Sobre Desamparo (ou sobre o amparo de mais um existir) – Por Mailson Furtado

Assistimos um movimento no dizer pelas letras no Brasil. Movimentos! Várias cenas e vozes que vão além do resistir, ecoam diversas possibilidades e significações não-ditas, e por conseguinte não-vistas, de lugares, gentes, dizeres, e marcam o EXISTIR! Vozes pulsantes vindas de um entender de dentro, distante de outros movimentos ao longo da história, que vinham em grande parte de visões externas, ditos em terceira pessoa, por vezes inverossímeis, a povoar e gerar distorções.

Num descortinar e apresentar de Brasil sempre presente, saraus e slams tomam espaços a inscrever poesia nas ruas e em pessoas. Já em livros: Itamar Vieira Jr, Paulo Scott, Deborah Dornellas, Maria Valéria Rezende, e mais recentemente, Fred Di Giacomo, paulista do sertão, com seu primeiro romance Desamparo (Ed. Reformatório, 2018), finalista do prêmio São Paulo 2019.

Desamparo descobre o sertão paulista do fim do século XIX e começo do XX, escondido e guardado em acontecimentos locais, que quando ditos explicam uma parcela do quebra-cabeça Brasil. Num mergulho de realismo fantástico (também!), Fred enocega tantas histórias à vida de Rita, descendente de uma das primeiras famílias a “povoar” o extremo oeste paulista. Nisso, apresenta jogos de poder para o domínio da região, apoiados num projeto progressista de desenvolvimento a desconsiderar qualquer obstáculo a este fim, dentre eles: execuções sumárias de descontentes, tomada de terras de povos nativos, tentativa de a-culturação desses –, processo(s) que acompanhamos ainda hoje, em algumas regiões do país (sim! ainda… E tudo nos parece tão distante de nosso quintal). Fred nos diz e faz existir mais entendimentos para este país como hoje. Um lugar que foi, e sempre esteve junto de nós, mas longe. Desamparo é um abraço, e de tão necessário, quando lido, é um livro desde antes.

Mailson Furtado,
num hoje. No sertão desta vida


Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

Confissões de um vírus pós-moderno – Por Gisele Toassa em A Casa de Vidro

Confissões de um vírus pós-moderno

 Gisele Toassa

 

Meu nome é SARS-CoV-2, sobrenome coronavírus. Eu e meus parentes ganhamos essa alcunha por nos parecermos com lindas coroas, dotadas de majestosas pontas em estilo medieval. Não é para me gabar, mas, sob a luz do microscópio, somos garbosos como reis.

Nasci na Ásia, mas fui desterrado há pouco tempo. Vivia feliz e tranquilo com minha família, mesmo sendo meio diferentão, dentro de uma linda morceguinha amarela, nossa Jei-jei.

Ah, vocês não sabem? Em chinês, isso significa “irmã”, é um apelido que damos às nossas melhores amigas. Eu adorava voar com ela depois de passar longas horas encolhido, trombando com outros membros de nossa aglomeração, dentro da nossa caverninha comunitária, em algum ignoto lugarzinho da magistral Ásia.

Quando a noite caía, eu já me agitava todo, antecipando o amplo céu estrelado que, juntos, contemplaríamos com voos rasantes, piruetas e outras morcegagens. De ponta-cabeça, eu amava ver as luzes celestiais; ou, olhando para baixo, mirá-las refletindo-se nos lagos, ao pé da linda montanha em que morávamos. Nosso bando se aboletava nas árvores até recolher-se calmamente, quando caía o último orvalho da madrugada.

Generosa, Jei-jei volta e meia me cedia algumas de suas células, nas quais eu me reproduzia sem excessos, e tudo continuava como no tempo de nossos ancestrais. 

Mas destruíram nossa floresta. Sofri tipo um stress pós-traumático, não me recordo muito daqueles dias. O coração de Jei-jei batia descompassado, impulsionando-me a fluir em uma velocidade muito maior que o normal…  Diz-se que capturaram minha Jei-jei e me levaram para um laboratório militar em Fort Detrick, Maryland, Estados Unidos. Diz-se que nos levaram para um mercado de frutos do mar em Wuhan. Era um lugar medonho, repleto de animais, tanto vivos como mortos, dominado por violentos bípedes. 

Lá pelas tantas, fiquei aliviado ao descobrir que estava vivo, embora dentro de criaturas enormes. Um daqueles horríveis bípedes sem asas. O pânico tomou conta de mim. Cadê minha casinha? O que fizeram com Jei-jei?? Consigo sobreviver nesse corpo gigante? 

Não tive escolha. Acabei, em minhas peregrinações, ouvindo muitos homens de negócios a dizer que crise é sinônimo de oportunidade. Vale tudo na luta pela sobrevivência. Ué, então, por que não tentar algo novo? Embora a ideia seja meio louca, pensei: se eu me multiplicar por mil, dois mil, um milhão, eu consigo reencontrar Jei-jei e minha família. O mundo aqui fora não pode ser tão grande assim. E depois, a procriação é o verdadeiro sentido da vida, não é mesmo? Todos os textos sagrados dos humanos dizem isso, é o que fui aprendendo ao ocupar meus diferentes hospedeiros. Como são a espécie que domina a terra, deve ser verdade.

Viajei na primeira classe e na econômica; em porões de navios e trens-bala; ouvi centenas de línguas e me multipliquei em milhares de corpos, mas – pobre de mim! – ainda não encontrei minha Jei-jei. Essa coisa de me reproduzir já ameaça perder todo sentido. Uma verdadeira compulsão! Um prazer barato, onde a quantidade prevalece sobre a qualidade. Sou como sultão em um harém, com um fraco por essas células de pneumócitos tipo II, tão lindas e tentadoras. Tão repletas de frescor! No meio da poluição urbana na qual passei a circular, me fazem lembrar a pureza da atmosfera de Hubei. Vou te contar, nem nossa caverna era tão pobre de oxigênio como muitas cidades por onde tenho vagado! Minha tara por essas células me tornou um só ser em muitas milhares de pessoas!

Deslizar para dentro dessas pneumócitas e me reproduzir sem parar para pensar é um antídoto à minha vidinha sem-sentido. Nas andanças pelo corpo humano, conheci muitos outros vírus, alguns tranquilos e adaptados – como o da herpes – e outros barra-pesada, estilo Tropa de Elite, como o HIV. Este me disse: “Uau, meu chapa, você tá de parabéns! Uma pandemia em apenas dois meses? Demorei anos para conseguir isso! Que tal fazermos um crossing over ali no cantinho do baço? Formaríamos uma bela força-tarefa! Com o seu modo de transmissão e nossas letalidades associadas, destruiremos a espécie humana, e o futuro de todas as outras estará garantido! Vamos assegurar nosso mútuo interesse, que, afinal, é a fonte da felicidade e do bem social!”.

Essa proposta me fez pensar. Valeria a pena arriscar uma solução final para salvar a espécie de minha amada Jei-jei? Pensei muito, mas recusei. Não quero sacrificar minha popularidade fazendo joint venture com aquele sujeitinho. AIDS é tão anos oitenta! Daqui a pouco descobrem a cura e ele se acaba! Ademais, não vamos exagerar, não sou um genocida, nem quero servir de trampolim para algum oportunista da era dos mullets! Um cara que, além de tudo, contribuiu para tornar os prazeres mais inseguros e aumentar a homofobia mundo afora. Gosto de liberdade, de fragmentação, de novidade. Regulações e projetos coletivos não são para mim. Sou um indivíduo coletivo, mas ainda assim, indivíduo. No máximo, um agente do caos, como o Coringa.

O HIV, despeitado, passou a me atirar desaforos. Ridicularizou minha taxa de mortalidade, lembrando ter chegado aos 100% de óbitos em sua juventude. Vaticinou que meu sucesso será curto, que estamos em uma era de popularidade líquida. E que, daqui a pouco, serei esquecido nas prateleiras das livrarias médicas. Enquanto ele, mesmo quarentão e castrado pelos coquetéis de remédios, sobrevive sem arranhões a todas as vacinas que se metem com ele.

Talvez ele tenha razão. Não vou durar muito. Cada vez mais, encontro sabão, máscaras, álcool gel ou umas monstruosas moléculas de medicamentos, que me fazem desmaiar e até morrer.  Já percebi que os humanos pós-modernos não gostam da velha fórmula do survival of the fittest. Preferem survival of the richest, e não tenho objeção, pois os ricos são menos gente; ainda sobra muita humanidade para eu infectar. Chamam esse nosso sistema de capitalismo

Eu teria gostado de viver mais tempo na pré-história, hospedando-me nas ancestrais de Jei-jei, piruetando todas as noites pelos céus de Hubei, sem jamais ter sabido dessa tal de espécie humana, suas virtudes e seus vícios. Também estou ficando vidrado na guerra contra os que querem me matar: mais um vício humano com o qual fui infectado.

Posso não amar os Homo sapiens, mas não sou mau. Sou só um sem-teto em busca de sua verdadeira casa. Um provinciano nostálgico. Sei que às vezes me empolgo – especialmente com as células alveolares mais frágeis, onde não aparecem tantos daqueles horríveis macrófagos, uns brutamontes radicais que sempre me dão umas surras de doer. Nós nos engalfinhamos em lutas brutais, nas quais morremos em inflamações purulentas e malcheirosas que não ajudam ninguém, pois, às vezes, também mato meus novos hospedeiros. Fica chato, mas ainda estamos nos adaptando um ao outro. Talvez seja o jeito, se eu não encontrar mesmo minha Jei-jei. Cresci tanto, que agora talvez não dê para voltar para minha comunidade. Meu atual corpo tem um quê de monstruoso.

Sim, meus caros, o prazer pode passar das medidas! Pra falar a verdade, tenho uma relação de amor e ódio com os Homo sapiens. Eles são tantos! E vivem aglomerados, é tão fácil pular de corpo em corpo! Infectá-los é moleza, chego a sentir um tédio aqui na boca das minhas coroas por ser tão fácil entrar; vencer o sistema imune é que são elas. 

Fato: há dissabores em ser um sujeito antissistema.

Embora eu tenha ganhado os corpos e os flashes de bilhões dos representantes dessa espécie que dominou a Terra, ela me intriga. Tem rompantes de sadismo horrível, tipo os desses caras de branco, que me fatiam em zilhões de pedaços para, depois, olharem meus restos mortais com lentes especiais. Outros, mostram-se excepcionalmente preocupados com o bem-estar das demais criaturas vivas. Ocupei os corpos de muitos velhinhos pobres e completamente sós, que passavam seus dias a fazerem festas a seus gatos ou a alimentar os pombos. Por que eles não poderiam hospedar mais uma pequena espécie?, perguntei-me, humilde. Não tenho habilidades para ajudá-los em nada, para buscar uma simbiose com meus hospedeiros, mas se evoluir um pouco posso tentar ficar quietinho, sem causar dano. 

Foi então que conheci a extraordinária dona Gisela, e, sentados à beira dos canais de uma maravilhosa cidade da Europa, ouvi-a conversar sobre grandes óperas e boa comida. Seu corpo era cheio de endorfinas e sua mente, de pensamentos alegres e generosos. Dona Gisela era lugar em que dava gosto viver. 

Gostaria muito de que dona Gisela tivesse se tornado minha nova Jei-jei. E tentei de verdade me controlar, mas já não consigo! Nossa convivência durou pouco: dona Gisela tinha diabetes, e fomos juntos para o túmulo. 

Para resumir, é dura e sem sentido a vida de um vírus sem raízes. Um grupo de ajuda mútua seria muito bom. Mas só se for com outros coronas, não com humanos, porque, senão, cedo ao prazer barato e vou tomando o caminho mais fácil… O pior dos vícios que eu desenvolvi junto dessa civilização decadente que me desterrou da minha verdadeira casa para me usar no ancestral jogo da morte.


Gisele Toassa, doutora em Psicologia pela USP, professora da UFG, autora dos livros “Emoções e Vivências em Vigotski” (Ed. Papirus, 2011) e “Gaiolas Sob Medida” (contos, lançamento em breve pela Editora da UFG, 2020).

Obs: a autora não é especialista em vírus. Esta é uma obra de ficção vagamente inspirada em fatos reais.

 

Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO

Em 4 vídeos, o escritor revela suas vivências, processos criativos e críticas à conjuntura contemporânea

Por Eduardo Carli de Moraes

Com 8 livros publicados, Fred Di Giacomo Rocha descreve-se como um “caipira punk”, nascido em Penápolis/SP, em 1984, mas que atinge em 2020 a plena maturidade enquanto artista cosmopolita e polímata – como o classificou a reportagem da revista Vice (EUA). De fato, Fred exerce sua criatividade irrefreável em várias áreas: escreve contos, poemas, reportagens, ensaios históricos, crítica musical etc.

Seu romance de estréia, o impressionante Desamparo (Editora Reformatório, 2018, 248 pgs), inspira-se no realismo mágico celebrizado por Garcia Márquez para realizar uma radiografia da colonização do interior paulista no começo do século XX, em obra que “une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética” e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:

Ilustração por Leonardo Mathias

Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters, desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.

Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.

Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”

Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

RADIOGRAFIA DO PREDADOR SOCIAL: Opressões de gênero, raça e classe interseccionam-se no romance “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto (1881 – 1922)

No livro Clara dos Anjos, redigido entre Dezembro de 1921 e Janeiro de 1922, poucos meses antes de sua morte, Lima Barreto (1881 – 1922) despeja uma mordaz torrente de denúncias e críticas sobre o vilão de sua novela, Cassi Jones. Este branquelo dos subúrbios, violeiro de pouco talento musical mas capaz de usar canções mela cueca como arma de sedução para satisfazer seus ímpetos libidinosos, é descrito pelo autor com uma boa dose de indignação.

Nesta obra publicada postumamente, em que Barreto expande a narrativa que aparecia de forma condensada em um de seus contos, o autor chuta pra escanteio qualquer noção de “narrador imparcial” e aborda, com sua pena satírica e visionária, as intersecções entre raça, gênero e classe que explicam as desventuras e atropelos de seus personagens.

Cassi representa a delinquência masculina que faz das mulheres suas vítimas em série. É o macho abusador que evoca, num cenário pós-abolicionista, todos os falos de escravocratas que estupraram, através da história do Brasil-colônia, milhares de mulheres tratadas como sub-humanas devido à cor de sua pele, sua descendência africana ou sua posição social enquanto desvalidas de capital: Cassi “catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca às autoridades, como da dos pais e responsáveis.” (BARRETO, p. 854)

Apesar de seu nome, que pode vir a sugerir uma brancura angelical, Clara dos Anjos, a filha do carteiro Joaquim (também um flautista amador) e da dona-de-casa Engrácia, é uma mestiça afrobrasileira duns 17 anos de idade. A ingenuidade a define melhor que qualquer outra característica, e por isso ela é vista como uma presa possível para Cassi, esta versão anos 1920 do predador sexual colonial.  Clara pertence ao grupo destas pobres raparigas que o Mr. Cassi Jones enxerga, através de seu viés de macho tóxico, como pertencente àquela classe de mulheres que são abusáveis com certo grau de impunidade garantida.

Apesar de integrar a classe média baixa e também habitar nos subúrbios do Rio de Janeiro, Cassi encarna a arrogância daqueles que, apesar de também serem pobres, acham-se superiores à maioria da população, desprezada por sua pele de cor “azeitonada” e pelos escassos recursos financeiros. Em Triste Visionário, Lília Schwarcz revelou em minúcias o quanto Lima Barreto soube ser o cronista genial “das continuidades da escravidão que se reinventavam na República” (SCHWARZ, p. 413). O malfadado romance entre Clara dos Anjos e Cassi Jones serve como emblema de um Rio de Janeiro que aparece, aos olhos do autor, como metrópole fraturada pela exclusão social inextricável de um racismo estrutural que a Lei Áurea não soube abolir:

“O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica…” [3] (BARRETO, p. 790)

A tal da “Cidade Maravilhosa” do cartão postal, quando atentamos para suas periferias, é repleta dos horrores da opressão e da injustiça – e o destino de Clara dos Anjos o revela bem. Lima Barreto descreve Cassi como um pérfido vilão, sem sombra de empatia ou de escrúpulos morais, capaz de desgraçar a vida de muitas mulheres casadas e adolescentes ingênuas. Sua vilania, que passa por sacanagens e falcatruas menores (como tentar comprar versos propinando o poeta Leonardo Flores), culmina com o assassinato que Cassi e seu cúmplice perpetram contra Marramaque, padrinho de Clara, que servia como obstáculo aos intentos de sedução de Cassi.

Ilustração por Eduardo Schlosser

Em uma das cenas mais notáveis do livro, no capítulo 9, Cassi reencontra-se com sua primeira vítima: Inês, enfurecida, parte para cima de seu abusador canalha e se apresenta como “aquela crioulinha que sua mãe criou”; em um passado distante que ele quis apagar de sua memória, Cassi fazia “festa” com a criada escurinha da casa, e depois obviamente não quis assumir a responsabilidade pela criança fruto destas libidinagens. “É sempre assim”, grita-lhe Inês, “esses nhonhôs gostosos desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente… Malvados!” (p. 841)

De certo modo, Lima Barreto opera com uma caracterização das personagens principais que as separa entre algozes e vítimas. Porém, não se baseia num maniqueísmo enraizado em crenças religiosas, mas numa espécie de radiografia das opressões, que acaba por desvelar a jovem mulher negra como vítima-mor da sociedade. Cassi, agarrado aos restritos privilégios que possui na sociedade por ter pele clara e supostamente descender de um avô que foi um lorde inglês, é explicitamente descrito como um crápula. Cassi é capaz das piores perfídias e o autor não empresta nenhum glamour à sua malandragem delinquente. Já Clara dos Anjos, em sua posição de vítima, tem sua condição profundamente lamentada por Lima Barreto, a ponto de Lilía Schwarcz afirmar, segundo a Revista Cult: “Clara era o alter ego feminino de Lima Barreto: a menina dos subúrbios que sofre o que ele sabia que sofreria se fosse mulher”.

A moça, sem instrução, entregue a sonhos lânguidos de amor, perdida nas representações imaginária do príncipe encantador que viria com suas modinhas adocicadas entoadas ao violão para ensiná-la sobre o amor, Clara dos Anjos é vítima, a seu modo, da segregação escolar. Em vários momentos do livro, Lima Barreto enfatiza que Clara teria sido lamentavelmente prejudicada por uma educação falha.

Hoje, poderíamos lamentar, de modo um tanto anacrônico, o fato de Clara dos Anjos não teve acesso aos debates realizados no âmbito do feminismo negro, que a teriam capacitado a estar muito mais lúcida e alerta diante das tendências abusivas e opressoras do macho-branco-cis que goza de certas prerrogativas em uma sociedade machista, racista e homofóbica. Clara dos Anjos, caso tivesse sido educada para discernir a masculinidade tóxica e a cultura do estupro em ação na figura de Cassi, poderia ter tido a sabedoria elementar de dar um pé na bunda do calhorda e fechar-lhe as portas e as pernas.

Ilustração por Eduardo Schlosser

A crônica da infelicidade que desgraça Clara dos Anjos é perpassada pelo poder dúbio da música e da poesia, é claro, mas também tem conexão com uma educação familiar “protecionista” que não a capacitou para desenvolver senso crítico que de fato a protegesse do predador sexual que era Cassi. Por um lado, ela é seduzida pelos dons musicais do moço, conquistada pelo violeiro e suas baladas melosas, sem que ela tenha capacidade de enxergar nele o farsante que, muito longe de ser um artista autêntico, utiliza-se da música como um meio para conquistar seus fins de tarado impenitente.

No capítulo 8, Lima Barreto aventura-se em uma espécie de crítica da família nuclear constituída por Clara e seus pais (Joaquim e Engrácia), em um dos trechos de maior atualidade do livro, pois demonstra a falácia perigosa daqueles que se insurgem contra a discussão de gênero, raça e classe, enquanto eixos de estruturação das opressões nas sociedades segregadas e injustas que seguem sendo as nossas, em prol de uma suposta “superioridade” de um ensino devotado aos valores antigos (Deus, Patriarcado, Propriedade) da “família tradicional brasileira”:

“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mão não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limita-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão… Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo.

Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o seu destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões.

A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base… Seu pai – pensava ela – estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele, portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas…

Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de dua idade e com as pretensões que a sua falta de contato com o mundo e capacidade mental de observara e comparar justificavam, concluía que Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente.” (p. 810)

Assim como Clara teve uma educação que não lhe fortaleceu o senso crítico e que a fez naturalizar o discurso patriarcal dominante – ela chega a culpar as vítimas, dizendo que as moças são “muito oferecidas” e que os machos abusadores e estupradores não tem culpa… -, também Cassi é descrito como alguém com “instrução mais que rudimentar”. Em trechos muito surpreendentes do capítulo 6, Lima Barreto revela sua faceta de moralista e rasga o verbo contra seu vilão, Cassi Jones, descrito como uma pessoa de “estupidez congênita” e “perversidade inata” – trata-se de atitude bastante estranha em um autor que fazia muitas críticas “a modelos de determinismo racial, hereditários e biológicos”, que Lilia Schwarcz explica assim:

“Ainda que desacreditasse tais teorias, não se furtou a utilizá-las na construção da figura de seu vilão, que carregava ‘taras inatas’. Ele podia estar jogando com o senso comum da época ou projetando-o para delinear o seu personagem. De toda forma, os termos evidenciam como a linguagem da biologia era ainda forte naquele momento. Mas não era só o tema da raça, expresso nas cores sociais, que aparecia no romance de modo intencional. Foi nessa trama que o escritor investiu de forma mais direta na denúncia aos maus-tratos das mulheres pobres.” (p. 413)

Cassi, um cara inculto e que nunca lia os jornais, embevecia-se com alguns versinhos líricos que lhe caíam em mãos e ele musicava, concluindo deles “que tinha o direito de fazer o que fazia porque os poetas proclamam o dever de amar e dão ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se bem que ele não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas torpezas, falavam; (…) percebia-se perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna de um criminoso nato – o que havia nele.

O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até a mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma. Em Cassi, nunca se dava isso. Escolhida a vítima de sua concupiscência, se, de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se da situação dos pais, das suas posses e das suas relações…” (p. 779)

Ilustração por Eduardo Schlosser

O romance progride como uma espécie de tragédia anunciada, mas que se mostra inevitável dado o tabuleiro deste jogo: Clara não tinha recursos afetivos nem formação educacional para resistir à lábia do violeiro luxuriante, ainda que soubesse do vasto currículo de predador sexual de Cassi, engravidador de mulheres abandonadas e causador indireto de suicídios e divórcios.

Com sua reputação já muito desgraçada no Rio de Janeiro, Cassi abandona a capital federal poucos dias depois de ter tido acesso aos prazeres carnais no leito de Clara dos Anjos, deixando-a para trás como um trapo usado, lançando Clara – com um filho em gestação em seu ventre – no seu vasto lixão de mulheres abusadas e largadas. Cassi trata Clara com a sem-cerimônia de quem atirasse uma pessoa à lixeira como se ela não passasse de um preservativo cheio de porra. Tudo culmina com a percepção da moça, desgraçada pelo abandono de seu abusador: “Nós não somos nada nesta vida.”

Lima Barreto, um século após sua morte, está presente no cenário da literatura brasileira do século XXI como um mestre que enfim merece as atenções que sua obra magistral merece: homenageado pela FLIP (Festa Literária de Paraty) em 2017, estudado com maestria por sua biógrafa Lilia Schwarz, tem sua negritude reafirmada contra os intentos de embranquecimento do cânone que, para além da farsa do Jesus branco e de olhos azuis, também tentam fabricar a representação fake de Machado de Assis ou Gonçalves Dias como se fossem arianos e não mestiços. Lima Barreto, neste contexto, é uma encarnação das contradições do próprio Brasil, um “triste visionário” que denunciou o racismo, o sexismo e o classismo através de uma obra multifacetada e ainda atualíssima. Como escreve Helô D’Ângelo:

“Pele cor de azeitona escura”, como ele mesmo se definia, Barreto sentiu na pele as consequências de ousar ser um homem negro ocupando um espaço completamente dominado por brancos – e via com desconfiança a própria Lei Áurea e a noção de “liberdade” que ela trazia: “Liberdade era uma palavra que eu desconfiava e não confiava”, ele registrou em um diário da época.

Como uma resposta à discriminação racial e à exclusão social sofrida dia após dia, Barreto escrevia sobre estes assuntos de forma dura em uma época em que ninguém estava disposto a falar ou ler sobre isso. A intenção do autor, segundo Schwarcz, era de fato incomodar: ‘Ele achava que os negros só poderiam ser socialmente integrados através da luta e do constante incômodo. Por isso, denunciava que a escravidão não acabou com a abolição, mas ficou enraizada nos menores costumes mais simples’. Para chegar à dose perfeita de incômodo, Barreto fazia uma literatura do “Rio de Janeiro alargado”: não falava apenas do centro da cidade, mas principalmente dos subúrbios e de seus habitantes; descrevia detalhadamente as estações de trem e os transeuntes, as ruas e os bares, os costumes e as tradições populares, as violências e opressões, deixando a burguesia branca de lado.” (D’ÂNGELO, 2017)

Clara dos Anjos, além de denunciar os maus tratos contra as mulheres negras que são naturalizados em uma cultura onde reina a branquitude falocrática, é também um útil instrumento de educação das massas sobre as fantásticas e ideológicas noções de “democracia racial” e de uma “miscigenação” que teria sido festiva e consensual – na verdade, nunca houve democracia racial mas sim apartheid tropical e a nossa miscigenação esconde estupros e abusos em massas perpetrados por machos tóxicos de mentalidade racista-colonialista.

Fazendo, através de Cassi, uma espécie de radiografia do predador social, revela que não necessariamente o lócus da opressão são os palácios da classe dominante ou as mansões dos burgueses, mas um pobre-diabo da classe média baixa pode, em sua arrogância estúpida, tornar-se um opressor racista, sexista e classista no trato com aqueles com quem, se fosse dotado de empatia e solidariedade, deveria unir seu destino em teias mais amoráveis e colaborativas. Mas Cassi só sabe agir como predador e explorador – ninguém lhe ensinou melhor.

Em seu retrato dos subúrbios do Rio, que descreve como “refúgio dos infelizes”, Lima Barreto não poupa na ironia para descrever também nossa lendária capacidade para o sincretismo religioso, como ilustra um brilhante trecho em que descreve a chegada da seita protestante do norte-americano, Mr. Quick Shays, ao bairro onde moram Clara, Cassi e os demais personagens da trama:

“É próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e as momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: ‘Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!'” (pg. 719)

Lima Barreto, mestre da ironia, tem um olhar que corrói qualquer ingenuidade romântica (no sentido comum do termo) com o ácido cáustico de seu sarcasmo, desvelando uma realidade complexa, em que as teias da sociabilidade estão todas atravessadas por antagonismos e exclusões que ele viveu, como milhões, na pele – mas que expressou, como poucos, na ímpar e inimitável singularidade de seu gênio literário.

Eduardo Carli de Moraes 
Goiânia, Janeiro de 2020

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, LimaObra Reunida – Volume 1Ed. Nova Fronteira, 2018.

D’ÂNGELO, Helô. Lima Barreto e o racismo do nosso tempo. Revista Cult, Maio de 2017.

SCHWARZ, Lilia. Lima Barreto – Triste Visionário. Cia das Letras, 2017.

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“Não quero saber do lirismo que não é libertação!” – Manuel Bandeira

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

MANUEL BANDEIRA (1886 – 1968)

Leia também:

A Aprendizagem da Liberdade segundo Clarice Lispector – Por Eduardo Carli de Moraes

“Ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso.”
CLARICE LISPECTOR

Nascer livre é inconcebível. Livre tornar-se é muito mais plausível. Nascemos inacabados, conectados ao corpo materno e nutriz por um cordão umbilical cujo corte dá início à nossa vida extra-uterina. Depois deste corte, a aventura do devir-livre começa por uma condição de extrema dependência e vulnerabilidade. A independência e a fortaleza são também o resultado de muito esforço – e um fruto que demanda tempo até que mature. A essa aprendizagem de uma liberdade dolorosa e difícil a obra de Clarice nos convida, pedindo que aceitemos o risco. Que o tema da libertação esteja presentíssimo em sua obra, a seguinte citação será suficiente para evidenciar:

“Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo – a ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava o animal histérico: ele apelava para o descontrole – durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como,

estava cansada do esforço de animal libertado.”

LISPECTOR. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rocco: 1998, Pg. 15

Como psicóloga de seus personagens de profundezas abissais, Clarice sonda em Loreley (vulgo Lóri) este processo de aprendizagem da liberdade. Mais especificamente: Lóri quer aprender como amar mais livremente. No trecho citado há pouco, a histeria é descrita de modo metafórico, bem longe do linguajar científico e um tanto descolorido de Breuer e Freud nos primórdios da Psicanálise. Para Clarice, a histeria é descrita como algo que transcende a mulher e também o âmbito do humano: até mesmo um animal – como um tigre aprisionado em uma jaula estreita, pode tornar-se histérico no próprio processo de movimentação de si que faz visceralmente para libertar-se de uma condição que lhe é intragável.

O livro é também a descoberta, por parte deste animal-mulher em processo de aprender a ser mais livre, de algo precioso: ninguém precisa se libertar sozinho. Os seres humanos se libertam juntos, e isso é também uma das verdades do amor. Em outro momento da obra, Lóri “pensou que essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente este socorro ser dado”:

“Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (…) Ela, o tigre, dera umas voltas vagarosas em frente ao homem, hesitara, lambera uma das patas e depois, como não era a palavra ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silenciosamente. Lóri nunca esqueceria a ajuda que recebera quando ela só conseguiria gaguejar de medo.” (p. 124)


CAETANO VELOSO – “Tigresa” [letra]

Esta instigante e complexa personagem feminina que é Lóri tem um nome de batismo repleto de significados ocultos e ressonâncias míticas: Loreley, como informa Ulisses à sua querida Lóri, é “um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heinrich Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar…” (p. 98).

“Lorelei” de Carl Joseph Begas (1835)

“Loreley Amaldiçoada Pelos Monges” de Johann Köler (1887)

A LORELAI

Eu não sei como explicar
Porque ando triste à beça;
Uma história de ninar
Não me sai mais da cabeça.

Dia ameno, a noite cai
Sobre o Reno devagar;
Na montanha, a luz se esvai
Faiscando pelo ar.

Uma chuva de centelhas
Repentina alumbra o céu;
A mais linda das donzelas
No penhasco apareceu.

Com escova de ouro escova
Seus cabelos incendidos;
E as canções que cantarola
Arrebatam os sentidos.

Uma dor logo fulmina
O barqueiro num batel;
Ele olha para cima:
Os escolhos esqueceu.

No final, creio que o reio
Engoliu o batel e – ai! –
O barqueiro que caiu
No canto de Lorelai.

H. HEINE traduzido por A. VALLIAS
Heine Hein? – pg. 99

A Lóri de Clarice Lispector não é a mera repetição deste arquétipo mítico. Na verdade, a escritora brasileira pratica uma literatura que subverte vários cânones ocidentais. O mito da Loreley evoca, é claro, o episódio da Odisséia de Homero em que Ulisses e os tripulantes de seu barco vão atravessar um local onde muitos navegantes já naufragaram devido ao canto sedutor das sereias. O sagaz herói homérico, naquela ocasião, pediu para que todos os marinheiros tapassem os ouvidos com cera para não ouvirem o perigoso e irresistível chamado musical, enquanto ele mesmo, Ulisses, decide-se a ouvir a deleitosa melodia, mas amarrado ao mastro do navio.

Em A Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, o Ulisses – carioca e professor de filosofia – faz um papel muito mais semelhante ao de Penélope, a esposa do Ulisses homérico, que aguarda o retorno do esposo em Ítaca. Assim como Penélope, o Ulisses de Clarice é um homem de paciência aparentemente inesgotável, que não força a barra com Lóri para possuí-la, preferindo aguardar que ela amadurecesse para o amor, aprendesse a liberdade necessária para a consumação das entregas carnais supremas.

Clarice Lispector é mestra na descrição das dinâmicas subjetivas complexas que comovem, transtornam e modificam os seres humanos por dentro, ainda que pouca coisa de monta esteja acontecendo por fora. Lóri é uma dessas personagens que possui um corpo físico onde digladiam-se os afetos num imenso escarcéu de vontades conflitantes.

É uma compreensão do “espírito” ou da psiquê que muito se assemelha àquela de Nietzsche, que buscou alargar o nosso conceito de “vontade” para incluir nele uma luta entre os impulsos, uma guerra sem armistício senão a morte. A cada momento, esta guerra interior tem como resultante um afeto dominante, erroneamente considerado como idêntico à vontade em geral, quando não passa de uma vontade específica que está provisoriamente em uma posição dominante.

Em palavras mais comuns: nossos corpos são um campo de batalha para a guerra das vontades. Lóri passa boa parte do livro tentando decidir-se afetivamente: entrega-se ao amor carnal com Ulisses, o professor de filosofia sedutor mas um pouco pedante? Ou prossegue resguardando-se e poupando-se? Ela sente estar apenas “semivivendo”, e esta lucidez quanto à baixa intensidade de seu viver é também o que lhe instiga a tentar superar-se.

Pois não é apenas o corpo do outro, a fusão erótica com Ulisses, que ela enxerga como possibilidade de graça e de êxtase. No decorrer do livro, em suas reflexões sobre “o Deus”, ela vai adquirindo uma visão panteísta e Spinozista do cosmos: “chegara ao ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo com suas galáxias” e “por causa da vastidão impessoal era um Deus para o qual não se podia implorar: podia-se era agregar-se a ele e ser grande também.” (p. 82)

Na prática, esta cosmovisão panteísta prevê que o sujeito possa perceber-se como integrante do “corpo cósmico” do Deus-Natureza. Isso se manifesta quando Lóri, acordando antes do sol nascer, desce à praia ainda vazia, invisível aos olhos que pudessem olhá-la de maiô. Em uma espécie de ritual solitário e autopoiético, ela entra no mar para fundir-se com as águas salgadas e as estrelas sobre sua cabeça.

“Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos… Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. (…) Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem.” (p. 78-79)

Esta cena memorável, em que Lóri funde-se com os elementos da natureza e acaba até mesmo por beber a água salgada em goles grandes – “o mar por dentro como o líquido espesso de um homem” – é parte deste aprendizado do corpo em meio a um cosmos absurdo, ininteligível, que evoca a filosofia existencialista de Albert Camus.

Lançando-se às águas selvagens de um mar ilimitado, rodeada pela noite que finda e pelo sol que nasce, Lóri está em pleno processo de fundir-se com a maravilhosidade absurda do Todo que ela integra. Apesar de estar sozinha, a cena é de intenso erotismo, pois este contato com seu lado mais selvagem, esta aquiescência ao convite Lou Reediano (“hey babe, take a walk on the wild side), é o que vai capacitando a personagem para o amadurecimento de sua capacidade erótica-orgástica.

No livro, Clarice também debate as máscaras vestimos para nos fingirmos de civilizados e fingirmos que nada temos de selvagens. Lóri é culta o bastante para saber que as personas eram as máscaras que, “no antigo teatro grego ou romano”, “os atores, antes de entrar em cena, pregavam ao rosto”, cada uma delas “representava pela expressão o que o papel de cada um deles queria exprimir” (p. 86).

Lóri é uma mulher que reflete muito, em seu processo que não é só de auto-conhecimento mas também de auto-poiésis, sobre as máscaras que veste, sobre as personas conectadas às suas poses, vivendo num constante conflito entre pintar-se ou não: a maquiagem lhe faz sentir-se pseudo, mas o rosto sem retoques também lhe dá uma sensação de nudez e vergonha. Nos encontros com Ulisses, ela é uma gangorra: às vezes se maquia e se ajeita, outras vezes prefere ir de pele nua. E faz as seguintes reflexões psicológicas baseadas em suas próprias vivências:

“Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera para representar-se e representar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo: a pessoa era.” (p. 87)

Já Ulisses, por todo o livro, é descrito como uma espécie de santo da paciência, um homem totalmente avesso àquela pressa truculenta típica do macho-estuprador. Ulisses parece encarnar um ideal-de-homem nutrido pela mulher em processo de maturação sexual-afetiva e que, ainda desconfiada das entregas sexuais totais, pede do outro um tempo para que a relação amadureça.

A metáfora do fruto é a todo momento evocada através deste livro que nos pinta a liberdade de amar como uma fruta madura. É preciso saber colhê-la a tempo, para que não fique inutilizada, como um fruto que, passado o tempo de sua madureza, cai do galho e no chão apodrece. É preciso muito tempo de dedicação ao cultivo para que essa fruta de fato atinja seu ápice e possa então nos conceder toda a força vivificante de seu sumo íntimo, por nós incorporado na devoração conjunta da maçã outrora proibida. Como notou com perspicácia Cláudio Dias em seu livro Clarice Lispector e Friedrich Nietzsche – Um Caso de Amor Fati, há um intenso sabor nietzschiano em uma frase como esta: “ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso.” (p. 134)

“O medo maior que Lóri tinha”, nos informa Clarice, era o de “perder Ulisses por se atardar tanto” (p. 68). Ela vive, durante o tempo que o romance dura, no temor de que seu comportamento, tímido e esquivo, acabe por cansar Ulisses. Ele aguarda que ela amadureça para o grau de carnalidade do amor que é essencial para suas consumações mais intensas e totais. Lóri vive no temor de resguardar-se demais, por um tempo demasiado longo, transformando o que havia entre ela e Ulisses – magnetismo, atração, tesão, vontade de mútua interpenetração! – em algo que, por erro de timing, apodrece por não ter sido sorvido em tempo ótimo.

“Surpreendeu seu próprio pensamento: então ela planejava de fato um dia ser sua? Pois enganava-se sempre pensando que se tratava de uma espécie estranha de amizade e que assim continuaria sempre, até murchar como uma fruta que não é colhida a tempo e cai apodrecida da árvore para o chão. (…) O que temia era exatamente uma das qualidades de Ulisses: a da franqueza. Temia que, se ela conseguisse avançar a ponto de ficar mais pronta e viesse a aceitar aproximar-se dele, ele com franqueza pudesse simplesmente dizer-lhe que já era tarde. Porque até as frutas têm estação.” (p. 69 e 89)

A liberdade de amar também exige seu kairós, o aproveitamento do momento oportuno, o abraço da ocasião propícia quando esta se mostra, o que significa que a sabedoria é também indispensável nas questões do coração. “Mesmo no amor tinha-se que ter bom senso e senso de medida”, reflete Lóri (p. 149). Mesmo quando atinge, por meio do amor, uma espécie de consumação da liberdade-a-dois, ela prossegue lúcida sobre o quão precária e vulnerável é esta conquista – como tudo na condição humana, este amor-fruto é frágil e destrutível. Demanda de nós coragem para mantê-lo vivo, resiliência para continuar a alimentá-lo.

A aprendizagem de Lóri, que conduz esta personagem à soleira da porta que conduz à uma vida nova, é também uma espécie de trajetória dionisíaca, onde ela abandona alguns das travas repressoras e apolíneas que a mantinham naquele estado avesso ao amor que é a avareza de si.

“Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe aonde. Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo de sua capacidade, pequena ou grande. Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa. (…) Ulisses não tivera medo do tigre ferido e lhe tirara a flecha fincada no corpo. Oh Deus! Ter uma vida só era tão pouco!

O amor por Ulisses veio como uma onda que ela tivesse podido controlar até então. Mas de repente ela não queria mais controlar. E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse acabado de chorar ao nascer. Como? Como prolongar o nascimento pela vida inteira?” (p. 131)

Lóri e Ulisses, ao fim desta pequena epopéia que Clarice retrata em seu romance, vivenciam um ápice vivencial: o êxtase do deslimite, o amplexo íntimo com o outro, a festa do amor consumado. Mas, como tudo na condição humana é fluido e precário, o livro se inicia com uma vírgula e termina com dois pontos. Sem início nem fim, a obra é o retrato de um entremeio, um filme de uma trajetória, um corte temporal em vidas que transbordam os limites do texto. Enquanto dura a leitura, é o próprio leitor que, cúmplice de Lóri e Ulisses, encantado com a música e a sabedoria da sereia Clarice, tem a chance de uma preciosa aprendizagem sobre o cultivo e o gozo dos mais salutares frutos da terra.

por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro || Novembro de 2018
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INVENTÁRIO DE CICATRIZES – Poemas de Alex Polari

INVENTÁRIO DE CICATRIZES

Poemas de Alex Polari

 

OS PRIMEIROS TEMPOS DA TORTURA

Não era mole aqueles dias
de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.
Havia dias que as piruetas no pau-de-arara
pareciam rídiculas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.
Havia dias em que todas as perspectivas
eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo céticas
de não tomar porradas nem choques elétricos.
Havia outros momentos
em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como uma aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro político.
Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.

* * * * *

INVENTÁRIO DE CICATRIZES

Estamos todos perplexos
à espera de um congresso
dos mutilados de corpo e alma.

Existe espalhado por aí
de Bonsucesso à Amsterdam
do Jardim Botânico à Paris
de Estocolmo à Frei Caneca
uma multidão de seres
que portam pálidas cicatrizes
esmaecidas pelo tempo
bem vivas na memória envoltas
em cinzas, fios, cruzes,
oratórios,
elas compõem uma catedral
de vítimas e vitrais
uma Internacional de Feridas.

Quem passou por esse país subterrâneo e não oficial
sabe a amperagem em que opera seus carrascos
as estações que tocam em seus rádios
para encobrir os gritos de suas vítimas
o destino das milhares de viagens sem volta.

Cidadãos do mundo
habitantes da dor
em escala planetária

Todos que dormiram no assoalho frio
das câmaras de tortura
todos os que assoaram
os orvalhos de sangue de uma nova era
todos os que ouviram os gritos, vestiram o capuz
todos os que gozaram coitos interrompidos pela morte
todos os que tiveram os testículos triturados
todas as que engravidaram dos próprios algozes
estão marcados,
se demitiram do direito da própria felicidade futura.

* * * * *

MORAL E CÍVICA II

Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu caí em maio
mas em setembro tava por aí
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
e rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá – o filho da puta
segurando uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.

* * * * *

REQUERIMENTO CELESTE COM DIGRESSÕES JURÍDICAS
(POR OCASIÃO DO POUSO DA VIKING 1 EM MARTE)

Resolvi denunciar às amebas de Marte
(caso elas existam)
a minha sui generis situação jurídica
de condenado duplamente
à prisão perpétua,
olvidado em várias esferas
absolvido em uma das vidas
e esperando recurso da outra
e tendo ainda por cima
além de certas transcendências sustadas
mais quarenta e quatro anos de reclusão
a descontar não sei de qual existência.

Resolvi portanto,
romper meu silêncio de quase 6 anos
e denunciar em outros astros
a situação atroz que aqui prevalece
tendo o Ministério Público
pedido duas vezes minha condenação à morte.
Assim sendo, continuo sem grilhetas
cumprindo minha condenação
à danação perpétua
neste pedregulho
cheio de poluição
ditaduras e injustiças
que convencionaram chamar planeta
em eterna órbita
sem ternura ao redor
de uma estrela de 5a grandeza.
Nestes termos,
em lugar sobremaneira ermo,
pede deferimento
com o corpo cheio de feridas
o suplicante
irrecuperável militante
desta província celeste
encravada entre nebulosas
e sentimentos mais nebulosos ainda.

* * * * *

ESCUSAS POÉTICAS II

Alguns companheiros reclamam
que entre tantas imagens bonitas
eu diga em meus poemas que gosto de chupar bucetas
e não vejo como isso atrapalhe a marcha para o socialismo
que é também o meu rumo. Mais ainda,
eu gostaria que nessa nova sociedade por qual luto
todos passassem a chupar bucetas a contento
todos redescobrissem seus corpos massacrados
todos descobrissem que o medo e a aversão ao prazer
a que foram submetidos foi e será sempre
apenas a estratégia dos tiranos.

Outros companheiros reclamam
quanto ao uso da 1a pessoa
em meus poemas, a falta de desfechos
corretos do ponto de vista político
e os resquícios da classe que pertenço.

A isso tudo procuro responder
que a poesia reflete uma vivência particular,
se universaliza apenas nessa medida
e que não adianta você inventar um caminho
para um povo que você não conhece nem soube achar.
Eu bem que gostaria de ter essa solução, é minha senda,
eu estou sinceramente do lado dos oprimidos
só que de uma maneira abstrata
o que errei, errei por eles,
num processo não despido de angústia
e minha poesia teria que se ressentir disso.

Quanto as outras críticas,
o que posso dizer é que a falta de lógica de meus sentimentos
não acompanha a lógica dos manuais de dialética
e que minhas intenções e objetivos
nem sempre correspondem à minha vida real.

O que muitos não entendem
é que eu quero muito falar do meu povo
da sabedoria dele,
das coisas simples
que lhe são mais imediatas
mas que esse canto hoje soaria falso
e que só posso falar disso
quando não precisar inventar nada,
quando minha práxis for essa
o caminho escolhido o certo,
quando não precisar de metáforas.

O dia da redenção tanto pode ser uma aurora quanto um poente,
isso pouco importa
desde que se cante e anuncie
de todas as formas possíveis.

* * * * *

ALEX POLARI foi preso político da Ditadura Militar brasileira por 9 anos (1971-1980). Hoje é uma das lideranças mundiais da comunidade Santo Daime e defende a terapêutica propiciada pela ayahuasca (saiba mais na Trip: https://revistatrip.uol.com.br/trip/alex-polari)

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“Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo…”

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A Barreira e o Nível – Retrato da Burguesia Francesa
Edmond Goblot (1858 – 1935)

LIMA BARRETO (1881-1923) – Homenageado da FLIP 2017, o autor de “Policarpo Quaresma” tem “Diário do Hospício” e “Cemitérios dos Vivos” relançados pela Companhia das Letras [EXTRA >> Faça o dowload de 32 de suas obras]


Lima Barreto (1881-1923) – Comprar livro na Amazon: “Internado por duas vezes em instituições psiquiátricas por delírios alcóolicos, Lima Barreto documentou em Diário do hospício sua passagem pelo Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, de maneira lúcida e contundente. No romance inacabado O cemitério dos vivos, o autor transpôs para a chave ficcional a mesma vivência. Os dois textos foram publicados em conjunto postumamente, em 1953 e em 2010, receberam nova e cuidadosa edição organizada por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura e prefaciada por Alfredo Bosi. Relançada agora pela Companhia das Letras, esta edição conta com notas e imagens inéditas, que oferecem nova contextualização do ambiente manicomial, além de incluir ao final uma nova reportagem de Raymundo Magalhães datada de 1920.”


OUTRO LANÇAMENTO RELEVANTE:

TRISTE VISIONÁRIO (Comprar na Amazon) – “Durante mais de dez anos, Lilia Moritz Schwarcz mergulhou na obra de Afonso Henriques de Lima Barreto, com seu afiado olhar de antropóloga e historiadora, para realizar um perfil biográfico que abrangesse o corpo, a alma e os livros do escritor de Todos os Santos. Esta, que é a mais completa biografia de Lima Barreto desde o trabalho pioneiro de Francisco de Assis Barbosa, lançado em 1952, resulta da apaixonada intimidade de Schwarcz com o criador de Policarpo Quaresma — e de um olhar aguçado que busca compreender a trajetória do biografado a partir da questão racial, ainda pouco discutida nos trabalhos sobre sua vida. Abarcando a íntegra dos livros e publicações na imprensa, além dos diários e de outros papéis pessoais de Lima Barreto, muitos deles inéditos, a autora equilibra o rigor interpretativo demonstrado em Brasil: Uma biografia e As barbas do imperador com uma rara sensibilidade para as sutilezas que temperam as relações entre contexto biográfico e criação literária.  Escritor militante, como ele mesmo se definia, Lima Barreto professou ideias políticas e sociais à frente de seu tempo, com críticas contundentes ao racismo (que sentiu na própria pele) e outras mazelas crônicas da sociedade brasileira. Generosamente ilustrado com fotografias, manuscritos e outros documentos originais, Lima Barreto: Triste visionário presta um tributo essencial a um dos maiores prosadores da língua portuguesa de todos os tempos, ainda moderno quase um século depois de seu triste fim na pobreza, na doença e no esquecimento.”


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policarpo-quaresma-heroi-do-brasilPOLICARPO QUARESMA – HERÓI DO BRASIL (1998)
Direção: Paulo Thiago; Com Paulo José e Giulia Gam.

Lima Barreto: um grito brasileiro (Mestres da Literatura)

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AUDIOLIVROS: Cemitério dos VivosClara dos Anjos 


VEJA TAMBÉM: FLIP 2017


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Clara dos Anjos – Download | Os Bruzundangas – Download | Marginália – Download | O homem que falava Javanês – Download | O triste fim de Policarpo Quaresma – Download | Contos – Download| Crônicas – Download | A mulher de Anacleto – Download | A Nova Califórnia – Download | Carta de um defunto rico – Download | Eficiência Militar – Download | Foi buscar lã… – Download | Histórias e Sonhos… – Download | Manel Carpinteiro – Download | Milagre do Natal – Download | Numa e Ninfa – Download | O caçador doméstico – Download | O cemitério dos vivos – Download | O falso Dom Henrique V – Download | O filho de Gabriela – Download | O número da sepultura – Download | O pecado – Download | O subterrâneo do Morro do Castelo – Download | O Único Assassinato de Cazuza – Download | Quase Ela deu o “sim”, mas… – Download | Recordações do Escrivão Isaías Caminha – Download | Três Gênios de Secretária – Download | Um especialista – Download | Um que vendeu sua alma – Download | Vida Urbana – Download | O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos – Download | Diário – Download

A FILOSOFIA, O TEATRO E A REVOLUÇÃO: Ensaios para uma Reunião (por Eduardo Carli de Moraes em A Casa de Vidro)

Teatro do Oprimido Em Ação! (1975)

Augusto Boal gostava de dizer que “nada é, tudo está sendo”, como relembra seu filho Julián no posfácio do livro Teatro do Oprimido: “talvez porque tinha o espírito de um dialético, por demais consciente dos processos que transformam constantemente o mundo, meu pai jamais elaborou uma definição globalizante do Oprimido, do Opressor ou da Opressão. Estas palavras não podem ser reduzidas a uma visão maniqueísta do mundo. Um trabalhador oprimido pela exploração capitalista pode ser também um marido opressor que bate na mulher.” (JULIÁN BOAL, p. 214, 215)

O Teatro do Oprimido, de maneira análoga à Pedagogia de Paulo Freire, concebe a realidade como algo dinâmico, em perene devir, o que implica que ninguém é opressor ou oprimido – está sendo. É tarefa tanto da arte quanto da educação contribuir com o advento de uma sociedade sem opressão, utopia que pulsa no seio daquilo que Boal gostava de chamar de Poética do Oprimido e que “propõe a própria ação” – o teatro como ensaio da revolução:

“O que a Poética do Oprimido propõe é a própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu lugar, ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro não é revolucionário em si mesmo, mas certamente por ser um excelente ensaio da revolução…” (AUGUSTO BOAL, Teatro do Oprimido, pg. 124)


Boal, na esteira de figuras como Bertolt Brecht e Paulo Freire, idealizou e concretizou uma prática social, essencialmente coletiva e inter-relacional, onde o teatro, a revolução e a filosofia dão-se as mãos, em congregação, em reunião, somando suas forças, reconhecendo seus vínculos, sintetizando-se em algo que as transcende. Nasce um teatro-filosófico-revolucionário, arte que é práxis transformadora, força coletiva que serva para debater nossa situação concreta em vários contextos sócio-históricos, testando possíveis soluções para conflitos reais. A Estética do Oprimido deseja ser eficaz força concreta que se insere no devir do mundo para buscar nele agir como força crítico-construtiva, transformadora, des-opressora.

Um exemplo concreto pode ser eloquente: no Peru, um trabalhador de um porto pesqueiro relata seus terríveis sofrimentos, pois “tinha um patrão terrivelmente explorador, que obrigava os operários a trabalhar das 8 horas da manhã às 8 da noite… 12 horas de trabalho contínuo. Todos pensavam  em lutar contra essa exploração desumana.” (p. 145)

Trata-se de um problema concreto, vivido por seres humanos de carne-e-osso, que penam, que suam, que choram, que sofrem: é a humilhação, a ofensa, sentida na pele. O teatro, como ensaio da revolução, como ferramenta para um debate filosófico sobre a ação humana, intervêm aí servindo como arena para que várias opções de comportamento sejam avaliadas. Alguns propõe “atirar uma bomba e incendiar a fábrica”; outros, acham preferível uma greve; outros ainda, sustentam que o melhor de fato é fundar um sindicato. Como decidir?

A democracia simples – votar e deixar a maioria decidir – possui muitas falhas caso antes da votação não se exercitar uma deliberação, uma conscientização, um esforço conjunto de compreensão, que sopese as consequências possíveis e desejáveis de cada curso de ação. Daí a importância, não apenas política, mas filosófica também, do teatro como arena de debate público. Qualquer ágora fica manca e capenga sem que haja nela teatro e filosofia.

O “teatro-debate”, também conhecido como “teatro-fórum”, como sublinha Boal, “não tem a finalidade de mostrar o caminho correto… mas sim a de oferecer os meios para que todos os caminhos sejam estudados. Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas essas formas teatrais são certamente um ensaio da revolução. A verdade é que o espectador-ator pratica um ato real, mesmo que o faça na ficção de uma cena teatral. Enquanto ensaia jogar uma bomba no espaço cênico, está concretamente ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar uma greve, está concretamente organizando uma greve. Dentro dos seus termos fictícios, a experiência é concreta.

Aqui não se produz de nenhuma maneira o efeito catártico. Estamos acostumados a peças em que os personagens fazem a revolução no palco, e os espectadores se sentem revolucionários triunfadores, sentados nas suas poltronas, e assim purgam seu ímpeto revolucionário: para que fazer a revolução na realidade, se já a fizemos no teatro? Mas isso não acontece neste caso: o ‘ensaio’ estimula a praticar o ato na realidade. O teatro-debate e essas outras formas de teatro popular, em vez de tirar algo do espectador, pelo contrário, infundem no espectador o desejo de praticar na realidade o ato ensaiado no teatro. A prática dessas formas teatrais cria uma espécie de insatisfação que necessita complementar-se através da ação real.”  (p. 147)

O ser humano, que segundo Jean-Paul Sartre está “condenado à liberdade”, segundo Boal está condenado à criatividade. E criativíssimo Boal foi, inventando e re-inventando o teatro, que ia buscar inspiração nos jornais, prenunciando a Imprensa Cantada de Tom Zé, nos sindicatos e greves da classe proletária em movimentação (tema do clássico Eles Não Usam Black Tie, de Guarnieri), praticando até mesmo o teatro invisível, aquele que transborda para fora do teatro, esparrama-se pela cidade, ganhando praças, escolas, parlamentos, penitenciárias…

A ousadia de figuras Boal ensina-nos que a arte não pode se resignar a espaços estreitos e fechados, precisa sair em aventura e respirar em ar livre, indo em busca de seus públicos por aí, principalmente entre aqueles que não conseguem pagar os caros ingressos do teatro burguês. Aqueles que menos podem pagar os ingressos para entrar no teatro são aqueles que, no fundo, mais precisam do Teatro do Oprimido, que oferta-se como um arma de libertação a serviço da tarefa interminável da des-opressão, da criação de alguns dos “muitos mundos possíveis” (outra expressão de Boal).

Não sejamos, porém, reducionistas. Tomar partido não significa reduzir o mundo a um combate épico entre mocinhos e bandidos, heróis e vilões. Boal não quer enxergar o mundo em preto-e-branco, mas sim quer que enxerguemos todo o arco-íris do desejo, the rainbow of desire. Nem oprimidos, nem opressores, podem ser confundidos com anjos e demônios; “quase não existem em estado puro, nem uns nem outros” (p. 21).

Cada um de nós, se tiver a coragem da autocrítica, pode descobrir dentro de si tanto o oprimido quanto o opressor – e, na fábrica, Fulano pode ser humilhado pelo patrão, oprimido que vai calando sua revolta, para depois em casa tornar-se o tirano dos filhos, autoritário ou espancador… Nem arcanjos nem bestas-feras, os seres humanos não são nada de uma vez para sempre, não estão fixados nem congelados em um estado imutável, mas fluem e transformam-se, o que coloca os imobilistas, na sociedade, necessariamente do lado do erro, do engano, da defesa do impossível.

“Não podemos conceder perdão e oferecer nossa amizade a quem escolheu o proveito próprio às custas da infelicidade dos outros, e decidiu gozar a própria vida ao custo da morte alheia. Aqueles que querem a todos perdoar, ‘ver os dois lados da questão’ ou ‘ver a questão de todos os lados’, aqueles que tentam justificar as razões dos opressores, são os imobilistas do mundo. Se fosse verdade que todos têm razão, e que todas as razões se equivalem, seria melhor que o mundo ficasse do jeito que está. Nós, do Teatro do Oprimido, ao contrário, queremos transformá-lo, queremos que mude sempre em direção a uma sociedade sem opressão. É isto que significa humanizar a humanidade: queremos que o ‘homem deixe de ser o lobo do homem’, como dizia um poeta.

Sabemos que todas as sociedades se movem através de estruturas conflitantes: como poderíamos nós, então, assumir uma virginal posição isenta diante de conflitos dos quais, queiramos ou não, fazemos parte? Seremos sempre aliados dos oprimidos… ou cúmplices dos opressores. Fazer Teatro do Oprimido já é o resultado de uma escolha ética, já significa tomar o partido dos oprimidos. (…) Em um confronto entre David e Golias, a neutralidade significa tomar o partido do opressor, o gigante Golias; se quisermos tomar o partido do oprimido David, temos que ajudá-lo a encontrar as pedras…” (AUGUSTO BOAL, Oprimidos e Opressores, p. 22-23)

Nem o Teatro nem a Pedagogia do Oprimido, nem Boal nem Paulo Freire, aceitam a legitimidade de uma suposta neutralidade, de uma “isenção virginal” típica daqueles que não querem tomar partido. No mesmo espírito, disse Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz, muito citado em manifestações e ocupações mundo afora, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o lado do opressor”.

Encontraríamos facilmente inúmeras formulações semelhantes na obra de Florestan Fernandes, de Marx e Engels, de Franz Fanon, de Brecht, de Malcolm X, de Angela Davis… É nesta companhia que devemos situar Boal e sua convicta afirmação de que “temos a obrigação cidadã de nos colocarmos ao lado dos humilhados e ofendidos” (p. 25). O Teatro do Oprimido é, pois, “teatro de luta”: “DOS oprimidos, PARA os oprimidos, SOBRE os oprimidos e PELOS oprimidos”, como brada Boal em letras garrafais (p. 26).

Boal deseja contribuir para a emergência e a disseminação de uma poética política que rompe, de modo revolucionário, com vários dos dogmas reinantes na história do teatro, a começar pelo “sistema trágico coercitivo de Aristóteles” (p. 29 a 68). Após uma análise crítica da teoria estética aristotélica, em que destacam-se os conceitos de catarse harmatia, Boal conclui que

“esse sistema funciona para diminuir, aplacar e eliminar tudo que possa romper o equilíbrio social; tudo, inclusive os impulsos revolucionários, transformadores. Aristóteles formulou um poderosíssimo sistema purgatório, cuja finalidade é eliminar tudo que não seja comumente aceito, legalmente aceito, inclusive a revolução, antes de que aconteça… O seu Sistema aparece dissimulado na TV, no cinema, nos circos e nos teatros. Trata-se de frear o indivíduo, de adaptá-lo ao que preexiste… Se, pelo contrário, queremos estimular o espectador a que transforme sua sociedade, se queremos estimulá-lo a fazer a revolução, nesse caso teremos que buscar outra Poética.” (p. 68)

Em política, Boal afirma a necessidade de optar por uma aliança com os oprimidos, já que a outra alternativa é a cumplicidade com os opressores; em filosofia, assume posição nas trincheiras ao lado do materialismo de Marx e não do idealismo de Hegel; já em estética, ele também escolhe sua companhia: muito mais a de Brecht que a de Aristóteles.

“A Poética marxista de Brecht afirma que o personagem não é sujeito absoluto e sim objeto de forças econômicas ou sociais, às quais responde e em virtude das quais atua. (…) Se, por um lado, para a Poética idealista, o pensamento condiciona o ser social, por outro lado, para a Poética marxista, o ser social condiciona o pensamento social. Para Hegel, o espírito cria a ação dramática; para Brecht, a relação social do personagem cria a ação dramática. (…) Para Brecht, não existe ‘natureza humana’ e, portanto, ninguém é o que é porque sim! É necessário buscar as causas que fazem com que cada um seja o que é. ” (p. 105-107)

“O que afirma Brecht é que, nas peças idealistas, a emoção atua por si mesma, produzindo o que ele chama de orgias emocionais, enquanto as Poéticas materialistas, cujo objetivo não é tão somente o de interpretar o mundo mas também o de transformá-lo e tornar esta terra finalmente habitável, têm a obrigação de mostrar como pode este mundo ser transformado. Uma boa empatia não impede a compreensão e, pelo contrário, necessita da compreensão… O que faz Brecht, fundamentalmente, é colocar a ênfase na compreensão (enlightnenment), na dianoia. Em nenhum momento Brecht fala contra a emoção, ainda que fale sempre contra a orgia emocional… 

Como não vai o espectador emocionar-se com a Mãe Coragem que perde os seus filhos, um a um, na guerra? É inevitável que nos emocionemos todos até às lágrimas. Mas deve-se combater sempre a emoção causada pela ignorância: que ninguém chore a fatalidade que levou os filhos da Mãe Coragem, mas sim que se chore de raiva contra o comércio da guerra, porque é esse comércio que rouba os filhos à Mãe Coragem… Já a peça Os Fuzis da Senhora Carrar produz uma profunda emoção de ódio contra Franco e seus sequazes… É necessário insistir: o que Brecht não quer é que os espectadores continuem pendurando o cérebro junto com o chapéu, antes de entrarem no teatro, como o fazem os espectadores burgueses.

Brecht era marxista: por isso, para ele, uma peça de teatro não deve terminar em repouso, em equilíbrio. Deve, pelo contrário, mostrar por que caminhos se desequilibra a sociedade, para onde caminha e como apressar sua transição. Num estudo sobre teatro popular, Brecht afirma que o artista popular deve abandonar as salas centrais e dirigir-se aos bairros, deve mostrar suas imagens da vida social aos operários, que estão verdadeiramente interessados em transformar essa vida social, já que são suas vítimas. Um teatro que pretende transformar os transformadores da sociedade não pode terminar em repouso, não pode restabelecer o equilíbrio. A polícia burguesa tenta restabelecer o equilíbrio, impor o repouso: o artista marxista, ao contrário, deve propor o movimento em direção à liberação nacional e à liberação das classes oprimidas pelo capital… Brecht expõe contradições e propõe transformações. (…) Deseja que o espetáculo teatral seja o início da ação, o equilíbrio deve ser buscado transformando-se a sociedade e não purgando o indivíduo dos seus justos reclamos e de suas necessidades.” (p. 112-113)

Tanto na vida quanto na arte, Boal execra a passividade do espectador. “Sim, esta é, sem dúvida, a conclusão: espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário reumanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude… Todas essas experiências de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador, sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas de mundo. E considerando que quem faz teatro, em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes dominantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as imagens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o povo) não pode continuar sendo vítima passiva dessas imagens.” (p. 163)

Na conclusão de Poética do Oprimido, escrito em seu exílio argentino, em Buenos Aires, no ano de 1973, Augusto Boal re-manifesta sua fidelidade para com Brecht, porém propõe ir além da Conscientização, propondo como télos último, objetivo supremo, a Liberação. “A poética de Brecht é a Poética da Conscientização: o mundo se revela transformável e a transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. A ação dramática esclarece a ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação.

A poética do Oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que pensem nem para que atuem em seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo. Teatro é ação! Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!” (p. 163)

Este estímulo para ação transformadora-revolucionária que o Teatro do Oprimido busca fornecer ao espectador-que-devem-ator tem, como é evidente, muita fraternidade e comunhão com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Ambos têm norteado minha prática na sala-de-aula em que, como jovem professor sem afeição por dogmas e que experimenta inventar um caminho enquanto segue seus instintos e seus fascínios de caminhante. Pois a sala-de-aula não só pode, como deve tornar-se palco para uma arte coletiva onde esses elementos, artificialmente mantidos separados, possam reunir-se: teatro, filosofia e revolução, afinal de contas, têm tudo a ver. Diálogo, debate, dialética – este DDD está no DNA destes três elementos, essencialmente inter-relacionais, devotados à construção de convívios mais humanizados e mais sábios.

Em sua autobiografia, Hamlet e o Filho do Padeiro – Memórias Imaginadas, Boal soube criar pontes entre o teatro e a filosofia de modo explícito em certos trechos, como no capítulo “A Pobreza”, onde presta homenagem conjunta a Stanislavski e a Sócrates: “O estudo de Stanislavski foi pedra fundamental na minha carreira. Foi ele que sistematizou um método que ajuda o ator a buscar, em si, ideias e emoções atribuídas aos personagens. Nesse sentido, uma das principais funções do diretor é ser maiêutico, como Sócrates no seu processo de filosofar – o filósofo é a parteira que faz o aluno descobrir o que já sabe, sem saber que o sabe, através de perguntas que provocam a reflexão, abrindo caminho para a descoberta. Assim deve ser o diretor teatral: ajuda o ator a parir personagens.” (p. 161)

Poderíamos aproveitar para propor que, assim como Stanislavski ensina o ator a parir personagens e Sócrates ajuda seu interlocutor a parir verdades, Boal e seu Teatro do Oprimido propõe uma maiêutica artística, reunião e congregação de teatro, filosofia, política transformadora (revolução). Augusto Boal ensinou-nos como ninguém que a arte pode ser aliada e arma nas nossas lutas de libertação, que o teatro é uma parteira de revoluções, que o artista digno deste nome é alguém que acata sua condenação à criatividade e, num laboratório imenso, no Theatrum Mundi, está constantemente engajado no parto de outros mundos possíveis. De preferência, mundos mais libertos da opressão do que este em que  vivemos – não como espectadores de um espetáculo que nos é externo, mas como co-agentes e co-partícipes de uma trama comum.

por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Junho de 2017

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Cosac Naify, 2013, 224 pgs.  
————. Hamlet e o Filho do Padeiro – Memórias Imaginadas. Cosac Naify, 2014, 416 pgs.  


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AUGUSTO BOAL [1931 – 2009], “Estética do Oprimido”
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(256 pgs, 2009, Ed. Garamond, MinC e Funarte, PDF, 1.4 MB)

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