Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
A pandemia deixa lições claras: “o novo coronavírus se alastrou pelo mundo graças à ação destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza”, como afirmou o pesquisador Allan Carlos Pscheidt ao Brasil de Fato[1]. Um grande aprendizado da ecologia pode ser absorvido pelos indivíduos que vivem e refletem durante a quarentena do COVID-19. Somos apenas mais uma espécie no planeta Terra. Nossa soberba e irrefletida sanha de dominar os mais distantes quinhões da Terra com um modelo homogeneizado de relação ser humano-natureza colheu mais uma pandemia.
Imagine que delícia para um vírus aprender a se alimentar e aprender a viver no e do corpo humano. Pra quê se contentar de viver de/em morcegos, pangolins, cobras? O sonho de um vírus com pretensões “reais” é ser coroado como o desbravador de corpos humanos.
O reino microscópico ficou em alvoroço com mais essa conquista da evolução. A dinâmica da evolução microscópica é acelerada, a variabilidade genética boia no meio biótico. Crie a condição de um vírus conviver entre seus parentes que eles trocarão informações. Surgirá o suprassumo da seleção natural.
Um vírus com potencial pandêmico é aquele que balanceia transmissibilidade com letalidade. Se pesa demais na letalidade, seu hospedeiro padece rápido demais para se propagar. Se é pouco transmissível dá tempo para ser isolado e erradicado (saiba mais na Netflix: Explicando… Coronavírus[2]).
Para completar a performance desse novo jogador da evolução biológica, além de transmissível por vias aéreas, ele permanece de poucas horas no alumínio até 5 dias no plástico, e é possivelmente transmissível por via fecal-oral[3]. SARS-COV-2 disputa o páreo com Influenza e joga com ferramental qualificado.
Esse vírus é também sorrateiro, pode ficar até 14 dias para manifestar sintomas mais agudos, ou pode simplesmente não manifestar, usando pessoas como pontes para chegar em redes e perfis específicos, como exposto por Átila Iamarino [4]:
Na perspectiva de um parasita, a super população humana dá “água na boca”. É a mesma lógica das “pragas” que atacam uma monocultura. Monoculturas de soja dão água na boca da mosca-branca [5]. Se tivéssemos uma alfabetização ecológica [6] não ficaríamos assustados com a COVID-19.
O que assusta de fato é achar que o único caminho é fazer ambientes estéreis, itens descartáveis [7], manter as metrópoles superpopulosas e poluídas, sem saneamento, até que se encontre uma vacina para que possamos voltar à normalidade. O problema é a antiga normalidade!
Agora o Sars-CoV-2, covid-19 ou coronavírus – nomes dados ao vírus responsável pela pandemia em curso – parece apontar uma nova data para a mudança do século. Isso porque, segundo numerosos analistas, estaríamos diante de um evento que mudará a dinâmica do mundo contemporâneo. O nascimento do novo século – mais simbólico que cronológico – pressupõe mudanças culturais, sociais, econômicas e tecnológicas que reorganizarão os modos de vida e, sobretudo, as políticas de controle das populações (o que Michel Foucault chamou de biopolítica), bem como as políticas de controle das mentes (que Byung-Chul Han chama de psicopolítica), e que visam à otimização da produtividade por meio da autoexploração: cada indivíduo torna-se sua própria empresa, cujo sucesso ou fracasso só depende de si. [9]
A sociedade global precisou de duas décadas do novo século para cair na real da crise ecológica?
O retorno à antiga normalidade significa postergar a solução das causas das crises ecológico-sanitárias. A saúde humana é um estado complexo condicionado pelos determinantes sociais da saúde, que inclui uma relação dialética entre saúde humana e saúde ambiental. Ninguém se mantém muito tempo saudável em um ambiente doente.
Quando seu corpo demonstra padecer com sintomas de uma doença, o sábio altera hábitos, práticas e alimentações para auxiliar o sistema imunológico para superar a doença. Quando uma reação alérgica desponta, o sábio limpa o ambiente e se afasta do elemento alérgico.
As mudanças climáticas sozinhas não conseguiram despertar as massas para uma mudança de paradigmas de produção e consumo global. Perdemos a comunicação com as estações, com a dinâmica das águas, com os signos sutis do clima. Será que uma pandemia conseguirá?
Dizem que o peso de todas as formigas do mundo ultrapassa a massa de todos os seres humanos[10]. Porque a crise ecológica não foi desencadeada pelas formigas? Porque elas estão fazendo sua função ecológica. Nós, seres humanos, estamos fazendo nossa função? Estamos em contato com os sinais da natureza? Estamos buscando aprender essa linda enciclopédia ou estamos exterminando-a da forma como exterminamos culturas inteiras?
[3] Uma pequena porcentagem de indivíduos com coronavirus teve SARS-COV 2 identificados em seus tratos gastrointestinais: https://www.rivm.nl/node/153991?fbclid
Turista Espacial é um sci-fi fascinante e inovador. É capaz de unir os temas já bem batidos, como a viagem intergaláctica e o contato entre inteligências de diferentes planetas, com uma crítica social arguta de nossa civilização atual, ecocida e catastrófica. É uma obra em que a ficção científica abraça a ecologia, comentando de modo sagaz os dilemas e incógnitas do Antropoceno, ainda que o tom seja mais leve do que aquele dark mood que marca obras cruciais que depois explorariam sendas semelhantes: Filhos da Esperança (Children of Men), de Alfonso Cuarón, e Expresso do Amanhã (Snowpiercer), de Bong Joon-ho.
Assim que o filme se inicia, somos lançados a uma imersão em uma sociedade estranha, onde ocorre um ritual raro, difícil de decifrar: em meio aos verdes prados acariciados pela brisa, um matriarcado hippie realiza assembléias bucólicas onde debate-se, entre outros temas, a iniciativa de mandar representantes ao planeta Terra.
Logo o espectador percebe estar no seio de um filme de ficção científica dos mais espantosos, com aliens dos mais benignos e sábios, nada nojentos e fatais como aqueles construídos pelo clássico de Ridley Scott (Alien – O Oitavo Passageiro) e depois levado adiante nas obras de James Cameron e David Fincher.
Em La Belle Verte, de Coline Serreau, esses ETs humanóides têm anciãos que chegam a viver quase 300 anos. Esta longevidade toda foi alcançada bem longe do escarcéu terrestre de carros, bombas nucleares, guerras colossais, devastação ecosistêmica e extinção em massa da diversidade biológica e cultural. Longevos são os seres sábios que souberam acordar para a importância quintessencial do Verde, símbolo de uma união holística do organismo com o meio natural.
Na assembléia, um senhor pede a palavra e relembra os tempos em que esteve em Paris, na época turbulenta das Revoluções: lembra dos burgueses querendo guilhotinar a cabeça do rei, dos proletários querendo as cabeças de burgueses na bandeja, dos imperadores genocidas que se apropriam da república como se esta fosse sua propriedade e o instrumento dócil de seu imperialismo agressivo… O caos dos assuntos humanos é pintado em meio ao idílio extraterreno, onde Napoleão Bonaparte e Robespierre despontam com a aura tenebrosa de vilões, desprovido de halos heróicos. La Belle Verte tem a comunicar um outro ideal, anti-napoleônico, contrário às dominações imperiais mas também ao domínio humano excessivo sobre a Natureza, que nos leva a despencar na húbris e no ecocídio.
O filme, que além de dirigido, foi escrito e estrelado por Coline Serreau, abre com chave cômica: o retrato dos terrestes que nos é ofertado, se não chega a ser misantrópico, é pelo menos uma bem-dada caçoada risonha pra cima dos humanos da Terra. Somos risíveis criaturas estúpidas, ainda atreladas a carros que queimam energias fósseis e vomitam poluição; ainda cindidos em assassinas rivalidades patrióticas, étnicas ou tribais; tão pouco sábios que criaram uma situação planetária tão desgraçada e instável que nenhum dos ETs de inteligência média deseja entrar em contato conosco.
Na assembléia, não há quem se manifeste como voluntário para visitar a Terra; ninguém acredita na eficácia de uma intervenção humanitária alienígena; em suma, aos olhos da imensa maioria da assembléia de extraterráqueos, os earthlings são um caso sem esperança… O que lembra uma tirinha de Calvin e Haroldo que cai como uma luva neste contexto:
A protagonista do filme é única alien corajosa o bastante para vir nos visitar. Pousa na Terra e é subitamente fica maravilhada pelas grandes árvores de um parque de Paris, porém sente-se agredida e insultada em suas narinas pela atmosfera tóxica, mega-poluída, da megalópole francesa. O filme vai delineando suas barricadas no conflito ideológico, fincando sua fidelidade a figuras como Rachel Carson, autora de Silent Spring, que vociferou contra o DDT e os descalabros da indústria petroquímica em uma das obras fundamentais da ecologia no século XX.
A visitante do Além-do-Humano, desacostumada com aquilo que o hábito ensinou-nos que é natural, sai andando pelas calçadas de Paris, onde ela é intensamente consciente de que pisa sobre cimento que foi esparramado sobre a terra nua, o que impede o solo de ser espaço de uma florescência vegetal luxuriante. Nas calçadas, lotadas de bostas de animais que o poder público ainda não havia podido limpar através de seus lixeiros assalariados, ela não descobre muito espaço onde flores pudessem desabrochar do chão uniformizado pelo concreto. Cof, cof! – ela tosse enquanto desvia dos cagalhões dos totós de madame e viralatas de punks.
A ideia principal que impulsiona o enredo de La Belle Verte é a do planeta e seus habitantes humanos vistos a partir da perspectiva de alguém que chega provindo de uma civilização mais sábia. Mas aqui não se trata de viagem no tempo, rumo ao passado: nesta sci-fi, não há gente do futuro entrando em máquinas-do-tempo como as célebres parafernálias de Back Into The Future, a trilogia de Robert Zemeckis. Trata-se de viagem pelo espaço que conecta entes de diferentes graus de evolução da inteligência – sendo que os humanos perdem de lavada neste quesito. Somos os estúpidos do cosmos, ainda que, neste planetinha, alguns se gabem de serem os sabichões da Terra.
Enredos semelhantes impulsionam obras sci-fi como K-Pax (de Iain Softley) e Hombre Mirando A Sudoeste (de Eliseo Subiela), pois em ambos os filmes os visitantes do espaço sideral são tratados como loucos, internados em hospícios, alvos de hipnoses ou lobotomias. Em ambos se estabelece um contraste entre a sabedoria do forasteiro e a estupidez dos terráqueos, estratégia narrativa que frisa a possibilidade de criaturas mais inteligentes que nós existirem na pluralidade de mundos que constitui o Universo – para relembrar o título do livro clássico de Fontenelle.
A Bela Verde, neste caso, está experimentando pela primeira vez a poluição atmosférica, a barulheira estridentíssima e dissonante, de uma metrópolis humana no mundo dito Ocidental, civilizado, capitalista, consumista, auto-proclamado modelo supremo de como devem viver os povos. A Bela Verde é mais intensamente sensível a tudo o que os humanos tem de bizarro: com seu olhar limpo de interesses humanos, ela observa as mulheres fúteis que desfilam embonecadas pelos bairros comerciais e shopping centers, e pergunta-se, fitando os brincos espalhafatosos grudados às suas orelhas, se não seriam aqueles alguns símbolos religiosos de um culto bastante primitivo…
Uma das cenas mais significativas se dá quando ela pára diante de uma açougue e pela primeira vez depara com o espantoso espetáculo daquela “a exibição de cadáveres”. A Bela Verde, em sua ingenuidade, fica chocada por encontrar uma vitrine por detrás da qual estavam expostos partes dos corpos-sem-vida de animais recentemente sacrificados; as autoridades responsáveis pela construção e sustentação de tal sistema talvez explicariam à forasteira, do alto de suas presunções olímpicas, que aquilo que ela via no açougue era nada mais, nada menos, do que… mercadoria. “Deixemos de sentimentalismos quando se trata de incrementar nossos benefício$$$!”, poderiam dizer-lhe, ofertando-lhe um espetinho de vaca engordada à força, empanturra de antibióticos, criada em cativeiro absoluto, em meio à lotação desagradante de abatedouros que, se tivessem paredes de vidro, fariam vomitar a quase todos aqueles que hoje deleitam-se com salsichas e filés de frango…
Além da mercantilização em massa da carne animal, a Bela Verde também fica estarrecida com os carros, intermináveis, invasivos, que dominam a cidade como se fossem de fato seus imperadores, como se merecessem todos os privilégios. Onde outrora havia um pomar transbordante de frutas, ou um parque repleto de coqueiros, ou uma floresta abrigadora de miríades de diversas espécies de seres vivos, agora o que há… é um estacionamento! E este cobra preços abusivos. Em cada esquina, um posto de gasolina que vende petróleo roubado do Oriente Médio, provavelmenmte após invasão imperialista genocida justificada como “Cruzada Anti-Terrorista”.
O cogumelo atômico é a coroa na cabeça desta Sociedade Burguesa Globalizada, provando que sua estupidez, longe de ser negligenciável, é pra lá de perigosa. A extinção de espécies que o diga.
Quando nos auto-proclamamos os fodões da Criação, os filhos prediletos de Deus-Pai Todo-Poderoso, e partimos para a dominação e exploração generalizada da Natureza, produzindo escarros colossais de substâncias tóxicas e gases de efeito estufa no ambiente que sustêm a Vida em suas múltiplas formas, tornamo-nos os inimigos de nós mesmos, carrascos da mãe nutriz, aqueles que põe fogo em seu próprio lar (como sugere o mother! de Darren Aronofsky).
E assim nos tornamos os devastadores de boa parte daquilo que vive conosco. A miríade de organismos vivos que, só pelo fato de possuir a vida como propriedade comum e destino compartilhado, já mereceria ser tratado por nós como algo de mais digno do que estoque de bacon ou recheio de McNuggets e McChickens. Neste globo infestado por junk food e agrotóxicos, epidemias corporativas disparadoras de imensas crises de saúde pública, é bom lembrar: nos EUA de hoje, por exemplo, explodiram os índices de obesidade e diabetes, o que está intimamente conectado ao sistema de alimentação que eles deixaram tornar-se hegemônico.
Por essas e outras, considero Turista Espacial um filme digno de louvores e atenções, ainda que muitos espectadores possam torcer o nariz para um certo “didatismo” que transforma este filme de ficção científica em algo parecido com uma aula de ecologia. Junto com Ponto de Mutação (Mindwalk), filme baseado na obra homônima de Fritjof Capra, a obra de Coline Serreau tem muito a nos ensinar sobre como viver e conviver melhor neste planeta que a cada dia se parece mais com uma terra devastada.
A ideologia veiculada com o filme conecta-se com aquela dos teóricos do decrescimento, como Serge Latouche; com os ensinamentos de Alan Watts sobre O Que Está Errado Com Nossa Cultura; com os ensinamenos de Small Is Beautiful de Schumacher; com as obras de pensadores contemporâneos cruciais como Vandana Shina, Raj Patel, David Suzuki, Arundhati Roy, Davi Kopenawa. Que o cinema possa ser uma força de transformação social, ou mesmo de inseminação utópica, é algo óbvio para quem conhece iniciativas como a Films For Actione para quem já assistiu Dirt!,Disruption, The Age Of Stupid,The Secret of the Seven Sisters, dentre outros. Turista Espacial está aí para somar forças a esta eco-legião.
Retrato do poeta Shelley escrevendo “Prometeu Libertado” (Prometheus Unbound). O quadro é do pintor Joseph Severn, 1845.
Talvez não haja modo mais eficaz de questionar um carnívoro do que colocando a interrogação, tão simples quanto embaraçosa: você seria capaz de matar a tua própria janta? O poeta inglês Shelley, invocando um experimento que Plutarco propunha, sugere a seu leitor que imagine-se em uma situação em que “com os próprios dentes, arranca um membro de um animal, mergulha a cabeça em suas vísceras, satisfaz sua sede com o sangue que jorra aos borbotões…” (SHELLEY: V.N.D., pg. 573) Você acha que seria capaz, após uma vivência dessas, de dizer que a Natureza te fez de modo a encontrar deleite e serenidade no exercício cotidiano de tal atividade alimentícia?
Calma! O poeta não está convidando-nos a praticar de fato uma tentativa de ir à caça sem outros instrumentos senão aqueles de que a Natureza nos equipou, para depois pôr em exercício a devoração de carne crua. Tais atitudes seriam desviantes em relação às normas civilizacionais em vigor há tantos milênios e que estabelecem um tabu em relação à carne que não foi tocada pelo fogo. Shelley solicita-nos que imaginemos os afetos que tomariam conta de nós diante de uma tarefa como esta: comer um bicho cru, sem que ele antes passe pela cozinha ou pela fábrica. A resposta de Shelley é que há uma reação “instintiva”, visceral, supra-racional que toma conta do ser humano diante da perspectiva de um banquete como este, que tendemos a considerar subhumano pois semelhante àquele que os leões impõem às zebras ou que os abutres praticam sobre as carcaças.
Na Selva que os civilizados pretendem ter deixado para trás, soterrada pelos edifícios suntuosos da Civilização, não há mais permissão dada para esta selvageria da carne crua, mas vigora aquilo que se considera como o zênite civilizacional insuperável: a carne cozida. Mas será que chegamos mesmo no topo? É isso o melhor que podemos fazer e não devemos esperar por nada melhor do que isso?
Segundo o poeta Shelley (que nisto acompanha Plutarco, Pitágoras, além de milênios de sabedoria indiana…) é irrecusável o fato de que experimentamos, diante da perspectiva de matar a nossa própria janta e depois devorá-la sem preparação culinária alguma, sensações intensas de repugnância, de nojo, de recusa. É como se a própria natureza humana vomitasse diante de uma prática como nos alimentarmos com a carne crua de animais recentemente ceifados por nossas próprias mãos nuas.
Tanto que poderíamos dar o nome de tecnologia àquilo que faz por nós o serviço sujo: para que não sujemos as mãos de sangue, pagamos para que a “tecnologia” e seus operadores corporativos matem por nós o que não queremos matar sozinhos. E tudo para que possamos devorar a carne de seres vivos recentemente assassinados com argumentos tão sólidos quanto: “Agrada-me muito o sabor desta salsicha!” ou “Que fragrância sublime emana desse churrasco!”
Shelley, em seu ensaio “A Vindication of Natural Diet” (1813), sustenta a tese de que a humanidade é naturalmente frugívora ou vegetariana, e que o carnivorismo ou omnivorismo não passa de uma perversidade inventada pela Civilização. Aqui, é claro, não se trata da Civilização que é celebrada por seus ideólogos e demagogos papagaios, mas sim de uma Civilização enxergada criticamente, posta em questão por um de seus integrantes mais contestatórios e interrogativos, e que foi confrontada História afora pelo levante rebelde de figuras como Jean Jacques Rousseau, Friedrich Nietzsche, Henry David Thoreau, dentre tantos outros, que identificam a decadência de um Civilização a partir do sintoma deste maléfico distanciamento que o humano realiza em relação à Natureza, alienando-se dela e passando a percebê-la como um inimigo a vencer, como um escravo a submeter e controlar. A dieta carnívora, em Shelley, aparece como um dos sintomas de uma civilização que instaura um divórcio pernicioso, que cinde-nos e divide-nos, apartando-se da Natureza e embrenhando-nos nas teias do artifício, com atrozes consequências.
Em Shelley – como ocorre em boa parte da poesia dita Romântica do séc. 19 – a Civilização é sistematicamente acusada por suas imperfeições inúmeras, suas insensatas húbris e manias, seus desarranjos passionais e destrutivos que se manifestam, por exemplo, no clamor das guerras e na cotidianização dos massacres animais institucionalizados. As instituições civilizadas do presente histórico do poeta aparecem-lhe como que encharcadas de sangue, maculadas por vícios sem fim, como por exemplo o de se serem devotadas ao exercício da força bruta e do domínio tirânico. [#2]
A importância histórica do fogo no caminhar evolutivo da humanidade e suas instituições não pode ser subestimado, e não somente pois o fogo tanto contribuiu para o avanço das artes mortíferas da guerra. O pensamento de Shelley evoca fortemente a importância do fogo como peça-chave para a modificação dos hábitos de alimentação humanos – o Fogo representa o momento da Queda, em que mordemos o fruto do pecado e despencamos rumo a uma condição de doença, apetites desnaturados, intemperanças pagas com o custo de tormentos e sofrimentos infindos. O fruto do pecado – ousa proclamar o poeta rebelado, em herética intenção de re-escrever os Evangelhos! – não é a maçã… mas sim a carne. Os mestres da pintura flamenga, ao pintarem o cenário mítico do Gênesis bíblico, souberam bem enfatizar a harmonia-com-os-animais que vigia no Éden antes do Pecado Original; ali, no Paraíso primevo de que o casal primordial é expulso, não há carnivorismo e nenhum dos animais sai correndo, temeroso por sua vida, quando depara com Adão e Eva:
“Adam and Eve eating of the tree of evil, and entailing upon their posterity the wrath of God, and the loss of everlasting life, admits of no other explanation than the disease and crime that have flowed from unnatural diet. (…) Comparative anatomy teaches us that man resembles frugivorous animals in everything, and carnivorous in nothing; he has neither claws wherewith to seize his prey, nor distinct and pointed teeth to tear the living fibre. (…) It is only by softening and disguising dead flesh by culinary preparation that it is rendered susceptible of mastication or digestion, and that the sight of its bloody juices and raw horror does not excite intolerable loathing and disgust.”
PERCY SHELLEY, “A Vindication of Natural Diet” (1813), pgs. 571 e 573.
Shelley conhece profundamente toda a carga mítica que envolve com suas auréolas a questão do FOGO nas mitologias de várias civilizações, que não se cansam de tecer poeticamente o tecido simbólico social através de narrativas como as de Prometeu (na cultura grega) ou Agni (na cultura indiana). Prometeu, o Titã que rouba o fogo do Olimpo, em desobediência desabrida aos ditames de Zeus, é portanto uma encarnação mítica da relevância do fogo na história humana, que Shelley enxerga indissoluvelmente conectada a uma prática social que só se tornou possível após o controle humano das chamas ser conquistado. O fogo é aquilo que possibilita o carnivorismo; não haveriam humanos carnívoros se não fosse pelo turning point realmente revolucionário que foi na História da espécie o ganho de comando sobre o fogo, elemento até então ingovernável e que enfim a Humanidade descobre-se como governante.
Ora, Shelley tem argumentos de sobra para defender sua tese de que não é natural para os humanos comer carne. Shelley defende que o carnivorismo é algo cuja existência histórica está condicionada aos artifícios tecnológicos, a começar pelo fogo, que permitem seu cozimento e, portanto, seu consumo. Não teríamos coragem, e nosso organismo mesmo se revoltaria, caso tentássemos viver baseados em uma dieta de carne crua. Só o fogo é que permite que estes animais frugívoros que somos, tão intensamente aparentados com os orangotangos (primatas célebres por serem 100% vegetarianos), vivamos à base de carne animal. O presente de Prometeu aos humanos – o fogo roubado dos céus – foi aquilo que permitiu-nos impor o domínio tirânico sobre a Natureza e que que permitiu a uma fração da humanidade ir contra a sua própria inaptidão inata para o carnivorismo. Mas uma dieta tão desnaturada não pode ter como efeito senão a tortura de sermos punidos pelo constante ataque do abutre da Doença.
“The story of Prometheus is one likewise which, although universally admitted to be allegorical, has never been satisfactorily explained. Prometheus stole fire from heaven, and was chained for this crime to Mount Causasus, where a vulture continually devoured his liver, that grew to meet its hunger. Hesiod says that before the time of Prometheus, mankind were exempt from suffering; that they enjoyed a vigorous youth, and that death, when at length it came, approached like sleep, and gently closed their eyes. (…) How plain a language is spoken by all this. Prometheus (who represents the human race) effected some great change in the condition of his nature, and applied fire to culinary purposes; thus inventing an expedient for screening from his disgust the horrors of the shambles. From this moment his vitals were devoured by the vulture of disease.” (SHELLEY, V.N.D., pg 573)
Vê-se que Shelley pretende interpretar o mito de Prometeu de modo bem semelhante à sua decifragem do mito de Adão e Eva: ambos são narrativas sobre uma Queda ocasionada por uma ruptura que a Humanidade estabelece com a dieta natural a que nossos corpos, anatomica e fisiologicamente, convidam-nos a seguir e respeitar. Prometeu, simbolizando a humanidade, adquire o hábito de comer carne – mas exclusivamente a carne cozida – somente após empregar sobre sua caça o fogo que roubou dos céus. O carnivorismo, portanto, longe de ser originário e natural, surge em certo momento da história, aquele em que a Humanidade ganha um domínio sem precedentes sobre a Natureza por ter aprendido a comandar o poder antes acreditado como privilégio dos deuses, aquele poder de combustão continuada que em espanto e incompreensão o ser humano vê, em plena operação mas à distância abissal, nos caldeirões cósmicos das estrelas.
O poeta não se abstêm de falar no tom do profeta ou do moralista: Shelley, como um punk straight-edge que tivesse lido doses cavalares de Ésquilo e Milton, vocifera não só contra a dieta carnívora, que considera uma perversão da natureza humana, mas também contra o alcoolismo: “How many thousands have become murderers and robbers, bigots and domestic tyrants, dissolute and abandoned adventurers, from the use of fermented liquors; who, had they slaked their thirst only at the mountain stream, would have lived but to diffuse the happiness of their own unperverted feelings.” (SHELLEY, V.N.D., p. 576)
Não devemos porém compreender o discurso de Shelley como apologia do ascetismo, da auto-mortificação, do auto-sacrifício; ao contrário, se Shelley faz o elogio da “dieta natural” (isto é, do vegetarianismo) é pois considera que ele é vantajoso tanto do ponto de vista individual (dando-nos saúde e longevidade) quanto do ponto de vista coletivo.
Shelley considera que a dieta natural é perfeitamente compatível com “um sistema de perfeito epicurismo”, baseado nos deleites serenos possibilitados pela temperança, pela frugalidade, por uma conduta norteada pelos valores da amizade e da compaixão por todas as criaturas sencientes.
Um epicurista Shelleyano é vegetariano também pelo prazer que isso dá, tanto por ser saudável ao corpo quanto por agradar à mente sabermos que não somos alguém que deleita-se com o sofrimento de outros seres vivos, ou seja, que estamos livres do ímpeto malsão de gozar com a crueldade e o exercício do domínio tirânico. Se Shelley procura convocar o ardor de novos entusiastas para a sua causa, é a partir da propaganda que faz dos extensos e largos benefícios que decorreriam da re-harmonização do homem com sua dieta natural (frugívora, vegetariana).
A inteligência e a sensibilidade do ser humano, espera o poeta, hão em um dia glorioso de nosso futuro, quando enfim nos tornarmos mais iluminados, dar como frutos a capacidade para a simpatia, a empatia, a gentileza: “it will be a contemplation full of horror and disappointment to his mind, that beings capable of the gentlest and most admirable sympathies, should take delight in the death-pangs and last convulsions of dying animals.” (SHELLEY, V.N.D., p. 581)
Já do ponto de vista da saúde e da felicidade coletivas, é incrível o quão contemporâneo é o argumento de Shelley – veiculado em um texto que, apesar de escrito no começo do século 19, prossegue válido 200 anos depois. Ainda que não tenha conhecido nada que se assemelhe ao nosso atual sistema de pecuária industrial [factory farming], Shelley era agudamente consciente das contradições obscenas de uma sistema de produção de alimentos que condena tantos milhões à subnutrição e à miséria, enquanto dá a alguns privilegiados o poder de deleitar-se com carnes. Os animais, engordados com alimentos vegetais que poderiam perfeitamente ser consumidos diretamente pelos humanos, representam uma maneira depredatória, anti-ecológica e ademais ineficaz de produzir os meios concretos de alimentar a contento o conjunto da humanidade.
Em sintonia com argumentos avançados tanto por documentários contemporâneos (como Cowspiracy e Meat The Truth) quanto pelos pesquisadores e acadêmicos mais renomados do ramo (como Raj Patel e Peter Singer), Shelley denuncia o sistema carnívoro como poluente, desperdiçador, insustentável, eticamente inaceitável e ecologicamente abominável: “The quantity of nutritious vegetable matter consumed in fattening the carcase of an ox would afford ten times the sustenance, undepraving indeed, and incapable of generating disease, if gathered immediately from the bosom of the earth. The most fertile districts of the habitable globe are now actually cultivated by men for animals, at a delay and waste of aliment absolutely incapable of calculation. It is only the wealthy that can, to any great degree, even now, indulge the unnatural craving for dead flesh, and they pay for the greater license of the privilege by subjection to supernumerary diseases.” (SHELLEY, V.N.D., p. 581)
É um argumento que George Monbiot, um dos jornalistas mais bem informados em atividade em nossos tempos, retoma em texto artigo recente: “Manter animais insalubres em currais lotados requer montes de antibióticos. (…) Esse sistema é também devastador para a terra e o mar. Animais de fazendas industriais consomem um terço da produção global de cereais, 90% do farelo de soja e 30% dos peixes capturados. Se os grãos que hoje alimentam animais fossem destinados, em vez disso, às pessoas, mais 1,3 bilhão de indivíduos poderiam ser alimentados. Carne para os ricos significa fome para os pobres.”
Em seu tempo, Shelley pôs todo o ardor de seu verbo incendiado e rebelde para conclamar todos aqueles que amam a felicidade e a justiça a darem uma chance ao vegetarianismo; o poeta argumenta que re-converter-nos à dieta natural servirá para que colhamos imensos benefícios individuais e coletivos. Em um dos livros mais completos e minuciosos sobre a história do vegetarianismo, The Bloodless Revolution do historiador inglês Tristam Stuart, o autor resume assim as posições de Shelley – que viriam a causar um grande impacto e repercussão na posteridade por terem sido posteriormente abraçadas por Mahatma Gandhi, indiano enraizado em uma cultura que há milênios pratica a dieta natural que o poeta, dissonante em relação ao Império Britânico de sua época, defende tão apaixonadamente:
“For Shelley, meat-eating was the Pandora’s box that introduced savagery into the world, and vegetarianism was the key with which it could be locked away again. Eating animals was the equivalent of the Fall; it turned man into the tyrant of the world and introduced inequality into both natural ecologies and human society. By ceasing to eat animals, man would return to his natural place as ‘as equal amidst equals’. (…) Shelley’s thoughts were indeed driven across the world like leaves, when Mahatma Gandhi re-exported them to India and scattered them as inspirational ashes and sparks in the largest non-violent movement of radical liberation the world has ever seen.” (STUART, B.R., p. 386)
NOTAS
1) Plutarco, em seu ensaio On The Eating of Flesh, do primeiro século depois de Cristo, escreve: “Man has no hooked beak or sharp nails or jagged teeth, no strong stomach or warmth of vital fluids able to digest and assimilate a heavy diet of flesh.” (apud STUART, p. 142) Pierre Gassendi (1592-1655) irá trabalhar, expandir e aprimorar o argumento de Plutarco, dizendo que comer carne crua é algo naturalmente repelente aos humanos: “Nature intended men to follow, in the selection of their food, not the carnivores, but the herbivores which graze on the simple gifts of the Earth.” (apud STUART, p. 142)
2) A fúria do poeta dirige-se, por exemplo, aos “hábitos militares”, “introduzidos pelos tiranos e com os quais a liberdade é incompatível”, que são inculcados em pessoas até que elas percam parte essencial de sua humanidade e tornem-se soldados. Um soldado, para Shelley, é sempre um escravo, a quem foi ensinada a obediência estrita às ordens de um superior hierárquico, de modo que sua vontade não é mais guiada por seu próprio julgamento: “He is taught obedience; his will is no longer – which is the most sacred prerogative of man – guided by his own judgement. He is taught to despise human life and human suffering; this is the universal distinction of slaves. He is more degraded than a murderer; he is like the bloody knife which has stabbed and feels not; a murderer we may abhor and despise, a soldier is by profession beyond abhorrence and below contempt.” (SHELLEY: On The Sentiment of the Necessity of Change, p. 623)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SHELLEY, P. The Selected Poetry and Prose. Wordsworth Poetry Library.
STUART, T.The Bloodless Revolution. Norton & Company, New York / London, 2006. Amazon.
Percy Shelley’s portrait by Alfred Clint
No longer now the winged habitants, That in the woods their sweet lives sing away, Flee from the form of man; but gather round, And prune their sunny feather on the hands Which little children stretch in friendly sport Towards these dreadless partners of their play. All things are void of terror: Man has lost His terrible prerogative, and stands An equal amidst equals.
Directed by Dean Puckett
Animations by Lucca Benney
Based on the Book by Nafeez Mosaddeq Ahmed
The film consists of seven parts which explore the interconnected dynamic of global crises of Climate Catastrophe; Peak Energy; Peak Food; Economic Instability; International Terrorism; and the Militarization Tendency — with a final section on The Post-Peak World. Featuring clowns, car crashes, explosions, acrobats, super heroes, xylophones and much, much more!
“Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” HANNAH ARENDT em “A Condição Humana”
Pode-se chamar a Humanidade de tudo, menos de estática: ela é sempre móvel e mutante. Metamorfose ambulante, tamanho “família”. A teia da vida, lembrava a sabedoria do xamã Seattle, é algo que nós integramos, mas que o “Ocidente” hegemônico enxerga como algo a controlar, explorar, consumir. Tudo o que fizermos à teia, faremos a nós mesmos – a isso, no entanto, muitos são cegos. Hoje a intervenção humana sobre a evolução da vida atingiu proporções tão gigantescas que estudiosos falam que chegamos a uma nova era, o Antropoceno. O homem é capaz de criar terremotos – man-made earthquakes – e tem condições de, através da continuação de suas práticas industriais, causar um aumento exponencial das temperaturas do globo, com consequências bastante funestas para a teia da vida em evolução. Tudo isso, novo e inaudito, tem com urgência que ser pensado – donde a valiosidade de jóia rara da obra, sábia e recompensadora, de Michel Serres.
Ora, “a evolução resulta de seleções e mutações. Darwin descobriu (…) que mutações criam novidades. O novo aparece e subsiste pela mutação, o mais adaptado subsiste pela seleção.” (SERRES, Hominescências, pg. 17). Como Michel Serres lembra, uma mutação, no sentido biológico do termo, é uma novidade que emerge no seio dos seres vivos. Pode ser novidade benéfica ou malsã para o seu “portador”, para o ser vivo que carrega em seu corpo esta novidade. Quem decidirá se o novo vencerá sobre o “antigo” é o meio ambiente e a seleção natural nele operante. No entanto, dentre as novidades desta era de que somos contemporâneos está o aumento do poderio da espécie humana sobre o conjunto do planeta Terra. De modo que praticamos, ao mesmo tempo, ações capazes de causar a extinção de incontáveis espécies de bichos e plantas, ao mesmo tempo em que já “começamos a decifrar a biblioteca dos genes destruídos e a sonhar com a reconstituição, ou mesmo a invenção de espécies.” (SERRES, Hominescências, pg. 15)
Antropobichos, fiquem alerta! É o advento, chegada, gênese, de uma nova época: o antropos em sua húbris destravou uma nova era. O advento do Antropoceno, que tem sido tão alardeado por autores como Bruno Latour e Eduardo Viveiros de Castro, antropobichos da estirpe curiosa, altamente auto-reflexiva e alter tropista, dos antropólogos. Não faltam representantes, dentre os que puseram seu Lógos para refletir sobre o Antropos, que garantem que agora nós – os humanos em seu conjunto – transformamo-nos numa força planetária como nunca dantes fomos.
E isso não é necessariamente uma boa notícia, porque há a possibilidade de que a humanidade seja, em seu conjunto, uma potência muito mais destrutiva do que construtiva – ou, para relembrar uma provocação de um professor de biologia que tive, “talvez o homo sapiens seja a pior praga ecológica sobre a face da Terra”. Será? De todo modo, meu xará Dudu Viveiros de Castro garante que deveras entramos no tal Antropoceno e que não há mais como escapar pra trás e voltar ao passado, além de ser impossível cancelar as catástrofes que já causamos e cujos efeitos ainda sentiremos, num longo prazo muito mais amplo do que a duração, limitada, de qualquer civilização.
Apertem os cintos: o clima vai ficar tenso. A panela de pressão planetária tenderá a ficar explosiva com 450ppm de CO2 na atmosfera… Com o espectro da geoengenharia a rondar nossas catástrofes climáticas, somos constantemente lembrados pelas acontecências recentes de que “as civilizações também morrem”, para citar a frase lapidar do poeta Paul Valéry. É também uma percepção que emana da obra de Jared Diamond, estudioso dos colapsos civilizacionais, que soube encontrar um tom bem pedagógico para comunicar, pela televisão, o tamanho gigante do problema em que estamos, nós os humanos, metidos até o pescoço.
Jared Diamond (born September 10, 1937) is an American scientist and author best known for his popular science books The Third Chimpanzee (1991), Guns, Germs, and Steel (1997, awarded a Pulitzer Prize), Collapse (2005) and The World Until Yesterday (2012). Originally trained in physiology, Diamond’s work is known for drawing from a variety of fields, including anthropology, ecology, geography, and evolutionary biology. As of 2013, he is Professor of Geography at the University of California, Los Angeles.
Em Michel Serres, escritor que venho descobrindo com grande deleite, fascinado por sua sabedoria, encontrei algumas das mais fortes palavras que descrevem este nosso desconhecido, o Antropoceno. Ele ainda está raiando; muitos milhões de humanos ainda nem ficaram sabendo que ele está entre nós. No que consiste? Nisto:
Michel Serres, filósofo francês, nascido em 1930, membro da Academia Francesa.
“Sem dúvida, jamais tivemos meios tão eficazes e universais para mudar o mundo e a nós mesmos, assim como o ar, poluído ou puro, a terra, cultivada ou desertificada, a água, potável ou envenenada, o fogo, enérgico ou destruidor, o clima global, nosso meio ambiente inerte e vivo, nossos corpos individuais, as espécies vivas em seu conjunto, a função da descendência, a ocupação da terra e do espaço, nossas relações e nossas coletividades, a vida ou a morte das línguas e culturas, o estatuto e a continuação das ciências, a cognição em geral, a luta contra a ignorância e a pedagogia. De agora em diante, cada uma dessas coisas e todas elas em conjunto dependem de nós… Comparados com nossos antigos poderes, os que adquirimos agora mudaram rapidamente de escala; passamos recentemente do local ao global, sem que dele tivéssemos nenhum domínio conceitual e nem prático.” (SERRES, Hominescências, pg. 20)
É imensa, pois, também esta nossa nova e recém-nascida responsabilidade, teorizada tão brilhantemente por Hans Jonas em sua obra seminal O Princípio de Responsabilidade. Michel Serres, na história da ética contemporânea, tem uma importância que julgo equiparável à de Hans Jonas, em especial por ter proposto uma utopia, por ter ousado apostar na esperança de uma hominescência. A nova condição humana exige o advento de uma nova Humanidade, com outra (expandida) consciência. Pois, como lembra Serres, aqui e agora a gente “decide, em tempo real, como sobreviverão as gerações futuras.” (SERRES, Hominescências, pg. 21)
O Antropoceno, esta era em que a Humanidade torna-se força geológica, capaz de desencadear gigantescas mudanças climáticas, manipuladora e aniquiladora de outras espécies, aprendiz de feiticeira com o gênio da genética, ainda com a memória atordoada pelos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, traumatizados ainda com as gulags e os campos de concentração, chocados com o que pudemos fazer sob fascismos e totalitarismos, mas por outro lado espantosamente amelhorados em nossa expectativa de vida, em nossa farmacopéia de intervenção medicamentosa e psicotrópica, em nossa capacidade de comunicação inter-conexa e na velocidade de nossas novas mídias, vivemos na gangorra entre a catástrofe e a promessa. Estamos nas dores de parto de uma nova Humanidade e ainda não é possível saber quais seus atributos, quais serão suas proezas e seus horrores; só sabemos que:
“Nossas novas capacidades de construção, exploração, destruição, aliadas ao nosso crescimento populacional e à violência arcaica e comum, arrastaram-nos, hoje, a um ponto, a uma extremidade inesperada no tempo em que essa eficácia recente de nossos saberes, técnicas, enfim, de nossos poderes, encontra e transforma o destino global dos seres humanos, a evolução das espécies vivas e o estado do planeta. (…) Descrevo o momento preciso e decisivo que vivemos hoje. Ei-lo: pela primeira vez convergem, nesse ponto, nossa história cultural, milenar, a cronologia hominal, milionária, a evolução dos seres vivos e a física da Terra, ambas bilionárias… Instante de tal novidade, que nos mantemos ainda cegos ao seu advento.
Esse polo policromático jamais ocorreu; desde que o Mundo funciona, ele jamais se apresentou. Insensíveis a essa data tão estranha, não a percebemos. (…) O fluxo da História despeja suas águas, rápidas, naquelas, lentas, da hominização, e naquelas, mais estranhas, da evolução e da cosmogonia. Vivemos, pensamos e agimos hoje… em face do Homem, da Vida e do Mundo, três antigas abstrações que se concretizam conjuntamente nessa e por essa confluência de tempos. (…) Na data presente é essa a referência segundo a qual nossas ações devem, daqui para a frente, orientar-se, definir-se, decidir-se.” SERRES, Michel. A Guerra Mundial (La Guerre Mondiale). Bertrand Brasil, RJ, 2008.Pg. 18.
Considero Ernest Becker – vencedor do prêmio Pulitzer de 1974 por “A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana” – um dos mais profundos pensadores do século 20. A abordagem multidisciplinar de Becker, que une Psicologia, Antropologia, Filosofia, Sociologia e Crítica Cultural, permitiu que ele compreendesse a condição humana com uma extraordinária amplidão de visão. Grande leitor e comentador de Freud e Otto Rank, dos existencialistas e de Kierkegaard, de Huizinga e Norman O. Brown, dentre muitos outros autores com o qual dialoga, Ernest Becker foi um brilhante e inovador “sintetizador” do problema antiquíssimo e sempre atual da Mortalidade.
O filme “Flight From Death”, que A Casa de Vidro aqui compartilha na íntegra, é o primeiro documentário calcado na obra de Ernest Becker – e é uma excelente porta-de-entrada para os grandes temas explorados nos livros de Becker. Narrado por Gabriel Byrne e com declarações contundentes de figuras como Sam Keen, Robert Jay Lifton e Irvin Yalom, o filme é uma excelente exploração de como as mais variadas culturas inventam meios para lidar com a finitude da existência humana – e quais são as consequências disso para as relações interpessoais e interculturais.
Uma das idéias-chave do pensamento de Ernest Becker é a de que só compreenderemos a Humanidade, inclusive em suas manifestações mais horrendas (guerras, massacres e arroubos cotidianos de agressividade), quando entendermos nossa relação com o fato incontornável de nossa mortalidade, tão denegada, renegada, sublimada e mal-compreendida. A prática da negação da morte, por exemplo, que Becker descreve como uma denegação tanto psíquica quanto cultural, como prática não só individual mas coletiva, é essencial para a nossa compreensão de nós mesmos e de nossas coletividades.
Doutrinas destinadas a confortar-nos com a ideia da imortalidade estão presentes nas mais variadas culturas e atravessam a história desde os tempos mais arcaicos até a contemporaneidade, A obra de Becker procura avaliar as consequências destas crenças e destes sistemas culturais, em especial quando entram em choque. Afinal de contas, a negação-da-morte tem várias facetas (uma cultura vizinha nega a morte de modo diferente do que a minha própria cultura, assim como em tempos passados vigiam outros tipos de ideologias de negação da morte…) e quase sempre há “clashs” sangrentos entre diferentes sistemas culturais em suas práticas denegadoras da mortalidade.
Enfim, é um excelente filme! Baseado na obra de um pensador que considero muito subestimado, e que está entre os meus psicólogos e filósofos prediletos, um grande desvendador da condição humana e que merece ser muito mais lido e discutido do que é atualmente. A contribuição dele é imensa, em especial a análise de nossa tendência psíquica de fingirmos que somos imortais, agarrando-nos a doutrinas negadoras-da-morte oferecidas no supermercado das culturas. A problemática da fé religiosa é compreendida a partir dos desejos psíquicos que ela satisfaz, mas penso que Becker vai muito além do que expõe Freud em “O Futuro de Uma Ilusão” e tem um pensamento até mais multi-facetado do que o do Pai da Psicanálise.
Deixem-se provocar e refletir por este documentário crucial, que explora as idéias magistrais de Ernest Becker sobre a agressividade humana, o choque de civilizações, a repressão da consciência da mortalidade e suas consequências (tanto individuais quanto coletivas), entre outros temas suculentos, desmascarados sem medo por um filme corajoso e provocativo. É ótimo instigador de reflexões para antropólogos, sociólogos, filósofos, psicólogos e quem quer que se interesse por compreender a condição humana, esta que é tão lotada de “som e fúria”.
Coloquei o vídeo inteiro no Vimeo em 3 partes, saquem aí (em inglês, sem legendas):
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“Patrick Shen’s award-winning “Flight From Death: The Quest for Immortality” is a provocative study of “death denial” in cultures around the world. It draws upon the expertise of scholars, theologians and philosophers to examine how human behavior is influenced by the universal fear of death, especially in a post-9/11 climate of terrorism. It’s a stimulating, ultimately life-affirming film, filled with big ideas and revelatory footage.” -Seattle Times
“Narrated by Golden Globe Winner Gabriel Byrne (Usual Suspects, HBO’s In Treatment, Miller’s Crossing), this 7-time Best Documentary award-winning film is the most comprehensive and mind-blowing investigation of humankind’s relationship with death ever captured on film. Hailed by many viewers as a “life-transformational film,” Flight from Death uncovers death anxiety as a possible root cause of many of our behaviors on a psychological, spiritual, and cultural level.
Following the work of the late cultural anthropologist, Ernest Becker, and his Pulitzer Prize-winning book Denial of Death, this documentary explores the ongoing research of a group of social psychologists that may forever change the way we look at ourselves and the world. Over the last twenty-five years, this team of researchers has conducted over 300 laboratory studies, which substantiate Becker’s claim that death anxiety is a primary motivator of human behavior, specifically aggression and violence.
Flight from Death features an all-star cast of scholars, authors, philosophers, and researchers including Sam Keen, Robert Jay Lifton, Irvin Yalom, and Sheldon Solomon culminating in a film that is “not only thought-provoking but also entertaining and put together with a lot of class” (Eric Campos, Film Threat). Three years in the making and beautifully photographed in eight different countries, Flight from Death is “a stimulating, ultimately life-affirming film, filled with big ideas and revelatory footage” (Jeff Shannon, Seattle Times).”
P.S. A LINK TO ALL HOT DOCS PREVIOUSLY POSTED ON AWESTRUCK WANDERER CAN BE FOUND ON TOP OF THE BLOG, ABOVE THE COLLAGE OF HUMAN FACES. CHECK IT OUT!
Alan Watts: O Que Há de Errado Com a Nossa Cultura
(Leg. em Português)
“Why is it that we don’t seem to be able to adjust ourselves to the physical environment without destroying it?
Why is it that in a way this culture represents in a unique fashion the law of diminishing returns? That our success is a failure.
That we are building up an enormous technological civilization which seems to promise the fulfillment of every wish almost at the touch of a button. And yet as in so many fairy tales when the wish is finally materialized, they are like fairy gold, they are not really material at all.
In other words, so many of our products, our cars, our homes, our clothing, our food, It looks as if it were really the instant creation of pure thought; that is to say it’s thoroughly insubstantial, lacking in what the connoisseur of wine calls body.
And in so many other ways, the riches that we produce are ephemeral. and as the result of that we are frustrated, we are terribly frustrated. We feel that the only thing is to go on and getting more and more.
And as a result of that the whole landscape begins to look like the nursery of a spoiled child who’s got too many toys and is bored with them and throws them away as fast as he gets them, plays them for a few minutes.
Also we are dedicated to a tremendous war on the basic material dimensions of time and space. We want to obliterate their limitations. We want to get everything done as fast as possible. We want to convert the rhythms and the skills of work into cash, which indeed you can buy something with but you can’t eat it.
And then rush home to get away from work and begin the real business of life, to enjoy ourselves. You know, for the vast majority of American families what seems to be the real point of life, what you rush home to get to is to watch
an electronic reproduction of life. You can’t touch it, it doesn’t smell, and it has no taste.
You might think that people getting home to the real point of life in a robust material culture would go home to a colossal banquet or an orgy of love-making or a riot of music and dancing; But nothing of the kind.
It turns out to be this purely passive contemplation of a twittering screen. You see mile after mile of darkened houses with that little electronic screen flickering in the room. Everybody isolated, watching this thing. And thus in no real communion with each other at all. And this isolation of people into a private world of their own is really the creation of a mindless crowd.
And so we don’t get with each other except for public expressions or getting rid of our hostility like football or prize-fighting.
And even in the spectacles one sees on this television it’s perfectly proper to exhibit people slugging and slaying each other but oh dear no, not people loving each other, except in a rather restrained way.
One can only draw the conclusion that the assumption underlying this is that expressions of physical love are far more dangerous than expressions of physical hatred.
And it seems to me that a culture that has that sort of assumption is basically crazy and devoted – unintentionally indeed but nevertheless in-fact devoted not to survival but to the actual destruction of life.”
“The experiences resulting from the use of psychedelic drugs are often described in religious terms. They are therefore of interest to those like myself who, in the tradition of William James, are concerned with the psychology of religion. For more than thirty years I have been studying the causes, the consequences, and the conditions of those peculiar states of consciousness in which the individual discovers himself to be one continuous process with God, with the Universe, with the Ground of Being, or whatever name he may use by cultural conditioning or personal preference for the ultimate and eternal reality. We have no satisfactory and definitive name for experiences of this kind. The terms “religious experience,” “mystical experience,” and “cosmic consciousness” are all too vague and comprehensive to denote that specific mode of consciousness which, to those who have known it, is as real and overwhelming as falling in love. This article describes such states of consciousness induced by psychedelic drugs, although they are virtually indistinguishable from genuine mystical experience. The article then discusses objections to the use of psychedelic drugs that arise mainly from the opposition between mystical values and the traditional religious and secular values of Western society.”
DEVEMOS COMER ANIMAIS?
por Eduardo Carli de Moraes
I. PRELÚDIO: COLEÇÃO DE QUESTÕES (IM)PERTINENTES
Filósofo: aquela criatura que, para cada resposta que lhe fornecem, formula dez novas perguntas! Perguntemos sem temor, pois! Já que o perigoso, de fato, não é perguntar demais, mas sim a vida acéfala e irrefletida – e que não vale a pena ser vivida.
Correr o risco do questionamento crítico pode ser perigoso, mas nada questionar é mais perigoso ainda! Talvez aquilo de que o mundo precise com urgência, mais do que de dogmas e catecismos, seja de uma uma avalanche de perguntas que coloquem as certezas instituídas em maus lençóis.
Dentre as interrogações cruciais, eu elencaria esta: deveremos considerar como normal e banal o nosso sistema de produção alimentar tão vastamente calcado no carnivorismo? Em termos mais simples: devemos comer animais, e investir nosso dinheiro em engrenagens que “produzem” carne?
É uma maravilha do sistema produtivo capitalista globalizado que por agora nos rege que, em um único país (os EUA), nada menos que 10.000.000.000 (dez bilhões) de animais sejam abatidos para serem comidos todos os anos? Podemos dormir de consciência tranquila quando os magnatas da indústria-da-carne nos garantem que praticam “métodos humanos de abate” destas 10 bilhões de criaturas que morrem a cada translação da terra ao redor do Sol somente nos Estados Unidos?
Não vale pôr em questão também a noção, bastante difundida, de que o “abate” é plenamente justificável quando se dá de modo quase instantâneo e não envolve a “agonia” lenta de uma morte torturante?
Abate: nome que se dá à imposição, por parte de um animal humano, de uma morte praticada em escala industrial contra viventes de outra espécie, dentro da lei e com sacramentados fins comerciais. Auschwitz começa (e recomeça), segundo Adorno, toda vez que alguém olha para um matadouro e pensa: “eles não passam de animais!”
Alguns podem argumentar: ora, mas não dura o abate apenas alguns míseros minutos? O carnívoro, palitando os restos de frango entre seus dentes, pode até tranquilizar-se contando-se a fábula de que o bichinho foi “bem-tratado”, que alguns instantes de pânico tenebrosamente dolorosos e dores físicas muito além dos limites do suportável são procedimentos aceitáveis, ou melhor, são preços justos a se pagar por um bom bife, por um farto churrasco! Pensariam assim se tivessem que matar a própria janta?
Diante da minimização do que ocorre nos “abatedouros”, será que deveríamos levar em consideração também tudo o que precedeu o abate? Não conta também a vida toda que levou o animal? Uma das questões cruciais a se colocar não seria esta: como passam todos os seus dias, do berço à tumba (from birth to bacon, como eu gosto de dizer), os animais presos na engrenagem humana da pecuária industrializada? Não é verídico que nascem prisioneiros, subsistem no cárcere super-lotado e imundo, são injetados com antibióticos, engordados à fórceps, tudo para acabar como commodities em um supermercado?
É justo que perguntemos, sem medo do olhar carruncudo daqueles que abominam qualquer reflexão ética: cadê a Justiça neste processo? De Percy Shelley a Peter Singer, de Bernard Shaw a Franz Kafka, inúmeros foram aqueles que puseram em questão o problema moral envolvido no império, no domínio, no abuso de poder que impomos e perpetramos aos viventes não-humanos.
A pergunta que não se coloca é esta: a ética diz respeito apenas à relação entre os humanos, ou deve incluir a relação destes com os outros animais? Não temos nenhum tipo de preocupação ética a honrar em nossas relações com aquilo que transcende o humano e integra a Vida com V maiúsculo?
Suspeito que haja uma neurose de massa hoje servindo de ideologia oficial e que seria batizável talvez como “negação da animalidade” (para dialogar com a obra-prima de Ernest Becker, A Negação da Morte). Uma condição psicológica que faz com que os humanos, querendo inflar seu próprio ego e gozar com fantasias narcísicas delusionais, queiram cortar seus laços com a animalidade, fingindo que não temos nada a ver com as “bestas desalmadas” que estas estão aí para serem usadas a nosso bel prazer. Afinal, um boi não é nada senão um bicho inventado por Deus para que os humanos o transformassem em churrasco, assim como um porco não passa de linguiça em potencial… Tá serto, Sr. Carnívoro, tá sertíçímo!
Não será preciso pôr em questão a fé que alguns nutrem em um direito de nascença, uma espécie de graça de Deus-Pai, que teria concedido aos humanos o privilégio de dominar com seu poderio o “resto” do mundo natural? É verdadeiro ou demencial o argumento “finalista” e antropocêntrico que pretende que Deus fez os porcos para que pudessem virar salsicha e bacon? O Todo-Poderoso pôs aqui as galinhas tendo em vista seu plano divino de que um dia KFCs e McDonald’s pudessem lucrar com a venda de sua junk food repleta de hambúrgueres e nuggets?
Não será uma doidice do pensamento considerar que as vacas foram feitas como máquinas fornecedoras de carne e de leite para os Humanos? E que agrada aos deuses que matem-se milhões de perus, todos os anos, para que possam ser devorados no feriado de Ação-De-Graças? Não ocorreu a ninguém consultar quais seriam a opiniões que tem os perus sobre o Thanksgiving Day? Suponho que perus não consideram nada “sagrado” o procedimento de serem as vítimas de um genocídio periódico, sacrificados por humanos que estão dizendo “obrigado” a deuses que eles, humanos delirantes, imaginam como divindades famintas por carne sacrificada…
Sem falar nos mares e oceanos: são nossos para fazer o que quisermos, inclusive arrancar toda a “peixarada” com nossos empreendimentos colossais de pesca, indiferentes ao colapso de biodiversidade que assim acarretamos?
Em suma: será que, se quisermos evitar o exacerbamento da catástrofe ecológica que hoje vivenciamos, não teremos que perceber a animalidade como algo englobado na esfera da ética? Não temos virtudes a exercer e vícios a evitar também em nosso trato com outros seres sencientes?
Enfim: será que a preocupação ética não deve manifestar-se não somente em nossas relações inter-pessoais (ou seja, inter-humanas), mas também em nosso trato com a vida em geral, em quaisquer de suas manifestações específicas? Será que só a Biophilia – para usar a expressão muito feliz de Björk – irá salvar-nos de seguirmos nesta sina de sermos uma catástrofe para o equilíbrio sustentável dos ecossistemas planetários?
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Jonathan Safran Foer (1977 – ), escritor norte-americano, autor de “Tudo Se Ilumina” (Everything Is Illuminated, 2002), “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (Extremely Loud and Incredibly Close, 2005) e “Comer Animais” (Eating Animals, 2009).
II. COMER ANIMAIS, DE J. SAFRAN FOER
Tendo a gostar dos livros que são, ao invés de papagaios de dogmas, expansores de horizontes. Livros que ampliam nosso estoque de indagações e espantos. Há quem procure nos livros as verdades absolutas, as certezas indubitáveis, as receitas infalíveis. Mas acho antipático qualquer livro que pretenda ter todas as respostas e soluções, pontificadas do alto de torres-de-marfim e de púlpitos-do-privilégio. Animo-me bem mais na leitura quando sinto, conforme avanço pelas páginas, a excitação do contato com uma inteligência audaz, que quer romper as grades da gaiola e alçar vôo rumo ao proibido, ao inaudito, ao pensamento livre, para além dos tabus e dos medos.
Gosto de palavras que geram uma proliferação de inquietações inéditas, empurrando-nos assim no rumo da auto-transformação e do auto-questionamento. “Convicções são prisões”, dizia o autor do Anticristo, que preferia a companhia de espíritos livres dionisíacos a padres pregadores de camelismos crucificantes! Nietzschianamente, prossigamos, botando fé – se é preciso ter alguma! – na aposta de que é perguntando que avançamos. Pra bem viver é preciso, dia a dia, ir assassinando certezas ossificadas e ir em frente sob o influxo da dúvida peregrinante.
Jonathan Safran Foer (1977 – ), escritor norte-americano, autor dos romances “Tudo Se Ilumina” (Everything Is Illuminated, 2002) e “Extremamente Alto e Incrivelmente Perto” (Extremely Loud and Incredibly Close, 2005), é o responsável por um dos mais extraordinários livros de não-ficção publicados neste século, o impactante e contundente “Comer Animais” (Eating Animals, 2009, publicado no Brasil pela Editora Rocco em 2010; pode ser adquirido na Livraria Cultura [http://bit.ly/13LRfiZ] ou na Estante Virtual [http://bit.ly/1zoFfMT].).
O livro virou um best-seller internacional, celebrado por seu poder de revolucionar as ideias do leitor sobre o consumo de carne, em especial aquela produzida pelo sistema hoje hegemônico do factory farming (pecuária industrial).
A atriz Natalie Portman, que converteu-se ao vegetarianismo após lê-lo, declarou: “Este livro lembrou-me que aquilo que escolhemos comer define não somente nossa fisicalidade, como também nossa humanidade.” (“The book reminded me that what we choose to eat defines not only our physicality, but also our humanity.” )
Já J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, considera o livro tão persuasivo e convincente em sua descrição dos “horrores do factory farming”, que afirma o seguinte: “Se alguém continuar a consumir os produtos da indústria depois de ler o livro de Foer poderá dizer-se que não tem coração, ou que é impermeável a razão, ou ambos.”
Comer Animais é uma destas obras que vale a pena ser lida, em primeiro lugar, pelas questões que aí são formuladas. Não é que eu queira desdenhar das respostas que Jonathan Safran Foer também procura compartilhar, após uma pesquisa minuciosa e uma investigação jornalística apurada. Mas o tom questionativo é um dos méritos maiores da obra.
O que não impede que Comer Animais seja uma obra com alto potencial de “converter” carnívoros e omnívoros a uma nova dieta. É um livro de impacto social como poucos que tenham sido escritos nos últimos anos (o que o coloca na companhia de autores como Naomi Klein, Arundhati Roy, Raj Patel [Stuffed and Starved], Eric Schlosser [Fast Food Nation]…).
A eficácia da obra de Safran Foer não está em nenhum tom pregatório, mas muito mais numa expansão da consciência do leitor que o livro instiga e possibilita, e isso através de sua narrativa interrogativa e problematizante. Um livro saboroso justamente por não ser nada dogmático.
Há toda uma tradição, em especial na literatura norte-americana de raízes judaicas, de reflexão aprofundada sobre a questão dos direitos animais e das justas relações que os humanos podem estabelecer com estes outros que junto conosco constituem a Teia da Vida: Isaac Bashevis Singer, por exemplo, que assim como Coetzee foi laureado com o Nobel de literatura, pôs sua pena penetrante e apurada em sintonia com a gigantesca questão: os humanos tratam os animais de maneira similar àquela que o nazifascismo dispensava àqueles aprisionados nos campos-de-concentração? A conclusão, decerto sinistra, que Isaac B. Singer tira é que sim: para os animais, os humanos são todos azistas e a existência nas fábricas-da-carne é um “Eterno Treblinka”.
“Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.” – I. B. SINGER
Comer Animais não é proselitismo panfletário em prol da causa do vegetarianismo, mas muito mais um livro que busca ir além dos tabus, das repressões, das ignorâncias voluntárias, no sentido de ampliar a extensão e a magnitude do que merece entrar na esfera da consideração ética.
Não é à toa que a maior organização global de defesa dos direitos animais traz encodado em seu nome-de-batismo a palavra ética: a PETA (People for the Ethical Treatmente of Animals), com mais de 2 milhões de membros mundo afora, é um dos temas que Safran Foer explora nas páginas deste seu romanceado tratado de Ética Prática (para lembrar também o título da obra de Peter Singer, uma das figuras contemporâneas de maior destaque na filosofagem sobre as relações dos humanos com animais). A PETA – “nenhuma organização mete mais medo na indústria da carne e seus aliados do que ela” – aparece aos olhos de Safran Foer como defensora de “valores que fomos covardes ou esquecidos demais para defendermos” (p. 71).
Já dá pra perceber o quanto o fio desta narrativa, não-fictícia e com altos elementos autobiográficos, consiste numa sondagem sobre valores éticos, sendo que a pergunta que não quer calar, e que repete-se em diferentes versões através do livro, é a seguinte: os seres humanos possuem ou não deveres éticos em suas relações com os animais não-humanos? No trato com cachorros, vacas, gatos, galinhas, esquilos, baratas, baleias, coelhos, estes primatas que chamam a si mesmos de homo sapiens tem direito ao vale-tudo?
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DILEMAS DA PATERNIDADE
Observando seu filho recém-nascido sugando o leite dos seios da mãe, Jonathan sente-se estarrecido: “Observei-o com um espanto [awe] sem precedentes na minha vida”. É que o rebento, recém-emergido do útero, lançado a uma situação radicalmente nova, trazia consigo a capacidade de nutrir-se já “encodada” em seu organismo, de modo similar aos batimentos de seu coraçãozinho ou as expansões e contrações de seus pulmões pequeninos.
Tudo isso independia da razão e do controle egóico para desenrolar-se; sem precisar usar a sua ainda incipiente e subdesenvolvida razão, ainda desconhecendo completamente a linguagem verbal, sem necessidade de ser ensinado ou condicionado, o bebê já expressava sua existência através de sístoles e diástoles, inspirações e expirações, fomes e lágrimas . E é de se suspeitar que já era assim que agiam as crianças humanas na idade da Pedra, e que assim mamavam os filhos dos homens-e-mulheres-das-cavernas…
Neste seu primeiro livro não-fictício, escrito após dois romances de sucesso (Tudo se Ilumina e Extremamente Alto e Incrivelmente Perto), Safran Foer deixa claro que seu desejo de produzir um livro sobre Comer Animais é inseparável dos dilemas vinculados à experiência, para ele inédita, da paternidade. Os dilemas que ele enfrenta são: Quero que meu filho seja carnívoro? Vou esconder dele todo o sistema de produção da carne para não escandalizá-lo? Ou melhor é informá-lo, desde cedo, que aquela rodela de carne que vem dentro do Big Mac um dia foi parte de uma vaca viva e senciente, e que aqueles Nuggets são na verdade pedacinhos de cadáver de um frango que um dia esteve entre os vivos?
O charme maior do livro, segundo o meu paladar, está no tom interrogativo que o autor mobiliza para convidar-nos à reflexão não somente sobre escolhas ou preferências individuais, mas também sobre os (des)caminhos civilizacionais hegemônicos, que ele contrapõem a melhor vias alternativas.
Safran Foer envolve-se no debate sobre o sofrimento dos animais e sobre a inegável capacidade que possuem para sentir dor, medo, desconforto, mas não fica estacionado no discurso sentimental (ou mesmo sentimentalóide, como acusam os detratores do vegetarianismo).
Alguns tem a tendência a desacreditar ou mesmo desprezar quaisquer discursos que tenham um sabor de pregação moralista sobre a necessidade imprescindível de valores como compaixão e empatia. O argumento de Safran Foer, escapando ao sentimentalismo e também à brutalidade, é muito mais persuasivo e inclui amplas considerações do autor sobre o meio-ambiente em nossa era – o Antropoceno – que progride a passos largos no rumo das catastróficas disrupções climáticas e das mega migrações de refugiados de desastres ecológicos de que nosso futuro, segundo confiáveis prognósticos, estará repleto.
“Most people agree that the environment matters. Whether or not you are in favor of offshore oil drilling, whether or not you ‘believe’ in global warming, whether you defend your Hummer or live off the grid, you recognize that the air you breathe and the water you drink are important. And that they will be important to your children and grandchildren. Even those who continue to deny that the environment is in peril would agree that it would be bad if it were.
In the U.S.A., farmed animals represent more than 99% of all animals with whom humans directly interact. In terms of our effect on the ‘animal world’ – whether it’s the suffering of animals or issues of biodiversity and the interdependence of species that evolution spent millions of years bringing into this livable balance – nothing comes close to having the impact of our dietary choices. (…) Very often, those who express concern about (or even an interest in) the conditions in which farmed animals are raised are disregarded as sentimentalists. But it’s worth taking a step back to ask who is the sentimentalist and who is the realist.
Is arguing that a sentiment of compassion should be given greater value than a cheaper burger (or having a burger at all) an expression of emotion and impulse or an engagement with reality and our moral intuitions? Two friends are ordering lunch. One says, ‘I’m in the mood for a burger’, and orders it. The other says, ‘I’m in the mood for a burger’, but remembers that there are things more important to him than what he is in the mood for at any given moment, and orders something else. Who is the sentimentalist?”
(p. 74)
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FILMES DE TERROR
Fãs de filmes de terror, eis um conselho: se vocês querem assistir algo extremamente terrificante, procurem documentários sobre a produção de carne. São imagens horrendas e explícitas registrando a tortura da carne, a agonia dolorida dos assassinados, algo que é capaz de tirar o apetite diante da janta caso esta contenha um bife.
“We know that if someone offers to show us a film on how our meat is produced, it will be a horror film. We perhaps know more than we care to admit, keeping it down in the dark places of our memory – disavowed. When we eat factory-farmed mead we live, literally, on tortured flesh. Increasingly, that tortured flesh is becoming our own.” – SAFRAN FOER, pg. 143
Assistindo aos documentários sobre este mundo-tabu que em massa nós nos recusamos a enxergar, apesar de seu peso gigantesco na realidade concreta de nosso sistema de produção e consumo de alimentoss, a gente chega facilmente à conclusão de que a realidade supera em horrores e atrocidades aquilo pode imaginar a ficção. As imagens filmadas dentro de abatedouros rivalizam em potencial de choque com qualquer vídeo da série Faces da Morte. E não são poucos que sentem-se impelidos ao vegetarianismo após assistirem Earthlings ou Cowspiracy.
Em Workingman’s Death, por exemplo, filme que expõe alguns dos piores trampos que existem no planeta, somos apresentados a um mercadão da carne em Port Harcourt, na Nigéria. Talvez não haja nenhum setor do Inferno, tal qual imaginado por Dante na Divina Comédia, que chegue aos pés deste inferno-da-vida-real que as câmeras registraram por ali:
Workingman’s Death, um filme de Michael Glawogger
No mundo dito desenvolvido, a produção da carne está bem mais protegida dos olhares públicos, é claro: arame farpado, alarmes hi-tech, guardas armados, cercas elétricas, protegem as factory farms onde bilhões de animais padecem de uma existência à la Auschwitz. A situação na Nigéria que o filme nos desvela tem ao menos uma vantagem: ali faz-se de modo escancarado, à céu aberto, à luz do dia, aquilo que no chamado 1º Mundo ocorre às escuras e longe do conhecimento dos consumidores.
A célebre frase de Paul McCartney – “se os matadouros tivessem paredes de vidro, todo mundo se tornaria vegetariano” – recebe como que um comentário irônico e uma problematização involuntária através da revelação da realidade em Port Harcourt: ali, não há parede alguma delimitando o espaço da matança; não há pudores ou hipocrisias, mas a exibição explícita de procedimentos brutais.
De modo mais leve, jocoso e irônico, Chico Buarque também tematizou a relação entre humanos e bichos em Fazenda Modelo, novela sagaz onde um dos maiores artistas brasileiros satiriza os comportamentos de Juvenal em seu trato com vacas e gentes:
“Juvenal constatou que é mais dispendioso transportar alimentos para os animais no pasto do que abrigá-los e engordá-los em recinto fechado. Elas, as vacas, não chegaram a manifestar suas aflições e anseios. (…) Desmamar bezerro não é nada, duro é desfilhar a mãe. Ela sente calafrios e decide aquecer o inocente, ensaia trazê-lo de volta ao ventre… Juvenal custou a convencê-las que aquela abundância de leite não convinha às crianças, era artigo de exportação. (…) Depois erigiu-se um monumento, uma estátua que era uma singela homenagem ao boi trabalhador da Fazenda Modelo, vejam. “Esse instrumento dócil que nos deu a divina providência, oferecendo-nos as suas energias e faculdades, essa ferramenta maleável que segue instintivamente suportando, com uma paciência e submissão admiráveis, as fadigas e privações que lhe impomos…”
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA, Fazenda Modelo – Novela Pecuária
Ed. Civilização Brasileira.
4ª edição, Rio de Janeiro, 1975.
Pgs. 43 – 52 – 79.
Assista também:
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IV. KAFKA DIANTE DO AQUÁRIO E A VERGONHA POR SER HUMANO
Em uma visita ao zoológico de Berlim, Franz Kafka (1883-1924) conversa com os peixes no aquário. Nessa época, o autor d’A Metamorfose já havia aderido à dieta vegetariana e foi flagrado por seu camarada Max Brod endereçando aos peixes uma frase destinada à fama duradoura (e que hoje estampa camisetas e posters de ativistas dos direitos animais): “Agora posso olhar para vocês em paz, eu parei de comer vocês.” (BROD, Max. Franz Kafka. New York: Schocken, 1947, pg. 74)
Implícito no dito kafkiano está a problemática da culpa e da vergonha, fardos de que Kafka se sente aliviado desde que abandonou a dieta carnívora: é como se ele se dirigisse aos peixes como alguém que cessou de ser o inimigo, o predador, o devorador cruento. O que é extraordinário na atitude kafkiana, como destaca Jonathan Safran Foer, é a capacidade do escritor de incluir os animais na esfera de suas preocupações éticas: englobados no âmbito das criaturas que merecem ser lembradas e respeitadas, os peixes sob o olhar de Kafka readquirem seu status de viventes-com-direitos e diante dos quais pode-se enrubescer de vergonha, apesar de tal atitude ser incomum e rara.
A vergonha é “crucial na leitura que Walter Benjamin faz de Kafka”, destaca Safran Foer, uma “vergonha que é ao mesmo tempo íntima – sentida nas profundezas de nossas interioridades – e social – algo que sentimos estritamente diante dos outros. Para Kafka, a vergonha é uma resposta e uma responsabilidade diante de outros invisíveis – diante da ‘desconhecida família’, para usar uma frase dos Diários. É a experiência fundadora da ética. (…) A vergonha é aquilo que sentimos quando quase completamente – mas não completamente – esquecemos expectativas sociais e obrigações em relação aos outros em favor de nossa gratificação imediata.” (SAFRAN FOER, pg. 36)
Quando Kafka declara que agora pode olhar os animais em paz, aí está pressuposto que antes olhava-os atormentado pela vergonha, angustiado por sua pertença ao humano. Pois a humanidade, em suas relações com o mundo animal, frequentemente age com indiferença completa em relação aos sofrimentos infligidos a outras espécies. O que é vergonhoso na atitude de muitos humanos é este esquecimento voluntário, esta indiferença cultivada, esta crueldade de empatia nula diante dos animais, que são costumeiramente excluídos da esfera das preocupações éticas humanas, tratados como se nada sentissem, como se nada sofressem, como se não passassem de coisas ou mercadorias.
A noção de que peixes são criaturas assassináveis e devoráveis pelos humanos também recebe um comentário irônico nos versos de Kurt Cobain, na canção que encerra Nevermind: “It’s ok to eat fish cause they don’t have any feelings”.
O que é o carnivorismo senão a fé cega e errônea de que os animais estão aí para serem explorados e consumidos, a nosso bel-prazer, já que Deus (ou Francis Bacon, para aqueles que só tem fé na ciência!) nos apontou como o ápice dominador da Criação? O estar-em-paz de Kafka, vinculado à sua escolha de abraçar ao vegetarianismo, está portanto conectado à serenidade e à satisfação íntima que é possível encontrar no exercício cotidiano da empatia em relação a outras criaturas sencientes.
Safran Foer, que como Kafka possui raízes judaicas, confessa em vários trechos de seu livro uma vergonha por ser humano que toma conta de sua afetividade conforme ele testemunha as realidades horrificantes da factory farming e da pesca industrial.
Talvez o grande escritor se caracterize por uma aptidão para identificar-se com o que ele não é, inclusive com os animais. Talvez o gênio artístico seja inseparável da aptidão de praticar um devir-outro que aplica-se não só à alteridade humana, mas à alteridade em sentido mais amplo, englobando algo que vai muito além do que é humano, demasiado humano.
Considero elogio suficiente dizer que nas páginas de Jonathan Safran Foer, Franz Kafka e Isaac Bashevis Singer – para citar apenas 3 de meus escritores de estimação! – encontramos alguém que é capaz de pôr-se na pele de um peixe e imaginar o que significa vivenciar a experiência de ser pescado. Podemos ser muito enriquecido por esta experiência de tentar enxergar a perspectiva do outro: isso pode transformar o humano através do desenvolvimento de concepções com maior conteúdo de empatia e sabedoria do que atualmente em voga.
No documentário We Feed The World, por exemplo, somos apresentados a imagens de peixes pescados e com os olhos desintegrados: eles vivem em águas profundas e, quando são capturados pelas redes e puxados para a superfície, a diferença de pressão é tamanha que seus globos oculares explodem. Imagine a sensação, ponha-se na pele destes outros. E se estes olhos explodidos fossem os teus? E se a vida, ceifada assim de súbito, fosse a tua?
“Se Gaia também é um mundo vivo e plural, (…) não se trata porém de um mundo harmonioso e equilibrado, e muito menos dependente, para sua persistência, da exclusão da humanidade, como se esta fosse um invasor extraterrestre chegado para estragar um idílio pastoril. (…) Gaia é antes de mais nada feita de história, ela é história materializada, uma sequência contingente e tumultuária de eventos… Na concepção de Bruno Latour, é menos a história humana que vem se fundir inesperadamente com a geohistória, mas sim a Terra-Gaia que se torna historicizada, narrativizada como história humana – compartilhando com esta, aliás, e a ressalva é essencial, a ausência de qualquer intervenção de uma Providência. Resta saber quem é o demos de Gaia, o povo que se sente reunido e convocado por esta entidade, e quem é seu inimigo.”
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO & DÉBORAH DANOWSKI, Há Mundo Por Vir? Ensaio Sobre Os Medos E Os Fins (2014, Editora Cultura e Barbárie, p. 120. Compre aqui.)
Tô devorando por aqui o instigante “Há Mundo Por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins”, de Eduardo Viveiros De Castro & Deborah Danowski, e coletando altas dicas de livros que eu desconhecia e que já entraram para a lista das #LeiturasFuturas, a começar por este “O Mundo Sem Nós” de Alan Weisman, “a penetrating, page-turning tour of a post-human Earth…”:
ALAN WEISMAN, “The World Without Us”
(2007, 340 pgs)
“In The World Without Us, Alan Weisman offers an utterly original approach to questions of humanity’s impact on the planet: he asks us to envision our Earth, without us. In this far-reaching narrative, Weisman explains how our massive infrastructure would collapse and finally vanish without human presence; which everyday items may become immortalized as fossils; how copper pipes and wiring would be crushed into mere seams of reddish rock; why some of our earliest buildings might be the last architecture left; and how plastic, bronze sculpture, radio waves, and some man-made molecules may be our most lasting gifts to the universe.
The World Without Us reveals how, just days after humans disappear, floods in New York’s subways would start eroding the city’s foundations, and how, as the world’s cities crumble, asphalt jungles would give way to real ones. It describes the distinct ways that organic and chemically treated farms would revert to wild, how billions more birds would flourish, and how cockroaches in unheated cities would perish without us. Drawing on the expertise of engineers, atmospheric scientists, art conservators, zoologists, oil refiners, marine biologists, astrophysicists, religious leaders from rabbis to the Dali Lama, and paleontologists — who describe a prehuman world inhabited by megafauna like giant sloths that stood taller than mammoths—Weisman illustrates what the planet might be like today, if not for us.
From places already devoid of humans (a last fragment of primeval European forest; the Korean DMZ; Chernobyl), Weisman reveals Earth’s tremendous capacity for self-healing. As he shows which human devastations are indelible, and which examples of our highest art and culture would endure longest, Weisman’s narrative ultimately drives toward a radical but persuasive solution that needn’t depend on our demise. It is narrative nonfiction at its finest, and in posing an irresistible concept with both gravity and a highly readable touch, it looks deeply at our effects on the planet in a way that no other book has.”
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Este, de Isabelle Stengers:
Isabelle Stengers, “Au temps des catastrophes : Résister à la barbarie qui vient” (2009, 198 pgs.)
“Geologists are beginning to use the term ANTHROPOCENE to designate the era of Earth’s history that extends from the scientific and industrial revolutions to the present day. These geologists see humanity as a force of the same amplitude as volcanoes or even plate tectonics. It is now before GAIA that we are summoned to appear: Gaia, the odd, doubly composite figure made up of science and mythology, used by certain specialists to designate the Earth that surrounds us and that we surround, the truly global Globe that threatens us even as we threaten it.
If I wanted to dramatize – perhaps overdramatize – the ambiance of my investigative project, I would say that it seeks to register the aftershocks of the MODERNIZATION FRONT just as the confrontation with Gaia appears imminent.
At all events, we shall not cure the Moderns of their attachment to their cherished theme, the modernization front, if we do not offer them an alternate narrative… After all, the Moderns have cities who are often quite beautiful; they are city-dwellers, citizens, they call themselves (and are sometimes called) “civilized”.
Why would we not have the right to propose to them a form of habitation that is more comfortable and convenient and that takes into account both their past and their future – a more sustainable habitat, in a way? Why would they not be at ease there? Why would they wander in the permanent utopia that has for so long made them beings without hearth or home – and has driven them for that very reason to inflict fire and bloodshed on the planet?
After all these years of wandering in the desert, do they have hope of reaching not the Promised Land but Earth itself, quite simply, the only one they have, at once underfoot and all around them, the aptly named Gaia?”
BRUNO LATOUR. “An Inquiry into Modes of Existence: An Anthropology of the Moderns” Harvard University Press, 2013. Translated by Catherine Porter. Download e-book at Library Genesis. Join: http://www.modesofexistence.org
(Art by Alex Grey)
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You might also enjoy:
The Affects of Capitalism (full lecture)
(If you wanna skip the intro, Latour actually starts speaking at 12 min and 45 seconds.)
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Veja também:
PALESTRA COM DIPESH CHAKRABARTY
“Anthropocene means that collectively, human beings, thanks to their profligate use of fossil fuels, now act with the power of a geophysical force…” – Dipesh Chakrabarty, Dept. of History, University of Chicago
“History on an Expanded Canvas – The Anthropocene’s Invitation”
Lecture, 2013. 1h01min.
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“Our fossil fuel deposits, a 100.000.000 years old, could be gone in a few centuries, leaving climate impact that will last for hundred of millenia.” Dave Archer http://en.wikipedia.org/wiki/David_Archer_(scientist)
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
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