Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) realizou no Sábado (02/05/2020), às 15h, o webdebate “Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus”. Nossas convidadas foram Beatriz de Paula Souza e Francine Rebelo. Mediação: Eduardo Carli de Moraes. Assista à live no canal do Youtube d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura ou pelo site www.acasadevidro.com. Conheça as debatedoras:
FRANCINE REBELO é Cientista Social e Antropóloga, atualmente doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora, militante por uma educação gratuita e de qualidade, feminista e mãe do Raul.
BEATRIZ DE PAULA SOUZA é Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, onde coordena o Serviço de Orientação à Queixa Escolar, do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE. Organizadora das coletâneas “Orientação à Queixa Escolar, Medicalização de Crianças e Adolescentes” e autora do livro “Histórias de Educação”, além de artigos e capítulos de livros de Psicologia na interface com a Educação. Uma das fundadoras do GIQE (Grupo Interintitucional Queixa Escolar: https://www.queixaescolargiqe.com/) e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, associada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE.
EDUARDO CARLI DE MORAES é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.
1) Quais seriam os principais efeitos do confinamento sobre a psiquê humana? E, em específico, o que significa para as crianças estarem confinadas no espaço doméstico, sem escola nem parquinho? Livros como “Desemparedamento da Infância” e sites como criançaenatureza.org apontam a importância, para o desenvolvimento são das crianças, dos espaços abertos, das brincadeiras na natureza, da exploração do território mais amplo etc. Em suma: na perspectiva da psicologia e da antropologia, quão importantes são o movimento e a ação no aprendizado vital infantil? Que autores vcs conhecem que refletiram sobre isso? (Winnicott? Pediatras da S.B.P.?)
2) Sofrer é inerente à vida e oportunidade de aprendizado. Porem vivemos um período onde o adoecimento psíquico e tende a aumentar a busca por amparo e tratamento, com a ascensão de condições de transtorno de ansiedade, depressão, tendências suicidas, melancolia vinculada à falta de sentido da vida etc. Ao mesmo tempo, vivemos em uma época altamente farmacológica – desnudada por autores como Paul Beatriz Preciado (Testo Junkie) ou RobertWhitaker (Anatomia de Uma Epidemia).
Diante do sofrimento psíquico, tendemos a apelar para os remédios psicotrópicos. O que vcs pensam disso? É aceitável, no contexto, o uso massivo e o incremento na comercialização de soníferos, ansiolíticos, antidepressivos? Ou vcs ainda preferem e recomendar psicoterapias como a Psicanálise (cura pela fala), Logoterapia (proposta por Viktor Frankl), Gestalt, Cognitiva-Comportamental, Corporal (Wilhelm Reichiana), meditação e yoga etc.?
3) Outra complicação que o isolamento social imposto pela pandemia traz, como apontam muitos pesquisadores e já foi relatado em várias reportagens, é a dificuldade nas convivências familiares – os índices de violência doméstica, sobretudo feminicídios, estupros, episódios de homofobia, filhos maltratados por agressões de parentes. A jornalista Eliane Brum recentemente pesquisou e escreveu sobre suicídios juvenis em alta na cidade mais violenta do país, Altamira (Pará). Francine, como estudiosa da obra de pensadoras como Silvia Federici, o que você pensa sobre a condição feminina, o trabalho não remunerado, a opressão de gênero e a masculinidade tóxica neste contexto? Precisamos de feminismo, interseccionalidade e descolonização em tempos pandêmicos?
4) O contexto pandêmico implicou a suspensão das atividades escolares: isto faz com que os pais valorizem mais o trabalho de educadores que cuidam, instruem e favorecem o desenvolvimento psíquico e cognitivo de seus filhos? Como vocês prevêem que será a volta às aulas? Beatriz leu em vídeo prévio um texto interessante que reivindica para as crianças o direito a “uma semana de anarquia”, em que pudessem correr, pular, dançar, cantar, rolar na grama, sem que os educadores impunham “conteúdos” para “correr atrás do prejuízo”. O que vcs recomendariam aos educadores para que possam lidar com as crianças que estão saindo do período de isolamento? Que traumas e confusões crianças e adolescentes podem trazer para o contexto de volta às aulas que não existiam antes da interrupção pandêmica das atividades escolares?
5) Em belo seriado televisivo recente, “Kidding” (estrelado por Jim Carrey), surge uma questão pertinente: o protagonista é um âncora de TV que tem uma alta audiência com seu programa infantil de marionetes (puppet time), porém sofre um trauma familiar severo: seu filho criança morre em um acidente de trânsito. Boa parte da série lida com os traumas desta família dilacerada pela perda, mas também pelo dilema: como é possível conversar sinceramente com as crianças sobre aspectos da condição humana como a morte, a doença, o luto, a perda de alguém amado que não retornará? Como os mais velhos podem dialogar com as crianças e jovens no sentido de dizer a verdade sobre isto, e o quanto devem omitir ou “dourar a pílula” com a intenção de proteger o outro do sofrimento excessivo?
6) Por fim, gostaria de saber como vocês reagem a uma frase de um místico indiano chamado Krishnamurti: ele diz que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente.” Também no mesmo espírito: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, diz Nise da Silveira. Neste sentido, como diz Ailton Krenak, não devemos desejar um “retorno à normalidade”, pois ela era o problema, estar conformado àquilo era um modo de estar neurótico. Diante disso, vocês acham que precisamos aprender sobre saúde mental com outros povos e outras culturas, com indígenas, quilombolas, ribeirinhos? Com os orientais, os budistas, os taoístas, os yoguis? É verdade que nossa sanidade psíquica e nossas convivências familiares serão melhores quanto mais formos inconformados diante da sociedade atual, quanto mais estivermos mais mal-adaptados a esta sociedade adoecida?
“O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.” – HANNAH ARENDT, “A Condição Humana”
Julgo que Hannah Arendt legou à humanidade uma obra de mérito imenso, tanto para a elucidação de nossos (des)caminhos históricos e de nossas recorrentes atrocidades e tragédias, quanto para reacender o lume de uma sabedoria, hoje em eclipse, baseada numa vida ativa, devotada ao bem público, ao senso crítico, à reflexão aprofundada eao conhecimento bem-fundamentado, sem os quais o convívio humano corre o risco de degringolar em banalização do mal e infindos morticínios.
Arendt é uma luz de lucidez que ilumina os tempos sombrios de que infelizmente seguimos contemporâneos, e no qual o estrondo das bombas e dos exércitos continua a falar mais alto do que a paciência da razão, a benevolência da vontade ou a solidariedade de destino.
A filosofia do século XX teve figuras maravilhosamente lúcidas e cheias de empatia pelos mortais-sofrentes – dentre as quais eu destacaria a obra de Albert Camus, Simone Weil, Vladimir Jankélévitch, Hans Jonas, André Comte-Sponville, dentre outros – que puseram seus poderes mentais e emocionais em ação, em defesa da dignidade humana e em prol de um sentido possível para que escapemos de existir no absurdo. Arendt soma-se a uma longa linhagem de seres humanos particularmente sensíveis a toda dor injusta que se pode cometer, que se pode testemunhar sendo infligida, e que também se pode sofrer como vítima, neste “curto circuito de luz entre duas imensidões de trevas” que é a vida segundo Nabokov.
Da leitura da obra de Arent o leitor emerge fortalecido em sua lucidez e seu senso crítico, mas um tanto melancolizado por enxergar, através dos olhos de Hannah, com o auxílio de seus relatos minuciosos, uma realidade toda corrompida pela banalidade do mal, esta ocorrência tenebrosamente cotidiana da crueldade institucionalizada.
Eis uma obra que traz um diagnóstico crucial dos sistemas totalitários que, em sua ânsia de dominação mundial, produzem descalabros desumanos, de Holocaustos e Inquisições a bombardeios atômicos e genocídios teleguiados. O que impressiona no texto de Hannah Arendt é a coragem com a qual ela ousou encarar o real, com tudo o que há nele de problemático, para compreendê-lo como é de fato, sempre atenta aos antagonismos e às alianças, sem que ela fique virando o rosto, ou fechando os olhos, para evitar a evidência incontornável de sofrimento em toda parte.
Hoje ainda vivemos sob a tirania de “ismos”, com pretensões ao absolutismo, como o neo-liberalismo, que em sua tentativa de aniquilar para sempre a esfera pública vai criando uma devastadora sociedade de indivíduos atomizados, auto-centrados, que só sabem correr atrás de interesses privados, caindo vítimas dum colapso moral que José Saramago tratou de modo emblemático em Ensaio Sobre a Cegueira, depois filmado por Fernando Meirelles.
Hoje, ainda vivenciamos o ataque à pluralidade, o desrespeito à diferença, por poderes que querem impor a norma através da força violenta, punindo drasticamente todos os desviantes… Desse modo, sob tais podres poderes control-freak, a singularidade de cada um é imolada nos altares da padronização, da doutrinação, da “moldagem”, das forças tirânicas do “paradigma absoluto” que devemos acatar – ou padecer com as punições reservadas aos transgressores.
O totalitarismo hoje veste a túnica de um capitalismo desenfreado e transnacional que globalizou sua hegemonia e pretende moldar toda à biosfera à sua imagem e semelhança, como um Rei Midas que deseja metamorfosear tudo o que existe em mercadoria. E que deseja transformar-nos, de cidadãos ativos e co-partícipes de um destino comum coletivo, em meros consumidores-em-competição, zumbizando pelos shoppings para ver se esquecem de seu pavor da morte.
Hannah Arendt, apesar de seu trabalho tão crítico, não fecha totalmente as portas para a utopia, para a possibilidade de um outro mundo possível, onde a novidade de cada recém-nascido não seja mais aniquilada por um sistema que se obstina em fazer com que morramos cópias após termos nascido originais.
Pensar é perigoso. Não pensar é mais perigoso ainda…
Uma inovação notável que Hannah Arendt opera na história das reflexões éticas e políticas consiste em conectar o conformismo às atrozes ocorrências vinculadas aos sistemas totalitários do século XX. Os genocídios e expurgos não foram cometidos por pessoas insubordinadas e rebeldes – muito pelo contrário: os maiores criminosos eram os que estavam bem-integrados ao sistema e realizavam com competência suas funções especializadas.
Julgado pelos judeus em Jerusalém, em 1961, um dos maiores criminosos do século, “arquiteto do Holocausto”, Eichmann só profere clichês de burocrata medíocre em sua gaiola de vidro no tribunal. Ali dentro talvez nem mesmo pudesse sentir o peso dos 6 milhões de pessoas assassinadas que o apontavam com seus dedos, do além-túmulo, um formidável j’accuse coletivo. Arendt percebe o perigo de que Israel confunda justiça com vingança. Arendt sabe que não existe reparação possível para crimes de tal magnitude, de tão ineditismo catastrófico, que nem mesmo estavam previstos nas constituições nacionais (genocídio, limpeza étnica, holocausto...).
Em sua defesa, Eichmann só sabe argumentar coisas deste teor: “foram as ordens que recebi e elas tinham que ser executadas”; muito diferente do monstro satânico e sanguinário, cheio de ódio e racismo, que alguns esperavam encontrar em Eichmann, o que se revela, através do relato de Arendt, é um funcionário competente de uma burocracia estatal, um mero intermediário numa cadeia de comando.
“Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. (…) Terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a ‘obediência cadavérica’, (kadavergehorsam), como ele próprio a chamou”. HANNAH ARENDT, Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. Ed. Companhia das Letras.
Comentando esta que é uma das mais célebres reportagens filosóficas já escritas, Elisabeth Young-Bruehl destaca algumas das peculiares reflexões de Arendt em Eichmann em Jerusalém:
“After listening to Eichmann at his trial and reading the pretrial interviews with him, she concluded that he had no criminal motives but only motives – not criminal in themselves – related to his own advancement in the Nazi hierarchy. (…) He was a man who, conforming to the prevailing norms and his Führer’s will, failed altogether to grasp the meaning of what he was doing. He was not diabolical, he was thoughtless. The word “thoughtlessness” is used by Arendt for a mental condition reflecting remoteness from reality, inability to grasp a reality that stares you in the face – a failure of imagination and judgment. (…) No deep-rooted or radical evil was necessary to make the trains to Auschwitz run on time.” (YOUNG-BRUEL, p. 108)
“Thoughtlessness – the headless recklessness or hopeless confusion or complacent repetition of ‘truths’ which have become trivial and empty – seems to me among the outstanding characteristics of our time.” (ARENDT, The Human Condition, Prologue).
O acabrunhante nisso tudo é que tanta gente tenha se conformado a ser um mero “funcionário” do sistema, quando este sistema estava obviamente demenciado e construía, como se banalidade fosse, os campos de extermínio, as câmaras de gás, as gulags de trabalhos forçados. O mais difícil de entender não é que haja um punhado de psicopatas com muito poder, como Hitler ou Stalin, como George W. Bush ou Netanyahu, como Pinochet e Pol Pot; o mistério maior reside em compreender como é possível que tantas massas sigam tais líderes com devoção e subserviência?
De onde vem o conformismo, que forças psíquicas e sociais o determinam, quais são suas consequências individuais e coletivas? Através do conformismo, o que se pratica senão uma negação da autonomia, uma recusa da responsabilidade, uma capitulação perante o dever de pensar com a própria cabeça? É preciso averiguar mais a fundo porque tanta gente esteja recusando a sábia recomendação de Krishnamurti: “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade profundamente doente.”
A questão não é nova: Spinoza já havia se perguntando, no Teológico-Político, porque as pessoas tinham tamanha tendência à obedecer e se conformar aos decretos das autoridades civis e religiosas, como Deleuze bem apontou:
Monumento a Spinoza em Amsterdam
“As principais interrogações do Tratado Teológico Político são: por que o povo é profundamente irracional? Por que ele se orgulha de sua própria escravidão? Por que os homens lutam por sua escravidão como se fosse sua liberdade? Por que é tão difícil não apenas conquistar mas suportar a liberdade? Por que uma religião que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? É possível fazer da multidão uma coletividade de homens livres, em vez de um ajuntamento de escravos?” – GILLES DELEUZE, Spinoza – Filosofia Prática (Editora Escuta, São Paulo, 2002, Capítulo I & II)
La Boétie, amigo de Montaigne, formulará uma série de reflexões sobre o fenômeno da Servidão Voluntária; mais recentemente, toda uma constelação de clássicos da psicologia social surge para tentar responder a isso: algumas dessas obras são o Psicologia de Massas do Fascismo, de Wilhelm Reich, O Medo À Liberdade, de Erich Fromm, Massa e Poder, de Elias Cannetti, e Obediência à Autoridade, de Stanley Milgram. A contribuição de Hannah Arendt a este debate é de mérito inestimável. Procurarei aqui, sabendo dos limites de meu conhecimento e na posição confessa de aprendiz da obra de Arendt, explorar alguns temas da obra dela que me parecem dignos de serem iluminados por holofotes mais fortes.
O conformismo provêm do medo à solidão? Pertencer a uma massa – ser um “animal de rebanho”, como dizia Nietzsche – é um desejo que nasce de um certo pavor do isolamento social? Há algo que o ser humano sente como insuportável no fato de não pertencer a um grupo? Arendt explora uma força psíquica humana fundamental: nossa condição de seres finitos e mortais, que convivem mal com a ideia de que morrerão e serão esquecidos. A própria existência da esfera pública é explicada por Arendt, em A Condição Humana, como conectada à nossa angústia da mortalidade, conexa ao terror que nos inspira o esquecimento:
“Durante muitas eras antes de nós – mas já não agora – os homens ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em comum com outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas. Assim, a desgraça da escravidão consistia não só no fato de que o indivíduo era privado de sua liberdade, mas também no medo desses mesmos indivíduos ‘de que, por serem obscuros, morreriam sem deixar vestígio algum de terem existido’ (BARROW, Slavery in the Roman Empire). A pólis deveria multiplicar as oportunidades de conquistar ‘fama imortal’, ou seja, multiplicar para cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e palavras sua identidade singular e distinta. Uma das razões, senão a principal, do incrível desenvolvimento do talento e do gênio em Atenas, bem como do rápido e não menos surpreendente declínio da cidade-estado, foi precisamente que, do começo ao fim, o principal objetivo da polis era fazer do extraordinário uma ocorrência comum e cotidiana.
A segunda função da polis (…) era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse realmente lembrado e ‘imortalizado’. Homero não foi somente um brilhante exemplo da função política do poeta e, portanto, o ‘educador de toda a Hélade’; o próprio fato de que um empreendimento grandioso como a Guerra de Tróia pudesse ter sido esquecido sem um poeta que o imortalizasse centenas de anos depois era um lembrete do que poderia ocorrer com a grandeza humana se esta dependesse apenas dos poetas para garantir sua permanência. (…) A polis era uma garantia aos que haviam convertido mares e terras no cenário do seu destemor de que não ficariam sem testemunho e não dependeriam do louvor de Homero nem de outro artista da palavra; sem a ajuda de terceiros, os que agiam podiam estabelecer juntos a memória eterna de suas ações, boas ou más, e de inspirar a admiração dos contemporâneos e da posteridade.” (ARENDT, A Condição Humana, p. 191, 210)
Este é um elemento essencial do diagnóstico psicológico que Arendt procura fornecer desta figura do conformista. Ele é umindivíduo que tem horror ao isolamento social, e deseja se integrar a um movimento coletivo, pois sente o peso de seu anonimato. Movimentos de massa com líderes totalitários fornecem uma oportunidade, aos anônimos e invisíveis, uma espécie de porta-de-acesso à História. Nos relatos históricos, os zé-ninguéns, a ralé, muitas vezes nem são mencionados.
Os excluídos da história, porém, são, tanto quanto qualquer um, mortais sedentos de uma fama que empreste às suas vidas o essencial fulgor do sentido. É uma farsa aristocrática pretender que há uma classe de homens especiais e heróicos, como Aquiles ou Hércules ou Enéias ou outro herói épico semelhante, que são movidos pela ânsia de realizarem feitos tremendos que ecoem na posteridade, enquanto as classes mais baixas estariam perfeitamente contentes com destinos apagados, invisíveis, fadados ao oblívio.
Parece-me muito significativo que Arendt destaque que a “desgraça da escravidão” consistia, em adição a todos os tormentos físicos, numa constelação de torturas psíquicas, entre elas a angústia diante da perspectiva de que morreriam sem deixar vestígios. Aqueles a quem é recusado o poder, a quem não se permite que participem da esfera pública, acabam opondo resistência à sua atomização, à sua expulsão da pólis. Acredito que a noção de negação da morte, explorada brilhantemente por Ernest Becker, possa iluminar também as concepções adendtianas sobre as motivações psíquicas por trás de fenômenos como a adesão das massas aos movimentos totalitários como o III Reich alemão ou o Stalinismo russo.
O “submundo” daqueles que haviam sido “excluídos da História”, todo aquele numeroso contingente populacional que não recebe nomes nos livros de História, teriam agido motivados por um desejo de participar de algo grandioso e histórico, mesmo que o preço a pagar fosse imensa destruição. “Aqueles que haviam sido excluídos injustamente da civilização, no passado, agora penetravam nela à força”, escreve Arendt em Origens do Totalitarismo. “Estavam convencidos de que a historiografia tradicional era, de qualquer forma, uma fraude, pois havia excluído da memória da humanidade os subprivilegiados e os oprimidos.” (p. 465)
As massas que aderiram às ideologias totalitárias, segundo Arendt, sofriam com a condição de desenraizamento e atomização que Karl Marx ou Simone Weil já haviam diagnosticado nas classes trabalhadoras européias. Uma aflitiva sensação de superfluidade – a pessoa que trabalha numa fábrica e pensa: “se eu morrer, eles põe outro operário em meu lugar” – torna-se uma incômoda força psíquica que motiva a adesão ao discurso daqueles líderes que prometem um destino glorioso àqueles que participarem do movimento. A megalomania de Hitler era muito notória: ele se referia ao Reich como algo que deveria durar 1.000 anos (acabou durando apenas 12). Seus slogans seduziam as massas prometendo que, longe de supérfluas e fadadas ao esquecimento, elas podiam entrar para a História, desde que participassem da luta contra a conspiração mundial dos judeus, este fantasma inteiramente fictício, mas com espantosos efeitos efetivos. A ficção é um poder histórico. A mentira também move o mundo.
A lealdade burra e acrítica conduz a catástrofes, aponta Hannah Arendt, que soube bem destacar o quão demencial foi o quadro social de massas enfeitiçadas por um führer, fazendo-se de títeres nas mãos de um partido racista e genocida, disposto a praticar a limpeza étnica com um horrendo cientificismo nos lábios, como se fossem os cumes da genética e os purificadores da raça contra os “vírus” contaminantes (de judeus a ciganos, de doentes mentais a metidos-a-revolucionários…). No prefácio à terceira seção de As Origens do Totalitarismo, ela chama aquela estrutura grotesca de culto à personalidade, que alçou figuras como Hitler ou Stalin para uma posição autenticamente messiânica, de “Fürher-principle”, ou seja, o Princípio-Führer.
Do mesmo modo que Theodor Adorno definiu como uma das mais essenciais tarefas da educação evitar que Auschwitz se repita, Hannah Arendt parece conceder à filosofia uma monumental missão histórica, a de confrontar todas as submissões cegas e subserviências sórdidas aos Führers por aí com a força ativa e crítica de nosso pensamento, de nossa sensibilidade, alertas e lúcidas faculdades que compreendem as causas para a banalidade do mal – para que possam melhor confrontá-las, re-instaurando um mundo comum onde a esfera pública, a dimensão participativa, não é negada aos “excluídos da história”.
Sobre o conceito de EXCLUÍDOS DA HISTÓRIA, como aqui o compreendo, ele tem a ver com aqueles bilhões cujos nomes e feitos não foram julgados dignos de registro. Nenhum historiador ou cronista social, nenhum viajante que escrevia memórias, nenhum biógrafo ou jornalista, achou que merecessem ter sua vida narrada. Hannah Arendt chega inclusive a explicar o fascínio duradouro exercido pelo marxismo pelo esforço que teria movido Karl Marx e Friedrich Engels a introduzir na História, como agentes essenciais dela, as forças produtoras, laboriosas, trabalhadoras, que são a energia viva que anima a produção material humana: “A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em termos de luta de classes fascinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção de sua tese, dada a intenção original de encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam sido excluídos da história.” (O.T., p. 465)
2. OBEDIÊNCIA À AUTORIDADE: O EXPERIMENTO DE STANLEY MILGRAM
O link entre a obra de Hannah Arendt e a de Stanley Milgram é este último mesmo que fornece, em seu livro Obediência à Autoridade, em que comenta os experimentos de psicologia social que realizou checando até que ponto indivíduos “normais” são capazes de dar choques elétricos de voltagem crescente em “cobaias” humanas de um laboratório científico. Milgram escreve:
“Foi demonstrado de modo convincente que, de 1933 a 1945, milhões de pessoas inocentes foram sistematicamente mortas por pessoas que cumpriam ordens. Câmaras de gás foram construídas, campos de extermínio eram vigiados, cotas diárias de cadáveres eram cumpridas com a mesma eficiência que se tem na fabricação de mercadorias. Essa política desumana pode ter se originado na mente de uma só pessoa, mas só poderia ter sido executada em larga escala se um grande número de pessoas obedecesse às ordens.
A pessoa que, por convicção, odeia roubar e matar pode ver-se executando algum desses atos com relativa facilidade ao cumprir as ordens de uma autoridade. O comportamento que é inimaginável numa pessoa que esteja agindo por conta própria pode ser executado sem hesitação quando feito sob ordens. O dilema inerente na obediência à autoridade é antigo, tão velho quanto a história de Abraão.” – STANLEY MILGRAM
O experimento de Milgram consistia em checar quão longe as pessoas estavam dispostas a obedecer ordens. A “cobaia”, recrutada por anúncios de jornal que ofereciam 4 dólares (e uma passagem de ônibus), era colocada diante de uma máquina de aplicar choques, de 15 volts a 450 volts. Os pesquisadores de Yale explicavam que estavam realizando um estudo sobre a memória e o processo de aprendizagem: queriam checar, na prática, se o aluno de fato memoriza melhor os conteúdos se for utilizada com ele uma pedagogia-da-palmatória, como aquela utilizada pelo professor de matemática que espanca seus pupilos a cada vez que erram a tabuada. Na verdade, a cobaia do experimento não era a pessoa sentada à “cadeira elétrica” – na verdade, um ator, que trabalhava na equipe de Milgram – mas sim aquele que foi designado na função de “professor” e a quem foi ordenado que aumentasse em 15 volts a punição contra o aluno, a cada equívoco cometido.
Milgram comparou prognósticos de pessoas entrevistadas fora do laboratório – apenas 1 entre 1.000 pessoas, havia sido previsto, iriam dar o choque máximo no “aluno” – com as suas observações empíricas da conduta humana durante seus experimentos. A conclusão foi chocante e estarrecedora: cerca de 65% das pessoas, diante do dilema ético em que se viam, davam mais peso à obediência do que à compaixão; preferiam prosseguir o experimento, sob comando, do que permitir que sua empatia pelo sofrimento alheio levasse a abandonar o experimento. A imensa maioria dos pesquisados por Milgram pareciam ter uma tendência fortíssima, mais poderosa que o senso moral, de obediência à autoridade, que muitas vezes prosseguia ainda que a “vítima”, no quarto ao lado, berrasse, gemesse, esperneasse, pedisse pra parar; a maioria não parava, nem se a “vítima” dissesse que estava com dor no coração ou silenciasse como um morto. (A vida e obra de Milgram virou o excelente filme The Experimenter, de Michael Almereyda, já disponível para assistir com legendas em português).
Aqueles que aplicavam os choques elétricos no aluno a cada erro de memorização estavam num contexto que os des-responsabilizava e podiam sempre desculpar-se dizendo que apenas obedeciam ordens; os verdadeiros responsáveis eram os criadores do experimento e aqueles funcionários de jaleco na universidade de Yale. A dificuldade, tão comum, que temos de assumir a responsa indica que o senso moral é muitas vezes experimentado como um incômodo, talvez até mesmo como um obstáculo para a felicidade: seria mais fácil e cômodo não ter escrúpulos.
Muitas vezes julgamos desagradável aquele “inquilino íntimo” de que fala a Mafalda, na tirinha do Quinho acima, e que fica apontando um dedo acusador e culpabilizante quando fazemos, pensamos ou desejamos algo de errado, de injusto, de canalha, de egocêntrico. A moral obriga e exige, feito um patrão mandão. Preferiríamos, espontaneamente, estar mais à vontade, at ease, sem tantos freios e tabus limitando nossos movimentos e desejos.
Os pensadores da ética têm fama – no caso de Kant, muito merecida! – de serem rigorosos pregadores do dever moral, o que soa de fato como uma tarefa árdua, difícil, que dá preguiça. Diante do texto da Crítica da Razão Prática, muitos aspirantes à virtude e à sabedoria podem acabar por desistir da busca por uma vida ética por julgarem que ela demanda um exercício do pensamento demasiado intenso e alerta, que em nossa languidez apática às vezes preferimos recusar.
Porém, a recusa da responsabilidade (“estou apenas seguindo ordens”), a preguiça de pensar (“deixarei meu líder pensar por mim”), o colapso da capacidade de reflexão ética (“bem e mal é aquilo que o Führer diz que é”), tudo isso conduz à catástrofe. Numa espécie de diálogo com Arendt, Stanley Milgram escreve:
“Eichmann ficava abatido ao visitar os campos de concentração, mas para participar de assassinatos em massa precisava apenas sentar-se em seu gabinete e mexer em seus papéis. Por sua vez, o homem do campo que acionava as câmaras de gás podia justificar a sua conduta dizendo que estava apenas cumprindo ordens superiores. A pessoa que assume total responsabilidade pelo ato evaporou-se. Talvez seja esta a mais comum característica do mal, socialmente organizado, da sociedade moderna.“ STANLEY MILGRAM, Obediência à Autoridade, p. 28.
Arendt, longe de encarar Eichmann como a encarnação de Satanás, tenta percebê-los como sintoma de um sistema – e um sistema que infelizmente produz muita gente como ele: um burocrata medíocre, não muito inteligente, muito respeitador das hierarquias, e que sentia satisfação profissional caso desempenhasse bens suas funções, mesmo que estas funções fossem coisas como fazer com que os trens para Auschwitz saíssem na hora ou garantir a entrega de X judeus a serem exterminados no mês corrente do cronograma administrativo. Ele não parece sentir-se responsável, nem dá amostras de remorso ou arrependimento, pois diz que era apenas um cúmplice obediente do mega-sistema, a mere cog in the machine.
Eichmann não pode ser julgado como um indivíduo isolado, e não temos o consolo de considerá-lo uma monstruosidade excepcional: o conceito de “banalidade do mal”, como Márcia Tiburi enxergou bem, significa que qualquer um de nós pode tornar-se “veículo” ou “oficial” do mal, que ninguém é santo, que a possibilidade da crueldade, do trato desumano com o outro, está entre os potenciais de cada um. Para alistar-se no fascismo, banalizador do mal, o que basta é seguir com lealdade acrítica os ditames dos superiores hierárquicos, rejeitar a autonomia de pensamento e pôr-se de joelhos diante da força que não perde tempo refletindo sobre ética.
“Foi em torno do nazista chamado Eichmann que a expressão ‘vazio de pensamento’ surgiu para caracterizar o nosso tempo. (…) Adolf Eichmann era um funcionário do governo, do alto escalão do partido de Hitler e, como viemos a perceber por seu próprio testemunho, um de seus funcionários mais dedicados e competentes, daqueles que cumpriam seu papel, daqueles que vestiam a camisa da empresa nazista… No fim da guerra, com a derrota da Alemanha, ele fugiu para a América do Sul, sendo capturado na Argentina em 1961. Julgado em Jerusalém, Eichmann tornou-se uma espécie de troféu da justiça contra o que muitos chamaram de holocausto e que, na verdade, diz mais propriamente respeito a um radical assassinato em massa. O termo ‘genocídio’, cunhado por Raphael Lemkin, expressa muito melhor a destruição de um povo (genos) com o fito de estabelecer ‘o padrão nacional do opressor’ no lugar do ‘padrão nacional do oprimido’. Arendt, no entanto, preferirá a expressão ‘assassinato administrativo’ para caracterizar o crime nazista… Eichmann era o representante do poder encarnado no tipo comum, na pessoa ordinária. (…) Não se via nele o louco, o sujeito maligno e cruel que se esperava que fosse. Antes, ele impressionava por uma frieza monótona e uma racionalidade despreocupada…
[Eichmann] era uma espécie de carrasco de gabinete, um carrasco racional que não se envolvia com a sanguinolência do crime na prática do cotidiano. Até porque, como ele sabia, o que ele fazia, do ponto de vista da lei do Estado naquele momento, não era crime. Crime contra a humanidade, sim, mas não crime juridicamente punível pelo Estado, já que era um crime em nome do Estado. Eichmann nunca dera um tiro em uma pessoa. Ele calculava a morte de todos, é verdade, para que acontecesse do modo mais racional e econômico possível… Para ele, aquele era apenas o trabalho a fazer, a tarefa assumida e por cumprir… Foi justamente a postura de Eichmann que permitiu a Arendt cunhar a ideia tão curiosa e, ao mesmo tempo, tão crítica relatava à banalidade do mal… A desumanidade de Eichmann era, infelizmente, humaníssima. Eichmann não era extraordinário. Era ordinário, era como quase todos somos, sempre afeitos a seguir a tendência dominante. O problema da subjetividade de Eichmann, que defendia seu emprego e posição dentro da empresa nazista, colocava em cena um tipo de subjetividade muito comum. Aquela de qualquer cidadão que, em seu contexto específico, também defende seu emprego, seu cargo, as necessidades da firma…
Todos os regimes políticos e econômicos que de modo sutil calculam sobre a vida das pessoas, sobretudo as mais excluídas, como em geral os regimes devotos do capitalismo que praticamente programam a morte dos mais fracos, são em medidas diversas comparáveis ao nazismo. (…) O que Arendt percebeu foi aquilo que Adorno e Horkheimer, outros teóricos judeus exilados nos EUA na década de 40, chamaram de ‘racionalidade instrumental’. A ‘racionalidade instrumental’ é servil, ela caracteriza um modo de pensar e agir que Eichmann partilhava com vários cidadãos do mundo que, como ele, queriam apenas ser promovidos dentro de um plano de carreira. O que ele queria era o que queria a grande maioria. E ainda hoje. Curioso, portanto, e estarrecedor, no argumento de Arendt, é que Eichmann fosse tão parecido com as pessoas comuns, que lembrasse os homens mais corretos, os simples cidadãos de bem…” (MÁRCIA TIBURI,Filosofia Prática, ed. Record, p. 35 a 39)
Contra a banalização deste servilismo estúpido do “cidadão de bem”, pronto a seguir os ditames de genocidas sanguinários se isso lhe permite “subir” na carreira, é preciso que estejamos sempre alertas quanto ao perigo de fascismo que há em abdicarmos de nossa autonomia e de recusarmos o peso da responsabilidade. Ao fim do filme The Experimenter, de Michael Almereyda, o Stanley Milgram (interpretado por Peter Saarsgard) revela sua convicção da necessidade de desenvolvermos uma virtude que ele chama awareness. Temos que ser conscientes e alertas, lúcidos e vigilantes, críticos e autônomos, se não quisermos soçobrar à obediência vil à autoridades pérfidas. Pois o que se trata de evitar são também os Hitlers e os Stalins do futuro… Pois o que garante que o totalitarismo ficou no museu do passado?
Heidegger, em uma cena do filme de M. Von Trotta, diz à sua pupila Hannah que “pensar é um ato solitário”; Hannah talvez preferisse dizer que pensar é um ato de autonomia, não de subserviência, e isto cada um tem que fazer por si, por suas próprias forças, ainda que a ação efetiva só possa se dar no coletivo, na mobilização-com-outros, in concert.
3. BANALIDADE DO MAL ou A MULTITUDE DOS QUE SE PRESTAM A SEREM INSTRUMENTOS DA MÁQUINA DE CARNIFICINA
O fato de que Arendt, em sua radiografia das Origens do Totalitarismo, foca sua atenção em regimes totalitários específicos, como o III Reich nazista ou a URSS da Era Stalinista, isto de modo algum significa que a “banalidade do mal” seja específica de uma nação, e que haveriam, por exemplo, aquelas pátrias imunes a este tipo de fenômeno. O experimento de Stanley Milgram é decisivo para mostrar que não se trata de um problema (somente) europeu: nos EUA, mesmo na comunidade aparentemente tão sã de New Haven, no cenário social que rodeia a Universidade de Yale, encontramos com relativa facilidade muitos Eichmanns. Ou seja: há uma multidão daqueles que se prestam a agirem como instrumentos de uma máquina de carnificina, criada e gerida por outros, aos quais obedecem com servil conformismo e cega lealdade.
Paul Tibbets acenando da janela do cockpit do Enola Gay, em 6 de agosto de 1945, antes de partir para Hiroshima.
Que a “banalidade do mal” é também um problema histórico dos EUA pode ser escancarado pelo exemplo do piloto de avião Paul Tibbets, que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945. “Tibbets escolheu pessoalmente um quadrimotor B-29 que foi denominado Enola Gay, em homenagem à mãe dele. (…) Até o fim de sua vida, Tibbets acreditou ter feito o necessário para acabar com a guerra e não demonstrou arrependimento pela bomba por ele lançada ser responsável pela morte de mais de 119 mil pessoas, no primeiro ataque nuclear contra seres humanos na história.” (Wikipedia)
Como é possível que Tibbets, mesmo sendo uma força tão determinante no assassinato súbito de 120.000 seres humanos, possa viver até os 92 anos de idade? A pergunta que não quer calar é: como esse sujeito conseguia dormir à noite? Como pôde não ser completamente assolado por culpa, remorso, arrependimento, horror e auto-derrisão diante da atrocidade desumana que foi o cogumelo atômico de Hiroshima? Ele de fato pôde se livrar do peso íntimo do ato e conviver bem consigo mesmo? Uma informação talvez aclare estes mistérios: Tibbets não se sentiu tão responsável assim pelo crime pois, afinal de contas, estava apenas “seguindo ordens vindas de cima”, ou seja, o real responsável era Harry Truman.
“O presidente Harry Truman, que ordenou o ataque, teria dito à tripulação, depois do retorno aos Estados Unidos: “Não percam o sono por terem cumprido essa missão; a decisão foi minha, vocês não podiam escolher”. – WIKIPEDIA
O homem responsável por ordenar o bombardeio nuclear do Japão, em Agosto de 1945: Harry S. Truman (1884 – 1972).
Truman assumiu toda a responsa, vêem? Exatamente o que o führer fazia na Alemanha: qualquer soldado da SS podia cometer a atrocidade que fosse, a responsabilidade era sempre, todinha, de Hitler. Hannah Arendt revela isso com recorrentes exemplos em As Origens do Totalitarismo: o princípio de des-responsabilização, envolvido no fenômeno das massas leais a um líder que assume toda a responsabilidade, está diretamente conectado com horrores tremendos, e de certo modo análogos, como a “Solução Final” dos nazistas e o bombardeio nuclear ordenado por Washington.
Podemos nos perguntar, é claro, como é que Hitler, Stalin ou Truman conseguiam dormir à noite, tendo assumido responsabilidade pelos crimes coletivos cometidos pelas massas por eles enfeitiçados, em especial pela classe militar e policial, historicamente constituída de indivíduos com senso moral embrutecido, capazes de lealdades e cumplicidades às autoridades mais sórdidas e aos ditames mais nefastos. O militarismo é um câncer da humanidade e a banalidade do mal, como Hannah Arendt revela, é também uma patologia diretamente conectada com o “mundo militar”.
Talvez a “formação militar” seja a deformação mais sórdida que se possa impor aos seres humanos em um processo pedagógico; no mundo, a militarização da educação prossegue nossa contemporânea. Escrevo de Goiás, sob o Tucanato, indignado com o fato de que à dúzias de escolas públicas do Estado está sendo imposta uma bárbara educação militarizada, que só (des)educa para a truculência e a disciplina acéfala, sem nem suspeitar que planta somente a semente de novos fascismos (como criticado por Vladimir Safatle e Guilherme Boulos em artigos para a Folha de S. Paulo). Como se a geração mais jovem tivesse que ser recrutada pelos fascistas da velha-guarda, para integrar a nova edição dum horror feito a Juventude Hitlerista…
Não temos, portanto, o consolo de pensar que os males diagnosticamos por Hannah Arendt ficaram no passado. A banalidade do mal está entre nós – e não sou otimista o bastante para prognosticar que a banalidade do mal possa ausentar-se totalmente do nosso futuro próximo. Valéry: “A desumanidade terá um longo futuro…” Talvez um futuro tão longo quanto o nosso, o futuro (talvez mais curto do que pensamos) da humanidade?
Ela, a banalidade do mal, está lá nas torturas perpetradas nos presídios Yankees, por exemplo em Abu Ghraib ou Guantanamo Bay. Ó ela lá, banal malevolência cotidianizada, na conduta daqueles soldados sorridentes, com pose de Rambos, portando star spangled banners, que tiram selfies diante dos corpos humilhados e subjugados dos milhares de detidos na “Guerra Contra o Terror…
Em um impressionante documentário, Errol Morris demonstrou a falsidade da desculpa de muitas autoridades de Washington D.C. diante do escândalo que foi a revelação das torturas infligidas a cidadãos que muitas vezes não tem nem a mais remota participação ou colaboração com organizações jihadistas. Tentaram dizer que os responsáveis pela torturação eram just a few bad apples”, ou seja, “apenas algumas maçãs podres”. Era lorota. Se havia algo de podre, não eram apenas algumas maçãs, mas a própria macieira do supremacismo imperialista Yankee.
No filme de Morris, Procedimento Operacional Padrão (Standard Operating Procedure, 2008),um dos grandes mestres do cinema vérité norte-americano revelou de modo enfático, contra a farsa edulcorada das autoridades federais, que a tortura que os EUA pratica contra aqueles que encarcerou, após sua invasão militar do Afeganistão e do Iraque, é disseminada, banalizada, widespread. Uma face atual da banalidade do mal.
Ela está lá, também, nos check-points militarizados, institucionalização do apartheid-na-Terra Santa: o que é Israel, hoje, além do mais explícito exemplo vivo do que significa um sistema social de segregação? A incapacidade de convivência mútua está escancarada nas muralhas e cercas elétricas destinadas a manter judeus e muçulmanos apartados, separados, hostis. Os periódicos bombardeios hi-tech, com os quais o sionismo israelita aniquila a população civil da Palestina, e sem sinais de misericórdia pelos bebês, pelas crianças, pelos doentes nos hospitais, manifestam a acabrunhante possibilidade, que Arendt já havia frisado, de que mesmo aqueles que foram vítimas de atrocidades (como os judeus diante da “solução final” promulgada pelo III Reich alemão) não estão de modo algum a salvo de cometê-las.
Quando Arendt esteve em Israel para o julgamento de Eichmann – condenado à morte, como os outros dirigentes nazistas, que já haviam tido penas capitais decretadas pelo tribunal de Nuremberg – o “problema palestino” não é de modo algum um tema forte ou central da reportagem – e é de se supor que a revista New Yorker tenha orientado Arendt a fim de centrar o foco no acerto-de-contas dos judeus com o seu passado, de modo que ela quase não trata do desacerto do presente, que opunha então (e continua a opor hoje) a paz na região. A legitimidade da fundação do Estado de Israel, logo após a 2ª Guerra Mundial, é algo que não parece “entrar em questão”.
Para Arendt, Eichmann é um homenzinho de “chocante mediocridade”, o que significa que ele está na média, que ele não é exatamente uma anomalia, que não há escassez de Eichmanns neste mundo. Talvez esta seja uma das mais chocantes das concepções de Arendt, e talvez seja um dos fatores mais fortes para explicar a controvérsia tremenda que se seguiu à publicação do livro: Arendt está afirmando que qualquer um de nós tem o potencial de tornar-se um “agente do mal”. E às vezes o que basta para isto é seguirmos as ordens de nossos superiores hierárquicos de modo acrítico e cegamente obediente.
No filme de Margaret Von Trotta, vemos um comitê de 3 professores universitários aconselhando que ela peça demissão de seu posto de professora na universidade, já que as idéias veiculadas por Eichmann em Jerusalém tinham “pegado mal” (ousar questionar a posição dos judeus como pobres vítimas inocentes, pias e puras vítimas da satânica máquina de carnificina germânica, e ousar sugerir que muitos líderes judeus colaboraram com carrascos anti-semitas e burocratas genocidas, que imperdoável sortilégio!). Hannah Arendt não acaba a sugestão de demitir-se: na sequência, em uma das melhores cenas da película, vemos Hannah engajada na tarefa de explicar de modo lúcido os seus intentos, dissipando as “reações histéricas a seu relatório”.
A banalidade do mal está entre nós, tão banal que para alguns certos males são “naturais” e eles devemos nos resignar. Ela está lá, quando o soldado fardado espanca estudantes e professores que estão se manifestando em prol da saúde pública, da educação de qualidade e gratuita, dos direitos civis e da participação democrática direta. Está lá quando o aviador despeja bombas sobre um território que sobrevoa lá de cima, incapaz de enxergar as pessoas que irá carbonizar ou as vidas que irá dilacerar com seu napalm. Está lá no cara que controla os drones que, sob pretexto de combater o fanatismo islâmico, causam crianças mortas e Neo-Guernicas devastadas como “efeitos colaterais” de um mau cálculo de precisão do míssil.
É possível dizer também que a banalidade do mal se manifesta nas missões suicidas de soldados-de-Deus em jihad. Nas cartas de despedida que deixam para trás, antes de embarcarem em suas missões-kamizake, muitas vezes essas pessoas declaram-se nada além de “instrumentos de um poder maior” (ó lá o Alá, aplaudindo-o do Céu, prometendo um paraíso de bem-aventuranças, aos mártires da guerra santa…).
O conceito de “banalidade do mal” prossegue sendo hoje um dos mais preciosos dos dispositivos que temos para a análise e decifração do mundo contemporâneo. Arendt forjou a noção de “banalidade do mal” num contexto específico – o julgamento de Eichmann em Jerusalém – mas cada vez mais torna-se cristalino o fato de que os nazistas estão longe de terem sido os únicos exemplares de um sistema totalitário que transforma seres humanos em meros instrumento de uma máquina de carnificina.
A coragem de pensar criticamente, a responsabilidade de entender a realidade, a incontornável necessidade de exercitar o julgamento e a responsabilidade, são todas virtudes que Arendt não só prega: ela pratica. O seu exercício constante da autonomia, da reflexão atenta, parece-me também revelar um salutar grau de independência de espírito e de rebeldia contra o autoritarismo. Por isso creio – e é o que quero explorar num próximo texto – que Arendt também pode auxiliar a pensar os temas da desobediência civil, tal como explorados por figuras como Henry David Thoreau, Martin Luther King Jr., Peter Singer, Howard Zinn. Este último, por exemplo, de palavras de teor e sabor bastante Arendtianos e Milgramianos:
Our problem is civil obedience. Our problem is the numbers of people all over the world who have obeyed the dictates of the leaders of their government and have gone to war, and millions have been killed because of this obedience. And our problem is that scene in All Quiet on the Western Front where the schoolboys march off dutifully in a line to war. Our problem is that people are obedient all over the world, in the face of poverty and starvation and stupidity, and war and cruelty. Our problem is that people are obedient while the jails are full of petty thieves, and all the while the grand thieves are running the country. That’s our problem. We recognize this for Nazi Germany. We know that the problem there was obedience, that the people obeyed Hitler. People obeyed; that was wrong. They should have challenged, and they should have resisted; and if we were only there, we would have showed them. Even in Stalin’s Russia we can understand that; people are obedient, all these herdlike people…
A banalidade do mal atravessa a história, talvez se possa dizer até que constitui a face do inimigo para todos os movimentos coletivos engajados na construção daquele mítico “mundo melhor”. É um mega obstáculo no caminho daqueles que trilham as estradas utópicas. Diante da banalidade do mal, ficamos tentados a afirmar que a maldade nunca foi excepcional, que a crueldade é cotidiana desde tempos imemoriais, e que no entanto isso é um acinte ético, uma razão para profunda indignação íntima e insurreição coletiva. Este é o reinado de uma malvadez hegemônica que não permite o desmonte, o desmanche, a revolução e a refundação da atual maquinaria-de-carnificina.
Só se vence esse monstrão com a superação de nossas cataratas psíquicas que fazem com que entre em eclipse e fique invisível o mundo comum. Falta a superação da cegueira Saramaguiana, que nos impede de ver a solidariedade de condição que nos irmana, enquanto nos apegamos aos muros artificiais e fratricídios de imposição piramidal, alistando-nos nos exércitos de ideologias racistas, sectárias, segregacionistas. Nascemos para começar o novo, para expressar nossa singularidade, para agir in concert num mundo comum, espaço trans-geracional e trans-individual que, para cada indivíduo, é aquele que ele adentra quando nasce e abandona quando morre, que subsiste à chegada e à partidas dos viventes efêmeros, sendo o único plausível palco de nosso drama de finitude, ânsia de sentido, angústia de mortalidade, sede de vida, aptidão para ação e sabedoria.
“Mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós.
Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. Durante muitas eras antes de nós – mas já não agora – os homens ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em comum com outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas.
Entregues a si mesmos, os negócios humanos só podem seguir a lei da mortalidade, que é a única lei segura de uma vida limitada entre o nascimento e a morte. O que interfere com essa lei é a faculdade de agir, uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana que, por sua vez, interrompe e interfere com o ciclo do processo da vida biológica. Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.”
HANNAH ARENDT, A Condição Humana
por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Fevereiro de 2015
A BANALIZAÇÃO DO MAL E A ESPERANÇA EM TEMPOS DE RENOVAÇÃO
Podemos concordar com relativa facilidade que a banalização do mal têm conexão com a forte tendência psíquica que leva a maior parte dos indivíduos no rumo da obediência à autoridade, exposta pelos experimentos de Stanley Milgram. O respeito servil pelos ditames do führer por parte de milhares de alemães, funcionários obedientes dos morticínios ordenados pelo Partido Nazi, é culpável sim – teria sido muito melhor a desobediência civil generalizada,erodindo a legitimidade e a eficácia dos comandos provindos do topo da pirâmide autoritária do III Reich. A obediência massificada ao führer constituiu parte importante da tragédia. Mas ainda resta por compreender melhor como se cria um povo-pária, uma parcela da humanidade que é tratada como escória do mundo (título do excelente estudo de Eleni Varikas), um processo em que coletivos perdem seu direito à cidadania, não tendo mais o direito a ter direitos.
Porém, basta pregar a desobediência a toda e qualquer autoridade como antídoto à banalidade do mal? Isso seria uma espécie de ingenuidade adolescente conectada a uma compreensão apressada do significado do anarquismo. Seria sábio não emprestar ouvidos e obediência a um médico que nos receita um tratamento para nossa doença, com o pretexto de que ele é uma figura de autoridade respaldada por seu diploma de universidade gabaritada, e que sobre isso o anarquista não deve fazer nada a não ser cuspir? Seria louvável recusar atenção a todo e qualquer professor, investido com a autoridade de um cargo numa instituição como uma Universidade ou Instituto Federal, com o argumento de que é preciso recusar toda autoridade estatal?
Uma noção rasa do anarquismo como “contra todo tipo de Estado e estatismo” pode acabar fazendo o jogo do capitalismo neoliberal mais selvagem – aquilo que mereceria ser chamado de anarcocapitalismo. Acho seguro dizer que para Arendt este tipo de anarquismo não é panacéia nenhuma – pois não basta que eu, enquanto indivíduo ou membro de um pequeno coletivo, negue o poder, recuse a arkhê, já que isso não será nunca suficiente para evitar as cataratas do mal de despencarem sobre a cabeça dos esmagados pelo poder e sua violência institucionalizada. É evidente que parte do antídoto contra a banalidade do mal está na desobediência civil – ilustrados nas atitudes de um Thoreau, Gandhi, Luther King, Rosa Parks, Sophie Scholl, dentre tantos outros – mas não podemos cair na ingenuidade de achar que o “não obedeço a nada nem ninguém” possa servir como certificado de pureza moral. Celso Lafer ensina:
“Hannah Arendt entende que, em situações-limite – uma categoria de inspiração Jasperiana, importante na sua reflexão -, a desobediência civil é legítima e pode ser bem-sucedida na resistência à opressão. Este foi o caso, por ela comentado em Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal, da resistência dos dinamarqueses, através da desobediência civil, à política antissemita do invasor nazista. Este também foi o caso da luta contra a segregação racial e da resistência à guerra do Vietnã… De fato, nesses casos a desobediência civil, sendo a expressão de um empenho político coletivo na resistência à opressão, não se constitui como rejeição da obrigação política, mas sim como a sua reafirmação.” (LAFER, In: A Reconstrução dos Direitos Humanos – Um diálogo com Arendt, Cia das Letras, p. 39)
Não se trata de recusar o poder, mas de criar um contra-poder; não se trata de dizer não a toda autoridade, mas buscar superar as formas autoritárias, tirânicas, despóticas e plutocráticas de autoridade abusiva; não se trata de pular fora da comunidade política, mas entrar mais fundo nela através do aprofundamento da participação cidadã de todos na determinação das escolhas coletivas. O antídoto para a banalidade do mal está numa educação crítica que forme indivíduos autônomos e cidadãos colaborativos, excelentemente delineada por Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido. É imprescindível que a reflexão seja fomentada, pois quando ela dorme ou atrofia, pululam os monstros. E os monstros, ao contrário do que se pensa no senso comum, pulam de dentro das pessoas mais normais…
O que marca a persona de um Eichmann, segundo Arendt, é sua irreflexão, sua burrice, sua inteligência débil, sua capacidade atrofiada para o juízo ético – no que ele é de uma atordoante normalidade:
“Meia dúzia de psiquiatras o classificou como normal. ‘Mais normal, de qualquer modo, do que fiquei depois de examiná-lo’, teria exclamado um deles, enquanto outro descobrira que seu perfil psicológico geral, sua atitude em relação à mulher, aos filhos, ao pai e à mãe, irmãos, irmãs e amigos era ‘não somente normal, porém a mais desejável… O problema de Eichmann era precisamente o fato de muitos serem como ele, e de esses muitos não serem pervertidos nem sádicos, mas gente que era, e ainda é, terrível e assustadoramente normal. Do ponto de vista de nossas instituições jurídicas e nossos padrões morais de avaliação, essa normalidade era muito mais aterrorizante que todas as atrocidades em conjunto.” (ARENDT, Eichmann em Jerusalém)
A irreflexão é a regra, a vita ativa filosófica é a exceção. Um gênio é algo de anormal – não nascem cinco ou seis Shakespeares ou Einsteins por dia! – mas idiotas e cretinos são entidades que encontramos às mancheias neste mundo. Talvez Arendt não esteja muito longe da noção de uma democratização da filosofia como autêntico antídoto contra o totalitarismo e a repetição de seus horrores. Zygmunt Bauman, no artigo “Uma História Natural do Mal” de Danos Colaterais, destaca elementos do veredicto arendtiano sobre a banalidade do mal, frisando que
“monstruosidades não precisam de monstros, atrocidades não precisam de personagens atrozes, e o problema de Eichmann estava no fato de que, segundo as avaliações dos luminares supremos da psicologia e da psiquiatria, ele (juntamente com tantos de seus companheiros de crimes) não era um monstro nem um sádico, mas escandalosa, terrível, assustadoramente “normal”. Adolf Eichmann, que controlava as ferramentas e os procedimentos da “solução final” para o “problema judaico” e dava ordens a seus operadores, e ficara do lado dos perdedores, foi capturado pelos vitoriosos e levado a tribunal. Houve então a oportunidade de submeter a “hipótese do monstro” a um exame cuidadoso e detalhado, feito pelos mais distintos profissionais da psicologia e da psiquiatria. (…) Deve ter sido a mais assustadora das descobertas: se não são bichos-papões, mas pessoas normais (fico tentado a acrescentar: “caras como você e eu”), que cometem atrocidades e são capazes de agir como sádicos e pervertidos, então todos os filtros que inventamos e pusemos para funcionar com a finalidade de separar os portadores de desumanidade do restante da espécie humana são mal-operados ou malconcebidos desde o início – e com toda a certeza ineficazes. E assim estamos, resumindo uma longa história, desprotegidos (fica-se tentado a dizer: “sem defesas contra nossa capacidade mórbida comum”). (…) Se Eichmann era “normal”, então ninguém está a priori isento de suspeita – nenhum de nossos amigos e conhecidos encantadoramente normais; nem nós mesmos.” (BAUMAN: 2013)
Só uma comunidade que incentive e fomente a reflexão sobre ética, cidadania, responsabilidade, convivência, direitos humanos, tolerância em relação a diferenças ideológicas e fenotípicas, tem chance de escapar ao tenebroso pesadelo da banalização do mal.
Este cultivo da inteligência, da reflexão, do senso crítico – e Arendt não está sozinha em levantar esta bandeira: Karl Jaspers, Paulo Freire, Bell Hooks, dentre outros, também emprestam a força de seus braços para fazê-la tremular nos ares – é aquilo que possibilita a emergência de comunidades de indivíduos autônomos, dialogantes, colaborativos.
Uma comuna de espíritos livres – aqueles que Nietzsche tinha plena noção, durante sua vida, de não passarem de prefigurações de algo ainda por vir! – que vivem sem subserviência a senhores, sem jurar obediência cega a nenhum rei, presidente, papa, aiatolá, imperador, guru, ideologia ou seita. Desobedecer aos ditames dos perpetradores de injustiças e desumanizações é para eles um artigo de honra. Combater, resolutos mas sem ódio cegante, aos disseminadores de fúrias racistas, xenófobas, patriarcalistas, imperialistas, supremacistas, será tarefa comum dos cidadãos inconclusos e perfectíveis que, na esfera pública, atuam juntos pelo melhoramento do Lar Comum, do common oikos.
A esperança, me parece, passa perto de Pachamama, esta entidade pan-andina que simboliza e conceitua a Mãe Terra. Pois, depois da farsa já tão desacreditada do “somos todos filhos do mesmo deus”, noção que jamais nos levou pra próximo da paz e da fraternidade universal, talvez já seja o tempo de buscar um novo universalismo, anti-teológico, realmente englobante, a noção muito mais sã de que somos filhos da mesma mãe – Natura Creatrix, como diria o poeta latino Lucrécio – e estamos todos no mesmo barco. Terráqueos na espaçonave terra, embarcamos num mundo comum que pré-existe ao nosso nascimento e sobreviverá à nossa morte, e que constitui o objeto supremo de nossas responsabilidades (Cf. Hans Jonas, Michel Serres).
Lendo o Homo Sacer de Agamben, penso que a vida nua que era a vítima dos morticínios totalitários (uma zoé despida de bíos, para recuperar os termos gregos como faz Agamben). Ora, qual foi a “roupa” (num sentido mais simbólico do que literal)que os nazistas tiveram que rasgar do corpo de suas vítimas senão a cidadania? Os judeus, os ciganos, os que foram considerados “retardados mentais incuráveis”, dentre outras categorias estigmatizadas como subhumanas e reduzidos ao status de escória do mundo, eram primeiro despidos do status de cidadãos para que assim se tornassem mais impunemente matáveis. Des-nacionalizados, sub-cidadanizados, eles não tinham mais sobre si o guarda-chuvas protetor contra as tempestades da tirania que é a pertença a um Estado de Direito enquanto cidadão que integra o corpo real de uma nação, de um povo num território.
A Solução Final aplica-se a judeus e ciganos com mais chance de eficácia no morticínio pois estes eram povos transnacionais, com tendência ao cosmopolitismo, espalhados pelo mundo e sem pertença dogmático a um Estado-nação específico (Israel, afinal, ainda não nascera como estado dos judeus: é fruto do pós 2ª GM). Despir de cidadania uma vida-bíos – a existência de alguém singular, sobre quem pode-se escrever uma bíos-grafia – é lançá-la ao risco extremo que acossa a “vida nua”, a do homo sacer, a vida-zoé (reduzida à sua animalidade) e que no direito romano podia ser livremente assassinada sem que isso constituísse delito, sem que o assassino fosse responsabilizado pelo homicídio. No caso do III Reich, a noção de vidas matáveis vinculava-se às noções eugenistas e racistas encampadas pelos nazistas – os delírios sobre a necessidade de purificação da humanidade em relação àqueles que eram nódoas genéticas, raças decadentes e impuras etc.
Porém seria um grave equívoco considerar como uma “doença alemã” (somente e exclusivamente alemã) os fenômenos catastróficos que caracterizam a banalidade do mal e suas cascatas de tirania e crueldade. Agamben nos lembra que há precedentes históricos para os campos de concentração – não se trata de uma invenção de alemão – nos “campos de concentraciones criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da colônia, e nos concentration camps nos quais os ingleses no início do século XX amontoaram os bôeres da África do Sul.” (AGAMBEN: UFMG, 2010, p. 162).
Se Eichmann virou exemplo icônico do “eu só cumpria ordens superiores”, isto não deveria nos fazer concluir que o mesmíssimo problema ocorreu também do lado dos aliados: o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, também integra o rol dos horrores do século que só se explicam pela servilidade daqueles que obedeceram às ordens emanadas de Washington para destroçar na hecatombe nuclear um Japão que já estava praticamente vencido. Bauman explica (cf. Danos Colaterais, cap. 9).
Nos séculos precedentes à “era dos Extremos” – nomeação de Hobsbawm – também não faltaram banalidades do mal na forma de imperialismo escravagista europeu, impondo aos povos conquistados uma violência institucionalizada. O sociólogo brasileiro Jessé Souza utiliza o conceito de “construção social da subcidadania” como essencial para a decifração dos mecanismos institucionais que despem alguém de sua plena cidadania e de seu direito a ter direitos (Arendt) – e foi o que o III Reich fez, tratando os judeus como excluídos de qualquer cidadania, depenados de seus bens e riquezas, roubados até mesmo de seus cabelos e roupas, deportados de seus lares, para morrerem como moscas nas fábricas da morte como Auschwitz, Treblinka e Dachau, onde os instrumentos costumeiros da pena-de-morte individualizada (forca, guilhotina, cadeira elétrica) foram substituídas pela morte em escala industrial nas câmaras de gás. O morticínio dependeu da subserviência servil de um exército de funcionários e burocratas, é verdade, mas também dependeu da brutal des-cidadanização das futuras vítimas.
A cidadania, pois, é uma espécie de roupa que veste a vida nua, e issopara que ela esteja vestida não para o desfile de gala dos privilégios hereditárias das castas dominantes, mas sim para a participação social na aventura política que decorre da aparição de cada um de nós, pelo nascimento, no mundo comum que nos precedeu e nos sucederá. Apelando novamente à mitologia andina, eu diria: nascemos em Pachamama, que já estava aqui antes de nosso advento e que ainda estará aqui quando estivermos mortos, e esta pachamâmica pertença transcende quaisquer pátrias e reativa o cínico Diógenes, provável inventor histórico do cosmopolitismo. Não sou súdito de nenhuma pátria, sou cidadão do Cosmos, sou bio-célula no organismo de Pachamama.
Um nazista poderia cagar e andar sobre isso tudo, argumentando que há cânceres no corpo de Pachamama que é preciso extirpar através da tanato-terapia dos lager… Porém, Pachamama é constituída por diversidade biológica e pluralidade étnico-cultural: atentar contra a “pluralidade que é a lei da terra” (Arendt) será sempre um delito político e ético, uma irresponsabilidade em relação ao que é e ao que está porvir. Há esperança promissora somente num mundo onde todos tenham o “direito a ter direitos” que só se efetiva com o reconhecimento de uma cidadania – outrora nacional, e que quiçá num futuro, não sei se próximo ou utópico, possa se transformar em planetária ou cósmica. Cidadania Pachamâmica para confrontar o Império Tenebroso de Mammon.
E.C.M. – Fevereiro de 2018
BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, G. Homo Sacer. UFMG, 2010
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém; Origens do Totalitarismo; Entre Passado e Futuro.
BAUMAN, Z. Danos Colaterais. RJ: Zahar, 2013
JASPERS, K. A Questão da Culpa: a Alemanha e o Nazismo. SP: Todavia, 2018.
LAFER, C. A Reconstrução dos Direitos Humanos – Um diálogo com Arendt. SP: Cia das Letras.
The banality of evil operates along the same lines of Elie Wiesel’s quotation, “The opposite of love is not hate. It’s indifference.” As Arendt stated in the film, “Once the trains were transported, [Eichmann] felt his work was done.” And what the film ingeniously offers to the discussion is a point Arendt made, at the end, about the difference between the radical and the extreme: “Only good can be profound and radical.” Evil is only extreme and overwhelmingly banal. To do good takes courage to act against the extremely distorted dynamics that are endemic to modern society. Modernity’s greatest evils transform innovation into industries—and action into labor—integrating the functions they demand and the people they employ into a framework that absolves its constituents from the greater picture…” – THE MANTLE
Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos
por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro
I. ENSAIO SOBRE A INVISIBILIDADE E SUA SUPERAÇÃO
Eliane Brum devota-se a visibilizar os invisíveis. É uma professora do olhar que ensina a enxergar aquilo que cotidianamente passa desapercebido. Apesar de escrever sempre em prosa, dá a sensação de ser uma poetisa de mão cheia, com similaridades de percepção e visão de mundo com um Manoel de Barros (1916 – 2014), o “apanhador de desperdícios” e autor do Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo.
Ambos, Brum e Barros, buscam dar importância ao desimportante, transvendo o mundo, em uma operação que supera as saramaguianas cegueiras que nos cobrem de cataratas a mente, tornando invisíveis os mistérios e maravilhas do cotidiano. Fazendo-nos cegos às unicidades irrepetíveis dos destinos de cada um e de todos.
Encantadora em seu uso da palavra pois capaz de encantar-se com tudo o que de extraordinário pode-se descobrir por trás das névoas da cotidianidade cinza, esta é Eliane Brum, uma das escritoras em atividade que melhor consegue conjugar a sensibilidade mais apurada com o senso crítico mais mordaz.
Ela parece ter também como mantra algo semelhante ao “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, célebre canto do poeta Vinícius de Moraes. Cada reportagem de Eliane Brum é toda uma universidade do encontro, toda uma aula magna sobre a aventura de conhecer o outro. E ela tem o dom da contadora de histórias, que conquista o interesse do leitor-ouvinte com firmes garras, talento desenvolvido por um longo e fecundo convívio com os livros, desde a primeira infância como devoradora de Monteiro Lobato.
Eliane Brum têm revolucionado o jornalismo justamente pois subverte seus cânones, recusa seus clichês, revolta-se contra os estereótipos e realiza uma nova aventura no campo daquilo que convencionou-se chamar de jornalismo literário. Ela não refaz caminhos já pisados por um Gay Talese, um Tom Wolfe, um Eduardo Galeano, um Eric Nepomuceno, mas forja uma travessia própria, refulgente de originalidade.
Em seus textos, ainda que nunca percamos a sensação forte de que aquilo que está escrito tem forte ancoragem e enraizamento em um real vivenciado de corpo e alma, é vigorosa também a presença de um ímpeto de honestidade, de boa-fé, de autenticidade, que torna explícito novamente aquilo que o jornalismo institucionalizado, carcomido pelo capitalismo emporcalhante, esforça-se em esquecer: jornalismo é compromisso com a verdade.
Eliane Brum é alguém que se recusa a mentir, a dourar a pílula, a semear ilusões. Tem pacto de compromisso com a realidade que ela desvela mas não inventa, que ela descreve mas não falsifica, que ela poetiza mas não transforma em quimera. Alguém que caminha pelo mundo em busca do avesso da lenda– nome, aliás, de seu livro-reportagem realizado ao seguir os rastros da Coluna Prestes.
Como relembra Marcelo Rech, uma das vivências de maturação mais cruciais na travessia da talentosa repórter gaúcha deu-se em 1993:
“Eliane havia ensaiado sua vida que ninguém vê numa histórica série de reportagens sobre a Coluna Prestes – ou melhor, sobre a Coluna Prestes que ninguém via. Ao percorrer 25 mil quilômetros empoeirados do Brasil, Eliane nutriu suas anotações com a matéria-prima das melhores reportagens: a gente comum. Das testemunhas anciãs da passagem da Coluna, a quem passou chamar de “o povo do caminho”, obteve o mais surpreendente e fiel relato sobre a marcha de homens que a parte do país com voz – 70 anos depois – considerava heroica mas que, na verdade da repórter, se delineava também como uma procissão de roubos e atrocidades. Ao contrapor seu “povo do caminho” à história oficial da esquerda, Eliane despertou a ira de quem erguia mitos com pés de barro, mas fez deitar em paz o maior patrimônio de um jornalista: sua própria consciência.” (RECH, prefácio à A Vida Que Ninguém Vê) [1]
A empatia que emana de Eliane Brum como uma aura invisível, nestes tempos em que é vigente uma persistente e onipenetrante crisis of perception (Fritjof Capra), é preciosa e inestimável para acelerarmos rumo ao ponto de mutaçãocom alguma chance de que, desta vez, mutemos rumo ao melhor. Que mutemos na direção alguma possível evolução, ao invés de degringolarmos mais uma vez na fossa coletiva do pesadelo e do desespero, da discórdia e da guerra, da incompreensão e da incapacidade de diálogo e encontro.
A inestimável escola de humanidade que são os textos de Brum é uma que muito bem faríamos em frequentar mais e mais, em peregrino e perene aprendizado, aprendendo com esta aprendiz – ela que nunca se recusa a deixar-se ensinar por alguém (nem mesmo por um bicho detrás das grades de uma jaula de zoo).
Pois Eliane vê a miséria e a glória da vida, qualquer que esta seja, que com frequência demasiada não enxergamos. Ela vê o que pra quase todo mundo passa batido, e por isso ela – sua obra e sua práxis – é tão socialmente imprescindível quanto os médicos que operam cataratas e devolvem a visão aos olhos doentes. Aonde qualquer um de nós, num dia banal, no dissabor da sobriedade e do tédio, encontra somente um macaco na jaula ou um pedinte na rua, Brum encontra muito mais: encontra destinos. Entretecidos com outros destinos. Numa teia de acachapante complexidade – e beleza, e horror, e fascínio, e asco…
Há muita sabedoria a colher, como um néctar, nos textos de Brum. Ela parece veicular uma sophia que diz: apesar de todo o horror e injustiça que macula a vida humana em todas as latitudes e longitudes, algo reluz de sublime e misterioso nas vidas, até na mais aparentemente mísera; até um filhote de barata tem sua dignidade ontológica, por exemplo, como aquela baratinha que a criança Eliane matou e que lhe deu tais tormentos internos que ela precisou exorcizá-los escrevendo sua micro-versão d’A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector (como narrado no posfácio de A Vida Que Ninguém Vê).
“Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico. Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal. Esse é o encanto de A vida que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisseia.” – ELIANE BRUM [2]
Leiam, por exemplo, “O Cativeiro” e “O Sapo”: no primeiro, ela transforma uma reportagem sobre os bichos no zoológico em uma profunda reflexão sobre o ser humano em sua relação com o restante do reino animal; na segunda, revela quem é aquele pedinte, sempre grudado ao chão da rua como um sapo (o que rendeu-lhe o apelido), por quem os transeuntes passam, com ligeiros olhares de pena ou desdenhosas desatenções, alguns deixando cair alguns moedinhas de esmola, restituído pela reportagem à dignidade intrínseca e à unicidade de destino que, de verdade, são dons de nossa comum humanidade, tão espezinhadas por nós humanos…
“Celebradas pelo Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de 1999, Eliane e suas A vida que ninguém vê foram como o encontro do cálice com o vinho. Fenômeno de percepção jornalística, Eliane iluminou um mundo recluso, obscurecido pela emergência da notícia ou pela máxima de que, em jornalismo, a história só existe quando o homem é quem morde o cachorro. A série provou o contrário. Ao extrair reportagens antológicas de onde outros só enxergariam a mesmice, Eliane deu a zés e marias do sul do Brasil a envergadura de personagens de literatura tolstoiana e reverteu um dos mais arraigados dogmas da imprensa. Um dia, quem sabe, algum desses acadêmicos da comunicação que se debruçam sobre aquelas teses herméticas deslocadas da vida real das redações também encare a tarefa de trazer à luz como Eliane traçou uma parte da história do jornalismo brasileiro ao escrever notáveis reportagens (ou seriam crônicas?) extirpadas das ruas anônimas.” (MARCELO RECH, prefácio.) [3]
Eliane Brum, nestas magistrais reportagens que perfazem as páginas deste papador-de-Esso-e-Jabuti que é A Vida Que Ninguém Vê, escritas em Porto Alegre, em 1999, para coluna homônima do Zero Hora, foi atrás de conhecer aqueles que não costumamos julgar dignos de ser conhecidos. Descobriu tesouros de humanidade e humor, de resiliência e resistência, de tragédia e drama, nas vidas que nunca aparecem na TV. F
az-nos conhecer o colecionador de refugos urbanos, que infunde beleza àquilo que outros legaram à lixeira. Expõe trabalhadores em situações bizarras, como o funcionário do aeroporto, carregador de malas por mais de 3 décadas, mas que nunca havia voado – até que, enfim, perde a virgindade em matéria de avião (“Alair Quer Voar”).
Também vai perseguir histórias reais bem longe dos palácios e das coletivas de imprensa, vai aos fossos, vê as crianças saindo do poço do esgoto, frequenta os velórios e as UTIs. Em sua obra não há escassez de reflexões forjadas em cemitérios ou diante de cadáveres. Extraí daí não a morbidez, algum tipo de niilismo de desistente, mas sim a lição de que até diante da morte a multiplicidade de manifestações da vida humana embasbaca quem não é babaca e sabe abrir o olho pra enxergar. Ver a maravilhosa reflexão filosófica que vai de contrabando com a narrativa sobre o chorador profissional da aldeia ou no pungente Enterro de Pobre(click e leia na íntegra).
Nada nem ninguém lhe parece indigno de atenção. Histórias de vida dignas de serem contadas pululam por aí como pequeninos grilos saltitantes que não notamos pois estamos demasiado afundados, como avestruzes, na areia de nossos celulares e telas de PC. Eliane Brum, animada por sua estrela-guia íntima, sua irrefreável curiosidade em relação à multiplicidade da vida, habita um mundo polvilhado de prodígios narráveis que encontram-se largados pelo pó dos caminhos.
Mas não é só isso: seu olhar é tão penetrante, profundo, revelador, pois é um olhar todo mergulhado na história. E sua pena não é a de alguém que registra o presente, mas de alguém que sabe conectar-se ao passado, ao percurso transcorrido, de modo que sua prosa é a de uma memorialista. Isto é, de um combatente em franca insurgência contra as potências do esquecimento. Por isso, sua obra alinha-se ao formidável esforço jornalístico-memorialístico da Dani Arbex no livro Holocausto Brasileiro (click e saiba muito mais).
Ela está ciente de que muita glória, que pôde um dia ter parecido imorredoura, revela-se com o andar da carruagem do tempo como perecedoura, mera vanitas que se desfaz em névoa: diante da estátua do Conde de Porto Alegre, ela evoca alguém que foi glorioso outrora, alguém que quis ser celebrado em epopéias como um Aquiles ou Ulisses, reduzido a limada pedra onde mijam os mendigos e de quem às vezes comenta-se: “quem foi esse cara?!? o que será que ele fez na vida?”
Eliane Brum, ao invés de fazer-se memorialista dos grandes e privilegiados, parece sempre preferir aproximar-se daqueles de destino mais vulnerável, justamente aqueles que estão mais ameaçados por um olvido que não demora. Um olvido que chega a preceder a morte. Um olvido que se confunde com suas vidas. São as vidas que ninguém vê, as vidas dos esquecidos, cada um deles uma manifestação irrepetível e única da vida neste universo.
* * * * *
Eliane Brum em território Ianomâmi, em Roraima, em 2001. A reportagem é “A Guerra do Começo do Mundo”, está em O Olho da Rua.
II. JORNALIRISMO REVELADOR DA POESIA POR TRÁS DA POEIRA COTIDIANA
O jornalismo e o lirismo dançam tão juntos no palco dos escritos de Eliane Brum que estes talvez mereçam o título de inauguradores do “Jornalirismo” brasileiro. Um professor ensinou-lhe que “jornalista era o homem (ou mulher) que estava lá, pessoalmente (e não por telefone ou por e-mail), com os dois pés enfiados na lama dos acontecimentos.” [4] A discípula seguiu a receita à risca: sem pudores, pôs seus pés nas agruras da realidade, na convicção de que “repórter de verdade atravessa a rua de si mesmo para olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo. Só assim pode chegar mais perto da verdade – ou das verdades – da história que se propôs a contar.” [5]
Jornalista não é o papagaio de uma ideologia que a empresa que lhe emprega manda-lhe disseminar (e que ele, como cão amestrado e submisso, acata). Jornalista não é também aquele que brada “eu! eu! eu!” e quer ser a estrela da reportagem (argumento anti-gonzo que a obra de Brum discute e problematiza, já que ela também tem um texto que às vezes carrega alta carga confessional e “subjetivista”).
Jornalista é um bicho que, tal como Brum compreende este ofício (que ela hoje exerce no Brasil com raro e refulgente brilhantismo!), deve servir às verdades plurais, pôr-se a serviço daqueles que não são ouvidos, amplificar as vozes que são esmagadas ou silenciadas pelos poderes hegemônicos. Eliane Brum escuta a sinfonia da vida em todo seu desconcerto e polifonia; depois pinta em suas páginas alguns retratos, profundamente humanos, de gente que briga para criar sentido e graça em meio ao tsunami de nonsense, violência e descalabro.
Eliane Brum vai buscar seus personagens nas periferias, nos presídios, nas aldeias indígenas, nas estradas de terra distantes dos grandes centros urbanos, nas florestas repletas de bichos exóticos e parteiras xamânicas. Seu interesse etnográfico e sua disposição para escutar as diferenças torna-a assemelhada a Eduardo Coutinho, falecido documentarista brasileiro, que sabia fazer cinema – vejam Edifício Master, Jogo de Cena ou O Fim e o Princípio – com um lirismo que também encontramos às mancheias nas palavras de Brum.
Escritora de talento comparável ao de Rubem Alves ou Lya Luft em seu manejo audaz do dom expressivo, Eliane Brum sabe pôr chama no verbo. Aquilo que ela escreve está simultaneamente animado com emoções intensas e diversas, de um lado, e ao mesmo tempo dotado de lucidez e clareza em seus diagnósticos críticos, de outro. Para o Brasil traz muito benefício ler, compreender, digerir, disseminar a obra (em processo, atualíssima!) de Eliane Brum. Eis um “remédio” – pharmakon de primeira qualidade! – que sugiro a todos que experimentem: serve para curar cataratas psíquicas, cegueiras do cérebro, preconceitos arraigados, dogmas imobilizantes. Oswald de Andrade recomendava “ver com olhos livres”. A obra de Brum indica o rumo para os que querem ver com olhos livres, e sem prescindir da indignação e da força criadora da união e da compaixão.
Além de repórter de rara capacidade de escuta, além de descomunais poderes de expressão verbal, Eliane Brum é uma pensadora – apesar d’eu suspeitar que ela talvez prefira um termo um tanto mais lúdico, como pensadeira. Seu texto carrega reflexões que a tornam digníssima de ser considerada uma das melhores filósofas brasileiras em atividade (na companhia de Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Maria Cristina Franco Ferraz, Viviane Mosé, dentre outras).
Brum é uma buscadora de respostas para alguns dos problemas que mais a solicitam e empolgam: em especial, ela busca descobrir, em cada pessoa que ela ouve e conhece, a maneira através da qual a pessoa tenta criar sentido para sua vida. Pois Eliane é intensamente consciente da mortalidade que nos constitui, inescapavelmente, e sobre a qual realiza tantas de suas reportagens e investigações. Um de seus “nortes” na existência é conseguir o dom búdico de, diante de dores e prazeres, possuir a “serenidade de quem sabe que é efêmero.” [6] No trecho seguinte, ela revela alguns detalhes do que pesquisou sobre o tema do morte, citando o historiador Philippe Ariès, além do grande Rubem Alves:
“A história humana pode ser contada pela maneira como cada sociedade, em diferentes períodos, lidou com a morte. O historiador francês Philippe Ariès escreveu uma das obras mais completas sobre o tema, primeiro num pequeno livro chamado História da Morte no Ocidente e depois em 2 volumes intitulados O Homem Diante da Morte. ‘A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras’, afirmou.
Rubem Alves
O psicanalista Rubem Alves deu um tom confessional à impotência do homem contemporâneo diante da medicalização da morte: ‘Tenho muito medo de morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte. Muitos dos chamados ‘recursos heroicos’ para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da ‘reverência pela vida’, Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: ‘Liberta-me’.
Começamos a morrer no exato instante em que começamos a viver. E hoje estamos mais mortos do que estávamos ontem. Mas, neste momento, mais que em qualquer outro período histórico, nós, homens e mulheres do Ocidente, vivemos a morte como uma experiência marginal. Ela se passa, de preferência, oculta dentro do hospital. E, quando perdemos alguém, nossa dor deve ser superada rapidamente, de forma asséptica como um procedimento cirúrgico, sem muito barulho e sem perturbar os amigos.
Pela lei, se perdemos um parente direto, temos direito a nos ausentar por 3 dias do trabalho. Quem casa, tem 5. Quando nasce um filho, a licença é de 120 dias para a mãe. Como se chegou à conclusão de que três dias de luto é suficiente? Por que dois é pouco e quatro é demasiado? Seria o primeiro dia usado para enterrar o morto, o segundo para limpar os armários e o terceiro para chorar? E, depois, a vida continua?” [BRUM, 7]
Eliane Brum faz coro com outra das maiores pensadoras brasileiras – Maria Rita Kehl, em seu estudo sobre a depressão O Tempo e o Cão – na recusa da “solução medicamentosa”, ou seja, a resolução dos problemas por decreto bioquímico fornecido pela tecnociência hi-tech. Ambas – Brum e Kehl – põem em questão a medicalização excessiva da vida, que tanto agrada à multimilionária indústria farmacêutica. A consciência de nossa mortalidade, a percepção de nossa finitude, as angústias e temores que podem assolar a psiquê diante do reconhecimento pleno de nossa efemeridade, não são fenômenos que mereçam ser tratados como doença, nem “curados” com doses cavalares de Prozac. Um ente querido faleceu e o mundo só nos concede 3 dias de licença no trabalho; pior: “se sofremos além do período considerado socialmente aceitável, tornamo-nos um caso patológico. Os amigos mais queridos nos dão o telefone de um psiquiatra. O que nos falta não é um ombro humano, mas antidepressivo.” [8]
Contra este ideário, Brum fala da morte como de uma escola. Ela nos ensina, a morte, sobre “como lidar com dois fatos intrínsecos à vida humana: impotência e falta de controle. (…) Ela nos lembra do que gostaríamos de esquecer. Em nossa época vende-se a ilusão de que é possível controlar com pílulas sentimentos tão intangíveis como a melancolia e a tristeza, prender a juventude à força de bisturis e cosméticos, prescindir da tradição e construir-se a si mesmo sem dever nada a ninguém. A morte nos lembra que há algo de errado nessa equação. Podemos transformar o corpo, mas não evitamos que ele morra. Podemos decidir entre marcas na prateleira, mas não decidimos deixar de morrer. Podemos fazer nossas próprias regras, mas entre elas não está viver para sempre. A morte nos confronta com a questão fundamental de nossos limites.” [9]
III. A CIDADE PARTIDA
Vivemos em cidades partidas, e o estranho é que nas selvas de concreto tão acostumados estamos a isso que quase nada nos estarrece, que as mais abomináveis injustiças não atiçam nossa “morna rebeldia” (Criolo). Eliane Brum, em A Vida Que Ninguém Vê, fez-se a cronista de uma Porto Alegre toda cindida. Cidade partida entre os privilégios e os andrajos, entre o morro e o asfalto, entre os popstars e os esquecidos. O destino da infância massacrada pela miséria no seio da megalópole – aquilo que o sociólogo José de Souza Martins chamou, em um livro que organizou, de O Massacre dos Inocentes – é um de seus temas recorrentes. Vejam, por exemplo, a reportagem-manifesto “Sinal fechado para Camila”, o tipo de texto que assombra o leitor muito tempo depois dele atingir a última linha. Ei-lo na íntegra:
“Sinal fechado para Camila
– Tio lindo, tia linda do meu coração. Eu pergunto a você se não tem um trocadinho ou uma fichinha pra essa pobre garotinha
Quase com certeza você ouviu esse hino em algum cruzamento de Porto Alegre. Debaixo de um sinal vermelho, o som entrando pelo vidro fechado, ameaçador como um Alien. O som entrando pela janela que você cerrou para se defender do ataque à sua consciência. Você rezando para que o sinal mude de cor, fique verde, não de esperança, mas verde de fuga. Sinal livre para escapar do rosto da menina grudado na janela. Sujando seu patrimônio. Obrigando-o a tomar conhecimento da miséria dela. Você, que paga seus impostos em dia, colabora com a campanha do agasalho, que até é um cara bacana. Subitamente transformado em réu no tribunal do sinal fechado por um rosto ranhento de criança.
Você, quase com certeza, ouviu esse hino. Pois saiba. A menina que o compôs morreu no domingo. Nunca mais ela assombrará a sua janela. A menina se chamava Camila. Camila Velasquez Xavier. Tinha dez anos. Mas os dez anos dela equivalem a cem dos seus. Camila viveu muito, até. No bairro onde ela nasceu, o Bom Jesus, 17 como ela morreram antes de completar um ano em 1997. Camila nasceu na Fátima, uma vila da Grande Bom Jesus. Vila, modo de dizer. Becos e mais becos de barracos amontoados sobre o cimento. Lá, o controle da população é feito ao natural. Só em janeiro, já tombaram quatro. Assassinatos citados em notinhas de canto de página.
Camila nasceu na Fátima, num barraco de uma peça. Quando chovia, havia tanta água fora quanto dentro. Em dez anos a família progrediu. Conseguiu um barraco de duas peças. Camila dormia com os quatro irmãos num sofá esburacado ou no chão de tábuas podres porque não havia lugar para todos. Pai e mãe desempregados, o pai um homem triste, de olhos injetados, que descia o braço sobre a mãe sempre que bebia além da conta.
Aos seis anos Camila foi enviada aos sinais para ganhar a vida da família. Logo descobriu que a concorrência era enorme. Que as janelas dos carros eram a versão moderna das muralhas medievais. Camila começou a embelezar sua tragédia. Inventou versinhos que venciam fossos e arriavam pontes levadiças, arrancando um sorriso perplexo dos motoristas. Eu não posso ficar sem você, meu trocadinho. Essa tia, esse tio queridinho vai me dar um trocadinho. Camila conquistou a sua diferença nos cruzamentos da cidade. Seus hinos se espalharam pelas sinaleiras e, mesmo depois de sua morte, seguem ecoando pela boca de outras Camilas.
Aos seis anos, flagrada na rua, Camila entrou pela primeira vez no prédio sem cor da Febem. Entraria ainda outras duas vezes. Na sexta-feira, 15 de janeiro, ela e outras cinco meninas jogaram suas trouxinhas pela janela do prédio. Um ursinho Puff de segunda mão e algumas camisetas compunham o espólio coletivo. Quando a porta se abriu para brincarem na pracinha – uma ficção de armações de ferro que há muito perdeu os balanços e as gangorras, uma ficção como a infância de todas elas – iniciaram sua jornada rumo à liberdade. Que passou na forma de um ônibus lotado para o centro de Porto Alegre.
No dia seguinte, a direção da casa informou ao plantão do Conselho Tutelar. Que anotou. Estava cumprido o trâmite burocrático. Por todo o final de semana, Camila e suas cúmplices de desamparo vagaram pelas pontes da cidade sem que ninguém as buscasse. Crianças sob a tutela do Estado vagando ao léu sem que ninguém chorasse a sua falta. Fazia calor no domingo, todo mundo lembra. Um calor tão pesado que quase se podia tocá-lo. Às 14h, de calcinha e camiseta, Camila e duas das fugitivas mergulharam no Guaíba na altura do parque Marinha do Brasil. Camila não sabia nadar. Debatendo-se como fez durante toda a vida, Camila, a senhora dos cruzamentos, submergiu.
Às 8h de segunda-feira, a notícia da fuga e da morte de Camila despertou a família. Vai ter que esperar porque ainda não abrimos a menina, informou o funcionário do Departamento Médico Legal à mãe quando ela foi recolher o corpo da filha. Camila foi enterrada na manhã de terça-feira, no caixão branco dos inocentes. A Febem pagou o enterro, pagou até uma capela funerária com ar-condicionado. Que lugar mais lindo, repetiam os familiares, assombrados com o espaço tão grande e tão verde da morte. Acompanhada por um séquito de parentes de rostos derrotados, Camila foi enterrada no Jardim da Paz. No cortejo, um único terno. Puído e manchado, envergado por um homem em quem o sofrimento abriu sulcos no rosto. Um homem tentando agarrar a dignidade que escapava como o cós da calça maior do que ele. No cortejo, nenhuma flor para Camila.
Talvez você lembre de Camila. Talvez não. Sua marca registrada, além da cantoria dos cruzamentos, eram os dedos indicador e médio eternamente na boca. Sua imagem desvalida não voltará a assombrar as janelas sob os sinais. Camila morreu. Mas os versinhos de Camila cruzaram o ar e semearam as esquinas. Não se iluda. Você não vai escapar. Há um exército de Camilas pela cidade. Haverá sempre uma delas tentando arrombar o vidro do carro com a urgência de sua fome. Camila morreu. Você, e eu também, somos cúmplices de sua morte. Nós todos a assassinamos. A questão é saber quantas Camilas precisarão morrer antes de baixarmos o vidro de nossa inconsciência. Você sabe? E agora, tio lindo, tia linda, o que você vai fazer? [23 de janeiro de 1999] [10]
Na “cidade partida”, Eliane busca chaqualhar a apatia dos conformados ao reconstruir um fio narrativo que empreste ao menos farrapo de sentido às vidas destas vidas mutiladas, atropeladas, relegadas, abandonadas, sequeladas, invisibilizadas – e que tudo isso sofreram sem nenhum merecimento, sem nenhuma culpa que justificasse tal via-crúcis. Eliane Brum sabe escrever textos trágicos, pungentes de tragicidade sem açúcar nem consolo. Semelhante à reportagem “Sinal fechado para Camila” é “O Menino do Alto”, que foca a atenção no garoto que mora no topo do morro e acaba perdendo as pernas, tornando-se uma espécie de prisioneiro na torre da favela. Incapaz de transpor o fosso social entre o alto e o asfalto, torna-se protagonista de um texto-revelação, de uma reportagem-poema, onde iluminam-se os claros e escuros de uma existência que parecia destinada ao esconderijo e ao esquecimento.
A insurgência jornalística de Eliane Brum dirige-se contra o destino de serem esquecidos que parece ser imposto por forças superiores aos milhões de esquecidos da Terra – aqueles que Franz Fanon batizou de the wretched of the earth, les damnés de la terre. Dentre eles, Brum descobre um heroísmo secreto e nada ostensivo, lutas invisíveis e sem promessa de glória, de um pai que é um “Hércules subnutrido” e de moradores sofridos de uma comunidade obrigada a ser composta por “alpinistas da miséria”.
Na cidade das iniquidades solidificadas e da solidariedade na UTI, ela atenta para as “massas de crianças desvalidas”, mas sempre busca o delineamento de individualidades, com suas idiossincrasias, nunca decaindo no cinzeiro das abstrações pálidas e descarnadas. Todas as teses sociológicas ou filosóficas, psicológicas e existenciais, que Eliane Brum veicula através de seus escritos, parecem ancoradas firmemente em sua experiência vivida e em seus encontros reais com uma multiplicidade de outros. De cada outro ela constrói um emblema para uma de suas teses essenciais: a da unicidade de destino, ou seja, a noção de que cada um de nós é irrepetível, é uma travessia efêmera ímpar por esta rocha girante no cosmos pluridimensional.
Como aquele garoto, ladrãozinho de cavalos, destemido bandido mirim que parece saído de um faroeste. O menino rouba o pangaré do carroceiro, sai galopando por Porto Alegre em pleno delírio heróico, mas não tardam até que “os cascos da realidade esmaguem os sonhos do menino” (“O Encantador de Cavalos”). Com sua cabeça posta à prêmio por ser ladrão de equinos, poderia ser relegado a uma nota de pé de página no noticiário policial do Zero Hora. Poderia ter sido tratado com manchete de imprensa marrom, Recompensa-se pela cabeça do pequeno vândalo que rouba cavalos.
Mas Eliane Brum nunca contenta-se com o beabá do jornalismo policialesco e proto-fascista que tanto pratica-se no Brasil. Ela quer ir atrás de um passado que ilumine o presente, e assim mergulha no destino do outro, desvelando no reles ladrãozinho um personagem digno de um romance infanto-juvenil de Charles Dickens ou Mark Twin. Após uma tragédia incendiária, em que uma vela acendida para iluminar sua casinha acabou por sepultar em trevas sua vidinha tão jovem, o pequeno perdeu sua companheira de infância, a égua Sabonete. O ladrãozinho, na verdade, era animado por sonhos de re-encontro com o cavalo perdido, e Brum transforma sua saga numa “busca por Pégasus” similar à de Alexandre, o Grande. A odisséia mirim de um audaz e temerário garoto que gostaria de ter asas para transpor o terrível fosso que separa, na cidade partida, o luxo da miséria, a vida fácil da via-crúcis dos esquecidos.
Eliane Brum em ação na reportagem com a Sra Ailce, que acompanhou em seus últimos dias de vida.
Sabe-se também que Eliane Brum é uma das pessoas que melhor reflete sobre a loucura neste país, e não apenas como prefaciadora da magnum opus de Daniela Arbex sobre o hospício de Colônia (MG). Sondando a lucidez que há na loucura, o método que há na fantasia e mesmo a beleza que se esconde por trás de certos crimes, Eliane faz-nos estarrecidos cúmplices de uma reflexão a um só tempo psicológica, sociológica, filosófica, que se fosse resumível em uma frase lapidar talvez pudesse ser esta: “sempre que alguém não se encaixa no mundo da maioria, é logo chamado de maluco.” (“Frida”) Sobre empatia pelos malucos na prosa poética de Eliane Brum, que por vezes até escreve com sabor de humor Raul Seixista (vejam, por exemplo, a divertidíssima crônica “A Voz”).
Os rotulados como loucos, delinquentes, imprestáveis, merecem dela sempre a atitude mais demorada do que a rapidez estúpida dos preconceitos. Ela ensina a ver para além dos rótulos e a acolher a diferença “num mundo que se especializou em esmagar, eliminar e encarcerar a diferença” (“Frida”). Através de sua prosa, multifacetada como o caleidoscópio caótico-cósmico da Vida, ela comunica a revolta contra aqueles que agem como se destinos pudessem ser destinados à lixeira. E solidariza-se com tantas Evas – pobres negras mulheres cheias de cicatrizes – que recusam-se ao destino de meras coitadas.
Uma brilhosa chama de ativo ideário ético anima os escritos de Brum, problematizadora da caridade vendida como panacéia: “a mão da caridade”, escreve ela com pena pontiaguda de provocação, é “irmã da pena, prima da hipocrisia”, e é isto que Eva renega. Em textos que ainda não tiveram toda a sua potência enfatizada pela crítica literária feminista, Eliane Brum inaugura uma galeria de revoltosas que insurgem-se muito além dos limites delineados por Albert Camus. Poderiam integrar um futuro livro chamado La Femme Revolté, a merecer lugar nas livrarias e bibliotecas lado a lado com O Segundo Sexo de Beauvoir.
Brum revela no cerne de todos nós, pulsando junto com as sístoles e diástoles do coração, um pavor que não é somente da morte física, mas da amnésia dos que ficam, os sobreviventes, sempre tão mortais e esquecidiços. Frase emblemática, em “O Exílio”: “temeu que seu mundo fosse sepultado com ela”. Emerge destes escritos a imagem impressionante, pungente, avassaladora, de um mundo que é a um só tempo viveiro e morredouro. Onde nós, viventes-mortais, “seguimos nosso combate silencioso contra o naufrágio da vida.” (“O Exílio”)
De acordo com ela, “a maior de todas as dores” é a “invisibilidade” (“O Homem Que Comia Vidro). E o que ela escreve sobre Venise e seu “talento singular” poderia ser dito da própria Eliane Brum: “tem o dom de dar importância ao desimportante, de dar significado ao insignificante.” (“O Álbum”) Cheia de tanto som e fúria, às vezes parecendo significar nada além de caótica cacofonia, nossa vida até parece fazer um fiapinho de sentido quando tecida na fina tapeçaria verbal desta magistral artista-da-palavra. Com as palavras que ela encerra A Vida Que Ninguém Vê, encerro também este breve percurso, na esperança de que tenha despertado apetite e curiosidade para que mais e mais leitores mergulhem nesta obra tão preciosa de Eliane Brum, alguém que sempre buscou
“estimular um olhar que rompesse com o vício e o automatismo de se enxergar apenas a imagem dada, o que era do senso comum, o que fazia com que se acreditasse que a minha, a sua vida fossem bestas. A hipótese era a de que o nosso olhar fosse sendo cegado, confundido por uma espécie de catarata, causada por camadas de rotinas, decepções e aniquilamentos, que nos impedisse de ver. Vemos o que todos veem e vemos o que nos programaram para ver. Era, com toda a pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários – e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer.
(…) Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter. Só pode ser exercido sem a mediação de máquinas. Não pretendo fazer aqui uma análise sobre as razões dessa mudança que faz com que muitos repórteres só vejam a vida – e os fatos, as pessoas – pela tela do computador. Só diria ainda que aqueles que se dobram à nova regra não-escrita são tão facilmente substituíveis – porque descartáveis – quanto os componentes eletrônicos das máquinas que elegeram para intermediar seu olhar sobre o mundo. E os primeiros a ser deletados numa das cíclicas crises das empresas de comunicação – porque deletaram antes a sua singularidade.
(…) Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver. Quando saio da redação, tenho uma ideia de para onde devo olhar e o que pretendo buscar, mas é uma ideia aberta, suficiente apenas para partir. Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas. Donos apenas da ilusão de que a vida pode ser domesticada, classificada e encaixotada em parágrafos seguros. Tudo o que somos de melhor é resultado do espanto. Como prescindir da possibilidade de se espantar? O melhor de ir para a rua espiar o mundo é que não sabemos o que vamos encontrar. Essa é a graça maior de ser repórter. (Essa é a graça maior de ser gente.)
Se de perto ninguém é normal, de perto ninguém é herói. Essa mania de mitificar gente, alçar fulano ou beltrano ao Olimpo porque supostamente fez algo sobre-humano, empata a vida. Faz com que os supostamente pobres mortais se sintam exatamente isso: pobres mortais. Ou losers, na expressão do que a cultura americana tem de pior. Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. Mesmo os super, dos quadrinhos e do cinema, pode reparar: o Homem-Aranha só consegue duas horas de filme por causa do atrapalhado Peter Parker e até o Super-Homem, que veio de outro planeta, só tem atenção por conta de suas fraquezas bem terráqueas (ou quantas voltas ao redor da Terra ele precisaria dar até todo mundo roncar?). Inclusive demônios como o Hellboy só são interessantes pelo que têm de humano, da ternura ao mau humor. Vou ao limite dos super-heróis para falar de uma obrigação de repórter. Meu professor de jornalismo, um baixinho-gigante chamado Marques Leonam, dizia: “Lei Leonam número um: repórter não tem o direito de ser ingênuo. Lei Leonam número dois: repórter não tem o direito de ser ingênuo…” Acho que ia até o número dez repetindo essa máxima leoniana. Eu faria alguns adendos a essa lei fundamental. Um deles é: desconfie dos heróis, dê uma boa cheirada num mito. Eles só se aproximam da verdade quando virados pelo avesso e promovidos a homens.
Somos todos mais iguais do que gostaríamos. E, ao mesmo tempo, cada um é único, um padrão que não se repete no universo, especialíssimo. Nossa singularidade só pode ser reconhecida no universal. Tudo é um jeito de olhar. Você pode olhar para o infinito, como Carl Sagan, e descobrir que é feito da poeira de estrelas. E pode olhar para o chão e acreditar que é um cocô de cachorro. É o mesmo homem que tem diante de si o infinito e o chão. Mas é nessa decisão que cada um se define. Como olhar para você mesmo é uma escolha. Um exercício da liberdade, da autodeterminação, do livre-arbítrio. Seja generoso. Arrisque. Ouse. Olhe.” – ELIANE BRUM [11]
Eduardo Carli de Moraes Goiânia, Fevereiro de 2017
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] RECH, Marcelo. Prefácio de A Vida Que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2012.
[2] BRUM, Eliane. Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.
[3] RECH, M. Op cit.
[4] BRUM, A Primeira Pessoa Sou Eu?, p. 347. In: O Olho da Rua – Uma Repórter Em Busca da Literatura da Vida Real. São Paulo, Globo: 2008.
[5] Idem nota anterior.
[6] O Inimigo Sou Eu, 2008, p. 333.
[7] A Morte Envergonhada. P. 360.
[8] Op cit, p. 362.
[9] Op cit, p. 363.
[10] Sinal Fechado Para Camila. In: A Vida Que Ninguém Vê. Op cit.
[11] Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.
SIGA VIAGEM:
ELIANE BRUM ENTREVISTADA POR ABUJAMRA NO PROVOCAÇÕES DA TV CULTURA (3 BLOCOS / COMPLETO)
“De fato, a tua sina deve ser terrível, e não lhe ficarei indiferente, eu que cresci no exílio, um desterrado como tu, e que arrisquei como ninguém a minha vida lutando muitas vezes em terras estranhas. Por isso, a nenhum forasteiro igual a ti eu hoje poderia recusar ajuda.”
Essas palavras, que todo leitor de Sófocles reconhecerá como um trecho central de “Édipo em Colona”, são as palavras de Teseu a um dos mais célebres refugiados da história do pensamento ocidental, Édipo.
Expulso de sua terra, sem lugar e sem posses, Édipo pede asilo e recebe de Teseu mais do que esperava. Recebe o reconhecimento de que o desterro não deixa ninguém indiferente, mesmo que este outro seja alguém “irrepresentável” para nós, alguém cujas filiações não conhecemos.
Édipo, após furar os olhos, é guiado por Antigona através de Tebas, rumo ao exílio. Cena da trilogia de peças trágicas de Sófocles, em pintura de Charles François Jalabert.
Para criticar a posição “humanitária” que consiste em aceitar todos os refugiados com seus costumes pretensamente arcaicos e contrários aos pouco evidentes “valores europeus”, Zizek parte de uma desconsideração sistemática e deliberada da diferença entre refugiados e imigrantes.
Refugiados são pessoas fugindo de guerras e perseguições pedindo asilo porque o que tinham foi destruído ou confiscado, não são imigrantes procurando sua sorte em países em melhor situação econômica. Eles são o estrato mais vulnerável da população mundial, vendo-se muitas vezes nesse limiar entre a vida e a morte.
Todos os países europeus assinaram acordos claros que os comprometem a recebê-los. Nesse ponto, Habermas foi ao menos mais claro: “O asilo é um direito humano universal”.
No entanto, se hoje um refugiado tiver a infeliz ideia de ir à Dinamarca, ele será acolhido por uma “lei de confisco” que permite ao Estado confiscar seus bens e dinheiro para custear os gastos do governo. Não por acaso, uma prática nazista aplicada sistematicamente contra judeus.
Se ele tentar ir aos EUA, responsáveis diretos por essa situação catastrófica devido à sua intervenção irresponsável no Iraque, ele não será acolhido devido a uma lei criminosa aprovada pelo Congresso americano que o impede de pedir asilo.
O chocante das decisões dinamarquesa e americana não é apenas a lei, mas a ausência de reações ferozes a ela. Zizek prefere outra via e, há meses tem defendido abertamente a “militarização” do problema, ou seja, a criação de uma força militar europeia responsável por triar os refugiados no próprio Oriente Médio, separando o joio do trigo, decidindo, assim, de maneira soberana, quem pode viver e quem deve continuar sob chuva de balas e morrer.
É como dizer: a sorte dessas pessoas não me diz respeito. Pergunto-me se a reação seria a mesma se esses refugiados fossem finlandeses ou australianos, em vez de sírios.
Claro que se pode sempre utilizar o argumento de que os refugiados em questão são muçulmanos que desconhecem nossos pretensos valores de igualdade e tolerância, que entraram em uma espiral de ódio contra o Ocidente e, por isso, deveriam ser antes “educados para a liberdade”.
Slavoj Zizek
“A difícil lição a tirar disso tudo é que não basta dar voz aos injustiçados do modo como eles estão: para concretizar a emancipação real, eles precisam ser educados – por nós e por eles mesmos – para a liberdade”, foi o que disse Zizek. Como exemplo da necessidade urgente de tal educação, ele usa os ataques e assédios a mulheres perpetrados em Colônia (Alemanha) no Ano-Novo.
No entanto, seria melhor começar por lembrar como, um mês depois dos ataques, a polícia alemã tem 30 suspeitos, sendo 25 argelinos e marroquinos, ou seja, suspeitos que simplesmente não são refugiados (que são sírios, iraquianos e líbios).
Dos outros cinco, não há informações disponíveis. Tais ataques são, infelizmente, uma ação recorrente em várias grandes cidades europeias no Ano-Novo há décadas, são casos de delinquência, de comportamento miserável de grupo que nada tem a ver com o problema dos refugiados.
Pois, se for para falar de machismo e homofobia, é melhor expulsar da Europa boa parte dos próprios europeus e seus líderes políticos, a começar, por exemplo, pelo campeão do machismo rasteiro Silvio Berlusconi.
Temo que essas colocações de Zizek apenas repitam algumas das piores páginas de Hegel, que acreditava que os africanos eram como crianças fora do processo de amadurecimento próprio à história. Tudo se passa como se devêssemos “educá-los” porque eles não têm ideias, apenas afetos como inveja e ódio.
Talvez seria melhor lembrar que ninguém precisa ser educado por um europeu para saber o que significa igualdade e alteridade. Toda sociedade tem uma tendência igualitária e de abertura. Mas às vezes é mais fácil ver, no estrangeiro, uma criança frustrada.
Aqueles que estão a debater sobre a possibilidade ou não de publicar livros de Hitler deveriam voltar sua atenção para um fenômeno que tem modificado radicalmente a natureza do que chamamos até agora de sociedades democráticas.
Do ponto de vista jurídico, o nazifascismo tinha dois pilares fundamentais. O primeiro era a transformação do estado de emergência em modo normal de governo. O segundo era a possibilidade de espoliar legalmente sujeitos de toda sua condição de cidadãos.
Certas constituições preveem a decretação do estado de emergência em situações de guerra, insegurança nacional e catástrofes de várias naturezas. Sob estado de emergência, o governo pode suspender garantias legais, impor censura e tomar decisões por meios que não seriam aceitáveis em situações normais. Assim, o governo assume claramente a posição de poder soberano que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Dentro, porque é o seu fundamento. Fora, porque pode suspendê-la.
Por exemplo, a constituição alemã da República de Weimar tinha o famoso artigo 48, que dava ao presidente do Reich poderes para decretar o estado de emergência em situações nas quais a “segurança e a ordem” estavam seriamente em perigo.
Assim, quando Hitler chegou ao poder, bastou atear fogo no Reichstag, afirmar que o país estava em estado de grave insegurança e governar a Alemanha impondo um estado de emergência que durou 12 anos. Ou seja, e isso deveria nos fazer pensar muito, a constituição da Alemanha nazista continuava sendo a constituição democrática da República de Weimar.
Nesse sentido, Hitler não precisou fazer como nossos militares, que tiveram de dar um golpe de Estado e escrever uma nova constituição em 1966. Ele apenas se serviu das zonas de sombra da democracia. Do ponto de vista meramente jurídico, o Estado nazista era totalmente legal, e este era seu dado mais aterrador.
Bem, nesta semana a Assembleia Nacional francesa aprovou a primeira etapa para a “constitucionalização do Estado de emergência”.
Depois dos ataques terroristas do ano passado e da situação de “grave insegurança”, seu governo apresentou um série de medidas por meio das quais o Estado procura se aproveitar da situação para criar uma suspensão legal da lei por tempo indeterminado. Seu primeiro-ministro já afirmou claramente que o estado de emergência deveria durar até que o Estado Islâmico deixasse de ser uma ameaça.
Mas e se demorar 12 anos para “destruir” o Estado Islâmico? E se depois do EI vier outro grupo, da mesma forma que os próprios vieram depois da Al Qaeda? Não estaríamos atualmente a assistir a uma espécie de autodestruição das democracias parlamentares?
Vejamos a outra lei que foi aprovada. Ela permite ao Estado retirar a nacionalidade de alguém que “cometeu um crime ou um atentado grave à vida da nação”. A princípio, a redação da lei deixava claro que o alvo eram os cidadãos binacionais, ou seja, majoritariamente aqueles que vieram da imigração árabe.
Agora, o alvo está pressuposto. Toda a discussão da lei foi feita a partir dessa distinção entre cidadãos que podem perder sua nacionalidade e outros que não perderão. Não por outra razão, seus opositores recordam que o regime nazista criou leis semelhantes para lembrar que os judeus não eram cidadãos completos e que eles poderiam simplesmente perder sua cidadania.
Uma lei dessa natureza (que está também a ser discutida em outros países, como a Bélgica) é simplesmente criminosa e joga uma pá de cal no resto de democracia que as sociedades liberais eram obrigadas a suportar. Primeiro, ela dá ao Estado o direito de jogar seus cidadãos em uma zona de não direito, desde que o aparato estatal compreenda que houve um “grave atentado contra a vida da nação”.
Aproveitando-se da comoção nacional por um atentado brutal, o Estado francês propõe um lei que não terá efeito algum para lutar contra as causas da insegurança, ou afinal alguém acredita que uma pessoa disposta a fazer um ataque terrorista iria se deixar tocar pela possibilidade de perder sua nacionalidade?
Na verdade, a lei serve apenas para mostrar aos filhos da imigração que eles nunca foram vistos como cidadãos de fato, já que eles podem simplesmente deixar de serem franceses. Ou seja, ela serve para aprofundar o sentimento de exclusão, preconceito e assimetria que é verdadeiro elemento que alimenta radicalizações.
Desta forma, cada vez mais nossas sociedades se assemelham àquilo que elas pareciam querer combater. Assim, a democracia parlamentar será engolida pelas zonas de sombra que ela mesma criou.
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Confira também:
Entrevista da Rádio Eldorado com Vladimir Safatle, filósofo e professor livre-docente da Universidade de São Paulo. Inclui algumas canções escolhidas por Safatle, incluindo Joy Division, Patti Smith e João Bosco. 53 minutos.
Esqueça a lorota preconizada pelo hino: “dos filhos deste solo és mãe gentil…” O Brasil real está mais pra megera ou Medéia.
Um país que botou na bandeira “ordem e progresso” e esqueceu-se, como lembram Mautner e Jards, de incluir o amor – que fazia parte da tríade de ideais do positivismo de Augusto Comte que tanto inspirou nosso ideal nacional oficial.
Somos um país líder em péssimas proezas: o maior consumidor global de agrotóxicos (o veneno está na mesa, como alertou Silvio Tendler); uma desigualdade na distribuição de renda que está entre as mais obscenas do globo; altíssimos índices de homicídio, violência contra a mulher, crimes motivados por homofobia, racismo institucionalizado; uma das piores situações de encarceramento-em-massa do mundo, somada à estupidez reiterada do proibicionismo e da Guerra às Drogas.
Soma-se a isso uma nojenta mídia corporativa, a besta-fera conhecida pela alcunha de “P.I.G.”, cúmplice de golpes de Estado e praticante cotidiana da desinformação e da alienação das massas midiotizadas. Sempre pronto a pregar as benesses de um fundamentalismo de mercado, de modelo yankee, corporações idiotizantes e arrogantes como a Rede Globo, a Editora Abril e muitos “jornalões” não sabem senão submeter sua linha editorial ao deslavado elogio de um neoliberalismo pró-corporativo e de um elitismo meritocrático – o que beira o autoritarismo fascista em seu trato com os excluídos e marginalizados que o sistema pretende varrer para as favelas, para os presídios e para o IML. Um regime político-econômico que, no neo-clássico Doutrina do Choque, foibrilhantemente criticado pela Naomi Klein.
O Brasil é um barril de pólvora, bem distante da “Aquarela Brasileira” kitsch-ufanista de um Policarpo Quaresma, satirizado pela pena de Lima Barreto. Neste cenário, Boulos parece-me um dos intérpretes mais lúcidos e bem-informados do país, um pensador que arregaça as mangas e segue à risca a tese de Marx: os filósofos não estão aí só para interpretar o mundo, a tarefa é transformá-lo!
As teses de Boulos podem parecer intragáveis para aqueles que desejam crer numa imagem mais rósea do país – “na prática existe pena de morte no Brasil”, dispara Boulos – mas o trago amargo que é ler seus textos parece-me também salutar medicina contra nossas cegueiras morais, auto-ilusões voluntárias e impotências resignadas. “De Que Lado Você Está?” (Ed. Boitempo) é um livro tonificante, um tanto incendiário, escrito por uma jovem liderança política que emerge no país e que é admirável por sua capacidade de mobilização na práxis e pela amplidão de seu conhecimento concreto da realidade que nos engloba.
Com entusiasmo recomendo a leitura desta poderosa coletânea de panfletos e artigos-de-intervenção, que re-animam a chama de um jornalismo autenticamente crítico, a serviço da melhoria revolucionária de nossos pavorosos quadros sociais. Algumas frases de Boulos tem o estampido incendiário de coquetéis molotov; mas ele quer destruir os destruidores, abrindo o terreno para construções coletivas mais justas. Segundo o próprio autor, De que lado você está? “é uma obra de intervenção, que propõe saídas à esquerda para os desafios que a explosiva conjuntura brasileira nos oferece”.
Devorei-o, como bom antropófago, nestes últimos dias. E fui obrigado pela força argumentativa do texto, além do substancial embasamento em fatos e estatísticas concretos, a reconhecer os amplos méritos das análises de Boulos. Lendo-o, sinto reverência diante de uma das mentes que me parecem mais importantes dentre as que hoje, no Brasil, pensam a política. Boulos pensa a fundo e sem covardia. E não tem medo de rasgar o tecido do kitsch e revelar um país bem mais horrendo do que vendem-nos as fantasias ufanistas.
Boulos junta-se ao time que já tem Vladimir Safatle, Maria Rita Kehl, Eduardo Viveiros de Castro, Eliane Brum, dentre outros, no forefront de um “Levante dos Palmares” de parte da intelectualidade brasileira, que está em estado de rebelião aberta, incapaz de aceitar calada as mazelas e desmandos das Paulicéias Desvairadas e das Hellcifes desta vasta Brazilândia ensandecida. Ó pátria mãe gentil, “o que ofereces a teus filhos sofridos”, pergunta-te o rapper Criolo, “dignidade ou jazigos?”
“Lavar os copos / Contar os corpos / E sorrir / A esta morna rebeldia.” Criolo
Sou admirador confesso dos textos-manifesto de Boulos e acho que eles às vezes alçam-se ao poder retórico dos escritos do Subcomandante Marcos ou de Eduardo Galeano (pouca gente no Brasil escreve com tanta combatividade latino-americana quanto Boulos!). Com frequência a voz de Boulos soa-me um tanto Eduardo Galeanesca em seu brado anunciador de uma outra ordem, menos perversa e nefasta que esta hoje vigente. Além disso, Boulos, fiel ao espírito de um certo Vladimir Safatlismo, é da turma daquela Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome (para citar o título do notável livro-manifesto de Safatle). Revela-se assim como um dos autores de leitura mais crucial pra compreender o Brasil de hoje – que é, para Boulos, um barril de pólvora em forma de país – e sem escassez de fagulhas e estopins.
O livro que a editora Boitempo acaba de lançar revela uma pena firme e uma voz convicta. Boulos é contundente em suas denúncias e diagnósticos – por exemplo, afirma que “existe fascismo em SP”, de certo modo ecoando e fazendo dueto com “Não Existe Amor em SP” de Criolo. Para além do denuncismo, ele também é movido, em sua práxis e em seus textos, por certos anúncios utópicos: pode ser que, na polarização exacerbada do cenário político (que vivenciamos desde o fim de 2014, numa das eleições presidenciais mais acirradas da história brasileira recente), haja de fato o potencial de uma “saída à esquerda”.
Comecemos pelo diagnóstico que faz Boulos sobre SP, às beiras do colapso hídrico, vivendo há duas décadas sob a hegemonia política do Tucanato: em São Paulo, diagnostica, há fascismo sim, e de sobra. “E a elite paulistana não faz nenhuma questão de escondê-lo. Sabemos que não é de hoje. A história da segregação territorial em São Paulo vem dos anos 1940, quando se inicia de forma sistemática a demolição dos cortiços e das residências operárias nas regiões centrais. Pobre precisa vir ao centro para trabalhar e servir, mas morar ali? Não, aí já é vandalismo!” (p. 36)
O fascismo não é novidade, nem no Brasil (que vivenciou tanto na Era Vargas quanto durante a Ditadura Militar de 1964-1985 regimes ditatoriais e de características fascistas) nem em São Paulo, onde, recentemente, sob a batuta de um certo prefeito Gilberto Kassab, hoje promovido a Ministro das Cidades, ocorreu uma verdadeira epidemia de incêndios em favelas… As favelas incendiadas, tanto quanto as famílias expulsas de suas casas no Pinheirinho (em São José dos Campos), aparecem a Boulos como sintomas de uma mesma lógica, nefasta, hoje hegemônica, que “materializa no território a segregação social”:
“Quando um bairro recebe investimentos ou passa a hospedar grandes empreendimentos privados – condomínios de alto padrão, shoppings etc. – sofre um processo intenso de valorização. Expulsa assim os moradores mais pobres, por vezes através de despejos coletivos e, mais frequentemente, pela hipervalorização dos aluguéis. Essa dinâmica econômica sedimentou uma mentalidade higienista na elite e nas camadas médias. Veio junto com uma fobia, um nojo, uma recusa da convivência. Seu ideal seria que os pobres trabalhassem para servi-los, mas ao fim do expediente evaporassem, para retornar apenas no dia seguinte. Pobres podem até existir, desde que longe de seus olhos.
(…) A face mais perversa desse fenômeno foram os incêndios em favelas. O mercado imobiliário é mesmo muito criativo. Quando, por alguma eventualidade, o Judiciário barra o despejo de uma favela localizada em zona de expansão imobiliária, eles fazem a seu modo. Incendiar favelas tornou-se um recurso habitual para afastar pobres dos condomínios de alto padrão. (…) O site Fogo no Barracoreuniu em um mapa todos os incêndios em favelas paulistas de 2005 a 2014 e comparou as regiões incendiadas com o índice de valorização imobiliária. O mapa mostra como a enorme maioria dos incêndios ocorreu em zonas de valorização. Mais inflamável que o clima seco é a especulação. Os dados dizem ainda que metade dos incêndios dos últimos vinte anos ocorreu entre 2008 e 2012, isto é, durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD) como prefeito, que foi marcada pela promiscuidade com o mercado imobiliário.” (BOULOS, 2015, Boitempo, p. 37)
Brada-se no Brasil contra a corrupção e aponta-se muito o dedo para Brasília, como se lá se concentrasse a corja, o ninho de serpentes, Sodoma e Gomorra no Cerrado… Mas muita gente esquece-se do gigantesco papel corruptor dos comportamentos do setor privado em nossos tempos neoliberalizados. Guilherme Boulos, em sua análise impiedosa e lúcida da especulação imobiliária, comunica-nos um absurdo: neste país, com mais de 6.000.000 de pessoas sem moradia digna, segundo o IBGE, existem cerca de 6.052.000 imóveis desocupados – 400 mil deles em São Paulo. De um lado, famílias sem casa; de outro lado, casas sem famílias, servindo à especulação imobiliária.
Resistência popular urbana no Pinheirinho (São José Dos Campos / SP) com a comunidade prestes a ser invadida pela PM
Boulos provoca: “O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o direito à especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto buscando – que ousadia! – o direito de morar em alguma parte. (…) Tratar problemas sociais como casos de polícia é sinal inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos Carajás ou no Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para sufocar as contradições da sociedade.” (p. 39)
A postura combativa e os discursos falando-grosso de Boulos podem até conduzir alguns a pensarem nele como caricatura da figura do radical esbravejante, mas a leitura destes artigos publicados na imprensa revela um homem profundamente inteligente e bem-informado, de muita coerência e sensatez, incapaz de ficar calado diante de gritantes desigualdades sociais, e que segue o mantra marxista de que o filósofo não deve somente interpretar o mundo, mas tem por tarefa ajudar a transformá-lo.
Boulos conecta assuntos aparentemente dispersos, alheios uns aos outros, como a especulação imobiliária e a diminuição da maioridade penal, mostrando que tudo faz parte de uma mesma lógica: um Estado autoritário, gerido por uma elite de mente privatista e tendências à barbárie higienista, que impõe pela violência uma “ordem” onde possa gozar de todos os privilégios o deus Lucro. Nem Alá, nem Jeová, nem Buda: no Brasil, barril de pólvora, a elite está de joelhos diante de Pluto…
Os artigos de Boulos dedicam-se a auscultar o coração da vida urbana no Brasil e revelam-nos um dos mais perspicazes intérpretes políticos do país. Explica muito bem todo o contexto do país que foi chaqualhado pelas Jornadas de Junho de 2013 e, depois, pela UFC eleitoral entre PT e PSDB em 2014. O foco da atenção de Boulos cai mais frequentemente sobre São Paulo, já que é esta a megalópole onde Boulos age mais ativamente, seja através do MTST ou de seus textos na Folha de São Paulo, de modo que não faltam murros e alfinetadas lançados pelo audaz articulista contra as autoridades-mor da Paulicéia Desvairada:
“O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra malufista de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma oportunidade de pôr o Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no curto prazo, numa sociedade dominada pelo medo e pela violência. Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais disso, mas a memória é curta… Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.” (BOULOS, p. 40)
Carlos Latuff, 2012
Como efeito dos grandes eventos esportivos – tanto a “Copa das Tropas” quanto as Olimpíadas de 2016 – vivenciamos nos grandes centros urbanos uma epidemia de especulação imobiliária e gentrificação. Na chamada Cidade Maravilhosa, Boulos também faz o diagnóstico de “uma sociedade em que o lucro está acima de todo o resto”: “o Rio de Janeiro tem registrado o maior índice de valorização imobiliária entre todas as cidades incluídas nas estatísticas da Fipe/Zap. Nos últimos 6 anos, a valorização média do metro quadrado atingiu 262%. Os aluguéis também dispararam, subindo 143% no mesmo período.” (pg. 44)
Um dos piores problemas do Brasil, no diagnóstico de Boulos, é justamente o poderio das mega-empresas da construção civil, que acarreta, como subproduto da lógica econômica e política hegemônica, uma tremenda precarização das moradias para milhões de pessoas. Longe tanto do antipetismo feroz que não sabe reconhecer os méritos do período “lulista-dilmista” quanto da subserviência acrítica ao governo do PT, Boulos tece um discurso onde aponta os avanços do país, a partir da eleição do Lula, mas que também aponta muitas insuficiências, como fica clara na análise que faz do Minha Casa Minha Vida:
“Embora seja o maior programa de habitação popular da história do Brasil, o Minha Casa Minha Vida reproduz o modelo da cidade do apartheid. A dinâmica imobiliária sempre empurrou os mais pobres para as periferias. Ao invés de fazer o contraponto, o programa tem reforçado esse movimento excludente. Quem define os terrenos que serão disponibilizados são as construtoras… O resultado é previsível: as construtoras usam seus piores terrenos e proliferam-se condomínios-guetos nos fundões urbanos. (…) Aliás, a especulação imobiliária sabota os próprios efeitos quantitativos do programa. Mesmo com o Minha Casa Minha Vida, o déficit habitacional cresce de forma consistente nas principais metrópoles do país. O ritmo de produção de novos sem-teto – pelo aumento de valor dos aluguéis – é maior do que o de construção de novas casas.” (p. 55)
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 11-12-2013, 10h00: Diversos grupos e ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) realizam protesto (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
Quanto ao tema do corrupção (e dos corruptores), Boulos está bem informado sobre os “escândalos que se sucedem e bodes expiatórios são criados um após o outro para acalmar os ânimos. A mídia denuncia, o público pede cabeças e vez ou outra alguma vai para a guilhotina. Nesse circo contínuo se alimenta a descrença do povo na política institucional. (…) O discurso que tem se fortalecido é o da direita. Não se pode nunca esquecer que a Marcha da Família com Deus, que preparou o golpe militar de 1964, tinha o combate à corrupção como lema.” (p. 71)
A cruzada contra a corrupção pode tornar-se um estandarte fascista, e contra isso Boulos fornece o remédio: a compreensão clara dos porquês da “estrutura carcomida do sistema político brasileiro”. A essência de nossa desgraça coletiva estaria, afirma Boulos, na “apropriação do Estado pelos interesses de uma elite patrimonialista. A captura dos recursos públicos está aí. A burguesia brasileira pede um Estado mínimo e enxuto para o povo, mas desde sempre teve para si um Estado máximo. Privatizar os lucros e socializar o prejuízo, esta é sua diretriz.” (p. 72)
As corporações construtoras viciam todo o sistema político brasileiro:
“Não é à toa que os principais ‘doadores’ de campanha eleitoral são as empreiteiras, que também são o setor mais acionado para obras públicas. Dos 10 maiores financiadores de campanha, 7 estão sendo investigados por corrupção. A Camargo Correa, líder no financiamento eleitoral em 2010, é investigada por desvios de R$ 29 milhões na Refinaria de Abreu e Lima – e na mesma obra, a Galvão Engenharia é investigada pela bagatela de R$70 milhões. A Andrade Gutierrez, vice-líder em 2010, é alvo do TCU por superfaturamento de R$86 milhões na Arena Amazônia… A JBS Friboi, maior frigorífico do mundo, é objeto de inquérito por fraude em precatórios que pode chegar a R$3,5 bilhões.
O conluio entre grandes empresas, partidos e candidatos é o maior câncer da política brasileira. O legítimo pai da corrupção. No Congresso Nacional esse jogo de interesses é escancarado. Dados do Diap mostram que quase 50% dos deputados eleitos em 2010 compõem a chamada bancada empresarial. É por isso que o Brasil precisa urgentemente de uma reforma política. Ficar no sofá ou nas redes sociais reclamando da corrupção pode até ter serventia psicológica para quem o faz, mas não tem qualquer consequência prática. Defender uma reforma política ampla e pautada no fim do financiamento privado das campanhas eleitorais, na revogabilidade dos mandatos e no fortalecimento dos mecanismos de participação popular é apenas dar coerência ao repúdio à corrupção e aos corruptos da política brasileira.
As soluções só podem vir de iniciativas populares. Afinal, não se pode esperar que o Congresso Nacional, verdadeiro balcão de negócios de interesses privados, faça ele próprio uma reforma política que liquide com seus privilégios patrimonialistas.”
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Na sequência, como exemplo de um texto de Boulos de intensa e imensa relevância em nossa atual conjuntura nacional, A Casa de Vidro compartilha o brilhante “Robin Hood Às Avessas”. Boa leitura!
Corte de gastos, mais uma vez, é o assunto do momento. Apesar de o candidato de sua predileção ter perdido as eleições, a banca conseguiu impor sua pauta. A velha cantilena do arrocho neoliberal volta a ganhar força no governo petista, com Joaquim Mãos-de-Tesoura à frente da equipe econômica. Venceu a chantagem dos “investidores”.
Mas, se o assunto é corte de gastos, por que não debatê-lo sem preconceitos?
O debate dos gastos públicos no Brasil é totalmente enviesado. Nas últimas semanas tem-se feito um circo em torno da meta de superavit primário. Os banqueiros querem ampliá-la e o governo –cabisbaixo como um mau aluno– reconhece que tem de fazer mais e promete maior aperto em 2015. O superavit primário, recurso desviado dos investimentos públicos para pagamento de dívida, é em si uma excrecência. Poucos são os países que o adotam.
Os Estados Unidos, modelo dos liberais que falam de descontrole fiscal por aqui, acumula todos os anos deficits fiscais consideráveis. Não só não reserva dinheiro arrecadado para o pagamento da dívida como também gasta mais do que arrecada. O deficit fiscal dos EUA neste ano foi de mais de U$480 bilhões ou 2,3% do PIB. Será Obama um bolivariano fiscal?
Na zona do Euro o deficit, apesar de decrescente, ficou em 3% do PIB em 2013. Já aqui fazem escândalo por acharem que o superavit não é suficiente. Suficiente pra quem, cara pálida?
Os gastos do Brasil com o serviço da dívida pública –amortização, pagamento de juros e rolagem– são assombrosos. Em 2012, o dinheiro público destinado ao pagamento dos credores da dívida correspondeu a 44% do Orçamento federal. Em 2013, a 40%, expressando nada menos que R$ 718 bilhões. Neste ano, até o final de outubro, já haviam sido sugados pela dívida R$910 bilhões, cerca de 50% dos gastos da União no período. Os dados são da Auditoria Cidadã da Dívida, que também disponibiliza gráficos comparativos impressionantes sobre o assunto.
Essa montanha de dinheiro vai para grandes bancos e “investidores” nacionais e estrangeiros. Uma elite que abocanha diariamente quase R$ 3 bilhões de recursos públicos. É a chamada Bolsa Banqueiro.
Há quem reclame dos gastos com o Bolsa Família. O programa gastou em 2013 R$ 24 bilhões para atender 50 milhões de pessoas. Isto corresponde ao gasto de menos de 10 dias da Bolsa Banqueiro, para beneficiar alguns milhares de ricaços. Ora, não podemos dar o peixe aos bancos, temos de ensiná-los a pescar!
Todos defendem melhorias na saúde e na educação, não é mesmo? A previsão de gastos federais para este ano em educação foi de R$ 115 bilhões. Na saúde foi de R$ 106 bilhões. Já a Bolsa Banqueiro arrancará este ano mais de R$1,02 trilhão de recurso público federal.
Todos se indignam também com a corrupção no Brasil. De fato, a apropriação privada de recursos públicos é inaceitável e devemos combatê-la com unhas e dentes. Agora, este combate não deve limitar-se aos escândalos políticos. Tem que pegar as grandes raposas do atacado. A cada dia, a Bolsa Banqueiro desvia do orçamento público valor correspondente a 20 mensalões. Se um mensalão nos indignou, por que não nos indignam 20 mensalões por dia?
Porque nos vendem diuturnamente a ideia de que estes pagamentos são necessários para atrair investimentos e de que esta dívida é legítima. Afinal, não pagar dívida é coisa de caloteiros!
Em relação aos investimentos, o argumento é um contrassenso em si. Na verdade, o serviço da dívida suga os recursos do país, em vez de invés incrementá-los. Que investimento é esse que arranca R$1 trilhão por ano?
A legitimidade desta dívida é um capítulo à parte. A estudiosa Maria Lucia Fatorelli demonstra com abundância de dados como a dívida pública foi construída na base de fraudes, contratos duvidosos e dos famosos juros flutuantes, que aumentam ao gosto do credor. Formou-se, diz ela, um sistema da dívida que atua como um ciclo vicioso, ampliando o valor devido quanto mais se paga.
Essas malandragens do colarinho branco foram postas a nu nos países que fizeram auditoria em suas dívidas públicas. No Equador, a auditoria de 2007 mostrou que 70% da dívida era ilegítima. Mesmo por aqui, quando Getúlio Vargas auditou os contratos nos anos 30, descobriu-se que 40% da dívida não estava sequer respaldada por contratos!
Vamos, portanto, falar seriamente de corte de gastos. Mas não nas migalhas destinadas aos investimentos sociais ou à previdência pública. Estes precisam ser decididamente ampliados se quisermos caminhar para reduzir as desigualdades gritantes de nosso país. É preciso mexer na verdadeira ferida dos gastos públicos: o insustentável pagamento do serviço da dívida, a Bolsa Banqueiro.
A tesoura do Joaquim não está afiada para isso. Mas sim para reproduzir a hipocrisia de cortar os já medíocres investimentos sociais. É a política do Robin Hood às avessas: tirar mais dos pobres para dar aos ricos. Chamam isso de responsabilidade fiscal.
Sou obrigada a concordar com Friedrich Nietzsche: na origem da demanda por justiça está o desejo de vingança. Nem por isso as duas coisas se equivalem. O que distingue civilização de barbárie é o empenho em produzir dispositivos que separem um de outro. Essa é uma das questões que devemos responder a cada vez que nos indignamos com as consequências da tradicional violência social em nosso país.
Escrevo “tradicional” sem ironia. O Brasil foi o último país livre no Ocidente a abolir a prática bárbara do trabalho escravo. Durante três séculos, a elite brasileira capturou, traficou, explorou e torturou africanos e seus descendentes sem causar muito escândalo.
Joaquim Nabuco percebeu que a exploração do trabalho escravo perverteria a sociedade brasileira –a começar pela própria elite escravocrata. Ele tinha razão.
Ainda vivemos sérias consequências desse crime prolongado que só terminou porque se tornou economicamente inviável. Assim como pagamos o preço, em violência social disseminada, pelas duas ditaduras – a de Vargas e a militar (1964 a 1985)– que se extinguiram sem que os crimes de lesa-humanidade praticados por agentes de Estado contra civis capturados e indefesos fossem apurados, julgados, punidos.
Hoje, três décadas depois de nossa tímida anistia “ampla, geral e irrestrita”, temos uma polícia ainda militarizada, que comete mais crimes contra cidadãos rendidos e desarmados do que o fez durante a ditadura militar.
Por que escrevo sobre esse passado supostamente distante ao me incluir no debate sobre a redução da maioridade penal? Porque a meu ver, os argumentos em defesa do encarceramento de crianças no mesmo regime dos adultos advém dessa mesma triste “tradição” de violência social.
É muito evidente que os que conduzem a defesa da mudança na legislação estão pensando em colocar na cadeia, sob a influência e a ameaça de bandidos adultos já muito bem formados na escola do crime, somente os “filhos dos outros”.
Quem acredita que o filho de um deputado, evangélico ou não, homofóbico ou não, será julgado e encarcerado aos 16 anos por ter queimado um índio adormecido, espancado prostitutas ou fugido depois de atropelar e matar um ciclista?
Sabemos, sem mencioná-lo publicamente, que essa alteração na lei visa apenas os filhos dos “outros”. Estes outros são os mesmos, há 500 anos. Os expulsos da terra e “incluídos” nas favelas. Os submetidos a trabalhos forçados.
São os encarcerados que furtaram para matar a fome e esperam anos sem julgamento, expostos à violência de criminosos periculosos. São os militantes desaparecidos durante a ditadura militar de 1964-85, que a Comissão da Verdade não conseguiu localizar porque os agentes da repressão se recusaram a revelar seu paradeiro.
Este é o Brasil que queremos tornar menos violento sem mexer em nada além de reduzir a idade em que as crianças devem ser encarceradas junto de criminosos adultos. Alguém acredita que a medida há de amenizar a violência de que somos (todos, sem exceção) vítimas?
As crianças arregimentadas pelo crime são evidências de nosso fracasso em cuidar, educar, alimentar e oferecer futuro a um grande número de brasileiros. Esconder nossa vergonha atrás das grades não vai resolver o problema.
Vamos vencer nosso conformismo, nossa baixa estima, nossa vontade de apostar no pior –em uma frase, vamos curar nossa depressão social. Inventemos medidas socioeducativas que funcionem: sabemos que os presídios são escolas de bandidos. Vamos criar dispositivos que criem cidadãos, mesmo entre os miseráveis –aqueles de quem não se espera nada.
MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora de “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões” (Boitempo) e de “Processos Primários” (Estação Liberdade). Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo em Julho de 2015.
“Joel Birman é filósofo e psicanalista. Formado em medicina na década de 1970 é Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado em Paris, no Laboratoire de Psichopathologie Fundamentale et Psychanalyse (Université Paris VII). Atualmente é professor na UFRJ e UERJ.
Nesta entrevista produzida pela TVBrasil é investigada a relação entre arte e loucura. Birman desvenda as inúmeras e complexas relações entre arte e loucura e entre arte e psicanálise. No papel de analisado, o entrevistador, Aderbal participa da sessão no divã-banheira, que, desde sempre, tem sido o centro inconsciente do cenário do programa.”
Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela Humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira ferida: a perda de nossa ilusão de estarmos em um planeta imóvel que estaria no centro do cosmos, fantasia geocêntrica destroçada pelas descobertas de Copérnico (e também de Bruno, Galileu e Kepler), que ocasionou o reconhecimento pleno do heliocentrismo (apesar de tantos cientistas e suas obras terem perecido nas fogueiras da Inquisição). A segunda ferida: a “degradante” descoberta Darwiniana da evolução das espécies pela seleção natural, que deu a nosso narcisismo a má notíci” de que não somos criaturas saídas já prontas das mãos de um deus (como rezava o mito de Adão e Eva), mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados. A terceira ferida seria a própria psicanálise Freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas e libidinais do que por princípios racionais.
Mas as feridas narcísicas que Freud surgiu para infligir talvez sejam mais profundas e amplas do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que gostariam de continuar a crer que são os “favoritos da Criação”. Colapsa, para quem concorda com Freud, qualquer noção de que haveria um “plano divino” dedicado a construir a excepcionalidade do homo sapiens como animal predileto por seu Criador – que estaria, no fundo, devotado a premiar com a beatitude eterna os bem-comportados humanos de seu divino rebanho. Ao contrário destas fantasias neuróticas e infantilóides que costumeiramente passam pelo normal da fé, diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à laSchopenhauer: “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”.
A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:
“Os elementos parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)
Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos, ela é indiferente:
“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]
Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Em: Os Pensadores, pg. 96)
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TRÍPLICE MISSÃO
A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.
As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.
“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107).
A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:
“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)
Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)
A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.
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DESEJO E ILUSÃO
Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:
“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)
Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.
Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).
Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse. É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:
“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)
Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.
A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.
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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI
Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).
Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).
Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):
“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”
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ILUSÃO BENIGNA?
Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?
Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:
“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)
Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):
“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)
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MORALIDADE E IRRELIGIÃO
Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.
Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).
Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!
Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!
Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).
Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.
“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).
Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.
Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).
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A FÉ ASFIXIANDO O PENSAMENTO
A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?
“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)
Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113). Este afastamento em relação às crenças religiosas abre os horizontes humanos para uma reflexão sobre o quanto nossas existências são transitórias e qual sabedoria poderia ser aprendida e vivida a partir do pleno reconhecimento desta transiência, tema de um dos mais belos escritos de Freud:
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SOBRE A TRANSITORIEDADE
“Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vida, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhe estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso para muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”
(Sigmund Freud. Obras Completas Volume 14, ed. Imago.)
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REFERÊNCIAS
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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.
FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.
FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.
FREUD, S.Sobre a Transitoriedade. Em: Obras Completas Volume 14, ed. Imago.
KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.
LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
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