Conheça o thriller distópico “Soylent Green: À Beira do Fim” (1973), que representa NYC na década de 2020

por Eduardo Carli para A Casa de Vidro

Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Greendirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).

Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!, Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.

Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”:  o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.

A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.

Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.

Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.

O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.

Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).

Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.

In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)

No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.

O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…

O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”

O artigo excelente de Maria Ramos em Bitch Flicks destaca muito bem os elementos de crítica do sexismo / machismo que a obra traz:

Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”

Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.

Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.

Supostamente fabricados a partir de planktonsos alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.

Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal. 

Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news marketing. 

Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.

O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em ParasitaO Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.

Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)

É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.

O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.

A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.

Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.

Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.

O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.

SOYLENT GREEN

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 19/04/2020
http://www.acasadevidro.com

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O IMENSO ESPELHO DO CÉU – Documentário curta-metragem filmado no Salar de Uyuni, em Potosí, Bolívia (2018, 14 min)

EL INMENSO ESPEJO DEL CIELO

 

 

“O que é a História de toda a América senão uma crônica do real-maravilhoso?” Alejo Carpentier

Salar de Uyuni é um dos locais mais deslumbrantes sobre a face da Terra. É o maior e mais alto deserto de sal do mundo: estende-se por 10.582 km quadrados e encontra-se a 3.656 metros acima do nível médio do mar. Está localizado nos estados de Potosí e Oruro, na Bolívia, sendo um dos destinos turísticos mais procurados do país.

Era época de chuvas, quando o salar se transforma em um “Imenso Espelho do Céu” – “El Inmenso Espejo Del Cielo”, título deste documentário curta-metragem, falado em espanhol, em que registro um pouco da travessia maravilhosa que fiz na excelente companhia de Elvis Félix (nosso guia), o peruano Alexander Ccoycca Ccaulla, a holandesa Amanda Sabat, os chilenos Hans Richard Carrasco Jorquera e Carla Ríos Martinez, e o japonês Hiroki Matsubara.

Ali passei algumas das experiências mais extraordinárias que essa existência já me proporcionou. Era o início de 2018 e eu vinha de uma travessia extremamente fascinante pelo Peru – primeiro, por Cuzco e Macchu Picchu, depois em Puno para as festividades folclóricas da Candelária no Lago Tititica. Após deixar para trás a região do Titicaca, chegando em La Paz e seus teleféricos de transe, peguei um vôo doméstico da BOA rumo à Uyuni que foi um dos piores que já tive o desprazer de experimentar: tanta turbulência e tempestade que eu, em meio às taquicardias, já estava me despedindo dos vivos e imaginando que morreria espatifado no chão com a queda daquele teco-teco treme-treme. Chegar vivo em Uyuni foi um alívio tão maravilhoso que me colocou na vibe certa para apreciar cada segundo da jornada.

No vídeo, registro algumas conversas que tive com os companheiros de viagem sobre temas importantes de nossa latinoamericanidade: o que significa que a Bolívia tenha se tornado, na era Evo Morales, um “Estado Plurinacional”? Por que há um “Cemitério de Trens” nas proximidades do salar e para quê finalidades eram utilizados os vagões e trilhos? Que minérios foram extraídos dali no passado, e quais os minérios que hoje fazem crescer os olhos dos mineradores? Por que este é um dos locais mais “fotogênicos” do planeta e por que tanta gente gosta de levar pra lá dinossauros em miniatura?

Este filme, mescla de diário turístico com tentativa de etnografia documental a quente, revela alguns vislumbres das belezas infindas da paisagem natural e humana da Bolívia. Filmagem, montagem e som direto por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro. Trilha sonora com canções queridas do Quilapayun e do Perotá Chingó.

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CERRADO VIVO OU BARBÁRIE – O cinema como arma de conscientização em massa. Sobre “Ser Tão Velho Cerrado”, de André D’Élia.

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ARMA DE CONSCIENTIZAÇÃO EM MASSA
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Não é catastrofismo delirante, é puro senso de realidade e atenção aos fatos empíricos: o Cerrado e toda sua estonteante diversidade está indo pro ralo, e nós com ele.

No país que é líder global no uso de agrotóxicos, onde cada cidadão consome 5 litros de veneno ao ano, estamos trucidando biodiversidade para substituí-la por monoculturas focadas no mercado estrangeiro.

Estamos deixando áreas de preservação ambiental serem invadidas pelos interesses de mineradoras, empreiteiras e hidrelétricas. Estamos testemunhando incêndios criminosos que alastram um fogo destruidor como represália pela expansão de parques devotados ao ecoturismo e à ampliação da consciência ambiental.

Estamos diante de uma alternativa similar à proposta por Rosa Luxemburgo (e Castoriadis) entre socialismo ou barbárieou mantemos o Cerrado vivo, ou tempos muito bárbaros virão, com água escassa, solos desérticos, migrações em massa, climate wars…

Um exemplo é a estrada que liga Brasília à Chapada dos Veadeiros: ela está tomada pelos mega-empreendimentos do agronegócio, e esses fazendeiros endinheirados são especialistas em ecocídio.

O extermínio da vida original do território é muitas vezes um crime sem volta, uma dilapidação de um bem que deveria, caso não fôssemos tão irresponsáveis, ser legado aos que ainda não nasceram (são preceitos básicos daquele livro de filosofia ainda tão pouco estudado, compreendido e praticado por nós: O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas).

A riqueza inestimável da fauna e flora do Cerrado brasileiro é sacrificada para que possamos vender soja transgênica que alimentará porcos e vacas na China. Bichos escravos da indústria da carne (assistam Meat the Truth, Cowspiracy Earthlings), ainda necessitados daquela Libertação Animal de que fala o filósofo Peter Singer, animais cujas existências repletas de horror, sofrimento e agonia são tratados como commodities, produtos a serem consumida pelas centenas de milhões de carnívoros do planeta (enquanto isso, o vegetarianismo segue menos disseminado do que precisaríamos para salvar o planeta das hecatombes que já não podemos evitar).

Os lordes do agrobiz, especialistas em desmatamento, mestres da cegueira imediatista, fascinados com lucros a curto prazo mas desatentos em relação às necessidades de futuras gerações, estão fabricando a encarnação da distopia: um mundo onde este Ser tão velho, o Cerrado com seus mais de 40 milhões de anos nas costas, é irreversivelmente tratorado pelo avanço inclemente do “Progresso Modernizador”.

Ou seja, uma avalanche de latifúndios monocultores, que empregam pouquíssima gente, proliferam pesticidas cancerígenos, estimulam sementes transgênicas que só funcionam em conjunção com os produtos fertilizantes e mata-pragas fabricados por mega-corporações transnacionais, tomam o cenário de assalto.

E isto justo na época histórica onde formam-se monstros corporativos como a fusão entre Bayer e Monsanto. Num tempo onde a conjuntura política é desesperadora, com a ascensão ao poder de figuras como Donald Trump, inimigo número 1 de quaisquer práticas sustentáveis e quaisquer discursos ecologistas – e que saltou fora do Acordo de Paris sobre o aquecimento global, praticamente inviabilizando uma solução para o aumento vertiginoso das temperaturas planetárias, pois o maior poluidor atmosférico sobre a face da Terra diz, desde a Casa Branca, que está cagando e andando pra isso. O que interessa é a bufunfa, o clima que se exploda. Diante disso, ensina Naomi Klein, não basta dizer não!

Neste contexto, Goiás caminha no sentido de coloca um revólver tamanho família em sua própria cabeça e dar um tiro suicida em seu cérebro: o Caiado (DEM) é líder em todas as pesquisas de intenção de voto e deve tornar-se o novo governador do Estado após décadas de hegemonia do PSDB de Marconi Perillo. É uma conjuntura que nos leva a pensar na Lei de Murphy que enuncia: nada é tão ruim que não possa piorar. Pior que tá, fica sim.

É nossa tarefa trampar por um mundo melhor, decerto, mas às vezes também estamos obrigados a unir forças para evitar que a situação degringole para algo ainda mais catastrófico do que aquilo que já vivemos. De modo que os discursos e práticas favoráveis à conservação natural não necessariamente vinculam-se ao campo conservador do espectro político: podemos ser como ecosocialistas que defendem um modelo de intercâmbio entre Humanidade e Natureza que não seja predatório nem loucamente extrativista, apostando num modelo que privilegie a agrofloresta, a agricultura familiar e orgânica, a permacultura, a celebração da sociobiodiversidade em nossa cultura.

Neste contexto é que o cinema – como não cesso de descobrir em jornadas de intensa cinefilia! – tem poderes impressionantes de mobilização e conscientização. A chegada entre nós de Ser Tão Velho Cerrado é crucial para mostrar que esses poderes do cinema não servem somente para entreter e alienar, para gerar lucros estratosféricos com ingressos, para movimentar uma pujante indústria cultural massificada. Os poderes do cinema – em expansão espantosa deste a época dos primórdios, com os Irmãos Lumière e o mago Mèslies – podem ser mobilizados para iluminar e expandir horizontes, como ferramentas para a educação cívica, como armas de conscientização em massa.

O cinema pode ser uma via de sabedoria, uma escola itinerante cujos ensinamentos viajam na mídia leve da imagem-e-som digitalizados. Um meio de comunicação disseminável através das fronteiras, que vai onde um professor de carne-e-osso não pode ir, devido à proliferação das cópias e a divulgação na Internet, que rompe com o isolamento físico do educador que só pode estar em um único ponto do espaço-tempo de cada vez. Um filme pode ser, sintetizado em 90 minutos, todo um tratado de física, de filosofia, de biologia, de ambientalismo, de espiritualidade, de geografia, de história, de astronomia. Pode ser um chamado à união, ou mesmo à insurreição. Pode disparar os alarmes para que os adormecidos despertem para catástrofes iminentes – mas evitáveis.

Esta ambição de ensinar, somada ao ímpeto de denunciar os maus rumos que na atualidade estamos tomando, anima este filme co-movedor de André D’Élia. Sinto que nós todos, que de alguma maneira estamos visceralmente envolvidos com o métier do documentarismo e do audiovisual, sentimos bem, durante a sessão do documentário de produção e pesquisa primorosas, o quanto Ser Tão Velho Cerrado chega em boa hora e é uma obra-prima do gênero. É um documentário extremamente relevante e que precisa ser disseminado.

A aula que o filme proporciona é rica em ensinamentos cruciais: nos fala sobre o maior território quilombola da América Latina, o sítio histórico do povo Kalunga, e retrata a resistência deste povo contra o avanço trucidador dos poderes do ecocídio lucrativo; nos fala sobre a crise hídrica que nos ameaça e sobre a importância do Cerrado, como berço das águas, para todos os biomas que o circunda no território deste país de dimensões continentais; nos fala da desgraça política que é a falta de representação, nas instituições pseudo-democráticas, daqueles que defendem os interesses das populações tradicionais, dos agricultores familiares, dos produtores que não usam transgênicos; nos fala também das benesses de um ecoturismo em expansão e que, apesar de seus perigos (a gourmetização e a gentrificação), parece ser mesmo a solução imediata mais sábia para uma ocupação cívica construtiva da Chapada dos Veadeiros.

É um filme que sonda com coragem os problemas mais urgentes e cruciais de nossa época: fala das mudanças climáticas, da interconexão entre os biomas, da importância inestimável da preocupação com sustentabilidade, mas sem vender róseas soluções prontas. Ao contrário, Ser Tão Velho Cerrados pinta um retrato bastante distópico de nossa realidade atual, em que os retrocessos sócio-ambientais são chocantes e imensos. Vide a catástrofe gigantesca que matou o Rio Doce na “Tragédia de Mariana” (e que ameaça se repetir com as novas ofensivas das mineradoras sobre áreas outrora protegidas).

Este é também o primeiro filme brasileiro que faz a crônica e o registro histórico das proporções assustadoras do incêndio que devorou uma imensa fatia da fauna e flora da Chapada dos Veadeiros em 2017, chamas que muito provavelmente foram criminosamente provocadas em represália à expansão da área do Parque Nacional. Fiapos de esperança são os mutirões e as brigadas de combate ao fogo que puderam conter a tragédia através de uma solidariedade nascida das urgências do instante.

O fogo consumiu vorazmente cerca de 66 mil hectares – o equivalente a 28% da unidade de conservação – da rica flora e fauna do Cerrado em um dos piores desastres sócio-ambientais ocorridos no Brasil depois da hecatombe do Rio Doce. A Chapada dos Veadeiros viu-se lançada a um estado de emergência que exigiu solidariedade construída às pressas: ativistas e cidadãos conscientes se mobilizaram em brigadas para apagar o fogo e triunfaram após 20 dias de intensos e fatigantes trabalhos (leia mais minúcias nesta reportagem da Mídia Ninja): 

“Segundo Christian Berlinck, coordenador de combate ao fogo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, o Governo Federal gastou aproximadamente um milhão de reais na operação. Da sociedade civil, foram quase 200 voluntários envolvidos nas funções da operação e quase 600 mil reais arrecadados em um exitoso financiamento coletivo, que continuará a ser feito, na criação de brigadas voluntárias permanentes, que atuariam anualmente.” – Ninja

Esse Ser tão antigo do nosso planeta, o Cerrado de ancestralidade que deveríamos reverenciar, hoje está envolvido no cerne de uma contextura desesperadora, onde comparecem elementos como a escassez hídrica, a extinção acelerada da biodiversidade, a iminência de uma catástrofe ambiental global com o descontrole do clima terrestre etc. Tudo isso somado aos mega-projetos da mineração, do agrobiz, da hidreletricidade, fortemente amparados no poder político plutocrático. Contra tudo isso, precisamos sim, e muito, de educação – desde que ela seja mobilizadora, ativista, colocando o aluno na posição daquele que precisa ser posto em movimento e retirado de sua passividade de esponja, rumo à atividade de co-laborador no partejar de um outro mundo possível.

Este documentário é capaz de acordar no espectador uma consciência ampliada do tempo. É um fenômeno cinematográfico que merece ser estudado pelos filósofos, em especial os que se interessam pelo tema da temporalidade, já que veicula uma visão do tempo que rompe completamente com o imediatismo, com a cegueira mental daqueles que põe lucros imediatos na frente da preservação das riquezas concretas e reais do planeta, aquelas que temos a responsabilidade inalienável de legar intacta para as gerações que virão.

40 milhões de anos cabem em 90 minutos? A pergunta pode parecer absurda, mas a resposta é sim – e Ser Tão Velho Cerrado, o filme de André D’Élia, realiza este aparente milagre. É um documentário altamente didático, uma ferramenta de conscientização em massa que chega para marcar época naquilo que eu chamaria de pedagogia audiovisual. Somando denúncia e anúncio, como aconselhava Paulo Freire, a obra chega em boa hora para nos alertar sobre a preciosidade do Cerrado, sua reverenciável ancestralidade, e o perigo imenso que hoje corre.

Seu título em inglês é Old Lord Savanna, um nome que me parece problemático: invoca o Lord dos monoteísmos patriarcais, ao invés de entrar em sintonia com a espiritualidade muito mais matriarcal que o filme sugere e propaga. Precisamos mais do que nunca de um Matriarcado de Pindorama, de uma cultura mais Pachamâmica, de uma espiritualidade com mais pendores para Oxum e Iemanjá do que para o enfurecido deus pintudo de Sodoma e Gomorra. Abaixo Jeová e seus clone, queremos que todos sejam co-partícipes do panteísmo que enxerga-nos como grudados à Matriz do Planeta Mãe. Estamos todos na mesma barca Gaia. 

Foi tocante descobrir que o filme integra a seu material de conscientização em massa a obra de artistas como a da talentosa fotógrafa Mel Melissa Maurer, do projeto O Caminho do Cerrado. A arte como instrumento de sensibilização é algo que se explicita nas fotos da Mel – que já expusemos em Goiânia durante uma das edições do Confluências: Festival de Artes Integradas, evento que contou com a presença da modelo Moara, que nos concedeu uma entrevista enquanto passeava pela exposição (veja abaixo).

As fotografias põe em cena a beleza exuberante e a fragilidade constitucional do corpo humano nu, vestido apenas com botas, máscara anti-gás e fitas pretas nos mamilos, em meio à devastação ambiental acarretada pelo avanço das monoculturas de soja, pelos pesticidas e transgênicos, pelos mega-projetos de barragens, pelas mega-mineradoras e seus braços na indústria da construção civil.

O filme Ser Tão Velho Cerrado também dá voz e vez a outras figuras da cultura, como a Mãe da Lua, o Caio (da Turma Que Faz) etc. Assim obrando, o documentário congrega artistas e intelectuais para somarem numa mensagem direcionada não somente aos cérebros, mas às sensibilidades.

O lucro de mineradoras, latifundiários, empreiteiras e políticos a elas vinculados representa a devastação de nosso patrimônio ancestral somada à aniquilação de nossa possibilidade de termos um futuro vivível. O mínimo que se espera é que possamos legar aos que ainda nascerão um futuro com ar limpo para respirar, água potável em fartura, espaço comum para conviver e celebrar. Tudo sob ameaça. Os defensores da terra, ameaçados com a mordaça e as balas. O sangue de milhares de Chicos Mendes é derrubado aos borbotões, enquanto os rios são barrados. E os risos são abafados pelo vampirismo de Temers e Caiados, de Sarneys e de Marconis, de Maggis e Kátias Abreus. Velhos sanguessugas escrotos, contaminados por ganância, contaminadores de tudo com sua poluição e estupidez.

Sei que o cinema não pode tudo, mas tampouco é negligenciável seu poder de transformação. No escuro daquela sala em que estamos todos sozinhos-acompanhados, alone together, podemos ser impactados de modo transformador por aquele veloz e caleidoscópio desfile de imagens e sons. Portal de luz que conduz a que possamos mergulhar em locais onde não estivemos, permite que ouçamos pessoas que não conhecíamos, aprendendo lições com aqueles que nos comunicam o que sabem de melhor.

São filmes como Ser Tão Velho Cerrado que reativam a consciência da importância do documentário para a civilização. Pois o cinema-do-real é um espetáculo à parte. À margem da Sociedade do Espetáculo, com seus blockbusters e seus rentáveis ficções a serem consumidas com muita pipoca e refrigerante, quase sempre dentro de shopping centers, o cinema documental representa uma vertente essencial desta arte: seu poderio cívico, sua capacidade de informar, formar e mobilizar um público que não é visto apenas como espectador, mas como co-partícipe e co-laborador.

Co-laboremos, pois, para que o Cerrado viva e sobreviva – pois é também nossa sobrevivência que está em jogo, nosso futuro o que está na balança. São nossos amanhãs que estão com o pescoço na guilhotina. Impeçamos a descida brutal da espada de Dâmocles que nós mesmos deixamos que ali se colocasse. Levantemos para salvar nossas goelas, nossos pulmões, nossas vidas-em-teia. Para ajudar-nos, o filme dá voz e amplifica a potência de pesquisadores e intelectuais (como Altair Sales – blog), de ONGs e instituições da sociedade civil (como a Fundação Mais Cerrado), de órgãos públicos (como o ICMBio) e comunidades tradicionais (como os Kalunga, do sítio histórico quilombola localizado em Cavalcante). Mas exige que a gente entre nessa ciranda, junte a voz a este coro.

UM PUNHADO DE CRÍTICA CONSTRUTIVA

“Nem tudo que é torto é errado, veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado.” – Nicholas Behr

Pelo que ficou dito acima, fica evidente que adorei o documentário, reconheço seu imenso mérito e farei o possível para disseminá-lo. Quero utilizá-lo em sala de aula no IFG e tentarei persuadir colegas professores a espalharem por aí os cine-debates que ponham em circulação os ensinamentos de Ser Tão Velho Cerrado. Mas gostaria de, antes de encerrar, tentar um pouco de crítica construtiva, aquele tipo de procedimento que não tem a mínima intenção de tacar pedras ou de diminuir o valor da obra em questão, mas visa somar com o processo de discussão ao apontar uma espécie de déficit.

Um aspecto que poderia ter deixado o filme ainda mais interessante, mas que teria o agravante de deixá-lo mais longo em sua duração e mais amplo em seu espectro de problemas considerados, seria uma abordagem mais minuciosa do tema da Cultura. É muito neste sentido que venho tentando colaborar, recentemente, com a produção audiovisual – propondo, em O Futuro nos Frutos mas também em Afinando o Coro dos Descontentesque há uma imensa diversidade de manifestações artísticas de teor transformador, questionador, sincrético, celebrador da diversidade, rolando em Goiás. É uma produção cultural em que as manifestações artísticas de modo algum estão alheias às problemáticas ecológicas, políticas, socioambientais, éticas etc.

Sertão Velho Cerrado nem menciona que algumas das mais expressivas bandas do cenário goiano, como Carne Doce, Boogarins, Pó de Ser, Ave Eva, Umbando, Passarinhos do Cerrado, Turma Que Faz, dentre outras, vem focando suas atenções sobre a Chapada dos Veadeiros há tempos. Este tema está lá no slogan viralizável “o progresso é mato”, que Salma Jô canta na canção-manifesto “Sertão Urbano”, uma das canções mais politizadas e mais relevantes do Carne Doce, e um dos mais belos clipes já realizados em território goiano. Este tema está lá na sapiência comunicada nas belas vozes de Flávia Carolina Almeida e Paula de Paula, que com o Ave Eva estão invocando Oyá para criticar “os humanos seres da terra” que “pagam a ela com ingratidão”.

Está lá também no rap-folk de Doroty Marques, entoada pelo coro polifônico da Turma Que Faz, que fala assim: “deixe o meu Cerrado que ele não está errado!”. Está lá em “Benzin” dos Boogarins, cujo videoclipe celebra, em belas imagens, a imensidão do Cerrado através da qual Salma Jô trafega como uma transeunte do infinito. Está lá na proposta estética de vertente mais “makulelê”, em coletivos como Coró de Pau e Ninho Cultural, na música das finadas (e maravilhosas) bandas Umbando e Cega Machado, além de rebrilhar em muitos pontos da obra magistral de Juraildes da Cruz. Está lá, também, nos mais de 20 anos de trabalhos da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, que realiza o Encontro de Culturas e a Aldeia Multiétnica.

É uma gente que merecia ao menos menção no esforço documental de André D’Élia. A cultura – ainda que representada pelo lindo trabalho da Mel, pelas falas do Caio, pela Mãe da Lua – ficou um tanto menosprezada. De todo modo, assistir a Ser Tão Velho Cerrado me inspirou a continuar o trabalho que venho realizando como documentarista e agente cultural, com foco neste tema das manifestações artísticas de viés político. O filme de D’Élia, com todos os seus inúmeros méritos, extremamente elogiáveis, deixou escapar essa chance de tematizar, por exemplo, o quanto o cenário musical independente, em Goiás, está em estado de razoável sintonia (que merece ser expandida) com o eixo central que estrutura este meu discuro: a alternativa Cerrado Vivo ou Barbárie.

Esse menosprezo da Cultura impede o espectador de pôr questões importantes: o que precisamos para sair do buraco não é de uma autêntica revolução cultural? Ela não teria que estar conexa a uma transformação midiática que nos empodere diante dos velhos barões da mídia)?Não precisamos acelerar rumo ao Ponto de Mutação de que nos falava Fritjof Capra? E não é uma metamorfose cultural, em direção a uma sociedade com hegemonia de uma cultura mais consciente das interconexões e interdependências que constituem a Teia da Vida neste planeta, aquilo que poderá salvar tudo da ganância e da hýbris do homo sapiens, em toda sua estúpida e ultra-disseminada falta de sabedoria? E esta cultura transformada, com suas cegueiras curadas, com sua estupidez transcendida, também não será necessariamente uma obra dos artistas, esses disseminadores de uma nova sensibilidade, de uma consciência renovada?

Em “Gota Miúda”, o “sol se escondeu atrás de um edifício” e o eu-lírico, lindamente vocalizado pela Paula de Paula, lamenta-se: “amor, como é difícil perdê-lo na construção!”. É uma imagem impressionante do quanto a natureza acaba eclipsada pelos edifícios da urbe, que arranham os céus mas servem de obstáculo à nossa visão do horizonte. Uma imagem lírica similar e análoga anima “Avalanche”, dos Boogarins, onde o eco dos amplificadores e o ataque conjugado de guitarras, baixo e batuques (todos devidamente psicodelizados), é a ferramenta imaginada como capaz de transformação de um cenário urbano que pratica um apagão da natureza e nos prende num “labirinto de tédio”. “A maior demonstração de propagação do ser é o eco. Com ele meu grito tem força para derrubar todos os prédios que não nos deixam ver o sol.”

Para que o berço das águas não se torne o túmulo da vida ao ficar seco, desértico e distópico, para que a imensa biodiversidade que é riqueza viva e inestimável não seja imolada no altar retardado do capitalismo predatório, precisaremos sim de muita arte. De uma arte que ensine e ilumine, que expanda horizontes, que chova sobre nós estas gotas miúdas que re-ativam constantemente “o milagre do pão”.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/08/2018

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Repórter Eco da TV Cultura

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O diretor André D’elia apresenta seu projeto “Ser Tão Velho Cerrado”, um filme que mostra a importância do bioma cerrado para a sociedade brasileira e é um exemplo do Cinema Pedrada:

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NA IMPRENSA:

FOLHA DE SÃO PAULO >>> Documentário corajoso de André D’Elia denuncia devastação do cerrado

“Este documentário do diretor e roteirista André D’Elia —afeito às causas ambientais, como demonstram os longas “A Lei da Água” (2015) e “Belo Monte – Anúncio de uma Guerra” (2012)— procura sensibilizar o grande público sobre a situação da savana brasileira, que está em avançado processo de extinção.”

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David Suzuki Ensina

David Suzuki in this interview about facing the reality of climate change and other environmental issues from Moyers & Company.