio ético em sua tentativa de devir carne. Na Praça Universitária, enquanto os estudantes da EMAC (Escola de Música e Artes Cênicas) / UFG faziam a sua performance subversiva, vivi na pele aquela verdade dos existencialistas mais lúcidos e que ganhou sua mais bela expressão em Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)

A “Tropa de Choque” da Educação, empunhando escudos de papelão transformados em reproduções de capas de livros, vai na vanguarda da marcha, levando seus estandartes que sinalizam a vontade e o ímpeto de defender a cultura, a inteligência, a criatividade, nas figuras de George Orwell, Hilda Hilst, Michel Foucault, Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Angela Davis, Paulo Freire, Augusto Boal, Cervantes, dentre outros.

Protestando também com muita arte, a galera da Faculdade de Artes Visuais deu expressão à palavra tsunami com uma grande onda que conectava os indivíduos ali presentes numa espécie de centopéia. O super-organismo da cidadania organizada e insurgente cantava canções irreverentes e ousadas como aquele adorável “ô Bolsonado, seu fascistinha, os estudantes vão botar você na linha!”

Em marchas repletas de beleza, em que ética e estética davam as mãos para fazer da cultura em movimento uma força de transformação social, estávamos unidos na diversidade. Questionávamos Weintraub, o Bobo dos Cortes, indignados com a tentativa de desmonte da rede federação de educação que está em curso. Assim como em Junho de 2013, não eram só 20 centavos, desta vez também podemos dizer: não são 3 chocolatinhos e meio.

Estar nas ruas fervilhantes de gente desperta e valente foi um bálsamo para as energias. É que nestes tempos de hegemonia da idiocracia neofascista e sua necropolítica, o pessimismo imobilizador poderia muito bem ter tomado conta, feito uma epidemia, matando no nascedouro qualquer capacidade de mobilização e resistência. Não foi o que aconteceu. Os Tsunamis da Educação foram gigantescos sopros de vida de um povo guerreiro e que não aceita o jugo do opressor, com protagonismo de uma “juventude que sonha sem pudor”, como canta a linda Flaira Ferro inspirada pelo tsunami recifense:

“na calada da noite
os estudantes fazem o futuro amanhecer
quem aprendeu a ler e escrever
sabe bem que analfabeto
jamais voltará a ser

mesmo que o destino
reserve um presidente adoecido
e sem amor
a juventude sonha sem pudor
flor da idade, muito hormônio
não se curva a opressor

pode apostar
a rebeldia do aluno é santa
não senta na apatia da injustiça
agita, inferniza e a rua avança
escola não tem medo de polícia

pode apostar
balbúrdia de aluno é o que educa
ensina ao governante que caduca
retroceder não é uma opção
respeito é pra quem dá educação.”

Aos historiadores do futuro que quiserem saber quais as causas da revolta destas gotas cidadãs que se uniram neste tsunami de gente, deixamos algumas pistas. Não se trata apenas de protestar contra os cortes nos investimentos públicos na rede federal de educação, mas de protestar um contexto mais amplo em que a educação já vive um “clima de Ditadura”, como argumentou Juan Arias em El País.

Através da idiocracia de extrema-direita encabeçada por Bolsonaro, Guedes, Damares, Moro etc., o que está em ascensão é uma Cruzada Obscurantista, uma lunática campanha para livrar o Brasil das várias faces de Satanás: na mente desses dementes, Satã é representado na face da Terra por Paulo Freire, Gramsci, o Marxismo Cultural, mas sobretudo o lulismo e o petismo. Gente de Deus? Damares, Edir Macedo, MC Reaça, Malafaia, Ustra… Há quem até mesmo diagnostique na loucura da “mitologização” de Jair Messias Bolsonaro um sintoma do cristofascismo à brasileira.

Estes fanáticos – tanto do Livre Mercado quanto de um Deus conexo à Teologia da Prosperidade – agora atacam numa espécie de Cruzada Anti-Iluminista, numa Aliança Terraplanista em prol do retorno da Inquisição, do fortalecimento da Klu Klux Klan, de “programas sociais” como o Arma Para Todos, o Escola Para Poucos e o Menos Médicos (especialidades Bolsonaristas).

A intentona de criminalização do pensamento crítico e dos docentes que facilitam o avanço da pedagogia crítica está a todo vapor, sendo que filósofos e sociólogos “esquerdistas” e “marxistas” são pintados como chifrudos comedores de criancinhas, “uma paranoia ideológica que enxerga ‘esquerdismo’ e ‘comunismo’ em tudo que cheire à defesa dos interesses populares pelo Estado, flertando com o fascismo e com o ‘darwinismo social’.” (FREITAS: 2018, p. 28)

Temos “movimentos destinados a cercear a liberdade docente como o Escola Sem Partido que, como bem destaca o prof. Luiz Carlos de Freitas, é financiado e apoiado por interesses empresariais e privatistas. Imensas maquinarias de desinformação e idiotização são postas em marcha – por exemplo pelo MBL, turbinado com os dollars dos Kocj Brothers – fortalecendo a viralização das fake news, do discurso de ódio e da noção de uma da “pós-verdade”.

Esse caos todo é destravado pela ação de uma “nova direita” repleta de “velhas ideias”, uma direita que fede a velharia por ser composta sobretudo por homens, brancos, ricos, pseudo-religiosos, ambiciosos e gananciosos até a patologia, e que idólatras de Mammon querem só saber da mercantilização de tudo. Quem tenta nos dominar hoje é uma Direita que une o neoliberalismo na economia e o conservadorismo tacanho na moral (ou “costumes”).

No âmbito educacional, além de desejar sucatear e precarizar as escolas públicas, para depois tentar justificar perante a sociedade a necessidade de privatização ou terceirização, esta Direita tende a idolatrar o Mercado com uma devoção cega com que também parece cair no abismo de idolatrias ainda mais estúpidas e nefastas. Para esses debilóides, Bolsonaro não é um calhorda apologista da tortura e da Guerra Civil, mas um “Mito” e um “Cidadão de Bem”, assim como MC Reaça é um “grande artista”, Olavo nosso “maior pensador” e Edir Macedo ou Silas Malafaia os próprios enviados do Senhor para conduzir-nos à salvação (desde que possamos pagar por ela).

Como escreve Freitas, em seu texto “Um Outro Horizonte Possível”, não podemos e não devemos nos submeter docilmente à lógica privatista e à tentativa de redução da escola ao modelo empresarial:

“A privatização da escola introduz formas de gestão empresariais e verticalizadas, ensina nossos jovens a praticar o individualismo e a competição, reforçando na sociedade formas de organização limitadas e injustas – sem falar da ampliação de processos culturais relativos à violência cultural e ao não reconhecimento das diferenças raciais e de gênero.

Por tudo isso, tal perspectiva é incompatível com a qualidade social que se espera de uma educação voltada para formar lutadores e construtores de uma sociedade mais justa, sob as bases da participação na vida coletiva – na escola e na sociedade – em estreita relação com sua comunidade, da qual a escola faz parte. A competição não é, nem do ponto de vista da convivência social, nem do ponto de vista educacional, um modelo que induza uma humanização crescente das relações sociais em uma ambiência democrática.

Se estamos compromissados com a democracia, todos os espaços da escola devem permitir a vivência da democracia; devem chamar os alunos para a participação em seu coletivo, permitindo o desenvolvimento de sua auto-organização e seu envolvimento com a construção coletiva, com espírito crítico. O conhecimento que se adquire nos processos escolares deve um instrumento de luta voltado para esses objetivos…

A escola pública, no presente momento histórico, é a única instituição educativa vocacionada a acolher a todos de forma democrática. As dificuldades que ela tem para cumprir essa tarefa devem nos mobilizar para uma luta que a leve a cumprir essa intenção com qualidade e não, pelo oposto, nos leve a apostar em sua destruição.”

LUIZ CARLOS FREITASA Reforma Empresarial da Educação – Nova Direita, Velhas Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018. Pg. 128.

* * * * *

ASSISTA “TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2”:
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VEJA TAMBÉM O PRIMEIRO CURTA-METRAGEM:
TSUNAMI DA BALBÚRDIA – #15M

VEJA MAIS FOTOGRAFIAS || por Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida e Estudantes Ninja

TSUNAMI DA BALBÚRDIA: Documentário sobre a mobilização em defesa da Educação pública em 15 de Maio de 2019 (Goiânia, 23 min)

“Se ele nos chama de idiotas úteis, eu digo que na presidência tem um idiota inútil.” – Guilherme Boulos (MTST/Povo Sem Medo/PSOL)https://bit.ly/2WKoe3j

Éramos mais de um milhão de pessoas, em mais de 200 cidades, participando do Tsunami da Educação e “protestando contra o avanço da barbárie”, como bem definiu Bob Fernandes. Éramos aqueles que não serão feitos de otários pela enganosa retórica do “são só 3 chocolatinhos que vocês vão deixar pra comer depois” (discurseira devidamente detonada pelo sarcasmo salutar de Gregório Duvivier no episódio B de Balbúrdia do Greg News).

Éramos, no #15M, um rio de gente, de uma diversidade pulsante, numa explosão de colorido indomável. Um pouco deste caleidoscópio humano está encapsulado no filme que agora lançamos, no calor da hora. Tsunami Da Balbúrdia, documentário curta-metragem produzido por A Casa de Vidro (veja no Youtube, no Vimeo ou no Facebook),  é o primeiro passo em um processo criativo mais amplo, que une os aspectos cinematográfico, jornalístico e político, visando à produção de um longa-metragem sobre o Tsunami da Educação em 2019 (auxilie no financiamento colaborativo e deixe um troco na nossa Vakinha!).


Filmado durante as manifestações goianienses do 15 de Maio, Tsunami da Balbúrdia está em sintonia com os ideais e as práticas do jornalismo Ninja. Nesta obra – com montagem, som direto e direção de Eduardo Carli de Moraes (professor de filosofia do IFG)buscamos amplificar a voz e disseminar as mensagens dos manifestantes através do audiovisual.

Contribuindo tanto para o registro histórico deste evento político quanto para o incentivo ao prosseguimento das mobilizações no futuro próximo (o 30 de Maio e o 14 de Junho sendo as datas de iminente grandiosidade e relevo histórico). A obra contêm, além dos agitos de rua e de um registro da assembléia geral unificada dos DCEs do IFG e da UFG, entrevistas e depoimentos de:

* Frank Tavares (prof. de Sociologia da UFG)
* Angela Cristina Ferreira (da Comissão de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno)
* Dalmir Rogério Pereira (Prof. de artes na EMAC/UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Ciências Sociais / UFG)
* Renato Costa (Ativista e Estudante de Jornalismo / UFG), dentre outros.

Agrademos o apoio, na produção, de Lays Vieira e Frederico Monteiro. Na trilha sonora, canções de Dani Black e convidados (“O Trono do Estudar”), The Interrupters (“Babylon”), Moska e Rennó (“Nenhum Direito a Menos”), Chico Buarque (“Apesar de Você”).

Éramos aqueles que sabem muito mais do que “qual o resultado de 7 vezes 8” e “qual a fórmula química da água”. Aqueles que sabem da nossa responsa diante do desmonte e do sucateamento que o governo Bolsonaro planeja impor. Aqueles que estão conscientes dos impactos catastróficos acarretados pelos cortes de cerca de 30% nos investimentos discricionários do Ministério da Educação (MEC), ainda mais quando sabemos que as 10 melhores universidades do Brasil são públicas e gratuitas. Aqueles que sabem que balbúrdia mesmo é o que faz no país este péssimo governo.

Somos aqueles que, ao contrário do Bozo e seus lacaios, não somos nem idiotas nem analfabetos políticos: sabemos que os cortes incidem sobre hospitais e centros de excelência em atendimento psicológico à população; sabemos também que, ao contrário da asneira presidencial de louvor às faculdades privadas, 95% da pesquisa científica brasileira ocorre em universidades públicas (é só jogar no Google, seu ministro!):

Antes de dizer que universidades são “balbúrdias” e não geram pesquisas, titular do MEC deveria se informar: Brasil é o 13º na produção de artigos científicos – e participação das públicas representa 95% – LEIA O ARTIGO EM OUTRAS PALAVRAS

Excelentes vídeos já foram publicados para esclarecer a opinião pública sobre os acontecimentos recentes no que tange às políticas públicas educacionais no Brasil e a resistência cívica que elas vem encontrando: acesse o material recomendado em BBC News, Brasil de Fato e Levante Popular da Juventude.

 

O histórico 15 de Maio de 2019 marca um ponto alto na curva das mobilizações populares no Brasil nestes tempos sombrios de predomínio da “necropolítica”, esta fusão entre neoliberalismo e neofascismo que hoje nos desgoverna com a perversa tesoura da Austeridade em mãos (aquela que corta da população para manter a mamata das elites).

Éramos, nas ruas, e seremos nas ruas do futuro, aqueles que não foram estupidificados por fake news no Whatsapp e estamos cientes de nossa responsabilidade histórica na defesa dos bens comuns. O “contingenciamento” que o (des)governo busca impor não é uma medida isolada, mas soma-se às tendências do ultradireitismo bozorista que consegue a educação como espaço a ser militarizado, “expurgado” de esquerdistas, “higienizado” contra o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”, contra o pensamento crítico propulsionado por filósofos e sociólogos, por historiadores e pedagogos Paulo Freireanos…

Enfim, a extrema-direita hoje empoderada sonha com a Escola reduzida a apêndice servil do Mercado, onde reinariam supremos os valores evangélicos, as fardas dos milicos e os testas-de-ferro “apartidários” do Escola Sem Partido.

Foi o mais amplo e significativo movimento de massas desde o ELE NÃO de 2018 – o levante mais importante a marcar o processo eleitoral do ano passado, repleto de fraudes, de “laranjal do PSL”, de #Caixa2DoBolsonaro pra disseminação de fake news calúnias. Primeiro processo eleitoral pós-Golpe, corroído em sua legitimidade pela desleal e ilegal lawfare que aprisionou o candidato Lula, criminosamente privado de sua liberdade num contexto em que todas as pesquisas indicavam que venceria o pleito.

Reativando afetos e práticas que deram o tom do #EleNão, a galera na rua esbanjou irreverência. “Ô Bolsonaro, seu fascistinha! A estudantada vai botar você na linha!” Com essas e muitas outras rimas, os estudantes bradaram pelas ruas – e Maio de 2019 já possui o mérito maravilhoso de ter oferecido a muitos de nós um gostinho de Maio de 1968, um sabor da Paris em insurreição.

A golpes de rimas, os criativos protestadores diziam: “ô Bolsonaro, seu fanfarrão! Balbúrdia é cortar da educação!” Fanfarrão, pois Bozo insiste na discurseira contra a balbúrdia. Tanto o Chefe quanto seu serviçal Weintraub – o cara dos “três chocolatinhos e meio” – insistem na ideologia “balburdiana”, que supostamente dominaria nas universidades públicas. Estas são pintadas pelos bullys do Bozonistão como antros de comunistas, marxistas culturais, feminazis abortistas, queers Marielleanos, todos alimentados com mortadela, pelo PT e pelo PSOL, para disseminar o evangelho satânico do comunismo gayzista que virá colonizar a pátria com seus kits gays e suas mamadeiras de piroca.

Contra tal delírio do poder no Bozonistão, os estudantes e professores, os servidores técnico-administrativos e os cientistas, os artistas independentes e os empresários-de-si-mesmos que estão insatisfeitos contra o precariado do Uberismo, as mães que querem creches para os seus filhos e os pais que querem bolsas para seus filhos, crianças e idosos (e todas as faixas etárias entre eles) juntaram-se para bradar legítimas insatisfações contra os desrumos das coisas.

ÁLBUM FOTOGRÁFICO DO ATO EM GOIÂNIA

Empunhavam escudos-livros e lanças-lápis, como fez a “Tropa” da EMAC/UFG em sua performance em pleno protesto aqui em Goiânia. Uma potência expressiva que certamente agradaria a Judith Butler, uma das mais brilhantes pensadoras do mundo e que acaba de publicar um belíssimo livro de resistência e solidariedade chamado Corpos em Aliança.

Nossos mortos querem que lutemos, nossos mortos pedem que cantemos. E nós mandamos nosso recado: Paulo Freire, presente! Marielle, semente! E cá estamos, corpos aliançados, na luta unida contra a tirania dos idiotas inúteis.

Se o presidente da república não estivesse ocupado em tacar as pedras de seu desdém elitista contra os jovens que estavam bradando nas ruas, talvez pudesse, ao invés de xingar-nos de “idiotas”, ficar calado e ter a humildade para aprender. Mas seria pedir demais desta arrogância brucutu, de quem acha que tudo se resolve no tiro, que pudesse haurir um pouco disto que temos de sobra no âmbito social da Educação: a humildade para aprender e a disposição para reconhecer que somos todos incompletos, inconclusos, aprimoráveis.

Nesta inconclusão aberta ao aprimoramento, nesta humildade aberta ao convívio e ao aprendizado, aí está a raiz que alicerça toda a prática educativa, mas nosso presidente não consegue aprender e talvez morrerá um completo analfabeto em relação às práticas de um autêntico Estadista atento ao bem comum e ao coletivo bem viver. A isto, o apologista da tortura, dos grupos de extermínio e do “fuzilar a petralhada” é completamente cego.

Infelizmente, Bolsonaro é um “analfabeto educacional”, nunca aprendeu nada que prestasse sobre a importância da educação no mundo, e é o perfeito exemplar do idiotes dos grego – aquele que só enxerga, em sua semi-cegueira, os interesses privados e nunca o bem comum. Ao xingar os manifestantes de “idiotas”, desconhecendo completamente a etimologia da palavra original grega, Bolsonaro demonstra que em sua boca é a linguagem que está indo pro pau-de-arara.

Quem esteve no #TsunamiDaEducação é justamente o oposto do significado de “idiota”, e o próprio Bolsonaro ao dizer que “queremos uma garotada que comece a não se interessar por política” é que demonstra seu plano de construir uma educação idiotizante – à sua imagem e semelhança. Vejam a esclarecedora palestra de Mário Sérgio Cortella:

Se Bozo tivesse a modéstia de pôr-se na posição do aprendizado, descobriria quanta esperteza e inteligência, quanta solidariedade e esforço por justiça, pulsa nas ruas e nas redes, expressando-se atualmente nestes que constituem as vastas teias da Resistência a seu desgovernado projeto de tirania.

Acima: manifestações de massa levam mais de 1 milhão de pessoas às ruas. Fotos acima tiradas nas cidades de Goiânia, Rio de Janeiro, Curitiba e São Paulo.

Em EL PAÍS Brasil, Juan Arias escreve:

“Ao menos desta vez, o poder de turno no Brasil entendeu a mensagem oculta levada pelos quase um milhão de jovens estudantes que no último dia 15 saíram às ruas em 26 Estados e em centenas de cidades para defender o ensino contra quem deseja barbarizá-lo. Cansados de serem vistos como o futuro do país, que nunca chega, os jovens decidiram ser o presente e participar de sua construção.

O novo Governo pretende transformar o ensino, da escola primária à Universidade, para livrá-lo da ideologia esquerdista que, segundo ele, o havia desviado de seus valores tradicionais. O ensino que o novo poder pretende impor deve estar isento de debate político, de diversidade de ideias, dominada por um pensamento único, que, como nos melhores fascismos do passado, é imposto pelo Estado.

Uma escola em que não se perca tempo estudando o que depreciativamente chamam de “ciências humanas”. Nada de filosofia, que obriga a pensar e a questionar o poder, ou de sociologia, que abre os olhos para o abismo das desigualdades. Uma escola em que os alunos se transformem em guardas que vigiem e denunciem os professores se tentarem falar de política ou de sexo, ou das dores do mundo. A escola é moldada pelo poder. Os alunos escutam e se calam.

Contra o perigo desta nova era de obscurantismo educacional que o Governo deseja impor, com uma nova cruzada contra os livros e as ideias enquanto exalta as armas que pretende distribuir como doces, os jovens ocuparam pacificamente as ruas e praças do país, para desafiar quem tenta castrar seu direito à liberdade de expressão e impor suas ideias.”

Já o professor de Ciência Política da UnB Luis Felipe Miguel aponta: “Bolsonaro, em Dallas, desfia os impropérios de sempre contra estudantes e professores. Mas eu sei que ele está com medo. Que ele olhou na internet as manifestações enormes de Norte a Sul no Brasil e sentiu medo da nossa força. Que ouviu o pessoal gritando Bolsonaro, seu fascistinha, a juventude vai botar você na linha, engoliu em seco e pensou que não era uma bravata vazia.

Movido por sua própria arrogância e delírio, o governo errou: agrediu, insultou, provocou até que sacudiu a anestesia em que estávamos imersos. Para quem esteve na rua ou mesmo acompanhou de fora, os atos de hoje fizeram redobrar o ânimo de luta. Se esse ânimo se estender pela classe trabalhadora – e há indícios de que esta é uma possibilidade palpável – teremos uma greve memorável no dia 14 de junho e poderemos empunhar com esperança a bandeira da resistência: “Nenhum direito a menos”. >>> https://bit.ly/2w4yxn6

Por sua vez, o jornalista Leonardo Sakamoto escreve em seu blog no UOL duras e justas críticas ao governo Bolsonaro: “Ao atacar quem está indo às ruas pedir educação de qualidade, interdita o debate sobre a construção do futuro e põe a democracia no pau de arara. Estudantes que resolvem refletir e se organizar pela melhoria da educação não são ‘idiotas’, nem ‘imbecis’. Pelo contrário, reside neles a esperança da criação de uma nova forma de fazer política – ao contrário dos simulacros toscos que se chamam de “novo” mas cheiram a anacronismo. Burrice é atacar esses estudantes por medo da realidade mudar…”.

“A vida deu os muitos anos da estrutura
Do humano à procura do que Deus não respondeu.
Deu a história, a ciência, a arquitetura,
Deu a arte, deu a cura, e a Cultura pra quem leu.
Depois de tudo até chegar neste momento 
Me negar Conhecimento é me negar o que é meu.

Não venha agora fazer furo em meu futuro
Me trancar num quarto escuro
E fingir que me esqueceu!
Vocês vão ter que acostumar:

Ninguém tira o trono do estudar,
Ninguém é o dono do que a vida dá!
E nem me colocando numa jaula
Porque sala de aula essa jaula vai virar!

E tem que honrar e se orgulhar do trono mesmo!
E perder o sono mesmo pra lutar pelo o que é seu!
Que neste trono todo ser humano é rei,
Seja preto, branco, gay, rico, pobre, santo, ateu!
Pra ter escolha, tem que ter escola!
Ninguém quer esmola, e isso ninguém pode negar!
Nem a lei, nem estado, nem turista, nem palácio,
Nem artista, nem polícia militar!
Vocês vão ter que engolir e se entregar:
Ninguém tira o trono do estudar!”

Como professor do IFG, nos últimos anos pude vivenciar de dentro o que significam para o país os Institutos Federais, que atualmente constituem um patrimônio do povo brasileiro que merece ser defendido por todos os seus cidadãos conscientes de seu papel da salvaguarda dos bens comuns.

Para ilustrar o mérito dos IFs, vale lembrar que em 2016, ano em que findou prematuramente via golpeachment o governo de Dilma Rousseff, um fenômeno fascinante se explicitou através dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): caso os alunos dos IFs fossem considerados como porta-vozes da educação no Brasil, o país seria o 4º melhor do mundo na área (Saiba mais em The InterceptEl País).

“Na contramão do resultado geral obtido pelo País, que aponta pouca evolução nas áreas avaliadas ao longo dos anos, a pontuação das instituições federais de ensino no exame supera a média nacional e aproxima-se daquelas alcançadas por países desenvolvidos.

Cerca de 23 mil estudantes brasileiros, com idade entre 15 e 16 anos, das redes de ensino municipal, estadual, federal e privada participaram da avaliação, que contempla as áreas de matemática, ciências e leitura. As notas gerais alcançadas pelo Brasil, considerando-se a pontuação média das quatro redes de ensino, foram de 401 pontos em ciências; 407 pontos em leitura; e 377 pontos em matemática. Em todas elas, o país ficou abaixo da média geral Pisa, que foi de 493 em ciências, 493 em leitura e 490 em matemática. A análise dos resultados específicos da rede federal, no entanto, aponta um cenário diferenciado, que aproximaria o Brasil do topo do ranking: 517 pontos em ciências, 528 em leitura e 488 em matemática.

O desempenho positivo dos alunos da Rede Federal destaca-se, sobretudo desde 2009, na esteira da revitalização e expansão da Rede. Nesse ano, a média da nota dos alunos da Rede Federal atingiu 535 em leitura, principal área de concentração daquela edição. Com essa média, os alunos da Rede Federal teriam ocupado a 4ª posição no ranking, atrás apenas de Xangai (China), Coréia do Sul e Finlândia.

Para o coordenador de Formulação e Supervisão de Políticas para o Ensino Técnico do IFMG, Lucas Marinho, se, como se propõe, o Pisa fornece um importante parâmetro para avaliação e monitoramento da qualidade das políticas públicas em educação, esses resultados evidenciam que as escolas da Rede Federal, apesar da sua tão recente reestruturação e expansão, já despontam como o mais acertado esforço do Estado brasileiro para a promoção de uma educação de qualidade.

“E isso não por qualquer reforma especialmente complexa ou arrojada, mas por que veio constituindo-se até aqui, de acordo com algumas diretrizes óbvias que, infelizmente, têm sido sistematicamente ignoradas nas redes municipal e estadual de educação: investimento público suficiente para assegurar instalações adequadas; gestão autônoma e democrática; professores trabalhando, em sua maioria, em regime de dedicação exclusiva à mesma escola, bem remunerados e bem formados, numa carreira atrativa e bastante concorrida”, avalia Lucas.

Instituto Federal de Minas Gerais

É com arte e criatividade, corpos em aliança, solidariedade de existências, que caminhando e cantando entoaremos, como outrora, “afasta de mim esse cale-se!” e “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, como agora, “tira a mão do meu IF!”, “ninguém solta a mão de ninguém”, “nenhum direito a menos”!

Bem-vindos ao Tsunami da Educação. Em breve ele vai atravessar com suas ondas indomáveis muito mais do que timelines e grupos de Whatsapp. Pois as margens que comprimem este rio são muito violentas, e assim nossas águas conjuntas ao invés de lago se estão fazendo tsunami. Em sintonia com a crise climática do global heating e em compasso com Greta Thunberg e com os “Pinguins” Chilenos, na sabedoria que Bertolt Brecht já ensinava:

Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 17/5/19

SAIBA MAIS:

O RUGIDO DAS RUAS – Por Bob Fernandes

METEORO: A BALBÚRDIA COMEÇOU

“O Muro”, documentário de Lula Buarque Hollanda, revela um Brasil com fratura exposta

O MURO, documentário de Lula Buarque de Hollanda (2018, 1h 27min), produzido pelo Canal Curta, foca sua atenção sobre o “Muro do Impeachment”, erguido em Brasília durante o processo de deposição da presidenta Dilma Rousseff em 2016. O filme considera este muro como emblema de uma pátria com fratura exposta, em estado de acirramento da guerra de classes, em que o mito fundador da “cordialidade” brasileira jaz por terra.


Em entrevista à Revista Select, o cineasta disse: “Ver Brasília, a capital utópica, aquele lugar específico, imaginado para agregar, com um muro que dividia famílias, era a imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar. E não existe democracia sem diálogo” [1].

Lula Buarque de Hollanda.


Contando com a colaboração de grandes intelectuais – como a psicanalista Maria Rita Kehl, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a economista Laura Barbosa, o advogado Ronaldo Lemos, o historiador James Green, dentre outros – o filme parte do exemplo brasileiro para compreender um fenômeno global.

Por isso, estabelece analogias com outros Muros, tanto de nosso passado (como o de Berlim) quanto de nosso presente (como aquele que segrega Israel e Palestina, como aquele que se estende pela fronteira entre EUA e México, como aqueles que se multiplicam pelo mundo para conter refugiados e imigrantes ilegais…).

Em um artigo instigante chamado “A Era dos Muros”, Giselle Beiguelman escreve sobre aquela bizarrice segregatória que pintou no imenso gramado da Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional, na época em que foi votado o impeachment de Dilma (re-eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos):

Brasília – Manifestantes pró e contra o impeachment ocupam a Esplanada dos Ministérios durante o processo de votação na Câmara dos Deputados (Juca Varella/Agência Brasil)

“A barreira, erguida por presidiários, tinha a finalidade de separar os manifestantes, de esquerda e de direita, contra e a favor do impeachment, dividindo a Esplanada dos Ministérios ao meio. A partilha estava longe de marcar um momento de equilíbrio democrático. Ao contrário, assinalava uma fissura na vida política do País, que tinha sua metáfora na imagem do Eixo Monumental fraturado. O espaço projetado para o encontro era tristemente atualizado como o da total desagregação do consenso político.” [2]

Estive lá naquele dia histórico – 17 de Abril de 2016 – em que a maioria dos deputados votou “sim” ao prosseguimento do processo de impedimento da presidenta, ainda que as tais “pedaladas fiscais” e os tais “decretos de crédito suplementar” não tenham sido convincentemente comprovados como crimes de responsabilidade pelos quais a suprema mandatária merecia perder seu cargo. Ao contrário, ouvimos uma enxurrada de votos em prol da família, da Bíblia, de Deus, dos bons costumes, dos cidadãos de bem, sendo espetacularmente mobilizados ao microfone por hordas de deputados investigados por crimes de colarinho branco.

Não pude me abster de tomar posição em um dos lados da barricada, e estive lá entre os que gritavam “não vai ter golpe” e que vibravam a cada “não” ao impeachment que vinha das bancadas de partidos como PT, PSOL e PC do B. Sim, eu estava lá engrossando o caldo do Lado Vermelho da Força, e tratando como inimigos e proto-fascistas os “amarelinhos” lambe-botas de Moro que estavam do outro lado do Muro. Lembro-me de que foi um dia que começou na maior empolgação, com a belíssima e massiva mobilização cívica que tomou as ruas de Brasília, mas que terminou na maior tristeza, com a sensação de termos sido derrotados por uma corja de bandidos engravatados que estavam conseguindo estuprar a jovem e frágil democracia brasileira através de um mal-disfarçado golpe de estado. 

Naquele fatídico ano de 2016, em que viajei 3 vezes para a capital federal com uma câmera na mão e mil idéias e indignações fervilhando no coração e na mente, eu estava animado por uma noção de tête-à-tête com a história que exigia a presença crucial da figura do documentarista. Como testemunha ativa desta História presente, produzi então quatro curtas-metragens que constituem uma espécie de etnografia a quente das ruas brasilienses em tempos de golpe: O Céu e o Condor, A Babilônia Vai Cair, Levantem-se! e Ponte Para o Abismo.




Por ter me mobilizado para documentar estes tempos intensos e instáveis, tenho muito interesse por conhecer e estudar a obra de outros documentaristas que estavam fazendo o mesmo que eu – decerto com mais fomento, experiência e capacidade técnica do que eu tinha então a meu dispor. Tanto que já esmiucei O Processo de Maria Augusta Ramos em outro artigo.

Já o filme de Lula Buarque de Hollanda, que agora me ocupa, pareceu-me um filme instigante, provocativo, complexificador, mas não oferece nenhum consolo fácil, nenhuma solução para nossos antagonismos sociais cada vez mais irreconciliáveis.

Em uma crítica do filme chamada “Crônica da Polarização”, Carlos Alberto Mattos encarou um tema difícil: julgar se o documentário seria “imparcial” e se teria errado em somente nomear nos créditos as “pessoas importantes” que contribuíram com o filme, deixando no anonimato muitas das vozes que ouvimos durante a película:

“Ajustando o foco no muro, o filme de Lula Buarque de Holanda assume um certo caráter conceitual, em que as paixões de um lado e de outro se equivaleriam. Seria, portanto, um filme imparcial – essa “virtude” que tantos cobram de documentários políticos como “O Processo”.

Assim, pessoas favoráveis e contrárias ao afastamento da presidenta aparecem posando para a câmera, caladas e “fantasiadas” com seus adereços, em meio a manifestações. Enquanto isso, vozes desencarnadas em off declamam seus slogans e fazem a apologia de suas respectivas posições. Alguns comentários ultrapassam a superfície do óbvio ou do preconceito e soam mais analíticos ou supostamente ponderados, evidenciando tratar-se de gente culta e estudiosa do assunto. Estes serão apresentados e nomeados nos créditos finais, ao passo que os populares ficarão sem identificação. Uma divisão de classes culturais se coloca aí, separando os “de nome” dos anônimos.

O efeito é também de despersonalizar a discussão, fazendo com que tudo o que é dito permaneça numa nuvem indefinida de opiniões. Dessa maneira, O MURO adota um distanciamento cauteloso em relação ao clima reinante, como se almejasse uma mirada científica, neutra, desapaixonada. Mas eis que, em dado momento, como se não resistisse ao apelo da editorialização, Lula insere uma sequência de imóveis e propriedades postos à venda na época do golpe, como a querer confirmar os argumentos de quem acusava o governo Dilma de “afundar o país”. Além de estar completamente deslocado da lógica narrativa do filme, esse trecho tampouco se coaduna com o debate em pauta, uma vez que o impeachment não dependia da crise econômica, mas de supostas irregularidades fiscais.

Depois de oscilar entre os dois lados do muro, o filme se põe a tratar dos que ficam em cima do dito cujo. As figuras do “isentão” e do “apartidário” entram na roda, aqui também na base de “uma opinião para cada lado”, como se o roteiro fosse construído numa balança. Daí a impressão de um filme interessado em parecer, também ele, “isentão”.

O terço final de O MURO se converte numa espécie de ensaio sobre os dualismos da política a nível global. Entram em cena as barreiras montadas na campanha americana que elegeu Trump, o anti-exemplo histórico do Muro de Berlim e os dilemas que cercam o muro entre palestinos e israelenses na Cisjordânia. É quando surgem as melhores reflexões sobre as ambíguas funções dos muros, no Brasil como no mundo. Uma das vozes desencarnadas comenta o que ninguém pode negar: o muro de Brasília simplesmente concretizava o que sempre houve no país, adormecido, reprimido ou dissimulado no mito da conciliação e da cordialidade brasileiras. Um mito definitivamente soterrado sob muitos muros.” [3]

“O Muro” merece ser reconhecido como uma obra muito relevante do cinema de não-ficção no país, com sua proposta ensaística e intento complexificador – pois “todo reducionismo é paupérrimo”, como opina no filme Luiz Eduardo Soares.

O filme sabe erguer o muro ao status de emblema de uma bi-polarização ideológica que é nefasta. O Brasil é muito mais complicado e multicor do que a representação simplória e simplista que gostaria de nos reduzir, de um lado, a coxinhas com camiseta da CBF (precursores dos Bozominions); de outro, petralhas que gritam contra o golpe (precursores dos “defensores do presidiário de Curitiba” do movimento Lula Livre).

Comentando sobre o processo de “fanatização”, não muito afastado de torcidas organizadas de futebol, o filme aborda a crise política de 2016 concedendo esta carga simbólica ao muro divisório, estrutura física monumental que impede os cidadãos em discórdia de sair na porrada.

Alguns podem argumentar que era um dispositivo de segurança necessário para adiar a eclosão da guerra civil. Outros podem afirmar que o muro foi um cala-a-boca na democracia, que pressupõe o diálogo amplo e irrestrito como solução das conflituosidades sociais.

Fazendo a crítica das práticas de segregação / apartheid, o filme aponta para um horizonte utópico: investir na construção de um mundo onde caibam todas as pessoas, conviventes na diversidade. Um tema já tratado, ainda que em outra clave, por Lula Buarque de Hollanda em um de seus filmes anteriores mais importantes: “Pierre Verger: Mensageiro Entre Dois Mundos” (1998). [4]


Nada indica que estejamos de fato caminhando neste sentido com a eleição de Bolsonaro, que é a Lógica do Muro piorada até as raias da insanidade, apimentada com populismo fascista, que vem para impor a segregação militarizada em um país desgovernado por um plutocracia.

Longe de ser a panacéia, a eleição de Bolsonaro é a piora da peste. E, neste sentido, “O Muro” tem a vantagem de ser uma obra de cinema que soa profética e que tem muito a ensinar inclusive ao futuro.

Em amanhãs aos quais já estamos condenados, não temos mais como evitar sermos governados por uma extrema-direita subserviente aos EUA, desejosa de ser capacho de Trump e do Império Yankee, em aliança com o sionismo israelita apesar dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo Estado Israelense (sob Netanyahu e anteriormente Ariel Sharon).

status quo tende a proteger os antigos e erguer os novos Muros da Segregação que mantêm permanentemente separados, de um lado, a Elite do Atraso, e do outro um povo com seus direitos massacrados, seus empregos precarizados e suas existências radicalmente vulnerabilizadas. De um lado, uma plutocracia em seus blindados; do outro, a massa dos matáveis (mas que se recusam, em resistência, a serem mortos). O futuro será cheio de muros – e cheio também daqueles que os derrubam em prol de um mundo mais diverso e multipolar.

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro –www.acasadevidro.com

Filme assistido em 09 de Janeiro de 2019, baixado a partir do fórum da Making Off. Faça o download do filme completo em torrent: https://bit.ly/2C81txo.


REFERÊNCIAS

[1] – Revista Select >>> https://www.select.art.br/lula-buarque-de-hollanda-lanca-o-muro/

[2] – BEIGUELMAN, Giselle. >>>https://www.select.art.br/era-dos-muros/.

[3] – MATTOS, C. A. >>> https://carmattos.com/2018/06/11/cronica-da-polarizacao/

[4] – Biografia e filmografia de Lula Buarque de Hollanda em Wikipedia >>> https://pt.wikipedia.org/wiki/Lula_Buarque

 

 

Fascismo Quixotesco: Reavivando paranóia anticomunista, Bolsonaro convenceu uma parcela dos brasileiros a combater moinhos de vento

Como Bolsonaro convenceu os brasileiros a combater moinhos de vento

Para surpresa de muitos, o militar aposentado conseguiu transformar seus delírios em realidade

por Carla Guimarães em El País

“Em um país tropical, cujo nome não quero lembrar, vivia um militar aposentado que defendia a ditadura e que acreditava que o grande erro daquele regime foi não ter matado mais vermelhos. Esse militar, em seus momentos de ócio, se dedicava a fazer campanhas políticas e até chegou a ser deputado. Em quase três décadas no Congresso, aprovou apenas duas leis de sua autoria. Sua grande contribuição, em suas próprias palavras, foi impedir que certos projetos fossem aprovados. Por causa desses projetos, passava noites em claro. “As minorias têm que se curvar às maiorias”, disse em certa ocasião. A luta contra a expansão dos direitos de mulheres, homossexuais, negros e indígenas o consumia por completo. E assim, dormindo pouco e lutando muito, seu cérebro secou de tal maneira que perdeu o juízo. De fato, terminada sua sanidade, um estranho pensamento se instalou em sua mente: tornar-se presidente e sair pelo país com suas armas defendendo os direitos dos homens brancos e ricos. Para alcançar seu nobre objetivo, estava disposto a enfrentar o maior dos perigos, a esquerda radical.

Como foi paraquedista em seu tempo no Exército, decidiu se lançar no vazio das redes sociais e enchê-las com os incríveis malfeitos cometidos por seu recalcitrante inimigo. Onde quer que fosse, advertia sobre o perigo da esquerda, que pretendia instaurar uma ditadura gay no país. Se os seus adversários chegassem ao poder, legalizariam a pedofilia, os bicos das mamadeiras teriam a forma de pênis e, nas escolas, as crianças heterossexuais se tornariam homossexuais por causa de um material didático apelidado de kit gay pelo militar.

Outra de suas grandes preocupações era evitar o avanço do feminismo, uma ideologia que levaria o país inexoravelmente ao apocalipse. O feminismo era capaz de transformar mulheres em monstros peludos cheios de ódio contra o gênero masculino. O objetivo desses monstros era instaurar uma ditadura feminista que, junto com a ditadura gay, perseguiria sem descanso os pobres homens heterossexuais.

Os ativistas que defendem os direitos humanos e a natureza também representavam um risco. Eram um claro obstáculo ao desenvolvimento da nação. “Hoje em dia é muito difícil ser patrão”, defendeu o ex-paraquedista não faz muito tempo. Para ele, os donos das grandes empresas e os latifundiários eram as verdadeiras vítimas esquecidas pelas ONGs. Oprimidos pelos direitos de seus trabalhadores ou pelas leis de preservação da natureza, os patrões são uma espécie indefesa que deve ser protegida. No dicionário de seus seguidores, a palavra “ativista” significava delinquente e “direitos humanos” era pouco mais que um palavrão.

Além de denunciar as terríveis injustiças que seriam perpetradas pela esquerda radical, o militar aposentado oferecia a solução para o grave problema da insegurança no país tropical. “Bandido bom é bandido morto”, gritavam seus acólitos. Seu plano inovador para melhorar a segurança era armar a população. Combater a violência com mais violência. Como ninguém tinha pensado nisso antes?

As armas foram, sem dúvida, o grande símbolo de sua cruzada pelo país. Em suas mãos, qualquer objeto se tornou uma alusão a elas. Na falta de um objeto, seus próprios dedos imitavam pistolas e revólveres. O ex-militar fez o gesto de disparar em inúmeras ocasiões, tanto que ninguém se lembrava mais de que tinha 10 dedos. Aqueles que o viram garantiam que ele só tinha dois dedos em cada mão: o indicador e o polegar, ambos manchados de pólvora.

Apesar de se apresentar como um herói à maneira de Chuck Norris, o ex-paraquedista não pôde esconder sua maior fraqueza: o medo do debate. Toda vez que enfrentou um adversário, perdeu seguidores. Os adversários o crivavam com argumentos, disparavam-lhe ideias e o acabavam com dados. Ele estava, pela primeira vez, desarmado e indefeso, perdido no meio de um tiroteio dialético. Portanto, como bom militar, optou por outra estratégia. Quando falava, preferia fazê-lo sozinho, em um discurso; ou de maneira acordada, com um interlocutor amigável. Adorava frases de efeito, geralmente vazias de conteúdo. O discurso de ódio se tornou seu melhor aliado e tirou milhares de intolerantes do armário. Para seus fãs, o desprezo pelas minorias era sinceridade, os ataques à liberdade de expressão eram puro senso comum e a defesa da repressão policial era pragmatismo. Para justificar o discurso de ódio, o carrasco se faz passar por vítima, o perseguidor diz que está sendo perseguido e o covarde se disfarça de herói.

Para surpresa de muitos, o militar aposentado conseguiu transformar seu delírio em realidade e no primeiro dia do novo ano tomou posse como presidente do país tropical. Para os narradores que descrevem suas façanhas é quase impossível explicar como o ex-paraquedista conseguiu convencer uma grande parte da população de que os moinhos de vento eram, na verdade, gigantes.”

Carla Guimarães