Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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APRECIE TAMBÉM:

Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

MOLDANDO A MUDANÇA: Sobre “A Parábola do Semeador” de Octavia Butler (1947-2006)

Octavia Butler (1947 – 2006), em entrevista concedida em Maio de 1999, disse algo profundamente significativo: “Perguntei a mim mesma qual era a força mais poderosa na qual podia pensar? O que não podemos impedir, não importa o quanto tentemos? A resposta que encontrei depois de alguma reflexão foi: a Mudança. Podemos fazer muitas coisas para influenciar os constantes processos de mudança. Podemos direcioná-los, alterar sua velocidade ou impacto. Em geral, podemos moldar a mudança, mas não podemos impedi-la, a nenhum custo. Por todo o universo, a realidade constante é a mudança.

(…) No budismo, a mudança também é muito importante: já que tudo é impermanente, só podemos evitar sofrimento ao evitar apego, pois tudo a que poderíamos nos apegar está fadado a perecer. Lauren Olamina, a protagonista de ‘A Parábola do Semeador’, diz que, já que a mudança é a única verdade inescapável, mudança é a argila primordial das nossas vidas. Para vivermos de forma construtiva, precisamos aprender a moldar a mudança quando pudermos e a nos render a ela quando necessário. De todo modo, devemos aprender e ensinar, nos adaptar e crescer.” (São Paulo: Editora Morro Branco, 2018, pg. 415 – 416)

A aclamada autora de ficção científica revela aí um pouco de sua filosofia de vida. A Editora Morro Branco, que a publica no Brasil, destaca: “Apesar de enfrentar muito preconceito em uma área dominada por homens brancos, Octavia Butler foi uma autora que abriu caminho para que outras prosperassem na ficção especulativa e um dos nomes mais fortes quando se fala em afrofuturismo.”

O livro descreve “uma crise ambiental e econômica que leva ao caos social. Nem mesmo as cidades muradas estão seguras. Em uma noite de fogo e morte, Lauren Olamina, a jovem filha de um pastor, perde sua família e seu lar. É obrigada a se aventurar pelas terras americanas desprotegidas. Mas o que começa como uma fuga pela sobrevivência acaba levando a algo muito maior: uma visão estonteante do destino humano. E ao nascimento de uma nova fé.”

É notável que o livro tenha transbordado das bibliotecas e livrarias para de fato inspirar movimentos sociais e espirituais que se guiam pelo “Livro dos Vivos” – composto pelos versos que Lauren Olamina escreve e que estão polvilhados pelas páginas por A Parábola do Semeador e sua continuação, A Parábola dos Talentos.

Se “Deus é Mudança”, a protagonista do romance sci-fi distópico de O. Butler está disposta a não ser apenas vítima do que muda, mas também aquela que molda a mudança. Lauren Oyá Olavina atravessa, nas 400 páginas do livro, um turbilhão de transformação que não escolheu. São mudanças que surgem como imposições de um destino cruel: um futuro não muito distante, já que tudo se passa entre 2024 e 2027, Los Angeles virou de fato um cenário Mad Max. A adolescente Lauren é jogada na estrada pela violência de um contexto pós-apocalíptico que também evoca The Road – filme de John Hillcoat baseado na obra de Cormac McCarthy.

Esta sementeira de outros amanhãs possíveis sofre de uma condição psicofisiológica, que é também um ethos, descrita por O. Butler como “hiper-empatia”. Parece-me bastante irônica a atitude da autora quando chama isto de síndrome ou de doença – o que ocasionou que alguns desavisados da imprensa e da crítica literária, a exemplo do Estadão, pudessem escrever que na obra “a sensibilidade é tratada como doença” (https://bit.ly/355QItq). Não é bem assim: a hiper-empatia de Olavina não é justamente a virtude que precisamos para transformar o mundo para melhor, ainda que “possuí-la” torne o sujeito muito mais vulnerável a sentir as dores de outrem, além das suas?

Lauren, relatando como é difícil para ela “aguentar o compartilhamento da dor alheia” (p. 117), leva-nos a pensar numa tendência humana bastante comum e disseminada, a vontade de recalcar, reprimir e não atentar para quaisquer sofrimentos que não nos atinjam diretamente (o que é outro modo de descrever o egoísmo mais empedernido). A tal da síndrome de “hiper-empatia” de Lauren só é considerada anormal e aberrante em contraste com quase todos os humanos a seu redor, que aparecem embrutecidos, agressivos, violentos, piromaníacos, capaz de destruir o que resta de beleza e gentileza no mundo sem derramar uma lágrima.

É evidente que ser hiper-empática não é sentido por Lauren como uma dádiva – seu sensor à dor alheia, estando tão afinado, lhe conduz à dificuldade extraordinária de ser uma espécie de Atlas da compaixão, como quem sente as dores de todo o mundo a ponto de todos os fardos caírem sobre seus ombros. Mas é talvez justamente esta insuportabilidade do sofrer coletivo que impele as pessoas revolucionárias a embarcarem na estrada da consciente “moldação da mudança”?

– Eu não brigava muito quando era criança porque me dóia muito. Sentia cada golpe que dava, como se tivesse atacado a mim mesma. (p. 21)

Esta confissão de Lauren indica uma sensibilidade à dor do outro que se assemelha àquela capacidade imaginativa e empática que, no “De Profundis”, Oscar Wilde recrimina Bosie por possuir tão pouco e ter desenvolvido tão mal (saiba mais: https://wp.me/pNVMz-6kx).

Google faz homenagem à escritora californiana Octavia Butler.

Há também um certo humor na descrição sagaz que O. Butler faz das desventuras de Lauren, pois os outros, que conhecem sua condição hiper-sensível, acabam por brincar com isso: em um episódio memorável, ela conta que seu meio-irmão Keith “usou tinta vermelha para me enganar e me fazer sangrar em solidariedade a um ferimento que ele não tinha.” (p. 135)

Keith e Lauren, neste momento da epopéia, estão ainda vivendo em uma comunidade murada, rodeada pelo caos da convulsão social. Não há segurança alguma intra-muros: nesta distopia, colapsou totalmente a “lógica do condomínio” de que nos fala Vladimir Pinheiro Safatle (https://bit.ly/2VzJTgy). Tudo é de uma grande precariedade existencial e se sente que os personagens podem morrer violentamente a qualquer instante. O plano de Keith é se mandar para Los Angeles, a 32 km de onde vivem, mas o caminho para lá é repleto dum inferno terrestre à la Mad Max, que leva Keith a aconselhar sua meia-irmã:

– Lá fora, você não duraria um dia. Essa merda de hiper-empatia que você tem te destruiria mesmo que ninguém fizesse nada contigo. (p. 138)

Retrato de um mundo onde a empatia e a sensibilidade tornaram-se, para a consciência alienada hegemônica, vícios deploráveis e fraquezas a serem extirpadas. Mas é Keith quem poucos dias depois estará morto após ser barbaramente torturado. Lauren Olavina, hiper-empática, mostra-se não só como sobrevivente, resiliente, mas também como sementeira, criadora desta mescla de movimento social com religião new-age, o Semente da Terra (Earthseed). Lauren – e O. Butler através da boca de sua criatura – conclui diante das atrocidades horrendas que pululam à sua volta: “Se a síndrome de hiperempatia fosse algo mais comum, as pessoas não fariam essas coisas… Se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? (…) Eu queria poder dar isso às pessoas.” (p. 144)

“A Parábola do Semeador”, além de um perturbador romance sci-fi distópico, também convida à reflexões éticas que podem ser enriquecidas através de uma interlocução com a obra magistral do filósofo australiano Roman Krznaric, autor de “O Poder da Empatia: A arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo” (Ed. Zahar). Evoca também o último suspiro de um rockstar: Kurt Cobain, em sua carta de suicídio, deixou suas “famous last words” (célebres palavras finais) como uma conclamação à tríade de valores: “peace, love, empathy.” (https://bit.ly/2S9tNIt). Se O. Butler tem razão e a Mudança é a força mais poderosa do cosmos, cabe a cada um de nós não sermos apenas mudados, mas sim mudadores e mutantes. E jamais, sem empatia, moldaremos a mudança rumo ao melhor. “Aprenda ou morra”:

Consider: Whether you’re a human being, an insect, a microbe, or a stone, this verse is true.

All that you touch
You Change.

All that you Change
Changes you.

The only lasting truth
Is Change.

God
Is Change.

— Octavia E. Butler, Parable of the Sower

Por Eduardo Carli de Moraes.
Goiânia, 25/04/2020.


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GILBERTO GIL – O Eterno Deus Mudança

A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

Por uma Filosofia Popular Brasileira – Por Rafael Haddock-Lobo

POR UMA FILOSOFIA POPULAR BRASILEIRA

Ela precisa abandonar a ideia tola de neutralidade para perder-se na potência ainda amordaçada das ruas, rodar nas encruzilhadas, reivindicar a radicalidade das macumbas. E ser gira: mudança e festa; saber, corpo e rebeldia.

“Meu pai veio da Aruanda
E a nossa mãe é Iansã
Ô, gira, deixa a gira girar…”

Em 1977, Roberto Gomes publicava seu primeiro livro, Crítica da razão tupiniquim, no qual apresentava algumas sérias provocações à produção filosófica brasileira. A importância do livro é tanta, embora aparentemente ignorada pela comunidade filosófica, que Darcy Ribeiro chegou a afirmar, quando do seu lançamento, que o Brasil teria voltado, afinal, a filosofar. Dois anos depois, em 1979, Gerd Bornheim, filósofo brasileiro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), publicou o ensaio “Filosofia e realidade nacional”: defendia que uma filosofia dita brasileira precisa ser substantiva, e não meramente adjetiva. Isso quer dizer que não basta produzir uma filosofia em território nacional para dizer que no Brasil se faz filosofia brasileira.

Gerd Bornheim chama atenção de que é preciso algo mais para que façamos uma filosofia brasileira – fato para o qual o provocativo livro de Roberto Gomes já atentara antes. Ambos apontam que a filosofia precisa se debruçar sobre a singularidade de nossas questões (múltiplas, diversas, plurais) e abandonar as ideias de neutralidade e universalidade que, junto com a colonização, chegam em nossas academias de contrabando. Sem isso, não conseguiremos abandonar seu patamar elitista e ter algum contato real com aquilo que, das ruas, provoca o verdadeiro pensamento.

É nesse sentido que venho tentando afirmar que a filosofia brasileira, para ser digna desse nome, precisa ser uma filosofia popular brasileira. Uma filosofia produzida com base em uma experimentação efetiva dos saberes e culturas produzidos por aquilo que a elite chama de “popular”. É claro que esses saberes são elaborados independentemente da academia, mas meu intuito é, justamente, mostrar o quanto esta perde ao não se conectar com a potente produção que se encontra em andamento nas ruas.

Diante dessa pluralidade, ou dessa multiplicidade de vozes e sotaques, uma filosofia “brasileira” seria aquela que, sem clamor identitário ou nacional, assumiria perspectivas dessas vozes e desses sotaques, a fim de produzir um pensamento que emerja dessas experiências. Buscando reunir esses elementos, passeando pelos pensamentos dxs grandes filósofxs do Candomblé (como Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Stella de Oxóssi, Omindarewa, Professor Agenor); de filósofxs afro-brasileirxs (como Sueli Carneiro, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Nego Bispo, Uã Flor do Nascimento, Renato Noguera, Marcelo Moraes); de filósofxs ameríndixs (como Davi KopenawaAilton Krenak, Tonkire Akrãtikatêjê, José Urutau Guajajara, Sandra Guarani Nhandewa), acabo me encontrando com dois pensadores que, juntos ou separados, me ajudam hoje a recolocar essa constante provocação endereçada à filosofia. São eles Luiz Antonio Simas, um filósofo-historiador (das ruas), e Luiz Rufino, um filósofo-pedagogo (das encruzilhadas), cuja produção intelectual é preciosa para pensar uma vez mais o que seria uma filosofia brasileira, através justamente de uma relação imprescindível entre filosofia e macumba.

Eles nos chamam a atenção para o fato de que tal debruçar sobre a cultura popular brasileira só pode acontecer se o filósofo, abandonando seus escritórios, suas bibliotecas, e mesmo suas salas de aula, pegar seu caderninho de anotações, como fizeram tão bem Walter Benjamin e Guimarães Rosa, e sair dos muros das universidades e se dirigir às ruas, aberto aos encontros que as encruzilhadas propiciam. Esse movimento de saída da academia às ruas, que poderia ser compreendido como um giro ético-político tal como parece acontecer na filosofia ocidental contemporânea, parece ter uma configuração um pouco diferente quando se dá em nossas terras.

Como somos produtos da colonialidade, isto é, desde a colonização do pensamento até o assassinato de habitantes nativos, sequestro, escravização e estupros de negros, esse giro ético-político certamente se dá de modo diferente em terras tupiniquins: aqui é preciso promover o giro a partir daquilo que é, ao mesmo tempo, mais próprio, mais comum, mais banal, mas também mais escondido, mais temido, mas causador de vergonha, que, junto a Rufino e Simas, chamo de macumba. Se o termo pejorativo macumba é usado como ofensa, para diminuir os saberes das religiosidades africanas e ameríndias que se encruzam em nosso solo, devemos, seguindo a performatividade queer, potencializar tal termo para extrair dele o máximo, a fim de afirmar a relevância epistemológica, estética, ética e política das macumbas.

Macumba, então, passa a ser pensada na perspectiva de uma filosofia da cultura popular brasileira, com base não apenas nas práticas religiosas afro-ameríndias, como os candomblés, as umbandas, os batuques, os catimbós, as juremas, os tambores de minas, mas também das capoeiras, dos sambas de roda, dos fundos de quintal, dos jongos e de todas as rodas que promovem outras epistemologias e que, por serem de fato populares, isto é, originárias das ruas, são por isso mesmo revolucionárias.

Entretanto, um giro macumbístico como esse que ocorreria ao Sul, que é certamente tão ético e político como o ocidental ou mais, porque é também poético e epistemológico, não pode tão somente tomar a forma de um giro, no sentido de reviravolta, virada ou tantos outros nomes que se dá a um novo rumo de certo pensamento. Como me lembrou Rodrigo do Amaral Ferreira, se falo de giro macumbístico, o que preciso marcar é que tal giro se transforma em gira.

A gira, o feminino do giro, sua feição mulher, que, não apenas gira como o giro no sentido de mudar, desviar, promover deslocamentos, mas que também gira como a festa, a roda, o encontro que abre os caminhos e que é marcada pelo termo quimbundo njira. Falo, portanto, de uma gira macumbística da filosofia brasileira, gira através da qual a filosofia brasileira, antes apenas adjetivada como uma produção do território nacional, pode vir a encarnar a brasilidade das ruas, tornar-se substantivo produzido por corpos, músicas, sonoridades, cores, espíritos, cheiros e tantas outras coisas que jamais compreenderá nossa vã academia.

E esse “jamais compreender” é, aqui, imperativo, pois a ideia de compreensão, atividade unicamente mental, é o que impede a própria relação com o conhecimento macumbeiro, que precisa ser sentido pelo corpo como um todo, experimentado por sentidos e razões múltiplas para que, em vez de ser compreendido, prendido, apreendido, aprendido na forma de sujeito e objeto, ele seja incorporado, tateado, degustado, cheirado, ouvido, cantado. Só assim ele poderá baixar, ainda que sempre provisória e precariamente, assombrando-nos e sendo, tal conhecimento, muito mais o “sujeito” dessa relação.

Por fim, ao contrário de Hegel, que afirma que o Espírito se fenomenaliza por meio de diversas e subsequentes etapas arquitetadas pela Razão, afirmo que os espíritos baixam através de diferentes giras, sem ordem nem razão prévias, guiadas apenas pelo imperativo do “deixa vir quem tem de vir” – como dizia minha falecida mãe de santo Concheta Perroni. É por essa razão que essa gira macumbística força a filosofia a se constituir como uma espécie de “empirismo radical”, no qual a hipérbole da noção de experiência é tamanha que os próprios lugares de sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer outro dualismo epistemológico, encruzam-se de tal maneira que não podemos mais definir com precisão os limites entre o dentro e o fora, mas apenas marcar o encontro no coração da encruzilhada.

E assim, só assim, a filosofia, em vez de barrar ou atrapalhar o que vem das ruas, pode deixar a gira girar – imperativo, enfim, de uma filosofia popular brasileira.

Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor do Departamento de Filosofia da UFRJ e da UERJ. Do mesmo autor, leia: “Por Que Filosofia Popular Brasileira?” e “Motumbá, Mukuiu, Kolofé”.

A ARTE DE CONVIVER: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida – Por Eduardo Carli de Moraes [Vídeo Completo – 2019, 52 min]

PRÓLOGO – Organizado pela Comissão de Ética do IFG, o IV Workshop “Moralidade e Conduta Ética nas Relações Sociais”, realizado em 10 de Outubro de 2019 em Goiânia, contou com esta fala pública do professor de filosofia Eduardo Carli de Moraes (produtor cultural e livreiro @ A Casa de Vidro), docente que atua no câmpus Anápolis do IFG (saiba mais sobre o evento nesta reportagem publicada pela Diretoria de Comunicação Social da Reitoria).

A palestra explora o tema A Arte de Conviver: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida. O vídeo na íntegra, com cerca de 52 minutos, está disponível no Youtube ou Vimeo; acessem também a apresentação completa (24 slides) contendo todas as imagens e citações mencionadas na ocasião: http://bit.ly/2omVoKK.

A ARTE DE CONVIVER: Uma Ética do Mundo Comum e do Bem Público Para Resistir à Pervasiva Privatização da Vida

Por Eduardo Carli de Moraes

 

“Gosto de ser gente porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível.“ – Paulo Freire

A ética faz parte das práticas humanas que visam tanto à reflexão quanto à ação de seres humanos interdependentes. Sem ela, não há possibilidade de bem viver: toda vida bem vivida, que expressa uma sabedoria encarnada, envolve necessariamente um horizonte ético. Se alguém dissesse que não se interessa pela ética, estaria dizendo que não se interessa pela felicidade e que não se importa de desperdiçar sua vida. O desprezo pela ética é o caminho mais simples e comum para uma vida mal-vivida.

A ética também é um campo onde reinam os “juízos de apreciação referentes à conduta humana, qualificada do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.“ (In: Dicionário Aurélio Buarque de Holanda) A finalidade última da ética (seu télos) pode ser descrito como a felicidade individual (eudaimonia), como o sumo bem (summum bonum), como o bem público ou a felicidade geral etc. Sem dúvida, o despertar da consciência ética ocorre ainda na infância, como sugere a tirinha de Quino que descreve Mafalda descobrindo um “inquilino interior“ (a consciência moral do agente humano), espécie de marco zero do despertar da consciência ética da intersubjetividade e da interdependência que marcam a existência humana:

O campo de atividade da ética é de uma amplitude estonteante: os agentes éticos estão em interação no mundo comum, conceito essencial na filosofia de Hannah Arendt. Esta filósofa, em uma dos mais belos trechos de A Condição Humana, assim o define:

“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós.

Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” HANNAH ARENDT em “A Condição Humana”

Por isso é impossível separar ética de política: o campo de atividade do agente ético é necessariamente o espaço entre nós, o território que inclui o outro, o mundo que nos é comum, integrando não apenas nós que somos contemporâneos, mas conectando também a geração presente com as passadas e as vindouras. Já Aristóteles afirmava que o ser humano é um zoon politikon, algo reafirmado a seu modo por um dos maiores mestres da ética no Brasil contemporâneo, Fábio Konder Comparato, que afirma: “a política é a suprema dimensão da vida ética”:

“A célebre afirmação de Aristóteles de que o homem é, pela sua própria natureza, um ser político significa que o indivíduo somente encontra condições apropriadas para atingir um nível elevado de aretê, isto é, de desenvolvimento integral de sua personalidade, quando convive com outros seres humanos numa comunidade organizada, regida por normais gerais de comportamento, (…) em função de um objetvo comum a todos os seus membros, que se vêem, assim, ligados entre si por vínculos jurídicos e relações de solidariedade.“ (COMPARATO, Ética, Cia das Letras, p. 584)

Por isso, uma reflexão ética também não é dissociável de uma atuação atenta às diferenças entre o público e o privado. Para os gregos, o conceito de idiotia era utilizado para se referir àquela pessoa que só se interessava pelos seus assuntos privados, obcecada pelo próprio umbigo, omissa e isenta dos assuntos públicos e políticos por decisão própria. Esta obliteração proposital do público pelo sujeito era caracterizado com o qualificativo de idiotes. Para os gregos, inventores da democracia, o status de cidadão comportava sérios deveres, como explica Comparato:

“De modo geral, sempre foram vistos com maus olhos os que se abstinham sistematicamente de comparecer e votar nas reuniões da Ekklesia, sendo por isso qualificados de idiotai, ou seja, indivíduos unicamente preocupados com os assuntos do seu interesse particular. A neutralidade política era considerar em Atenas atitude contrária ao bem comum. Segundo reporta a tradição, Sólon teria editado uma lei, chocante para a mentalidade moderna, pela qual deveriam ser punidos com a atimia (perda da cidadania) todos aqueles que se recusassem a tomar partido numa situação de guerra civil.“ (COMPARATO, p. 644)

Mário Sérgio Cortella, co-autor da obra Política Para Não Ser Idiota, também o destaca: “Para os gregos da Antiguidade Clássica era “idiota” o sujeito que preenchendo as prerrogativas para participar da vida pública na polis, abdicava de fazê-lo. Hoje, muitas vezes, são rotulados de idiotas aqueles que, nas rodas de conversa, não se empolgam com assuntos sobre a vida privada das celebridades e insistem em colocar em pauta temas públicos, ou seja, assuntos políticos. Interessar-se por política, para muitos, não é normal.” (CORTELLA)

Se há idiotia em toda atitude que pretenda focar apenas no privado e não ligar para o público, isto se dá pois não há isentismo que não seja cumplicidade com os opressores: “Se você é neutro em situações de injustiça, é que você escolheu o lado do opressor”, afirma em célebre frase o Vencedor do Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu. Ficar em cima do muro não é nunca “inocente” pois de cima do muro você assiste, tomando chá, à brutalidade dos opressores e os processos que ele impõe de espoliação, humilhação, repressão dos oprimidos.

Por isso, em um mundo como o nosso, onde avança em passo acelerado, de modo perigoso e destrutivo, a oni-privatização do que antes foram espaços públicos, terras comunais e natureza inapropriável, é necessário insistir numa ética atenta ao bem público – e não apenas interessada nos motivos próprios ao indivíduo isolado (no fundo, uma abstração que serve à tirania burguesa sobre sistemas econômicos e sobre a nossa “economia psíquica”). A produção de subjetividades ególatras, idiotas pois despolitizadas, incapazes de devoção ao que transcende o “caro eu”, cegas ao público e o comum, é uma marca dos frutos da “revolução burguesa” quando se instituiu. Segundo Comparato:

“A oposição público – privado corresponde ao contraste entre o que é comum e o que é próprio. Próprio diz-se do que pertence, com exclusividade, a alguém, indivíduo ou grupo social determinado. A essência da propriedade
privada, como vem expresso na legislação dos mais diversos países, é o direito do proprietário de excluir todos os outros sujeitos do uso, fruição ou disposição de uma coisa determinada.

Em contraste, dizem-se comuns os bens compartilhados por mais de um sujeito, em igualdade de condições. A comunidade supõe, com efeito, que os seus integrantes sejam essencialmente iguais, ou seja, que não haja
indivíduos privilegiados, superiores aos outros.

Da igualdade cidadã decorre o princípio republicano da supremacia do interesse comum de todos os membros da coletividade – o povo ou a nação em cada país, o conjunto dos povos que formam uma federação de países, ou a própria humanidade no plano mundial, sobre os interesses particulares.“ (COMPARATO, p. 621)

Se deveras formos republicanos, seremos eticamente norteados pela supremacia do interesse comum e não pelo predomínio dos interesses individuais. O que ocorre é vivemos por tempo demais sob o efeito da lavagem cerebral imposta pela hegemonia ideológica liberal-burguesa. Esta pode ser resumida pela fórmula, bastante emblemática: vícios privados, benefícios públicos. Presente na famosa fábula das abelhas de Mandeville, também é uma conclusão tirável da “lógica” em que operam os pensamentos de figuras como Bentham e Adam Smith. Mas será mesmo que o egoísmo dos indivíduos realmente conduz à prosperidade geral? (E será que Eduardo Giannetti soube, no seu livro, aprofundar de fato a crítica que tem que ser feita a esta ideologia?)

“Durante o século XVIII, a Ideologia do Egoísmo encontrou um defensor no pensador Adam Smith: ele sustentou que se compradores e vendedores numa economia se dedicassem a maximizar seu ganho, os bens e serviços seriam distribuídos por uma ‘mão invisível‘ atendendo ao interesse da comunidade como um todo da melhor forma.

– Buscando o próprio interesse – escreveu Smith – um indivíduo muitas vezes promove o da sociedade mais efetivamente do que quando realmente pretende promovê-lo.

O poder dessa ideia estava em oferecer uma justificativa econômica e política enfática para que se agisse em conformidade com os próprios interesses pessoais, o que explica a popularidade de Smith em meio às elites empresariais e políticas durante a Revolução Industrial. Depois, nas ideologias de livre-comércio do thatcherismo e do reaganismo.“ (KRZNARIC, 2015, p. 35)

Esta apologia da pretensa prosperidade que o egoísmo acarretaria em prol da prosperidade geral é cada vez mais insustentável diante das evidências de que o capitalismo, calcado nas ideologias do liberalismo e suas “neo” versões, produz injustiça social, exclusão, precariedade e violência de modo avassalador, o que só se agrava com as catástrofes ambientais que um modelo extrativista e queimador de combustíveis fósseis gera. O cartunista André Dahmer é um dos mais ácidos comentaristas sociais deste contexto:

Mas também a atual cruzada contra Paulo Freire, movida pelos extremistas de direita no Brasil, tem a ver com as posturas anti-capitalistas críticas do neoliberalismo que o autor de Pedagogia do Oprimido abraçava. Em “Pedagogia da Autonomia“, Paulo Freire explicita sua “crítica permanentemente presente” à “malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”:

“Estamos de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado que me parece pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. (…) Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na história, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. (…) Quando falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.” (PAULO FREIRE, Primeiras Palavras, p. 16-19)

O Paulo Freire virou uma bruxa a ser caçada pela direita Bolsonarista e Olavete pois ele é um crítico bem-informado do catastrófico aparato educativo gerado pelo capitalismo liberal em conluio com as classes dominantes interessadas na produção massiva da idiotia e do conformismo. Paulo Freire escreve, em 1959, em “Educação e Atualidade Brasileira” (tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação, na Escola de Belas Artes de Pernambuco), em prol de uma educação que formasse eticamente no sentido da expansão da consciência comunitária e não do individualismo ególatra liberal-burguês:

“Encaminharemos o nosso agir educativo no sentido da consciência do grupo e não no da ênfase exclusiva no indivíduo. Sentimento grupal que nos é lamentavelmente ausente. As condições histórico-culturais em que nos formamos nos levaram a esta posição individualista. Impossibilitaram a criação do homem solidarista, só recentemente emergindo das novas condições culturais em que vivemos, mas indeciso nessa solidariedade e necessitando por isso mesmo de educação fortemente endereçada neste sentido. De educação que deve desvestir-se de todo ranço, de todo estímulo a esta culturológica marca individualista. Que dinamize, ao contrário, o espírito comunitário.” (FREIRE, apud Souza, p. 64)

A educação não é desvinculável da ética. Edgar Morin sempre repete – e é o título de um de seus livros – que educar tem a ver com ensinar a viver. E ética é o aprendizado prático de um viver que não é desvinculável do ser-com-os-outros, em uma teia de interdependência. Os gregos já sabiam que o processo formativo, a paidéia, não era dissociável de uma educação do ethos, e que este tinha tudo a ver com a transmissão e a prática das virtudes (aretê). A filosofia, como amor à sabedoria, sempre foi, por esta razão, conectada à educação ética, à formação para o aprender a viver bem, o que é sempre também um aprendizado do convívio. E no convívio se aprende que nada pior do que tratorar interesses alheios secundarizar o bem comum sempre em prol dos limitados e cegos motivos egóicos do indivíduo que se delira (enquanto preso no Samsara) isolado.

Dois dos principais pensadores da ética no pensamento contemporâneo, André Comte-Sponville e Vladimir Jankélévitch (1903-1985), têm obras devotadas à estas confluências entre filosofia, ética e educação. Eles sem dúvida concordariam com a magistral obra recente do australiano Roman Kznaric, O Poder da Empatia, que destaca o quanto poderíamos revolucionar para melhor o mundo comum caso tivéssemos um “caldo cultural” que favorecesse o florescer da empatia. Esta, que Jankélévitch descreve belamente nos seguintes termos e em fecundo diálogo com a tradição filosófica pregressa:

“A simpatia ou empatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” (Jankélévitch, que foi professor da Sorbonne de Paris entre 1951 e 1979. Em: Cursos de Filosofa Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.)

Empatia com a alteridade multidiversa, somada à solidarização radical com os oprimidos e excluídos, constituí um bom norte ético nesta época de pervasiva privatização da vida. Neste contexto, importante destacar a figura juvenil de impacto global, Greta Thunberg, detonadora do movimento Fridays for Future, inspirando milhões de jovens ativistas que ocuparam – e seguirão ocupando – as ruas do planeta, também no Brasil, na primeira grande sublevação de jovens diante da emergência climática.

“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.“ Eliane Brum em EL PAÍS Brasil

“Imperativo”, eis uma palavra que os pensadores da ética adoram. Imperativo é um jeito complicado de falar sobre o nosso dever, sobre a esfera que nos compete enquanto tarefeiros-de-um-dever-ser. A escutadeira Eliane Brum, que é também uma das forças mais significativas da educação ética no Brasil, diz que é imperativo escutarmos a Gretas, Sonias Guajajaras e Marielles.

O capitalismo neoliberal, calcado na ideologia individualista e burguesa da “Mão Invisível” – seja egoísta à vontade, a mão invisível do Mercado tratará de providenciar a prosperidade geral!, mostrou-se como construtor de ruínas. O capitalismo é a catástrofe globalizada, o advento do Antropoceno apocalíptico. Diante disso, não há isenção possível que não caia na idiotia ou, pior, na cumplicidade com os assassinos.

É o que Jean-Paul Sartre já ensinava ao dizer que “O homem é um ser condenado à liberdade.“ Não é possível uma vida humana sem escolhas nem consequências, o que torna a responsabilidade ética uma necessidade ontológica para qualquer bem-viver, ou seja, uma condição inextricável da filosofia como práxis da vida bem vivida pois bem refletida, sábia e amorável.  “O que não é possível é não escolher”, dizia Sartre. “Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências.“

O que Greta ensina – “escutar é imperativo!” – é o que Hans Jonas já dizia: o princípio responsabilidade da nova ética que precisamos pôr em prática engloba não só nossos contemporâneos (a geração dos atualmente vivos), mas engloba também as gerações por vir. As pessoas que ainda vão nascer, e que serão impactadas por nossas escolhas hoje, precisam ser levadas em conta em todas as nossas “equações éticas”. O futuro, fruto de escolhas coletivas, só será mais sábio caso pudermos ser a sabedoria ativa no presente, tarefa interminável e que, a julgar pelas catástrofes Fukushímicas que nos assolam, corre o risco da derrota. Não haveria, porém, qualquer justificativa ética plausível para a cumplicidade com os exterminadores dos equilíbrios ecosistêmicas e os perpretadores das injustiças tremendas, hoje globalizadas.

SAIBA MAIS – Vídeo da palestra completa:

O barco de Apolo no mar das pulsões dionisíacas: a tragédia para Nietzsche – Por Rosana Suarez em “Os Filósofos e a Arte”, org. Rafael Haddock Lobo, ed. Rocco, p. 125-147))

“Moby Dick ataca o barco Pequod” (Leroy Neiman)

POR ROSANA SUAREZ
(autora de Nietzsche ComedianteNietzsche e a Linguagem)

“O barco de Apolo no mar tempestuoso: é com essa imagem que desejo avançar na concepção do trágico em O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche (1844-1900). Friso que, nessa visão, a tragédia representa o apogeu da arte justamente porque compõe e consuma, ainda que provisoriamente, a tensa aliança entre os dois impulsos artísticos da natureza representados pelas divindades olímpicas Apolo e Dioniso.

Para compreender esse encontro, é preciso explicar que o pensamento alemão possui algumas noções de sentido marcadamente dinâmico. Uma dessas noções é impulso ou pulsão (Trieb, etimologicamente = pressão). A “pulsão”, como se sabe, é central em Freud. No pensamento de Nietzsche, está ligada à noção capital de vontade de poder (Wille zur Macht). O mesmo campo semântico dinâmico ressoa no conceito Schopenhaueriano de Vontade (Wille) e encontra um ancoradouro no lema do pré-romantismo alemão, Sturm und drang (“Tempestadfe e ímpeto”). As notas centrais de Trieb são: pressão, impulsão, irradiação; no extremo: desencadeamento e excesso.

Neste sentido, “TEMPESTADE E ÍMPETO” é uma imagem exemplar: o real é como um mar tempestuoso, cortado por relâmpagos, em permanente ebulição, analogia perante a qual até mesmo a formulação de Heráclito acerca da luta eterna dos contrários parece pecar por excessiva sobriedade. Esse imaginário típico reluz em Goethe: “Nas ondas da vida, na tempestade das ações, subo e desço, teço aqui e ali, nascimento e morte, um mar eterno, uma vida de mudança! Assim crio no estrepitoso mar do tempo. […] Em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda as vagas bramantes…”

Para Nietzsche, a arte e a cultura apolíneas, ligadas ao “princípio de individuação”, à medida, à consciência de si, surgem como solução para a Grécia num momento em que esta se vê assolada por pulsões que beiram o incontrolável em seu desencadeamento selvagem e potencialmente destruidor: as pulsões dionisíacas. Contra estas o grego apolíneo erige as belas imagens de seu sonho artístico, principalmente  a poesia épica e o panteão dos deuses olímpicos, deuses da beleza e da luz…

Esses artifícios, entretanto, não conseguem domar para sempre a força dionisíaca. Há um momento em que esta cobra o seu preço, como o oceano borrascoso.

Imaginemos Apolo na figura do marinheiro de um pequenino barco nos mares da Grécia. Esse barco tem a dimensão de uma casca de noz em relação ao oceano. Mas, vejamos bem: é a tensão do mar que sustenta o barquinho! Isso já seria quase suficiente para ilustrar a tensão Dioniso-Apolo em O Nascimento da Tragédia. Imaginemos então uma tempestade. É de se esperar que, em determinado momento, o mar dionisíaco ganhe passagem e destroce o barco de Apolo. Mas não. Segundo Nietzsche, acontece aqui o “milagre da vontade helênica”.

John William Waterhouse – Ulisses e as Sereias (1891)

Num mar eminentemenete épico, o barco apolíneo não se abisma: sabemos que Ulisses retorna à Ítaca. […] Comparemos o épico Ulisses ao trágico Édipo, por exemplo. Num episódio central da Odisséia, Ulisses se faz acorrentar ao navio e evita jogar-se ao mar, tornando-se o primeiro mortal a admirar estrategicamente o perigoso canto das sereias. Já o infeliz Édipo, ao abrir o inquérito contra o facínora de Tebas, matador do rei Laio e corruptor do trono – ele mesmo, afinal, acaba sendo tragado no redemoinho de suas próprias intenções, embora seja intérprete da Esfinge e benfeitor da cidade.

É que o herói trágico, posto sob a influência do mundo dionisíaco, seria levado a experimentar “as mais elevadas e mais fortes emoções” passíveis ao humano; e a encarnar todos os potentes e inextricáveis aspectos da natureza, de júbilo e dor, criação e destruição, vida e morte; mas sempre sob o efeito transfigurador da arte.

“Assim, a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades. Dioniso fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dioniso: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral.” Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, #21

ROSANA SUAREZ
in: Os Filósofos e a Arte
Ed. Rocco

Espinosa: Uma Subversão Filosófica – Por Marilena Chauí

I. Maledictus

A 27 de julho de 1656, a assembleia dos anciãos que dirige a comunidade judaica de Amsterdã promulga um herem (excomunhão, em hebraico), excluindo e banindo Espinosa (1632 – 1677), que, nessa época, tem 24 anos.

Em 1670, aos 37 anos, Espinosa publica o Tratado Teológico-Político, impresso sem o nome do autor. A obra se destina à defesa da liberdade de pensamento e de expressão. A 19 de julho de 1674, trazendo o brasão e as armas de Guilherme de Orange III, os Estados Gerais da Holanda, sob orientação e exigência do Sínodo calvinista, promulgam um édito em que declaram o livro pernicioso, venenoso e abominável para a verdadeira religião e para a paz da república, proibindo sua impressão e divulgação.

Em 1678, um ano após a morte de Espinosa, um novo édito do governo da Holanda proíbe a divulgação do conjunto de sua obra, publicada postumamente por seus amigos.

Afinal, o que dissera o jovem Espinosa – em 1656 –, o que escrevera o filósofo – em 1670 – e o que deixara escrito – em 1678 –, para que fosse expulso da comunidade judaica e condenado pelas autoridades cristãs? Por que alguns leitores, seus contemporâneos, afirmam estar diante de “nova encarnação de Satã” e que seu nome, Benedictus em latim, deveria ser mudado para Maledictus?

A filosofia espinosana é a demolição do edifício filosófico-político erguido sobre o fundamento da transcendência de Deus, da Natureza e da Razão, voltando-se também contra o voluntarismo finalista que sustenta o imaginário da contingência nas ações divinas, naturais e humanas.

A filosofia de Espinosa demonstra que a imagem de Deus, como intelecto e vontade livre, e a do homem, como animal racional e dotado de livre-arbítrio, agindo segundo fins, são imagens nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas e ações de todas as coisas. Essas noções formam um sistema de crenças e de preconceitos gerado pelo medo e pela esperança, sentimentos que dão origem à superstição, alimentando-a com a religião e conservando-a com a teologia, de um lado, e o moralismo normativo dos filósofos, de outro.

II. Deus, ou seja, a Natureza: a filosofia da imanência

A tradição teológica e metafísica ergueu-se sobre uma imagem de Deus, forjando a divindade como pessoa transcendente (isso é, separada do mundo), dotada de vontade onipotente e entendimento onisciente. Criadora de todas as coisas a partir do nada (confundindo Deus e a ação dos artífices e artesãos), legisladora e monarca do universo, que pode – à maneira de um príncipe que governa segundo seu arbítrio e capricho – suspender as leis naturais por atos extraordinários de sua vontade (os milagres).

Essa imagem faz de Deus um super-homem, que cria e governa todos os seres de acordo com os desígnios ocultos de Sua vontade, a qual opera segundo fins inalcançáveis por nosso entendimento. Incompreensível, Deus se apresenta com qualidades humanas: bom, justo, misericordioso, colérico, amoroso, vingador, que pune ou recompensa o homem, conforme este transgrida ou obedeça aos decretos divinos, pois é dotado de livre-arbítrio ou de livre vontade para escolher entre o bem e o mal.

Identificando liberdade e escolha voluntária e imaginando os objetos da escolha como contingentes (isto é, como podendo ser ou não ser, serem estes ou outros, serem como são ou serem de outra maneira), a tradição teológico-metafísica afirma que o mundo existe simplesmente porque Deus assim o quis ou porque Sua vontade assim decidiu e escolheu, e poderia não existir ou ser diferente do que é, se Deus assim houvesse escolhido.

Se o mundo é contingente, porque fruto de uma escolha contingente de Deus, então as leis da Natureza e as verdades (como as da matemática) são, em si mesmas, contingentes, só se tornando necessárias por um decreto de Deus que as conserva imutáveis. Assim, a necessidade (isso é, o que só pode ser exatamente tal como é, sendo impossível que seja diferente do que é) identifica-se com o ato divino de decretar leis, ou seja, a necessidade nada mais é senão a autoridade de Deus.

Compreende-se, então, porque tradicionalmente liberdade e necessidade foram consideradas opostas e contrárias, pois a primeira é imaginada como escolha contingente de alternativas também contingentes e a segunda, como decreto de uma autoridade absoluta.

William Blake, Ilustrações para “Paraíso Perdido” de Milton

Donde o mito do pecado original, quando o primeiro homem teria usado a liberdade (entendida como o poder de escolha) para desobedecer aos mandamentos ou leis de Deus. Com esse mito, ergue-se a imagem da liberdade humana como um poder para escolher o mal, porta aberta para nossa perdição. A um Deus autoritário corresponde um homem decaído e desobediente, por culpa da liberdade. Como, indaga Espinosa, foi possível tanta ignorância e superstição para transformar o que temos de mais precioso – a liberdade – em culpa, perversidade e perigo?

Essa imagem de Deus, demonstra Espinosa em sua obra magna, a Ética, não é senão a projeção antropomórfica de uma imagem do homem, confundindo propriedades humanas imaginárias com a essência divina. Porque os homens se imaginam dotados de vontade livre ou livre-arbítrio (imaginando que ser livre é poder escolher entre coisas ou situações opostas e agir segundo fins escolhidos pela vontade). Porque imaginam que o verdadeiro poder é aquele que se separa dos que a ele estão submetidos, dominando-os do alto e de fora. Porque imaginam a Natureza agindo segundo fins e para servi-los, os homens imaginam Deus como arquiteto que constrói o mundo e como príncipe que o governa. Se, portanto, quisermos alcançar o conhecimento verdadeiro da essência e da potência divinas, precisamos ultrapassar esse imaginário e, ultrapassando a imagem, chegar à idéia de Deus.

Espinosa parte de um conceito muito preciso, o de substância, isso é, de um ser que existe em si e por si mesmo, que pode ser concebido em si e por si mesmo e sem o qual nada existe nem pode ser concebido. Toda substância é substância por ser causa de si mesma (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo. A substância é, pois, o absoluto ou uma realidade absolutamente complexa, constituída de infinitas qualidades infinitas, cada uma das quais é uma potência produtora ou agente que engendra por si mesma e de si mesma as múltiplas ordens de realidade que formam o universo. A substância é a potência causal ou produtiva absolutamente infinita de auto-produção e de produção de todas as coisas. É o que chamamos de Deus.

Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência, Deus faz existir todas coisas singulares que O exprimem, porque são efeitos de Sua potência infinita. Em outras palavras, a potência produtora infinita é imanente aos seres produzidos, a causa é imanente ao efeito, porque se exprime nele e ele a exprime. Deus não é uma causa transcendente, separada dos seres singulares, mas é imanente a eles, pois eles são modos ou expressões do ser absoluto. À substância e suas infinitas qualidades infinitas, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de Natureza Naturante. O conjunto de todos os modos produzidos pela substância Espinosa designa com o nome de Natureza Naturada. A totalidade constituída pela Natureza Naturante e pela Natureza Naturada é Deus. Donde a célebre expressão espinosana: Deus sive Natura. Deus, ou seja, a Natureza.

Das infinitas qualidades ou potências produtivas da substância, conhecemos duas: o Pensamento e a Extensão. A atividade da potência do Pensamento produz idéias; a da Extensão, corpos. Idéias e corpos são modos finitos imanentes à substância infinitamente infinita, exprimindo-a de maneira determinada, segundo a ordem necessária que rege as relações entre todos os seres do universo. Os seres humanos, constituídos pela união de um corpo e uma mente (ou uma idéia), são modos finitos de Deus ou partes da natureza infinita de Deus.

III – Desejo e liberdade

O corpo humano é uma unidade estruturada: não é um agregado de partes nem uma máquina de movimentos, mas um organismo, ou unidade de conjunto, e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos. É um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é obtido por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações centrípeto e centrífugo, de sorte que, por essência, o corpo é relacional: é constituído de relações internas entre seus órgãos, de relações externas com outros corpos e de afecções, isto é, da capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando.

O corpo, estrutura complexa de ações e reações, pressupõe a intercorporeidade como originária. De fato, não só o corpo está exposto à ação de todos os outros corpos exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é necessário à conservação, regeneração e transformação de outros corpos. Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente e mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isso é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais.

A mente humana é uma força pensante ou um ato de pensar, isso é, uma ideia. Pensar é perceber ou imaginar, raciocinar, desejar e refletir. A mente humana é uma atividade pensante que se realiza como percepção ou imaginação, razão, desejo e reflexão. O que é pensar, nessas várias formas? É afirmar ou negar alguma coisa, tendo dela consciência (na percepção ou imaginação e na razão) e tendo consciência dessa consciência (na reflexão). Isto significa que a mente, como ideia ou potência pensante, é uma ideia que tem idéias (as idéias que a mente tem são os ideados, isto é, os conteúdos pensados por ela).

Em outras palavras, porque é um ser pensante, a mente está natural e essencialmente voltada para os objetos que constituem os conteúdos ou as significações de suas idéias. É de sua natureza estar internamente ligada a seu objeto (ou o ideado), porque ela não é senão atividade de pensá-lo. Ora, demonstra Espinosa, o primeiro objeto que constitui a atividade pensante da mente humana é o seu corpo e, por isso, a mente não é senão ideia do corpo. E porque ela é o poder para a reflexão, a mente, consciente de ser consciente de seu corpo, é também idéia da ideia do corpo, ou seja, é ideia de si mesma, ou ideia da ideia.

A mente humana não é uma substância anímica independente, uma alma meramente alojada no corpo para guiá-lo, dirigi-lo e dominá-lo. Modo finito do pensamento, atividade pensante definida como conhecimento de seu corpo e dos corpos exteriores por intermédio de seu corpo próprio (pois ela os conhece pela maneira como afetam seu corpo e pela maneira como este os afeta) e como conhecimento de si mesma, a mente humana não está alojada numa porção bruta de matéria, mas está unida ao seu objeto, ao seu corpo vivente.

Isso significa que quanto mais rica e complexa for a experiência corporal (ou o sistema das afecções corporais), tanto mais rica e complexa será a experiência mental, ou seja, tanto mais a mente será capaz de perceber e compreender uma pluralidade de coisas, pois, demonstra Espinosa, nada acontece no corpo de que a mente não forme uma imagem ou uma ideia (mesmo que estas sejam confusas, parciais e mutiladas). E quanto mais rica a experiência mental, mais rica e complexa a reflexão, isto é, o conhecimento que a mente terá de si mesma.

O corpo não causa pensamentos na mente, nem a mente causa as ações corporais: ela percebe e interpreta o que se passa em seu corpo e em si mesma. Assim, as afecções corporais são os afetos da mente, seus sentimentos e suas idéias. Em outras palavras, a relação originária entre o corpo é a mente é afetiva e as idéias da mente são afetos.

Unidos, corpo e mente constituem um ser humano como singularidade afetiva e individualidade complexa em relação contínua com todos os outros. A intersubjetividade é, portanto, originária.

Porque são expressões da potência da substância, os indivíduos singulares são potências de existir – aquilo que Espinosa, usando a terminologia da época, designa com a palavra conatus. São uma força interna que unifica todas as suas operações e ações para permanecer na existência, permanência que não significa apenas permanecer em seu próprio estado (como a pedra, por exemplo), mas regenerar-se continuamente, transformar-se e realizar-se (como os vegetais e os animais). O conatus, ou a potência de autoperseverança na existência, é a essência do corpo e da mente e essa essência, diz Espinosa, é o desejo. Somos desejo.

A potência interna (o conatus) que define a singularidade individual é uma força que pode aumentar ou diminuir, dependendo da maneira como cada singularidade se relaciona com outras ao efetuar seu trabalho de autoconservação. A intensidade da força da potência de existir e agir diminui se a singularidade for afetada pelas outras de tal maneira que se torna inteiramente dependente delas; e aumenta se a singularidade não perder independência e autonomia ao ser afetada por outras e ao afetá-las.

A diminuição e o aumento da força da potência existencial indicam que o desejo pode realizar-se inadequadamente ou adequadamente. A realização é inadequada quando a potência individual é apenas uma causa parcial das operações do corpo e da mente, que ficam determinadas pela potência de causas externas que impelem o indivíduo nessa ou naquela direção, dominando-o e diminuindo sua força. A realização é adequada quando a potência existencial aumenta sua força por ser a causa total e completa das ações que realiza, relacionando-se com as forças exteriores sem ser impelida, dirigida ou dominada por elas.

Espinosa pode, então, distinguir os afetos em passivos e ativos. Um afeto é passivo ou uma paixão quando o que se passa no corpo e na mente decorre do poderio das forças externas; um afeto é ativo ou uma ação quando decorre exclusivamente de nossa potência interna de existir e agir.

Espinosa é um racionalista – a realidade é inteiramente inteligível e pode ser plena e totalmente conhecida pela razão humana –, mas não é um intelectualista, pois não admite que basta ter uma ideia verdadeira de alguma coisa para que isso nos leve da paixão à ação, ou seja, para que se transforme a qualidade de nosso desejo.

Além disso, também não admite que passemos da paixão à ação por um domínio da mente sobre o corpo – somos passivos de corpo e mente ou somos ativos de corpo e mente. A um corpo passivo corresponde uma mente passiva e a um corpo ativo, uma mente ativa. Nem passamos da paixão à ação por um domínio que a razão possa ter sobre o desejo, pois, como demonstra na Ética, uma paixão só é vencida por outra paixão mais forte e contrária e não por uma ideia verdadeira.

A passagem da paixão à ação depende do jogo afetivo e da força do desejo. Imagens e idéias são interpretações de nossa vida corporal e mental e do mundo que nos rodeia. Ora, o que se passa em nosso corpo – as afecções – é experimentado por nós sob a forma de afetos (alegria, tristeza, amor, ódio, medo, esperança, cólera, indignação, ciúme, glória) e, por isso, não há imagem alguma nem ideia alguma que não possua conteúdo afetivo e não seja uma forma de desejo.

São esses afetos, ou a dimensão afetivo-desejante das imagens e das idéias, que aumentam ou diminuem a intensidade do conatus. Isso significa que somente a mudança na qualidade do afeto pode nos levar ao conhecimento verdadeiro, e não o contrário, e é por isso que um afeto só é vencido por outro mais forte e contrário, e não por uma ideia verdadeira.

Uma imagem-afeto ou uma ideia-afeto são paixão quando sua causa é uma força externa, e são ação quando sua causa somos nós mesmos, ou melhor, quando somos capazes de reconhecer que não há causa externa para o desejo, mas apenas interna. Os afetos ou desejos não possuem todos a mesma força ou intensidade: alguns são fracos ou enfraquecedores do conatus, enquanto outros são fortes e fortalecedores do conatus. São fracos todos os afetos nascidos da tristeza, pois esta é definida por Espinosa como o sentimento de que nossa potência de existir e agir diminui em decorrência de uma causa externa; são fortes os afetos nascidos da alegria, isso é, do sentimento de que nossa potência de existir e agir aumenta em decorrência de uma causa externa.

Assim, o primeiro movimento de fortalecimento do conatus ocorre quando passa de paixões tristes a paixões alegres e é no interior das paixões alegres que, fortalecido, ele pode passar à ação, isto é, ao sentimento de que o aumento da potência de existir e agir depende apenas de si mesmo como causa interna. Quando o conhecimento racional e reflexivo é experimentado como uma alegria maior do que qualquer outra, essa alegria é o primeiro instante da passagem ao verdadeiro e à ação.

Como a mente é ideia do corpo, será ativa ou passiva juntamente com ele. Isto significa que a liberdade, entendida como atividade cuja causa é a força autônoma do conatus, se refere não só à mente, mas também ao corpo, e é definida como a capacidade do corpo e da mente para a pluralidade simultânea. Isso é, a liberdade é a complexidade e a riqueza de afecções, afetos e idéias simultâneos, que têm no próprio corpo e na própria mente sua causa eficiente necessária.

Podemos, agora, avaliar a subversão ética realizada por Espinosa.

Para a tradição, paixão e ação eram termos reversíveis: a paixão era o lugar de recepção de uma ação, seu terminus ad quem; a ação, o lugar de onde partia uma operação, seu terminus a quo, posições que podem inverter-se, de sorte que, por exemplo, uma paixão da alma será uma ação do corpo e uma ação da alma, paixão do corpo. Com Espinosa, paixão e ação deixam de ser termos reversíveis para se tornar intrinsecamente distintas, de tal maneira que a uma mente passiva não corresponde um corpo ativo, nem a um corpo passivo corresponde uma mente ativa, pois corpo e mente são passivos ou ativos juntos e simultaneamente.

Essa subversão conceitual é o que permite a Espinosa identificar dois conceitos que a tradição sempre distinguira e opusera: necessidade e liberdade. Sendo a mente ideia do corpo, aquele que tem um corpo apto à pluralidade de afecções simultâneas tem uma mente apta à pluralidade de idéias simultâneas, de maneira que a liberdade humana, deixando de identificar-se com o exercício do livre arbítrio como escolha voluntária entre possíveis, é potência para o múltiplo simultâneo, quando este se explica apenas pelas leis necessárias de nossa natureza.

A liberdade não se encontra, portanto, na distância entre mim e mim mesma – distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que não sou eu mesma, isso é, com o objeto de uma escolha ou com um fim. Ao contrário, é a proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso. Porque a liberdade é a identidade de si consigo, Espinosa pode demonstrar que o conatus (ou o esforço de autoperseverança no ser) é o único fundamento da virtude, uma vez que esta não é senão a força do corpo e da mente para afirmar-se como causa eficiente interna total de suas ações, isso é, para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações. A liberdade é a proximidade plena de si consigo mesmo e poder do corpo e da mente para o múltiplo simultâneo.

IV. Contra o fundamentalismo religioso: crítica da teologia política

Se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias de suas vidas, diz Espinosa, não se sentiriam à mercê dos caprichos da sorte, isto é, a ordem imaginária do mundo como encontros fortuitos entre as coisas, os homens e os acontecimentos. Sentindo-se à mercê da sorte, porque não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas e são movidos pelo desejo de bens que não parecem depender deles próprios, os humanos são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança. Têm medo que males lhes aconteçam e bens não lhes aconteçam, assim como têm esperança de que bens lhes advenham e males não lhes caiam sobre as cabeças. Visto que esses bens e males, não parecendo depender deles próprios, lhes parecem depender inteiramente da sorte ou do acaso – e como reconhecem que as coisas que assim lhes acontecem são efêmeras –, seu medo e sua esperança jamais cessam. Da mesma maneira que coisas boas ou más lhes vieram sem que soubessem como nem por que, também podem desaparecer sem que saibam as razões desse desaparecimento.

A gênese da superstição encontra-se, portanto, na experiência da contingência. A relação imponderável com um tempo cujo curso é ignorado – no qual o presente não parece vir em continuidade com o passado e nada, nele, parece anunciar o futuro – gera simultaneamente a percepção do efêmero e do tempo descontínuo, o sentimento da incerteza e da imprevisibilidade de todas as coisas. Incerteza e  insegurança suscitam o desejo de superá-las, encontrando signos de previsibilidade para as coisas e os acontecimentos e levando à busca de sinais que permitam prever a chegada de bens e males. Essa busca, por seu turno, gera a credulidade em presságios e, por fim, a busca de presságios conduz à crença em poderes sobrenaturais, que, inexplicavelmente, enviam bens e males aos homens. Dessa crença em poderes transcendentes misteriosos nascerá a religião.

Mas Espinosa prossegue: se o medo é a causa da superstição, três conclusões se impõem. A primeira é que todos os homens estão naturalmente sujeitos a ela, não porque teriam uma ideia confusa da divindade. Ao contrário, eles a têm exatamente porque são supersticiosos – a superstição não é efeito e sim causa da ignorância a respeito da divindade.

A segunda é que ela deve ser extremamente variável e inconstante, uma vez que variam as circunstâncias em que se tem medo e esperança, variam as reações de cada indivíduo às mesmas circunstâncias e variam os conteúdos do que é temido e esperado.

A terceira conclusão é que a superstição só pode ser mantida ou permanecer mais longamente se uma paixão mais forte a fizer subsistir, como o ódio, a cólera e a fraude. Facilmente os homens caem em todo tipo de superstição. Dificilmente persistem durante muito tempo numa só e na mesma.

Ora, diz Espinosa, não há meio mais eficaz para dominar os homens do que mantê-los no medo e na esperança, mas também não há meio mais eficaz para que sejam sediciosos e inconstantes do que a mudança das causas de medo e esperança. Por conseguinte, os que ambicionam dominar os homens precisam estabilizar as causas, as formas e os conteúdos do medo e da esperança. Essa estabilização é feita por meio da religião.

A fixação de formas e conteúdos será tanto mais eficaz quanto mais os crentes acreditarem que sua fonte é a vontade do próprio Deus revelada a alguns homens sob a forma de decretos, mandamentos e leis. O poderio religioso torna-se ainda mais forte se os diferentes poderes que governam o mundo forem unificados num único poder onipotente – o monoteísmo é uma religião mais potente do que o politeísmo.

A força da religião aumenta se os crentes estiverem convencidos de que o único deus verdadeiro é o seu e que ele os escolheu para enviar suas vontades. Em outras palavras, uma religião monoteísta é mais potente quando seus fiéis se consideram eleitos pelo deus verdadeiro, que lhes promete bens terrestres, vingança contra seus inimigos e salvação numa outra vida, que será eterna. E, por fim, a força dessa religião é ainda maior se seus crentes acreditarem que o deus se revela, isto é, fala aos fiéis, dizendo-lhes qual é sua vontade – a religião monoteísta da eleição de um povo e do deus revelado é a mais potente de todas.

Ora, a vontade divina revelada terá um poder muito mais forte se a revelação não for algo corriqueiro e ao alcance de todos, mas algo misterioso dirigido a alguns escolhidos – os profetas. Assim, o núcleo da religião monoteísta revelada é a profecia, pois dela provêm a unidade e a estabilidade, que fixam de uma vez por todas os conteúdos do medo e da esperança.

Essa fixação assume a forma de mandamentos ou leis divinas, que determinam tanto a liturgia, isto é, as cerimônias e os cultos, como os costumes, os hábitos, as formas de vida e de conduta dos fiéis. Numa palavra, a revelação determina as formas das relações dos homens com a divindade e entre si. Por outro lado, a profecia é também a revelação da vontade divina quanto ao governo dos homens: a divindade decreta as leis da vida social e política e determina quem deve ser o governante, escolhido pela própria divindade. Em suma, as religiões monoteístas reveladas ou proféticas fundam regimes teocráticos, nos quais o governante governa por vontade do deus.

Todavia, ainda que as profecias estejam consignadas em escritos sagrados invioláveis – as religiões monoteístas reveladas de que falamos aqui são as três “religiões do Livro”: judaísmo, cristianismo e islamismo –, o fato de que esses escritos sejam a fonte do poder teocrático os transforma em objeto permanente de disputa e guerra. Essa disputa e essa guerra se realizam em torno da interpretação do texto sagrado, seja em torno de quem tem o direito de interpretá-lo, seja em torno do próprio conteúdo interpretado. É na disputa e guerra das interpretações que surge a figura do teólogo. Isso significa que a teologia não é um saber teórico ou especulativo sobre a essência de Deus, do mundo e do homem, e sim um poder para interpretar o poder do deus, consignado em textos.

A teologia é definida pela tradição judaica e cristã como ciência supranatural ou sobrenatural, pois sua fonte é a revelação divina consignada nas Sagradas Escrituras. Ora, Espinosa considera que a filosofia é o conhecimento da essência e da potência de Deus, isso é, o conhecimento racional da ideia do ser absolutamente infinito e de sua ação necessária.

Em contrapartida, considera que o Livro Sagrado não oferece (nem é sua finalidade fazê-lo) um conhecimento racional especulativo da essência e potência do absoluto, e sim um conjunto muito simples de preceitos para a vida religiosa e moral, que podem ser reduzidos a dois: amar a Deus e ao próximo (os preceitos da justiça e da caridade).

Não há nos textos sagrados mistérios especulativos nem conhecimentos filosóficos sobre a essência e a potência de Deus, da natureza e do homem, porque, afirma Espinosa, uma revelação é um conhecimento por meio de imagens e signos com que nossa imaginação cria uma figura da divindade com a qual possa relacionar-se pela fé. No caso da Bíblia judaico-cristã, o Antigo Testamento é o documento histórico de um povo determinado e de seu Estado, hoje desaparecido, a teocracia hebraica; o Novo Testamento é o relato histórico da vinda de um salvador, de sua vida, seus feitos, sua morte e suas promessas para quem o seguir.

A teologia, portanto, é um sistema de imagens com pretensão ao conceito, com o escopo de obter, por um lado, o reconhecimento da autoridade do teólogo (e não da verdade intrínseca de sua interpretação) e, por outro, a submissão dos que o escutam, tanto maior se for conseguida por consentimento interior. O teólogo visa à obtenção do desejo de obedecer e de servir. Eis porque toda teologia é política. Inútil para a fé – pois esta se reduz a conteúdos muito simples e a poucos preceitos de justiça e caridade – e perigosa para a razão livre – que opera segundo uma necessidade interna autônoma –, a teologia é danosa para a política, porque impossibilita o trabalho dos conflitos sociais em vista da paz, da segurança e da liberdade dos cidadãos.

Dessa maneira, escreve Espinosa, sacerdotes e teólogos “cercam a religião de cultos e aparatos próprios a lhe dar maior peso junto à opinião e maior respeito aos espíritos”, não hesitando em censurar, prender, interrogar, torturar e matar todo aquele que ouse refutá-la pelo livre pensamento e pela ação.

Aqueles que sabem que “não há meio mais eficaz para dominar a multidão do que a superstição” buscam divinizar a política e induzem, “sob a capa da piedade, a adorar os reis como se fossem deuses ou a odiá-los como flagelo do gênero humano”. A sacralização do poder político é obra da teologia, que passa a deter os segredos da política. Captados pela sedução teológica, os governantes aderem à sacralização da autoridade política, graças ao cerimonial, ao segredo, às leis da censura, à posse de exércitos e fortalezas, ao uso da prisão, tortura e morte dos opositores.

Filha do medo, por ele e nele parida, a superstição delega à religião – e esta à teologia – a tarefa delirante de encontrar uma unidade imaginária, capaz de recobrir e reconciliar uma realidade apreendida como fragmentada no espaço e no tempo, feita de forças múltiplas e contrárias. Uma unidade que pareça assegurar a continuidade dos acontecimentos e o controle sobre a Natureza irada, que pacifique governantes coléricos, garanta esperanças e conjure terrores.

Essa unidade procurada não pode, evidentemente, pertencer à mesma dimensão que a do mundo fragmentado e dilacerado, mas precisa transcendê-lo, a fim de manter coesas as partes isoladas e contrárias. Essa coesão só pode ser obtida pela potência extraordinária de um querer e de um olhar capazes de varrer num só lance a totalidade do tempo, do espaço, do visível e do invisível. Assim, a fragmentação experimentada com angústia pela imaginação desemboca numa unificação também imaginária, cuja morada é a vontade providencial de um soberano divino.

Graças a esse poder, que é uno porque transcendente à fragmentação da natureza e às divisões da sociedade, o curso das coisas parece assegurado e o destino de cada um, salvaguardado. No entanto, a salvaguarda é precária. Porque esse poder é imaginário, permanece desconhecido e rodeado de mistérios e é desprovido de necessidade inteligível, a imagem de Deus torna-se um amálgama incompreensível, pois a onipotência de sua vontade – lugar onde se alojaria a necessidade de seu agir – significa que faz tudo o que lhe aprouver e é também contingente e arbitrária. Secretas são suas razões. Misteriosa sua onisciência.

Assim, para ser tido como onipotente, o poder divino deve ser tido como insondável e ilocalizável, duplicando, então, o mistério do mundo que o exigira. A partir do momento em que a arbitrariedade do poder divino é tomada como prova de sua onipotência, os homens são obrigados a conjurar a ameaça que criaram para si próprios, justamente quando tentavam proteger-se. Torna-se-lhes indispensável encontrar mecanismos que possam garantir a constância do favor divino (o que explica a proliferação dos rituais e da arte divinatória), ou então, parece-lhes inevitável terem de se abandonar cegamente aos desígnios inescrutáveis da providência, sem ousar interferir em seu curso, confiando em uma vontade soberana que tudo prevê.

Essa representação dos altos poderes ou do poder do Alto parece baixar do céu à terra. O mesmo desejo de submissão a um poder uno e soberano, porque transcendente à fragmentação dos conflitos que dilaceram a sociedade e a política, produz entre os homens uma relação que os conduzirá, ao fim e ao cabo, a submeterem-se ao poder misterioso dos governantes. Com o advento dos arcana imperii – os segredos do poder ou a “razão de Estado“ – os homens, escreve Espinosa, “combatem para a servidão como se esta fora sua salvação“.

Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra ao céu – a política não é religião ou teologia secularizada; ao contrário, a religião e a teologia são a política sacralizada. Os conflitos entre os homens, deixando-os imersos no medo de serem vencidos pelo jogo incontrolável de forças exteriores, sejam estas figuradas pela natureza ou pelas relações sociais, pelo curso dos acontecimentos ou pela presença da alteridade, os leva a tecer uma teia imaginária de relações, cuja origem e sentido dependem de uma autoridade suprema, governante da natureza e da sociedade.

Espinosa realiza a crítica da teologia política sob três aspectos principais: a) mostrando que é inútil para a fé, pois os Livros Sagrados não contêm verdades teóricas ou especulativas sobre Deus, o homem e o mundo, mas preceitos práticos muito simples – adorar a Deus e amar o próximo –, que podem ser compreendidos por todos. O Antigo Testamento é o documento histórico e político de um Estado particular determinado, o Estado hebraico fundado por Moisés, não podendo servir de modelo e regra para Estados não hebraicos.

Por sua vez, o Novo Testamento é uma mensagem de salvação individual, cujo conteúdo também é bastante simples, qual seja, a) Jesus é o Messias que redimiu os homens do pecado original e os conduzirá à glória da vida eterna, se se amarem uns aos outros como Jesus os amou;  b) criticando a suposição de que há um saber especulativo e técnico possuído por especialistas em interpretação dos textos religiosos. Ele mostra que conhecer a Sagrada Escritura é conhecer a língua e a história dos hebreus e, portanto, que a interpretação dos livros sagrados é uma questão de filologia e história e não de teologia; c) mostrando que a particularidade histórico-política narrada pelo documento sagrado não permite que a política teocrática, que o anima, seja tomada como paradigma universal da política, pois é apenas a maneira como um povo determinado, em condições históricas determinadas, fundou ao mesmo tempo seu Estado e sua religião, sem que sua experiência possa ou deva ser generalizada para todos os homens em todos os tempos e lugares. Por conseguinte, toda tentativa teológica de manter a teocracia como forma política ordenada por Deus é fraude e engodo;

A crítica espinosana do poder teológico-político tem como alvo desatar o laço que prende num tecido único a experiência da contingência, o sentimento do medo e o imaginário do poder transcendente. A política é atividade humana imanente ao social e este é instituído pela lógica das ações humanas em condições determinadas.

Uma vez que a origem do poder político é imanente às ações dos homens e que o sujeito político soberano é a potência da massa e que esta decide agir em comum, mas não pensar em comum, o poder teológico-político é duplamente violento. Em primeiro lugar, porque pretende roubar dos homens a origem de suas ações sociais e políticas, colocando-as como cumprimento a mandamentos transcendentes de uma vontade divina incompreensível ou secreta, fundamento da “razão de Estado”. Em segundo, porque as leis divina reveladas, postas como leis políticas ou civis, impedem o exercício da liberdade, pois não regulam apenas usos e costumes, mas também a linguagem e o pensamento, procurando dominar não só os corpos, mas também os espíritos.

O imaginário da transcendência afirma que a teocracia é o regime de poder ordenado pela vontade divina. O pensamento da imanência afirma que a democracia é a forma superior da política.


Marilena Chauí é filósofa e professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP). Originalmente publicado em Revista Cult. Para aprofundar-se nos estudos, leia as obras da autora:

 

ALGUNS VÍDEOS:

A política do pastor e suas ovelhas: Michel Foucault, herdeiro do Iluminismo, e sua crítica ao Poder Pastoral através da História

Há muitas metáforas que servem para descrever o papel do chefe político e Foucault enumera algumas:

1) O chefe-de-governo como uma espécie de pai-de-família, que precisa cuidar daqueles que estão sob sua dependência, provendo alimentação, saúde, educação… em suma: o paternalismo patriarcal;

2) O líder político como marinheiro que teria o leme do navio do Estado em suas mãos, “que deve conduzir como um bom piloto governa decididamente seu navio em meio à tempestade, evitando os escolhos e conduzindo-o ao porto…” [1]

3) Ou o governante visto como pastor de um rebanho, e que enxerga o povo como devendo se reduzir a um amontoado de obedientes ovelhas (todas uniformes em sua brancura, todas idênticas em sua pureza!)…

É esta terceira concepção sobre a autoridade política que nos dedicaremos a investigar em minúcias na sequência, com auxílio de Foucault.

Ele constata na Humana História a emergência lá no Oriente mediterrâneo (por exemplo no Egito, na Assíria e na Mesopotâmia) de um ideário ou ideologia que concebe o rei/soberano como uma espécie de “pastor de homens”. Um tema que entre os hebreus “se desenvolveu e intensificou” [2] e que “o cristianismo teria adotado e imposto por bem ou por mal” [3].

“Nenhuma civilização, nenhuma sociedade foi mais pastoral do que as sociedades cristãs desde o fim do mundo antigo até o nascimento do mundo moderno”, afirma Foucault. [4] “O tema do pastorado, de importação oriental”, pôde se difundir em todo o mundo helênico, de modo que “a história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental, só começa com o cristianismo…”[5]

Esta concepção de política que, segundo Foucault, é estranha tanto aos gregos quanto ao Império Romano, pensa a política como pastoreio: o governante entendido como um pastor de um rebanho que “zela para que as ovelhas não sofram, vai buscar as que se desgarram, cuida das que estão feridas” [6]. Como explica Foucault, “o poder do pastor é um poder que não se exerce sobre um território, é um poder que, por definição, se exerce sobre um rebanho, mais exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, sobre uma multiplicidade em movimento.” [7]

            Ora, este poder pastoral possui como “objetivo essencial a salvação do rebanho”: “Idealmente, o pastor é aquele que alimenta, conduzindo às boas campinas; cuida do rebanho e zela para que as ovelhas não sofram; vai buscar as que se desgarram, cuida das que estão feridas. (…) A forma que o poder pastoral adquire não é, inicialmente, a manifestação fulgurante da sua força e da sua superioridade. O poder pastoral se manifesta inicialmente por seu zelo, sua dedicação, sua aplicação infinita.” [8]

   

Massacre de São Bartolomeu, de François Dubois

O próprio Foucault reconhece que este poder pastoral, tão ornado de intenções sublimes, marcou tantos séculos da história política de diversas sociedades e gerou uma civilização das mais “sangrentas”: “Em todo caso, é uma das que certamente praticaram as maiores violências… O homem ocidental aprendeu durante milênios o que nenhum grego sem dúvida jamais teria aceitado admitir, aprendeu durante milênios a se considerar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milênios, ele aprendeu a pedir sua salvação a um pastor que se sacrifica por ele.” [9]

 O poder pastoral precisa impor disciplinas àqueles que estão sob seu controle: “o primeiro gesto da disciplina é circunscrever um espaço no qual seu poder e os mecanismos do seu poder funcionarão plenamente e sem limites”, escreve Foucault. “A disciplina regulamenta tudo. (…) Não só ela não permite o laisser-faire, mas seu princípio é que até as coisas mais ínfimas não devem ser deixadas entregues a si mesmas.” [10]

Aponta ainda que a distinção entre o permitido e o proibido é radicalmente maniqueísta, isto é, instituem-se “tábuas de valores”, para usar uma expressão de Nietzsche, que exigem que o sujeito se mantenha longe de certos comportamentos/atos tidos por ilícitos, sob ameaça de severas punições. O rigor dos interditos que o pastor impõem àqueles que trata como suas ovelhas por vezes atinge um cume, um clímax, um ponto de saturação…

“O modelo de saturação disciplinar”, sugere Foucault, é a “vida monástica”. Neste estilo-de-vida ascético imposto pelo Pastoreado e seus dispositivos opressores, “o que o monge faz é inteiramente regulado, dia e noite” [11].

“A relação da ovelha com aquele que a dirige é uma relação de dependência integral” [12], “a tal ponto que a perfeição, o mérito de um noviço consiste em considerar uma falta qualquer coisa que viesse a fazer sem ter recebido ordem explícita. A vida inteira deve ser codificada pela fato de que cada um dos seus episódios, cada um dos seus momentos deve ser comandado, ordenado por alguém.” [13] Uma crônica magistral, pungente e traumática está em uma das obras literárias mais importantes da era Iluminista na França: A Religiosa de Diderot.

Explorando o tema da mortificação da vontade, denunciado tão enfaticamente por Nietzsche como um subproduto do poder exercido pelo sacerdote ascético sobre si mesmo e sobre suas “ovelhas”, Foucault comenta, tendo em mente o elogio cristão da humildade, da servilidade e da obediência: “Ser humilde, no fundo, é principalmente saber que toda vontade própria é uma vontade ruim. (…) A finalidade da obediência é mortificar sua vontade, é fazer que sua vontade como vontade própria morra…” [14]

Instrumento da mortificação da vontade alheia, o pastor, em suas ações concretas, está longe de ser aquele que zela pelo bem-estar de seu rebanho, que os conduz às campinas férteis, que os alerta contra os perigos e os predadores, que os edifica com lindos preceitos morais e os ensina o caminho para a Terra Prometida…

O pastor é também aquele que transforma seu rebanho numa seita. Que persuade sua seita a crer-se eleita, preferida pelos deuses e ornada de privilégios de nascença. Inebriados de sectarismo, os devotos mais fanáticos da seita com frequência podem agir de acordo com as ordens que vem de cima. Frequentemente, os líderes de seita, disciplinadores fanáticos das ovelhas a seu comando, convidam ao ódio e à destruição daqueles que pensam ou agem diferente.

O pastoreio Bolsonazista no Brasil de 2019 – com o governo “pilotado” por delírios evangélicos somados a pendores armamentistas e fascistas – é um emblema dos perigos do sectarismo. Os “Bozominions”, seita evangélico-Trumpiana, crédulos em fake news e dispostos a homicídios contra feminazis, petralhas e bichonas, são a manifestação atual dos perigos e horrores conectados ao império do teológico-político em uma época que o Iluminismo quis revolucionar em prol da secularidade, do “sem Deus na política!”.

Uma manhã perto dos portões do Louvre, pintura de Édouard Debate Ponsan

Deus na política, como sabemos bem os que estamos atentos às lições na História, é a receita para o desastre, para as guerras, para os morticínios. Seitas religiosas são boas de segregação e extermínio, e nenhuma democracia madura deseja incentivá-las. Pastores e ovelhas não deveriam ser deixados para trás, no museu daquilo que já esteve vigente na História mas agora caducou?

O pastor, afinal, preocupa-se muito com o seu rebanho, enquanto que enxerga os rebanhos dos outros como dignos de holocausto. Que se acendam as fogueiras onde queimarão vivas as “bruxas” e os hereges! Que sejam lançados os anátemas contra os homossexuais, os índigenas, os ateus! Que sejam ordenados os massacres contra os “ímpios”, isto é, contra todos que não fazem parte do rebanho ou não desejam participar da seita!…

O pastoreio considerado como ideal político, portanto, conduz à noção de que os melhores súditos são aqueles que se assemelham a ovelhas apáticas que seguem servilmente todas as ordens que lhes são dadas, por mais absurdas que sejam. E que além disso sentem tamanha fobia da diferença, tanto horror da alteridade, tanto nojo e desdém em relação a tudo o que é “exterior” à seita, que não hesitam em recorrer à violência homicida ou genocida, a agressão física ou simbólica, contra aqueles que elegem como seus inimigos externos e eternos, decretando-os como indignos de existir.

Eis a construção social da Escória do Mundo de que nos fala lindamente a Eleni Varikas em seu excelente livro. Só que os oprimidos jamais suportam calados que lhes tratem como a escória do mundo, e não há poder opressor que não se defronte com o poderio antagônico de poderes resistentes. E revolucionários.

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Delacroix, “A Liberdade Liderando o Povo” 

            FOUCAULT: HERDEIRO DO ILUMINISMO?

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Em sua obra As Razões do Iluminismo, Sérgio Paulo Rouanet alega que o autor de Vigiar e Punir seria um “herdeiro do Iluminismo”. Tal classificação realmente se aplica ao pensador francês, rotulado por outros como “estruturalista” ou “pós-moderno”? Há um Foucault iluminista?

Rouanet sustenta que sim, considerando que a caracterização do Iluminismo de Taine em Les Origines de la France Contemporaine  – “uma vasta obra de demolição em três etapas: a desmoralização da religião por Voltaire, dos costumes por Diderot e da ordem social por Rousseau”  – é conservadora e apenas parcial. Segundo Rouanet, “essa descrição não alude ao trabalho de reconstrução teórica que se seguiu ao de destruição”. De modo que, em sua perspectiva, “o Iluminismo foi ao mesmo tempo a empresa de demolição global corretamente descrita por Taine e um movimento regido pela razão e pela ciência.” [15]

SEGUNDO ROUANET… Foucault seria um pensador iluminista pois não “abriria mão do que o Iluminismo tinha de mais inalienavelmente seu: o espírito de crítica permanente”. Também porque “em seus métodos de trabalho e na organização de seu material ele é um historiador eminentemente racional” [16 – 17].

Foucault sabia operar através do procedimento genealógico que Nietzsche praticou em obras como A Genealogia da Moral e Além de Bem e Mal:

“…a genealogia exige a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. […] Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo se opõe ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias.” MICHEL FOUCAULT

La Prise de la Bastille, par Jean-Pierre Houël (1789)

Discordando das caracterizações de Foucault como um “irracionalista” ou um “niilista”, Rouanet sustenta que o autor da Microfísica do Poder “é movido por uma ética de emancipação” e que “foi um intelectual francês clássico, engajado, como Voltaire e Sartre, em lutas contra o poder” [18].

Um exemplo é a dedicação foucaultiana de revelar a verdade sobre suplícios punitivos e  estratégias carcerárias, atitude que Rouanet remete à queda da Bastilha, episódio crucial da Revolução Francesa (1789): “Foi o Iluminismo, transformado em força histórica, que, ao demolir a Bastilha, começou, com a crítica das armas, a denúncia da ‘instância carceral’ que Foucault prosseguiria com a arma crítica, quase duzentos anos depois.” [19]

14 de julho de 1789, a tomada da Bastilha é o início da Revolução Francesa.

            Estas “lutas contra o poder” que Foucault teria empreendido, segundo Rouanet, eram

“contra um poder concreto – dominação de classe ou disciplina molecular, mas em todo caso um poder encarnado na Quinta República, no Irã do Xá ou na União Soviética. Ele desfralda bandeiras absolutamente antiniilistas, como a da reforma penal. Toma partido, defende causas, tem aliados, formula estratégias – em suma, comporta-se como quem tem valores éticos e está disposto a lutar por eles.

Não chamaria Foucault de um ‘humanista’, porque seria agredir quem lutou toda a vida contra a filosofia antropocêntrica. Mas diria que, em sua defesa dos presos, dos homossexuais, de todos os grupos marginais, de todos os saberes ‘desqualificados’, Foucault foi o oposto de um niilista. No final de sua vida, esse lado generoso só fez reforçar-se. (…) A conquista da liberdade pela livre aplicação do saber, com vistas ao aperfeiçoamento ético da humanidade: mais que nunca, a batalha de Foucault é a do Iluminismo…” [20]

As batalhas iluministas contra o obscurantismo não terminaram, ou seja, prosseguem sendo as nossas. Em pleno século 21 d.C., os foguetes, satélites em órbita e redes globais de computadores e telecomunicações convivem com discursos medievalescos, que parecem ter saído da Idade das Trevas e do Terraplanismo Geocêntrico direto para o Twitter e o fórum de comentários de grandes portais.

Seguimos nos deparando com frequência com frases bíblicas como “o Senhor é meu pastor e nada me faltará” e nos estarrecendo com atitudes de pessoas que agem mais como ovelhas do que como seres humanos autônomos. O poderio social e econômico de pastores evangélicos, no Brasil contemporâneo, convida-nos a pensar nestas grandes igrejas, imensos negócios com uma salutar desconfiança.

O psicólogo José Ângelo Gaiarsa, discípulo de Wilhelm Reich, compartilha conosco em Crueldade Masculina uma interessante perspectiva sobre a origem histórica do Pastorado, seus vínculos com o Capitalismo Primitivo, e as ressonâncias de ancestrais pirâmides de poder até nossos dias, em que o movimento feminista tão bem denuncia os horrores e injustiças ocasionados pelo Patriarcado que se fundamenta em bases teológico-políticas.

Segundo Gaiarsa, “o instinto primário, ao contrário do que se costuma intuir, não é o sexo, mas a fome. Importante ter em vista que não existe repressão da fome, existe, sim, a miséria, que é o limite da desgraça humana. A fome não se pode controlar; trata-se de um fator de preservação da vida, de subsistência, anterior às questões apresentadas sobre a preservação do DNA. Assim o valor agregado aos primeiros capitais era a sobrevivência, a comida vinda da agricultura, que gerava basicamente grãos, e do pastoreio, com a carne e o leite.

A partir daí, nos deparamos com uma inevitável ironia. Os lindos poemas que se repetem invariavelmente para retratar esse período apresentam o bom pastor como aquele que leva seu belo rebanho pelas campinas e vales em segurança. Fato é, todavia, que o pastor não criava ovelhas por amor a elas: ele queria sua lã, seu leite e sua carne, três capitais que ele conquistava matando uma vez por mês certo número de animais de seu rebanho, para comer e dar de comer, recebendo como moeda-de-troca poder.

Nesse contexto, o bom pastor é a essência do bom capitalista: o rebanho é sua riqueza, formada quase sempre de mamíferos que produzem muito leite e que podem ser sacrificados a qualquer momento. Essa perspectiva, a bem da verdade, transforma o pastor no pior dos capitalistas, porque vai agora jogar com a sobrevivência direta dos demais membros do grupo social. Tanto o pastor quanto o agricultor são vitalmente capitalistas.

Será nesse momento da história, então, que surge a primeira influência maligna do macho. Em vez de tornar-se cooperativo, como gostaria a gente de bom coração, o homem se torna competitivo. Mas essa competição é instinto, é força desmedida, fazendo com que naturalmente alguém começasse a pegar mais do que precisava, a brigar com os outros para ter mais e poder ofertar mais e a fazer o possível pra ficar acima do outro, do seu concorrente genético. Assim se dará início à maior de todas as desgraças humanas: o homem instaura a pirâmide do poder. Começariam a aparecer com mais vigor os que dominam os meios, o dinheiro e a força, e os outros, que não têm nada disso.” [21]

O Poder Pastoral, que vem de tempos ancestrais, ainda é algo do qual não nos libertamos, ainda não pudemos, como diz Foucault, realizar aquela revolução que o teria aposentado definitivamente da História. Ainda há muito o que obrarmos coletivamente para a autêntica humanização destes mamíferos que somos, insistentemente tratados por pastores como se fossem ovelhas e não humanos, rebanhos e não cidadãos, bichos sacrificáveis e não conviventes-em-colaboração.


Por Eduardo Carli de Moraes, prof. de Filosofia do IFG.

A Casa de Vidro / Livraria e Ponto de Cultura – 1a Av, 974, Setor Univeristário, Goiânia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT. Segurança, Território e População. Ed. Martins Fontes. Notas: [1] Pg. 165. [2] 166-67. [3] 217. [4] 219. [5] 196. [6] 170. [7] 178. [8] 170-71. [9] 174. [10] 59. [11] 61. [12] 231. [13] 232. [14] 234.

ROUANET. As Razões do Iluminismo. Cia das Letras, 1987. [15] Pgs. 222-223. [16] 195. [17] 207. [18] 214-215. [19] 196. [20] 205.
GAIARSA. Crueldade Masculina. São Paulo: SESI, 2012. Capítulo 3. Pgs. 23 a 26.

ENTRE O FASCISMO E NÓS, SÓ HÁ NÓS – Como sobreviver à distopia real que encarnou-se no Brasil em 2018?

PARTE 1 – APOLOGIA DO VERMELHO

Todos os demônios estão soltos nesta terra que tem por nome Brasil.

A tragédia já estava prefigurada em nosso batismo: nos puseram um nome em homenagem a uma planta que havia nas terras de nosso litoral atlântico, o pau-brasil, com sua rubra madeira cor de brasa. O Brasil é um dos países do mundo com nome mais vermelho – e estou falando de linguística, não de política.

Os portugueses que nos invadiram com suas caravelas e bíblias, suas escopetas e doenças, logo viram no pau-brasil uma mercadoria rentável, pois podia ser usado no ramo da tinturaria de tecidos (fonte: etimologia de “Brasil” em Wikipedia). Rainhas da Inglaterra pisavam sobre tapetes vermelhos, signos de sua alta posição hierárquica e acesso a caríssimos luxos e privilégios, que haviam sido tingidos com pau-brasil.

Desde nosso batismo, partindo da palavra que nos nomeia, somos vermelhos na essência e constantemente espoliados por imperialismos. Por isso é tão estranho a meus ouvidos o grito-de-guerra de certos brasileiros, dizendo: “nossa bandeira nunca será vermelha!”

Compreendo que com isso manifestam sua fobia não de uma cor, ou seja, de uma configuração cromática específica, mas sim uma fobia daquilo que compreendem por “comunismo”. Às vezes, essa “rubrofobia” atinge as raias da loucura, como ocorreu com a senhora que revoltou-se diante da bandeira do Japão, que é branca com uma bola vermelha no centro, acusando os nipônicos de comunistas, o que não é puro nonsense (quem estudou História sabe, aliás, que os japoneses que estiveram aliados ao nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial).

Somos todos nós vermelhos no cerne: em nossas veias corre o mesmo rubro sangue. O que se classifica, com base em fenótipos aparentes, como “branco”, “negro”, “indígena”, segundo a tosca classificação vigente, colapsa diante de uma solidariedade ontológica mais funda, que nos une ao invés de nos segregar: todos nós sangramos sangue vermelho, todos nós temos a vida, em nós sustentada, pelos rubros fluxos deste líquido que nos comuna. Globalmente comunados estamos na condição humana, simbolizada pelo vermelho de todos os nossos sangues.

No Brasil de 2018, sinto medo de andar nas ruas de meu país vestido com uma camiseta vermelha onde se lê duas palavras: LULA LIVRE. Posso ser espancado, esfaqueado ou mesmo assassinado pelo delito gigantesco de vestir uma camiseta assim. Que país nos tornamos, quando não se pode manifestar discórdia diante de um processo que se julga injusto, um cárcere político? “Que país é este?” – como cantou, questionador, Renato Russo, em outra época mas ainda similar à atualidade.

Acreditamos realmente que um Brasil de tamanha intolerância alteritária  é um projeto sócio-político a se apoiar? Ou então devemos rechaçar e repudiar qualquer sistema político que queira reduzir a policromia do mundo à sua pobre paleta de cores? Nossa diversidade não é a mais preciosa de nossas riquezas? E você tem certeza que sabe de fato o que significa propor a “extinção dos comunistas” e a “extirpação dos vermelhos”? Sabe mesmo o que é uma pessoa comunista, para além da caricatura imaginária do Outro demonizado?

Eduardo Galeano ensina que o Arco-Íris Terrestre tem bem mais que 7 cores. Excluir o vermelho é um projeto que enfeia o mundo. O vermelho é maravilhoso. O vermelho é mágico como os raios de Sol quando se põe, despedindo-se deste setor do planeta girante. Pelo menos até amanhã de manhã. O vermelho sanguíneo é a continuação da vida, a transfusão dos ânimos. Aquilo que flui por dentro de todos nós, como um tônico revitalizante, distribuindo o alimento. Sangue vermelho bombeado por nossos corações, que ficam sempre do lado esquerdo do peito, independente de gênero e de sexo, independente de raça e de etnia, independente de classe e de pertença a castas.

Digo a todos os humanos terráqueos: “Do You Realize?”, como pergunta a música do Flaming Lips, que todos nós sangramos vermelho e temos um coração à esquerda no peito?

PARTE 2 – BEM-VINDOS À DISTOPIA DO REAL

  

Vivemos em dias nos quais a distopia não está restrita às obras de sci-fi pessimista ou aos filmes futuristas pós-apocalípticos. Somos contemporâneos de uma distopia que encarnou-se no real. Hoje convivemos com a instauração da barbárie brutal do Bolsonarismo.

A utopia, como Eduardo Galeano ensina, segue fugindo no horizonte, inalcançável por mais que caminhemos na sua direção, em nosso anseio insaciável de abraçar uma realidade menos opressiva e sórdida. A utopia segue inacessível, ainda que prossiga servindo à nossa incansável caminhada.

Já a distopia de nós se aproxima cada vez mais de nós com tanques, tropas e truculências que vão triturando nossas tristes vidas.

A nossa distopia tropical em processo de encarnar-se é, cada vez mais, a nossa realidade histórica contemporânea: a fase catastrófica em que embarcou a sociedade brasileira assusta pela escala colossal da tragédia autoritária e militarista que vem se empoderando.

O retrocesso brutal agora está encarnado no que venho chamando de “Bozonazismo” – a nova extrema-direita, seguidora de Jair Messias Bolsonaro, que se manifesta no país com brutalidade e descontrole.

O plano deste grupo político elitista, supremacista, interessado sobretudo em lucrar com o entreguismo de riquezas nacionais ao imperialismo Yankee, inclui a instauração de uma espécie de teocracia militarizada à la Gilead.

Refiro-me à distópica sociedade em que se transformou os E.U.A. após um Golpe de Estado fascista-teocrático na série The Handmaid’s Tale, inspirada no livro da autora canadense Margaret Atwood.

“Extirpar os ativismos”, “fuzilar a petralhada” e “dar carta branca pra polícia matar”: eis algumas das promessas de campanha proferidas pelo presidenciável do PSL (partido que terá a 2º maior bancada da Câmara dos Deputados, só menor que aquela eleita pelo PT). Apesar de fazer pose de “exterminador de corruptos”, Jair Bolsonaro passou a maior parte de sua trajetória política sendo liderado por Paulo Maluf no PP.

Nos palanques pelo Brasil, um dos gestos mais recorrentes do candidato de extrema-direita consiste em pegar crianças no colo e ensiná-las a fazer com as mãos o gesto de atirar uma arma-de-fogo. Comportamento que é um ícone de sua brutalidade. Um indício de que, em matéria de ética, ele age como um neandertal.


É com esse tipo de homem que estamos lidando: alguém que diz que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) “deve ser rasgado e jogado na latrina” (leia em O Globo: https://glo.bo/2BJ7cwr). É só um exemplos dentre dezenas que servem como sintoma claro de que Bolsonaro pretende lançar no lixo ou na privada a Constituição Federal de 1988.

Não há de respeitar a Constituição Cidadã alguém que se diz “favorável à tortura” e que promete transformar em “herói nacional” àquele que foi o comandante supremo, durante a Ditadura civil-militar (1964-1985), do aparato repressivo, torturador e exterminador, o facínora Brilhante Ustra.

PARTE 3 – POLÍTICA DA MORTE: TÂNATOS OPRESSOR DE EROS

O candidato a ditador, escudado por seu vice (o General Mourão), promete derramar muito sangue no Brasil: sua insana proposta para o complexo problema da segurança pública é permitir a aquisição de armas à torto e a direito, para felicidade das megacorporações armamentistas dos EUA, que lucram com a morte e a destruição, em um processo que é pura Necropolítica, conceito de Achille Mbembe:

“Neste ensaio, propus que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Sublinhei igualmente algumas das topografias recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular) e sugeri que o necropoder embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade.” [Achille Mbembe]

 SOBRE O AUTOR: Mbembe é considerado um dos mais agudos pensadores da atualidade. Leitor de Fanon e Foucault, com notável erudição histórica, filosófica e literária, vira do avesso os consensos sobre a escravidão, a descolonização e a negritude. Nascido nos Camarões, é professor de História e Ciências Políticas em Joanesburgo, bem como na Duke University, nos Estados Unidos. É autor, entre outros, de “Crítica da razão negra”, “De la postcolonie”, “Sortir de la grande nuit” e “Politiques de l´inimitié”.

Bolsonaro parece querer retroceder àquilo que o filósofo Thomas Hobbes chamou, no “Leviatã”, de “Guerra de Todos Contra Todos”. Em uma famosa entrevista ao programa Câmara Aberta, em 23 de maio de 1999, Bolsonaro disse: “Só vai mudar, infelizmente, quando, um dia, nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”

Atentem bem: vocês que digitam o número 17 nas urnas, votando em Bolsonaro, estão dando aval e sendo cúmplices de um sujeito que já disse repetidas vezes que, se depender dele, vão morrer milhares de inocentes durante seu governo – que mais parece, na verdade, um empreendimento bélico.

Os seguidores de Bolsonaro já estão pondo prática essa carnificina no período eleitoral, dando ao povo brasileiro um antegosto do inferno que os Bolsonaristas pretendem instaurar caso sejam eleitos. No período entre o 1º e o 2º turno das Eleições, já são pelo menos 3 vítimas fatais da escalada de ódio, violência e intolerância perpetrados por apoiadores do sr. Jair Bolsonaro:


Vítima: Moa do Katendê.
Local: Salvador – BA.
Data: 15/10/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/DS71oQ

Vítima: Priscila.
Local: São Paulo – SP.
Data: 16/10/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/BsW1yy

Vítima: Laysa Furtano.
Local: Aracaju – SE.
Data: 20/20/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/RCUJDe


Caso esta tragédia se consume e a campanha eleitoral fraudulenta e propulsionada por fake vença nas urnas, o Brasil se tornará, no planeta Terra, uma espécie de paradigma da barbárie, vanguarda do atraso, palco de atrocidades que nos envergonharão diante das outras nações. 

Nenhum governo legítimo nascerá de um processo eleitoral tão marcado por ilegalidades e fraudes. O que permitiu a ascensão de Bolsonaro foi o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff em 2016, ao que somou-se a guerra jurídica ou lawfare que culminou com a prisão de Lula, um “impeachment preventivo” que transformou o Brasil no único país do mundo em que um ex-presidente da república foi encarcerado em ano de Eleições num contexto em que estava disparado em 1º lugar nas intenções de voto. É algo sem precedente global histórico que eu conheça.

PARTE 4 – ELITISMO E HIGIENISMO: UM PROJETO DE CARNIFICINA E GENOCÍDIO


Pregando a violência e o ódio ao seu rebanho de seguidores fanatizados, Bolsonaro cada vez se revela mais como um caso psiquiátrico grave: é um sujeito gravemente adoentado com sintomas de psicose e megalomania. 

A fusão que o Bolsonarismo opera entre o discurso higienista da “faxina” – muito próximo à ideologia nazi-fascista e também às práticas dos supremacistas brancos da KKK nos EUA – e o antipetismo fanático, típico daqueles que são incapazes de fazer qualquer tipo de avaliação sensata sobre os méritos e deméritos das políticas públicas petistas (como a expansão da rede pública de ensino, o combate às desigualdades sociais, os programas sociais de auxílio aos mais vulneráveis e desvalidos etc.) vai produzindo uma monstruosidade coletiva muito perigosa.

É tão perigosa que seria a maior das fake news dizer que o campo Anti-Bolsonarista é apenas um antro dos petistas. O repúdio a Bolsonaro é amplo e irrestrito, atravessa todas as classes sociais, ainda que possua regiões de maior intensidade de resistência (o Nordeste) e que possua nas mulheres a principal força de mobilização contestatária (leia em Vice: As Mulheres Fizeram A Maior Marcha Antifascista do Brasil).

O maior fenômeno de mobilização cívica de 2018 foi sem dúvida o movimento #EleNão, que manifestou a grandeza do repúdio organizado ao projeto de poder, elitista e genocida, da extrema-direita Bolsonarista. A crítica ao Bolsonaro é feita não só pela esquerda (PSOL, PC do B, PT etc.), mas até mesmo por setores mais ao centro e à direita: inclui até mesmo certos tucanos (o FHC já farejou o fascismo das práticas da família Bolsonaro), a maioria dos ciristas (PDTistas) e de marinistas (Marina Silva declara ‘voto crítico’ em Haddad).

 

PARTE 5 – INTOLERÂNCIA SANGUINÁRIA CONTRA A DIVERSIDADE HUMANA


Seguidores de Bolsonaro tem propagado a noção de que “petista bom é petista morto”, mas também a de que “gay bom é gay morto”, “feminista boa é feminista morta”, “sem terra bom é sem terra morto”, e por aí vai.

É uma doutrina que se baseia num tipo de pensamento tosco, maniqueísta, baseado na criminalização do outro e na construção de grandes generalizações imaginárias (“todos os esquerdistas não prestam, todos os petistas são corruptos e ladrões, logo eles precisam ser varridos do Brasil”).

Assim, a extrema-direita apóia milicianos e gangues estão tocando o terror: dando facadas em mestres da cultura popular, desenhando suásticas em mulheres, assassinando brutalmente transexuais, numa atitude de hooliganismo destrutivo que hoje aterroriza o país e que ameaça sair totalmente do controle.

Pois o instigador supremo dessas violências é um completo irresponsável, que diante dos homicídios e agressões perpetrados por seus seguidores diz simplesmente: “O cara lá que tem uma camisa minha comete lá um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?” (Bolsonaro, TV UOL, 10 de outubro de 2018)

Tal grau de irresponsabilidade mostra o total desprepo do candidato para o cargo que ambiciona. O transtornado líder dessa seita, embriagado com a ambição e a sede de poder, como um Macbeth ou um Ricardo III (mas sem a grandeza dos personagens shakespearanos), fala na linguagem dos ditadores brutais. Não se houve de sua boca nada em defesa da democracia. Mas sim elogios e mímesis dos que cometeram as piores atrocidades da História humana.

Bolsonaro promete uma “limpeza como nunca antes houve neste país”, o que soa como uma proposta de higienismo social que assusta pela proximidade com projetos genocidas e totalitários de “limpeza étnica” que constituem, na linguagem penal internacional, “crimes contra a humanidade”.

O pretendente a führer tropical tampouco se importa com esta besteira que são os Direitos Humanos Universais. Já prometeu que vai tirar o Brasil das Nações Unidas (Leia em O Globo: https://glo.bo/2N0tJWO). Para ele, esta babaquice esquerdista que é o Estado Democrático de Direito pode e deve ser sacrificado no altar do seu Estado Teocrático Militarista onde “as minorias tem que se curvar à maioria”.

Na verdade, por trás desta retórica que vem encantando tantos cidadãos brasileiros, frustrados com a política tradicional, está uma velharia mofada que ressurge em nossa história: Bolsonaro é a cara da nossa antiquíssima Elite do Atraso, um macho, branco, milionário, hetero, cis, que encarna tudo aquilo que o velho elitismo defende desde a época da escravatura. É um cara-pálida machista, supremacista racial, favorável aos ricos, apoiador do extermínio da diversidade humana, intolerante com modos de viver e de crer que se desviem de sua norma caduca e esclerosada.

Concedo que nesta tragédia há elementos cômicos – um eleitorado que elege, como fez em São Paulo, um ator pornô, um palhaço (sem muita graça), um herdeiro de um luso monarca, e ainda tem coragem de vomitar xenofobia contra os nordestinos que seriam cabras que “não sabem votar”.

Sabemos muito bem, pelo resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, que o Nordeste foi a única das 5 regiões brasileiras em que Bolsonaro perdeu, seja para Fernando Haddad, seja para Ciro Gomes. Sinal de que o Nordeste tornou-se a vanguarda ética da nação, o Nordeste é nossa estrela-guia para tentar “re-iluminar” o resto do Brasil, que tem estado refém das trevas de um obscurantismo fundamentalista que pôs a democracia na guilhotina.

PARTE 6 – UMA CATÁSTROFE PARA A EDUCAÇÃO E A CULTURA

Após o Golpe de Estado de 2016, vimos o governo Temer nascer instaurando o que foi chamado de Machistério: só havia homens, brancos e ricos comandando 100% dos Ministérios. Como nada é tão ruim que não possa piorar, a promessa de Bolsonaro é encher os Ministérios com militares, inclusive o Ministério da Educação – MEC: Bolsonaro já se manifestou no sentido de sua predisposição ao extermínio da obra e da influência pedagógico-política de Paulo Freire, considerado mundo afora como um dos pensadores brasileiros mais brilhantes que já nasceu. O “Andarilho da Utopia”, como Paulo Freire gostava de se referir a si mesmo, também está sob ameaça.

Como informa a reportagem de Época, segundo Bolsonaro, defensor do Escola Sem Partido (que é também o Escola Sem Darwin, o Escola sem Marx, o Escola Sem Nietzsche…), lá no MEC o plano é esta beleza: tem que pôr lá um milico, de pulso firme, que extirpe o “esquerdismo”: “Tem de ser alguém que chegue com um lança-chama e toque fogo no Paulo Freire.” 

E vocês pensando que Farenheit 451 era só uma obra de ficção científica sci-fi!  Bolsonaro disse que seu programa vai ser usar o “lança-chamas” contra o Paulo Freire, igual aos bombeiros que, ao invés de apagarem incêndios, botam fogo em bibliotecas no romance de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut, e que voltou aos cinemas na era Trump-Bolsonaro em produção da HBO.

Nenhum compromisso com a verdade, com a cultura, com o conhecimento, com a ciência. Bolsonaro só pensa em dinheiro e poder para pôr em prática seus ensandecidos planos de “purificação” da nação. Seu slogan é “Brasil acima de tudo” (similar ao Deuteschland Ubber Allez dos nazis alemães) e “Deus acima de todos” (o Deus como o concebem os evangélicos neopentecostais estupidificados pelas organizações teocráticas de Edir Macedo, Malafaia, Feliciano etc.).

É a distopia total da união de um nacionalismo fake, conversa pra boi dormir diante da explícita submissão vira-latística do Bolsonarismo aos EUA de Trump, com a teocracia do setor mais fundamentalista e obscurantista do mercado-da-fé no capitalismo brasileiro contemporâneo. Tudo o que Bolsonaro mais quer é poder ir lamber as botas de Trump na Casa Branca, faturando bilhões para si mesmo ao liberar o nosso petróleo e nossa Amazônia, além de nossa água doce e nosso espaço aéreo, para a exploração “livre” por parte do Império hoje gerido por um fascista, xenófobo, supremacista branco, cúmplice do genocídio do povo palestino.

PARTE 7 – QUANDO O NARIZ DE PINÓQUIO BATEU NOS ANÉIS DE SATURNO

O candidato Bolsonaro, além de basear sua campanha em mentiras difundidas em larga escala através de impulsionamentos patrocinados via caixa 2 (dinheiro investido por empresas que, aliás, estão diretamente interessadas na devastação de nossos direitos trabalhistas), também tem uma espécie de “plano piromaníaco” para a educação e a cultura. Um plano parecido com o de Nero, o incendiário de Roma.

Um programa que obviamente não tem compromisso algum com o processo coletivo de busca da verdade que engaja profissionais de tantas áreas, do jornalismo, da filosofia, das ciências sociais, da literatura, das artes, da tecnologia etc. Toda barbárie está liberada quando o líder supremo, como Goebbels no III Reich, como o Grande Irmão no 1984 de Orwell, julga-se no direito de mentir em massa. Aniquilando reputações a base de calúnias, difamações e memes ridicularizadores e mentirosos. Tudo com dinheiro ilegal vindo de empresas simpáticas ao projeto de aniquilação (lucrativa pro patronato) dos direitos trabalhistas.

É de se imaginar, num virtual regime Bolsonarista, o seguinte quadro aterrador para a educação e a cultura. Os militares estarão no domínio no MEC e no MinC. Estarão mobilizando o polvo repressor da Escola Sem Partido, mandando artistas e intelectuais pros novos porões do DOI-CODI. Os educadores considerados subversivos, pois aplicam a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, vão berrar no pau-de-arara… De agora em diante, só Educação Moral e Cívica, só Doutrinação Criacionista! E que se calem aqueles que não querem ser as bruxas e os hereges queimados na Nova Inquisição!

Os piromaníacos, os “profissionais da violência”, as milícias Bolsonaristas, neste futuro possível (ainda que intragável) podem aproveitar que o fogo das intolerâncias está acesso e ir no embalo da queima não só dos livros de Paulo Freire. O lança-chamas será também usado contra Charles Darwin, de Karl Marx, de Friedrich Nietzsche, de Judith Butler, de Jessé Souza… Arderá todo o “lixo esquerdista”: será a Segunda Morte de Rosa Luxemburgo, de Gramsci, de Mandela, de Malcolm X….

Os BolsoNeros também podem empolgar-se na piromania e tacar nas fogueiras também os professores de biologia que queiram ensinar o evolucionismo. Ou os professores de sociologia vão gemer torturas nos porões das delegacias militares para abjurar do pecado de ensinar Marx, Engels e Max Weber. Os professores de filosofia que julgam digna de ser ensinada na escola a vida e obra de figuras como Walter Benjamin ou George Lúkacs, serão truculentamente levados aos centros de detenção e “interrogatório” onde sangram aqueles que ensinam “lixo esquerdista”.

Pode até parecer que estou paranóico, que estou dando asas demais à minha imaginação distópica, mas lembro-me agora da frase de William Burroughs de que Kurt Cobain tanto gostava e que contrabandeou para dentro de uma música do Nirvana: “just because you’re paranoid, don’t mean they’re not after you”.

Na Alemanha do III Reich, os nazistas fizeram muitas fogueiras de livros. Fizeram também campos de extermínio e câmaras de gás em que tentaram reduzir a cinzas todo o povo judeu no processo que ficou conhecido como Solução Final. Puderam convencer boa parte do povo alemão a ser cúmplice do Holocausto – em um processo social desastroso, onde passa a ser dominante a obediência cega e servil aos ditames da tirania nazi e que a filósofa política Hannah Arendt conceituou como  “A Banalidade do Mal”, um dos mais importantes conceitos na história do pensamento do século XX.

PARTE 8 – A ESPERANÇA EQUILIBRISTA ESTÁ COM HADDAD E MANU

O Brasil, em Outubro de 2018, está diante de uma encruzilhada histórica colossal, em que nosso futuro coletivo está na balança. A maioria do eleitorado pode eleger um psicopata que promete a carnificina, a guerra, a violência, a intolerância, o destravamento de todos os ódios, o colapso de toda solidariedade e toda justiça. Pode acontecer, mas seria catastrófico, segundo todas as mais lúcidas previsões e prognósticos de gabaritados historiadores, sociólogos e filósofos.

Nós, que amamos a democracia e a liberdade, que somos educadores e intelectuais comprometidos com a defesa dos direitos humanos, que não aceitamos o argumento de que “ativismos” devem ser extirpados, prosseguimos incansavelmente na ação de conscientização para alertar o cidadão brasileiro do tiro-na-cabeça que é digitar 17 nas urnas.

Ao invés deste sádico opressor que é Bolsonaro, temos a oportunidade de eleger um sábio professor que é Fernando Haddad. É evidente para qualquer cidadão que não esteja cego pelo fanatismo que Haddad é um gestor público de comprovada competência, que realizou um primoroso trabalho como Ministro da Educação do governo Lula. Foi um prefeito de São Paulo premiado internacionalmente pelo seu trabalho inovador e humanista no processo desafiador de governar a maior cidade da América Latina. Sua mentora, a filósofa Marilena Chauí, garante-nos sobre as muitas excelências éticas e intelectuais de Haddad.

Haddad é um líder de centro-esquerda inteligente, dinâmico, capaz de diálogo amplo com todos os setores da sociedade brasileira. Sempre portou-se de maneira honesta, íntegro e digna, sempre na defesa dos valores civilizacionais elementares de uma república democrática como o Iluminismo a idealizou na “Era das Luzes”. É um intelectual crítico, iluminista, humanista, com incríveis capacidades no âmbito da práxis e da gestão pública.

Ao invés da carnificina que a extrema-direita fascista deseja instaurar, derramando o sangue dos inocentes, podemos eleger o projeto de valorização da educação e do trabalho, dos serviços públicos e da qualidade de vida, que hoje Haddad defende e representa.

 

O antipetismo de alguns atingiu tal grau de insanidade que, motivados pelo ódio irracional, alguns aplaudem quando seu líder Bolsonaro diz que “marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” e que “bandidos do MST e MTST” terão suas “ações tipificadas como terrorismo” (leia em UOL Notícias – https://bit.ly/2AlK4S0).

O discurso de Bolsonaro exibido num telão na Avenida Paulista em 21 de Outubro, faltando uma semana das eleições, nos dá o alerta: estamos diante de um tirano intolerante que pretende perseguir, silenciar ou mesmo assassinar impiedosamente, usando a máquina de repressão do Estado, os cidadãos que participam de movimentos sociais e partidos políticos estigmatizados como “esquerdistas e marginais”. Bolsonaro é a barbárie, e quem o apóia é cúmplice do projeto político mais exterminador, estúpido e nefasto da história da Nova República.

O que há de mais precioso na vida política popular do Brasil são aqueles que mobilizam-se por justiça no campo e na cidade, que querem a reforma agrária e o direito à moradia, que demandam condições dignas de existência e de florescimento. Temos a oportunidade histórica de empoderar, com a eleição do presidente Fernando Haddad, um projeto de Brasil muito mais justo, generoso, solidário, fraternal, inteligente, amoroso e sábio. Que saiba ouvir a sociedade civil organizada, ajudar a empoderá-la, criando condições para uma ressurreição democrática entre nós.

Votar Haddad é votar num Brasil que possa ter um futuro mais doce: o do diálogo democrático e colaborativo, re-instaurado. Bolsonaro só nos obrigará a beber um amargo cálice de Necropolítica, feito todo de intragáveis doses de silenciamento, brutalidade e carnificina, um projeto que inclui um grotesco massacre dos inocentes e uma tirania militarizada e teocrática que nos leva de volta à Idade das Trevas.

Sempre que deparo com os “Bozominions” (esta versão fascista do Coxinha) falando horrores criminalizadores sobre o PT, penso que o PT – Partido dos Trabalhadores merece mais respeito. É de um desrespeito brutal o que os Bozominions fazem com a biografia e a trajetória de Lula, Dilma, Haddad, Lindbergh etc. Tratá-lo como “organização criminosa” não é só falso, desonesto e obsceno, é um verdadeiro crime contra um partido que faz parte da nossa História há 38 anos e cuja trajetória merece ser estudada, avaliada, criticada, mas jamais descartada nem muito menos exterminada.

Ao final do mandato de 8 anos de Lula, o Brasil era um dos países mais admirados do mundo e vencia com ousadia alguns dos piores males que lhe haviam sido legados pelo passado de colônia e de ditadura. Vomitar o slogan “O PT é ladrão” jamais vai apagar os feitos de quem retirou 40 milhões de pessoas da miséria, fortaleceu o salário mínimo, levou-nos a um estado de pleno emprego, ampliou Universidades Federais e IFs como nunca antes na História, fortaleceu o SUS, criou Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, ProUni, Cultura Viva, dentre tantos outros programas sociais de valor e mérito que merecem nossa estima.

 

PARTE 9 – O FALSO DEUS DOS PSEUDO-MESSIAS

O grau de obscurantismo da extrema-direita brasileira nos ameaça com a instauração de um nova idade trevosa, com milícias à la Ku Klux Klan acendendo as fogueiras das novas intolerâncias. Sabemos que o tropicalführer está apoiando-se no poderio das igrejas neopentecostai$ do Brasil. Malafaia, Feliciano, Edir Macedo, Jair Bolsonaro: são “poderosos” da mesma laia.

São a laia dos mercadores de ilusões, megalomaníacos, doidos de ambição pela conquista do poder político, mercadores da fé que querem violar todos os princípios do Estado Laico, para que se empoderem para disseminar por toda parte o seu fundamentalismo ultracapitalista. Chamemos isso de Teologia da Prosperidade, nas antípodas da Teologia da Libertação defendida por Leonardo Boff, Frei Betto, dentre outros cristão progressistas.

O Bolsonarismo é aliado de empreendimentos como a UIRD e a Record, de Edir Macedo. A Indústria da Mentira une Bolsonaro e Macedo, e é justamente a mentira que lhes serve como lucrativa mercadoria, que tantos milhões de reais injeta nas máquinas de que eles são os patrões: suas “grandes empresas, imensos negócios”.

Para sua diabólica maquinaria de enganação em massa, estão usando o spam das mídias sociais para praticar a desinformação e também altas doses de calúnia e a difamação contra os adversários políticos. Estão produzindo, com isso, violento sectarismo, intensificação dos ódios e das violência, além de propagarem um tipo de subjetividade lamentável: os cabaços de Whatsapp, aqueles analfabetos políticos, que compartilham material falso e degradante.

 

Justificando​ – Bolsonaro, com seu discurso teocrático, agradou uma expressiva parcela de cristãos que – traindo o Evangelho de amor e paz, pregado por Cristo – estão propagando o ódio e o extermínio ao inimigo construído no imaginário (esquerdista, petralha, LGBTQIA+, comunista, minorias etc.), ou seja, tudo aquilo que, supostamente, não siga a cartilha idealizada do fundamentalismo religioso. São reedições sucessivas da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, embora tenhamos uma forte resistência de muitos cristãos contra esse avanço inquisitório da fé.

Isso revela um cenário preocupante de desejos e afetos que estavam represados. Não é à toa que, quando a comporta da represa foi aberta e Bolsonaro apareceu como mensageiro, o ódio e a vontade de exterminar tiveram tanta força. Portanto, torna-se bastante curioso que o lema da campanha de Bolsonaro seja “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Está em curso, no país, uma ressignificação interpretativa do que são valores cristãos por parte de um setor interno barulhento e com capilaridade política. É uma abordagem autoritária, com táticas eficazes de instrumentalização do medo do “inimigo”. A institucionalização da lógica bélica de professar a fé abandonou, de vez, os lindos ensinamentos bíblicos previstos em 1 Samuel (25:31), Mateus (5:38-48; 25:35-46), Romanos (12:20,21; 12-14), João (13:33-35), Efésios (4:31,32), Gálatas (5:14,15) e (Lucas 10:25-37). O Deus da vingança e da “justiça” sem misericórdia encontrou vários porta-vozes.

Mas não nos esqueçamos do que essa distorção gerou ao longo da história. Não nos esqueçamos do genocídio indígena, da escravidão e destruição dos negros, da Inquisição, da morte de mulheres nas fogueiras, do fascismo, da ditadura civil-militar de 1964, entre outras atrocidades. Nesse passado sombrio, a legitimação religiosa foi fundamental. Não esqueçamos que a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) apoiou o golpe de 64. Não nos esqueçamos da ligação do papa Pio XI com o ditador Benito Mussolini na ascensão do fascismo italiano. E hoje, reproduzindo erros do passado, temos um reencontro de vários setores cristãos com um presidenciável que elogia a ditadura civil-militar de 1964, bem como os torturadores dessa ditadura, além de ter, em seu gabinete parlamentar, 05 quadros com a foto dos 05 ditadores daquele período tenebroso de nossa história.

Jesus não é responsável por esse derramamento de sangue. Esse derramamento de sangue jorra das mãos daqueles que usam a religião para legitimar e promover a destruição do “outro” ou, quando distorcem os ensinamentos de Cristo, para capitalizar o ódio. Jesus é paz, amor, misericórdia e compaixão. Cristo viveu ao lado dos marginalizados. Jesus é celebração da vida, e não da morte. Talvez muitos cristãos não entendam o ritual do papa ao se ajoelhar e lavar os pés dos presos. Nesse ritual, o papa Francisco já disse aos presos: “Sou pecador como vocês”. O problema é que, em muitas igrejas, fazem falta pecadores com esse grau de espiritualidade. Ao resultado, estamos assistindo horrorizados. A teocracia bolsonariana avança. E Deus nos livre.

http://www.justificando.com/2018/10/08/a-teocracia-bolsonariana/

Os algozes – Edir Macedo, Silas Malafaia, Marco Feliciano, mercadores de ilusões que ficaram milionários na indústria da mentira e da exploração das ingenuidades alheias – já preparam as lâminas para o lamentável espetáculo. Jair Bolsonaro foi convidado para essa lúgubre cerimônia para que possa ir lá, ao cadafalso onde a democracia faz acorrentada (como Lula na PF de Curitiba), e acionar a queda da lâmina. Para depois sair de cena, descartado como uma palhaço patético mas bem útil, cedendo espaço a uma Junta Militar. O Vampirão Temer tratará ser o mordomo dessa tenebrosa transação. Um acordo de cúpulas entre golpistas, roubando a mente de massas gigantescas de cidadãos alienados que só vão perceber que foram enganados e estiveram equivocados quando já for tarde demais.

O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake), mas sim de Mr. Donald Trump.

O brasil era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930.  uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.

Leandro Karnal tem um ótimo vídeo em que explica o óbvio: “quem defende torturador é inimigo de Cristo”:

Nele, Karnal explica porque é absurda e sem noção a atitude de qualquer cristão que apoia Bolsonaro, um defensor da tortura, que prometeu transformar o facínora Ustra em herói nacional, o que já é prova de que o candidato do PSL é um sujeito de péssimo caráter e um canalha completo.

Alguém que em sua vida jamais trouxe nenhum benefício ao povo brasileiro, já que sua vida se resume em propagar o ódio, a violência e a discórdia, Bolsonaro é o completo oposto de Jesus de Nazaré, cuja mensagem resume-se em ensinamentos como “amai-vos uns aos outros”, “ofereça a outra face a quem te ofendeu”, propagando virtudes de resistência pacífica, empatia com os fracos e oprimidos, além denúncia dos ricos (a quem estará vedada a entrada no Reino) e da expulsão dos vendilhões do templo.

Se vivesse naquela época em que Jesus foi morto, Bolsonaro estaria entre os torturadores e assassinos de Cristo – e os Bolsominions estariam se deleitando com o espetáculo e gritando para o algoz: “mito! mito!”. E Bolsonaro estaria urrando de gozo sádico diante do torturado com a coroa de espinhos. Pois Bolsonaro é isso: um doente mental que goza com a crueldade que ele propaga. Os católicos e evangélicos que estão apoiando esse Coiso não entenderam nada sobre o cristianismo: tem que ser muito cego e alienado pra ficar lambendo a bota deste pseudo-Messias que vomita ódio por todos os poros. Bozo é o Anticristo e um baita dum engana-otário. E clamamos aos iludidos: acordem antes da tragédia! #EleNão

A atual ascensão do “Fascismo Evangélico” já estava prenunciada pelos “Gladiadores do Altar”, projeto que chocou o Brasil alguns anos atrás: nele, a mega-organização chefiada por Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus, começou a recrutar soldados para um “Exército do Senhor” (https://bit.ly/2J1LvrK).

Os mercadores de ilusões agora abraçam de vez o Capeta: a Rede Record, em atitude execrável, não vê problemas em violar a legislação eleitoral para colocar todos os holofotes de seu canal de TV e seu portal R7 como palanque para o fascista-facínora.

Além disso, a 3º esposa do Coiso, Michelle Bolsonaro, provável Primeira Dama do Brasil em um governo Bozonazista, é uma das crias e das prediletas de Silas Malafaia (https://bit.ly/2P286cW) – e seria, ainda mais que Marcela Temer, a imposição de um modelo feminino “bela, recatada e do lar”, somando-se a isso o agravante: “fanática e descerebrada”.

Já sabíamos que havia este perigo rondando o frágil Estado Laico do Brasil quando Marco Feliciano pôde levar todo seu obscurantismo para o Comitê de Ética e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Esta tendência lamentável se aprofunda.

Também ficamos chocados, durante o impeachment de 2016, com a quantidade de parlamentares ficha-suja, investigados por corrupção, co-partícipes de um golpe de Estado contra a presidenta legítima, que votaram sim ao impeachment “em nome de Deus” e da Família Tradicional Brasileira.

Os gremlins do Bozo vomitam sem parar a frase “o PT vai transformar o Brasil numa Venezuela”, quando o projeto deles é nos transformar num Afeganistão sob o Taleban. Uma teocracia militarizada que lembra a distopia de Gilead em The Handmaid’s Tale.

O plano deles: retroceder o Brasil para 50 anos atrás – época do AI-5 (1968 a 1978). A gente elege Bolsonaro primeiro, depois a gente sai das Nações Unidas, pra não se preocupar com essa besteira que são os Direitos Humanos, uma invenção comunista para defender bandido. E depois a gente começa a Cruzada do Homem de Bem para “extirpar os ativismos”, começando por “fuzilar a petralhada” (cito frases do führer, que parece não ter compreendido nada do que disse Jesus de Nazaré com “amai-vos uns aos outros”).

Eles vão re-acender por aqui as fogueiras da Inquisição e tacar os livros e os professores de esquerda lá dentro – vai ser Farenheit 451 em meio à barbárie do neo-fascismo tropical. E haverá uma horda de imbecis que vão aplaudir a carnificina diabólica, dizendo amém a um deus que nunca existiu: o deus da intolerância e do obscurantismo, o deus homóbico e genocida de Sodoma e Gomorra, o deus que o ser humano inventou como pretexto para cometer as piores atrocidades na crença absurda de que derramando o sangue dos ímpios está comprando com isso um tíquete de entrada no Céu.

Triste pátria fanatizada por pastores corruptos e falsos profetas da Salvação!

PARTE 10 – A TORTURA É CRIME HEDIONDO, MAS OS BOLSOMINIONS PASSAM PANO

Vivemos tempos tão tenebrosos que é preciso explicar o óbvio: tornou-se tarefa dos cidadãos que ainda possuem o mínimo de lucidez, sensatez e senso ético elucidarem, para uma parcela imensa demais de um povo, porque não há nada de bom a esperar do processo de empoderamento de um facínora psicopata, que faz apologia da tortura e deseja transformar Ustra em herói nacional.

Em um país mais civilizado, dizer estas obviedades – que a tortura é um crime hediondo, que fazer o elogio de torturadores é sintoma de sadismo, perversidade e outras patologias psíquicas-afetivas etc. – seria desnecessário, pois já seria consenso social básico. No Brasil, sob o feitiço maléfico do Bozonazismo, tornou-se necessário relembrar as atrocidades cometidas pela Ditadura Militar, quando estamos sob a ameaça de que aqueles horrores recomecem.

Entre nós, falar sobre tortura tornou-se necessário e inadiável, dada a conexão umbilical de Bolsonaro com o elogio destas práticas de brutalidade contra o outro. O duro é que muitas vezes encontramos, no eleitorado que vota 17 com fanatismo e convicção inabaláveis, com ouvidos trancados. São pessoas dogmatizadas e intolerantes, que mobilizam todo um arsenal de racionalizações destinadas a justificar o injustificável. Você tenta criticar a postura aberrante e lamentável de um político que idolatra torturadores e puxa o saco do Ustra – e as pessoas logo dão um jeito de retrucar metendo o Lula ou o Marighella na história, para desviar o papo para os supostos “crimes dos esquerdistas” que supostamente justificariam, em todos os tempos, os tratamentos brutais “corretivos” que lhes foram infligidos.

Desfazer adesões de brasileiros à maré fascista / Bolsonarista tornou-se uma espécie de absurdo trabalho de Sísifo, pois muitos eleitores do Coiso não são capazes de ver sua adesão ao facínora abalada nem mesmo por tantas evidências de que Bolsonaro é um pretendente a tirano, doentio em sua megalomania, com ‘delírios de onipotência’ (como bem disse Ivana Bentes), que vomita um discurso de ódio e de segregação muito similar àquele de líderes que estiveram à frente de regimes totalitários e genocidas.

Empoderá-lo não tem a mínima chance de acabar bem.

O TSE, que censurou a veiculação deste vídeo na TV, tenta amordaçar o PT quando este procura resgatar verdades históricas e informar a opinião pública sobre o tipo de caráter diabólico que encontra seu porta-voz em Bolsonaro. Já em relação ao #caixa2doBolsonaro para disparar milhões de mensagens caluniosas, notícias falsas e memes de assassinato de reputações, o TSE mostra-se conivente, acovardado e até mesmo cúmplice deste processo golpista que envolve dúzias de empresas brasileiras que já aderiram ao Capitalismo Fascista, ao Neoliberalismo Militarizado.

Em outras palavras: o PT é silenciado e censurado por revelar a verdade, em um vídeo alinhado com os ideais e práticas da Comissão Nacional da Verdade, importante iniciativa do primeiro mandato de Dilma Rousseff; já a extrema-direita recebe carta branca para seguir fraudando a lisura do processo eleitoral com uma campanha de sórdida enganação e manipulação da opinião pública (com o beneplácito de Steve Bannon e Trump, da Havan e Edir Macedo, da Record e da Globo, tudo construído sobre a fraude jurídica que excluiu Lula das eleições, botando fogo no Comitê de Direitos Humanos da ONU e picando em pedacinhos a Constituição de 1988.

ASSISTA AO VÍDEO – via Meu Professor de História:

https://www.facebook.com/MPHistoria/videos/980852965581631/

 

PARTE 11 – NÓS SOMOS A ÚLTIMA BARREIRA CONTRA O FASCISMO

O Estado autoritário, ultra-conservador nos costumes, apesar de ultra-liberal na economia, que está sendo proposto pelo Bolsonarismo, tem a cara fétida de um Leviatã Hobbesiano: vende-se a idéia de que esse Monstro de autoritarismo e militarismo virá para o benefício de todos, para “limpar toda a corrupção do Brasil”. Mas este Leviatã ensandecido que é o projeto político Bolsonarista não vem para pactuar uma paz, mas sim para destravar a mais feroz guerra de todos contra todos.

 O cidadão brasileiro ainda não percebeu o tamanho do risco de processos bélicos (guerra civil ou guerra internacional) que se tornam agora muito mais palpáveis e possíveis entre nós. Por falta de formação política, a maioria do povo brasileiro não conheço o ovo da serpente do fascismo, não sabe de seus estragos, não sabe da dificuldade de vencê-lo, uma vez que ele conquista o domínio do Estado (como foi com Mussolini na Itália, Salazar em Portugal, Franco na Espanha, Hitler na Alemanha). Muito sangue é derramado para des-empoderar o fascismo, uma vez este tenha se apoderado do Estado.

O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake!), mas sim de Mr. Donald Trump.

O Brasil da Era Lula era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930.  uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.

Segundo o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, as 4 características do fascismo são:

1- Culto da violência.
2- Culto do Estado-nação paranóico.
3- Insensibilidade absoluta em relação às classes mais vulneráveis.
4- Entregar todo seu poder para um líder “cômico” que fala o que quiser sem nenhuma responsabilidade.

Nós agora somos a última barreira contra o fascismo. Ele fere nossa existência, então seremos resistência. Seguiremos criando novas maneiras de viver e conviver. Como disse Luis Felipe Miguel em um excelente artigo publicado no Blog da Boitempo: “entre o fascismo e nós, só há nós”: 

Com o golpe de 2016, as condições da disputa política no Brasil entraram em processo de rápida deterioração. A institucionalidade fundada na Constituição dita “cidadã” opera de maneira cada vez mais precária; suas garantias são cada vez mais incertas. A prisão do ex-presidente Lula, após julgamento de exceção, ao arrepio do texto expresso da própria Carta de 1988 e com inequívoca intenção de influenciar no processo eleitoral, simboliza com precisão a situação em que nos encontramos.

Ao mesmo tempo, a violência política aberta se alastra, seja por meio dos agentes do Estado (como mostra a repressão cada vez mais truculenta às manifestações populares e a perseguição aos movimentos sociais), seja contando com sua complacência. Das tentativas de intimidação à expressão de posições à esquerda em espaços públicos ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista Anderson Gomes), passando pelos atentados às caravanas de Lula, são muitos os episódios que revelam essa escalada.

Há rincões em que o assassinato político nunca deixou de existir – somos um país em que o latifúndio nunca parou de matar lideranças camponesas, por exemplo. Neles, o golpe agravou o quadro, dada a sensação de “porteiras abertas” que o retrocesso no Brasil gera para os mandantes dos crimes. E, nos lugares em que o conflito político apresentava um verniz mais civilizado, regredimos para patamar inferior.” – BLOG DA EDITORA BOITEMPO

por Eduardo Carli de Moraes, Professor de Filosofia, IFG.
22 de Outubro de 2018

O ANEL DA INVISIBILIDADE COMO ESPELHO DO SUJEITO ÉTICO – Por André Comte-Sponville

O ANEL DA INVISIBILIDADE COMO ESPELHO DO SUJEITO ÉTICO
Por André Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo, em seu livro Viver – O Mito de Ícaro, 2º Volume

Giges é pastor, hoje seria bancário ou cabeleireiro, e não era melhor nem pior que outro qualquer. É cada um de nós. Mas eis que ele encontra, em circunstâncias espantosas que Platão narra com abundância de detalhes, um anel: anel milagroso que o torna invisível a seu comando! É o inverso de Édipo: este furou os olhos para não ver mais o mal que fizera; Giges tem um meio para que não se veja mais o mal que ele fará…

“O Anel de Giges”, Anônimo da escola de Ferrara, século XVI

[Diz Glauco:]

Que os justos não o são por querer, mas pela impossibilidade de cometer injustiças, veríamos bem se imaginássemos o seguinte: se, dando aos dois oportunidade de agir como quiserem – ao justo e ao injusto -, os seguíssimos de perto, observando aonde o desejo os conduz. Em flagrante apanharíamos o justo indo ao mesmo lugar que o injusto, por conta do privilégio, que a natureza busca como bem, mas de que, por força da lei, é desviada  à estima da igualdade. Seja a oportunidade de que falo  esta: se conseguissem o poder que dizem ter conseguido Giges, ancestral do rei dos lídios.

Giges era um reles pastor que servia ao governante da Lídia de então; certa vez, sobrevindo chuva intensa e terremoto, a terra se abriu e surgiu uma fenda perto do lugar em que pastoreava. Vendo aquilo, assombrado, desceu e viu muitas coisas de que a lenda conta, mas sobretudo um cavalo de bronze, oco, com pequenas portas, pelas quais passou e viu um cadáver que parecia maior do que os homens comuns; não tomando-lhe outra coisa que não o anel dourado que tinha na mão, partiu.

Ao costumeiro encontro que os pastores faziam a cada mês para que mandassem ao rei um relato sobre seus rebanhos veio ele também, com o anel. Estando sentado com os outros, por acaso virou a pedra do anel em direção da palma da mão; feito isso, tornou-se invisível aos que se sentavam ao seu lado, e falava-se dele como de alguém que partira. Ele se assombrou e, tocando o anel, virou a pedra para fora e, ao virá-la, tornou-se visível. Percebendo isso, testou o poder do anel, e lhe aconteceu que, quando virava a pedra para dentro, tornava-se invisível, quando a virava para fora, visível. Logo que o notou, negociou para ser um dos mensageiros que falariam ao rei e, indo ao palácio e tornando-se amante da rainha, com ela atacou o soberano, o matou e tomou o poder para si.

Se houvesse dois anéis desse, e o justo colocasse um, e o injusto, o outro, não haveria ninguém (como poderia parecer) que fosse tão férreo ao ponto de permanecer justo e ousar se abster dos bens alheios e não tocá-los, sendo-lhe possível, sem medo,  tomar do mercado o que quisesse, entrar nas casas e dormir com quem quisesse, matar e soltar da prisão quem quisesse e fazer qualquer coisa, como um deus em meio aos homens.  Desse modo, os dois não agiriam diferente e iriam na mesma direção.

Pode-se usar essa história como grande indício de  que ninguém é justo por vontade, mas porque é forçado, não considerando a justiça um bem em si; pois, quando julgam que podem fazer uma injustiça, todos a fazem. Todo homem pensa que é muito mais vantajosa  a injustiça do que a justiça, e pensa a verdade, segundo quem defende essa posição, uma  vez que, se alguém tivesse oportunidade semelhante e não quisesse cometer injustiças e nada tomasse aos outros, ao sabê-lo as pessoas o considerariam um pobre diabo e um imbecil – mas elas o elogiariam na frente umas das outras, enganando-se pelo medo de serem injustiçadas. Esse é o fato.

Glauco, nesse texto, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau perseguem ambos o mesmo fim (aonde, diz Glauco, “o desejo os conduz”), divergindo apenas pela escolha, puramente tática, dos meios. O anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática (quanto aos meios), faria a identidade dos fins aparecer à luz do dia.

A força desse exemplo reside na possibilidade que cada um tem, solitariamente, de comprovar seu rigor e de repetir, por conta própria, sua imaginária e crucial experiência. Imaginemos, pois, se pudermos sem mentir. Você é Giges. Você tem o anel. É invisível quando quiser, quanto tempo quiser e tantas vezes quantas quiser. Nenhum homem o vê; nenhum deus o julga. Reflita: o que você fará? O que não fará?

Sua alma tem sua pedra de toque. Tudo o que você hoje veda a si mesmo, do assassinato ao roubo, do estupro à indiscrição (“pegar sem medo, introduzir-se nas casas, matar quem quiser, unir-se com quem lhe agradar…”), mas que talvez fizesse se possuísse o poder maravilhoso de Giges, não é honestidade, candura, discrição ou respeito (numa palavra, não é moralidade), mas medo, prudência, amor-próprio ou covardia. Virtude? Nada disso. Hipocrisia.

Faça a experiência uma vez, quero dizer, interiormente, com toda a seriedade de que você é capaz. Em seguida mire a sua imagem que essa experiência lhe reflete. O anel de Giges é um espelho singular… O que você faria? O que não faria? Pense bem. Giges fez tudo, e do pior, e morreu rei. E você? Glauco diz: o bom e o mau farão as mesmas coisas, cometerão os mesmos crimes. Portanto o bom não é verdadeiramente bom, e o mau não é mais mau que outro qualquer. Não há moral. Tudo se reduz ao princípio de prazer (quanto aos fins) e aos princípio de realidade (quanto aos meios).

Você é Giges, você tem o anel: agora você vai fazer várias coisas que não fazia até então… Se tivéssemos o anel, nossa vida toda mudaria, sem dúvida, e muitos de nossos comportamento “morais” desapareceriam, revelando assim sua amoralidade de sempre. Se tivéssemos o anel faríamos com certeza muitas coisas que hoje não fazemos; e deixaríamos de fazer outras, sem dúvida, a que nos sentimos compelidos hoje. Mas não é tudo… Também há coisas que, mesmo então, nós nos vedaríamos fazer; e outras, desagradáveis, a que, mesmo então, nos sentiríamos obrigados. O anel de Giges é um espelho singular: ele reflete nossos vícios nus e crus; mas, com isso, nossas virtudes também aparecem melhor.

Somos menos bons do que tentamos parecer: é bom saber; mas também somos melhores do que se poderia temer: não devemos ignorá-lo tampouco. Vários de nós, se tivessem o anel, o utilizariam para fazer mais bem do que podem ou ousam fazer hoje… Conheço gente quem nem mesmo a realeza faria mentir.

Dostoiévski se engana: mesmo se Deus não existe, não é verdade que tudo é permitido. Porque – invisível ou não – eu não me permito tudo: tudo não seria digno de mim. Minha moral é essa dignidade, e essa exigência. Giges não pode nada contra isso: mesmo invisível, mesmo invencível, há atos que não me autorizo e outros a que me sinto obrigado. A tal ponto que, se eu cometesse aqueles ou me dispensasse destes, e por mais invisível que eu fosse, nem por isso deixaria de saber distinguir, entre meus atos, aqueles de que posso me orgulhar ou sentir-me satisfeito, nem que apenas em meu foro interior, daqueles que, mesmo sem que ninguém saiba, me fazem sentir como que magoado ou diminuído.

O âmago do problema é a liberdade. Um homem mau só é mau, moralmente falando, se for livre de sê-lo. Um louco, por mais cruel que possa ser ou parecer, é legitimamente considerado irresponsável, moralmente, por seus atos… ninguém escolhe ser louco, ou não o faz livremente. Portanto o louco é inocente, sempre, dos crimes de que é culpado; perigoso, talvez; malvado, não. O Código Penal francês, em seu artigo 64, legaliza a coisa: “Não há crime nem delito quando o réu estava em estado de demência no momento da alão, ou quando foi coagido por uma força a qual não pôde resistir.” A mesma coisa se poderia dizer do animal ou da criança – ninguém culpa o recém-nascido que morde; e nos protegemos das feras – porque elas não escolheram ser tais – sem as odiar.

É o paradoxo da moral: é preciso poder ser bom para ser mau, e escolher livremente não o ser. “O princípio da ação moral é a livre escolha”, dizia Aristóteles. A liberdade do querer é, por isso, o “fundamento negativo da moral”, isto é, “aquilo sem o que a exigência moral não teria significação.” (Ética a Nicômaco, VI, 2) O homem mau só o é na medida em que é responsável por seus atos; e só é responsável por eles na medida que dependem de sua vontade. Mas não é tão simples assim. Que sejamos responsáveis por nossos atos, é possível; mas somos responsáveis por nós mesmos?

Quem escolhe nascer?… Alguém escolhe seu corpo? E se ele ficou mau, é culpado pelas circunstâncias que o fizeram assim? Acaso alguém escolhe sua infância, sua educação, sua família, seu inconsciente?… Um velho mau nunca é mais que um recém-nascido que deu errado. Mas que se pode reprovar a um recém-nascido? E que criança escolhe dar errado? Se não nasceu mau e mau se torna, é que foi mal criado, ou mal amado, ou vítima à sua maneira de uma sociedade demasiado dura ou demasiado injusta. Sócrates é que foi assassinado… Mas de quem é a culpa, se ele se torna Giges?

Voltemos a nosso exemplo inicial. Giges encontra um anel mágico e se torna um tirano sanguinário. Se Sócrates tivesse encontrado o anel, teria continuado a ser Sócrates. Pelo menos é a aposta da moral… Daí esta questão: quando Sócrates escolheu ser Sócrates? E quando Giges escolheu ser Giges? Se nunca escolheu ser o que era, se nunca escolheu ser Giges, é inocente, por isso, de todas as escolhas de que é culpado, já que não teve, primeiro, a escolha de quem escolhia…

As escolhas ficam submetidas, sempre, à personalidade de quem escolhe. O eu seria então um destino e uma circunstância, em cada caso, absolutamente atenuante. Afinal de contas, Giges sempre pode argumentar a seus eventuais juízes (e talvez poderia fazê-lo até sem mentir) que teria preferido ser Sócrates, e que não é culpa sua ser Giges, já que não fez a escolha… Condenar um homem, dizia um biólogo (Jean Rostand), nunca é mais que condenar cromossomos ou circunstâncias.

André Comte-Sponville, 2015 © Jérôme Bonnet

André Comte-Sponville

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