SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

“A FILOSOFIA E A FELICIDADE”, do pensador holandês Philippe van den Bosch

A FILOSOFIA E A FELICIDADE

do filósofo holandês Philippe van den Bosch

(Editora Martin Fontes)

Pintura da abertura: O Triunfo de Pã, de Nicolas Poussin (1636)

EM BUSCA DA FELICIDADE

a-filosofia-e-a-felicidade-philippe-van-den-bosch-lisboa_rev002A filosofia é para a maior parte de nós uma disciplina muito estranha e obscura. Entretanto, ela tem um objeto muito simples que deveria concernir à maioria das pessoas, uma vez que sua primeira vocação é preocupar-se com a felicidade dos homens. Com efeito, todos o sabem, filosofia quer dizer em grego “amor pela sabedoria”, e a sophia, a sabedoria, em seu sentido original nada mais é senão o método da felicidade. Para os gregos, sophia também pode designar o saber… mas, para os gregos, o saber autêntico deve contribuir para a felicidade, senão ficaria privado de sentido.

A felicidade é sobretudo o que todos os homens desejam. Cada ser humano no mundo procura ser feliz, ninguém pode negá-lo de boa-fé. Alguns podem eventualmente ter renunciado a ser felizes, porque estão decepcionados com a vida, porque nada mais esperam dela, porque sabem que não têm, ou deixaram de ter, os meios de alcançá-la, por exemplo, se estão incuravelmente doentes ou irremediavelmente dimuídos pela velhice, ou se seu único amor, o único ser que possa torná-los felizes, já não está neste mundo. Mas o desejo da felicidade não fugiu totalmente de seus corações, só que o julgam irrealizável, pois, se alguma potência mágica oferecesse realizar seus desejos e restituir-lhes o ser adorado, ou a juventude e a saúde, ou ainda conceder-lhes a riqueza ou o amor compartilhado, eles não recusariam essa dádiva.

Portanto estamos vendo bem que todos os homens desejam experimentar a felicidade e no fundo só desejam mesmo isso, pois, como dizia o filósofo grego Epicuro três séculos antes de nossa era: “Com a felicidade temos tudo de que precisamos, e se não somos felizes fazemos de tudo para sê-lo.”

Entretanto, enquanto fazemos essas poucas reflexões para compreender o que é a felicidade, podemos ser assaltados por uma dúvida: a felicidade é acessível ao homem? Poderei realmente conseguir satisfazer todos os meus desejos… e assim viver permanentemente em prazeres sempre renovados, eliminando toda aflição e toda contrariedade? Isso parece muito além de minhas capacidade, e posso ser tomado por certo desencorajamento com esse pensamento.

Todos os homens correm a vida toda atrás da felicidade, a coisa mais importante para eles, lançam-se numa profusão de empreitadas, preocupam-se com muitas coisas, refletem nelas até torturar a mente, mas nenhum consagra um minuto de sua vida a meditar sobre o que é realmente a felicidade e a saber se ela é pelo menos acessível! Os homens talvez persigam uma quimera inatingível, o que uma reflexão elementar como a que acabamos de fazer basta para sugerir-nos. Seria cômico se não fosse de um absurdo trágico, e se não participássemos desse destino.

Já vemos desenhar-se aí a necessidade da filosofia. Em vez de ir à caça da felicidade de modo totalmente irrefletido, como fazem todos os homens, convém ao contrário fazer um esforço de pensamento para primeiro saber exatamente o que é a felicidade, como alcançá-la, e sobretudo assegurar-se de que seja acessível. Qualquer um que comece a refletir seriamente na felicidade começa por isso mesmo a tornar-se filósofo, uma vez que reencontra o ponto inicial dos primeiros sábios da Grécia antiga.

(pgs. 17 a 25)

O EPICURISMO

Epicuro, no século III a.C., pensa, também ele, que o objetivo da vida humana é obter a felicidade. Está mais de acordo com o homem moderno: o meio de alcançar a felicidade é o prazer nascido da satisfação dos desejos. Cumpre buscar o prazer, pois é seu acúmulo que constitui a felicidade. Esta doutrina que prega assim o prazer se chama hedonismo (do grego hedoné, o prazer). Portanto, devemos ficar em condições de experimentar o prazer na vida, de aproveitar os bons momentos, e mesmo de cada dia, de cada instante, isso que diz a célebre máxima latina que reflete o ensinamento de Epicuro: Carpe diem, “Colha o dia”. Para isso, devem-se primeiro eliminar as preocupações e as angústias. É bem isso que sentem todos os nossos contemporâneos que correm ao psicanalista ou psicólogo!

O Materialismo contra as angústias religiosas

Uma das primeiras causas de angústia nos humanos é, segundo Epicuro, a inquietude religiosa e a superstição. Muitos homens vivem no temor dos deuses. Têm medo de que sua conduta, seus desejos não agradem aos deuses (ou a Deus, para os monoteístas, que Epicuro não conhecia), que estes julgam seus atos imorais ou ofensivos contra suas leis e se decidam a punir severamente os pobres fomentadores, esmagando-os de infelicidade já nesta vida ou castigando-os depois desta vida. Pensam também que se deve prestar um culto escrupuloso a essas divindades, dirigir-lhes preces, súplicas, fazer-lhes oferendas a fim de granjear suas boas graças. Pois os deuses são suscetíveis, irritam-se por nada, e às vezes ficam mesmo ciumentos da felicidade dos simples mortais, que eles se comprazem então em arruinar. Todas essas crenças que envenenam a vida dos homens não passam de superstições e patranhas para Epicuro.

Epicuro SuperA morte não é nada paranós

A metafísica materialista também vai permitir livrar a humanidade de um de seus maiores temores: o temor da morte. Os homens têm realmente medo da morte e fazem de tudo para evitá-la. Mas quem temem nela? É precisamente o salto no absolutamente desconhecido. Não sabem o que os espera e receiam confusamente que terríveis sofrimentos lhes sejam infligidos, talvez em punição de seus atos terrestres. Os cristãos, por exemplo, imaginarão que qualquer um que tenha agido mal e não obteve o perdão de Deus irá assar nas chamas do inferno.

Inferno. Anônimo. 119 x 217,5 cm. Óleo sobre madeira de carvalho. Primeiro terço do século XVI. Museu Nacional de Arte Antiga Lisboa.

Inferno. Anônimo. 119 x 217,5 cm. Óleo sobre madeira de carvalho. Primeiro terço do século XVI. Museu Nacional de Arte Antiga Lisboa.

O medo da morte está relacionado com as superstições religiosas de que a metafísica materialista nos liberta. Ademais, se tudo no universo é feito de matéria, se nós, como todos os seres vivos, somos apenas agregados de átomos, quando morremos são apenas nossos átomos que se separam, que se desagregam, é apenas nosso corpo que se decompõe, primeiro num ponto (o que está ferido ou doente), depois em todos. Por conseguinte, nada de nosso ser sobrevive, não há nada depois da morte, “a morte não é nada para nós.”

Aqueles que pensam que a vida do corpo, o pensamento, a sensação, o movimento vêm da alma e que essa alma poderia sobreviver após a morte do corpo, estão errados. Pois a própria alma é feita de matéria, por certo mais sutil, quase invisível; mas se ela não passa de uma agregação de átomos, ela também se decompõe quando sobrevém a morte, e até, de acordo com a experiência mais comum, deve-se pensar que é a primeira a decompor-se pois que a morte se mostra imediatamente privada de vida, de sensação, de pensamento e de movimento… Falam-lhe, tocam-no, beliscam-no e ele não tem nenhuma reação, não manifesta nenhum sentimento… A morte se caracteriza bem, em primeiro lugar, pela ausência de sensação.

Epicuro pode escrever: “Habitua-te com o pensamento de que a morte não é nada para nós, uma vez que só há bem e mal na sensação, e a morte é ausência de sensação. / Assim, o mal que mais assusta, a morte, não é nada para nós, pois, quando existimos, a morte não está presente, e, quando a morte está presente, deixamos de existir.”

Epicuro - slide 2

“A INDÚSTRIA CULTURAL DA FELICIDADE” & “A FELICIDADE É COLETIVA” – Márcia Tiburi

Indústria cultural da felicidade

Marcia Tiburi  na Cult

“Tornou-se perigoso o emprego da palavra felicidade desde seu mau uso pelas publicações de autoajuda e pela propaganda. Os que se negam a usá-la acreditam liberar os demais dos desvios das falsas necessidades, das bugigangas que se podem comprar em shoppings grã-finos ou em camelôs na beira da calçada, que, juntos, sustentam a indústria cultural da felicidade à qual foi reduzido o que, antes, era o ideal ético de uma vida justa.

A felicidade sempre foi mais do que essa ideia de plástico. Tirá-la da cena hoje é dar vitória antes do tempo ao instinto de morte que gerencia a agonia consumidora do capitalismo. Por isso, para não jogar fora a felicidade como signo da busca humana por uma vida decente e justa, é preciso hoje separar duas formas de felicidade: uma felicidade publicitária e uma felicidade filosófica.

A felicidade filosófica é a felicidade da eudaimonia, que desde os gregos significa a ideia da vida justa em que a interioridade individual e as necessidades da vida exterior entrariam em harmonia. Felicidade era o nome dado ao sentido da pensante existência humana. Estado natural do pensamento reflexivo, ela seria o oposto da alienação em relação a si mesmo, ao outro, à história e à natureza.

Condição natural dos filósofos, a felicidade seria, no seu ápice, o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento.

Sacralização do consumo

mafalda1

A ausência de pensamento característica de nossos dias define a falta de lucidez sobre a ação. Infelicidade poderia ser o nome próprio desse novo estado da alma humana que se perdeu de si ao perder-se do sentido do que está a fazer. Desespero é um termo ainda mais agudo quando se trata da perda do sentido das ações pela perda da capacidade de reflexão sobre o que se faz.

Sem pensamento que oriente lucidamente ações, é fácil se deixar levar pelos discursos prontos que prometem “felicidade”. Perdida a capacidade de diálogo que depende da faculdade do pensamento, as pessoas confiam cada vez mais em verdades preestabelecidas, seja pela igreja ou pela propaganda – a qual constitui sua versão pseudossecularizada.

A propaganda vive do ritual de sacralização de bugigangas no lugar de relíquias, e o consumidor é o novo fiel. Nada de novo em dizer que o consumismo é a crença na igreja do capitalismo. E que o novo material dos ídolos é o plástico.

Tudo isso pode fazer parecer que a felicidade foi profanada para entrar na ordem democrática em que ela é acessível a todos. O sistema é cínico, pois, banalizando a felicidade na propaganda de margarina, em que se vende a “família feliz”, ou de carro, em que se vende o status e certa ideia de poder, a torna intangível pela ilusão de tangibilidade.

Sacralizar, sabemos, é o ato de tornar inacessível, de separar, de retirar do contato. Na verdade, o que se promove na propaganda é uma nova sacralização da felicidade pela pronta imagem plastificada que, enchendo os olhos, invade o espírito ou o que sobrou dele. A felicidade capitalista é a morte da felicidade por plastificação.

Fora disso, a felicidade filosófica é da ordem da promessa a ser realizada a cada ato em que a aliança entre pensamento e ação é sustentada. Ela envolve uma compreensão do futuro, não como ficção científica, mas como lugar da vida justa que se constrói no tempo presente.

A felicidade publicitária apresenta-se como mágica dos gadgets eletrônicos que se acionam com um toque, dos “amigos” virtuais que não passam de má ficção. A felicidade publicitária está ao alcance dos dedos e não promete um depois. Ilude que não há morte e com isso dispensa do futuro. Resulta disso a massa de “desesperados” trafegando como zumbis nos shoppings e nas farmácias do país em busca de alento.”

NARCISO HI-TECH

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“A felicidade é coletiva

A filosofia nasceu na Grécia como metafísica, a busca pelo princípio de todas as coisas ou pelo significado mais fundamental da existência. Na seqüência a ética apareceu quando os filósofos começaram a se ocupar da questão da vida humana. Ethos, raiz da palavra ética, era o termo usado pelos gregos para definir o modo como as pessoas viviam e conviviam. Hoje em dia usamos a palavra “comportamento” com o mesmo objetivo, para explicar como agimos junto com os outros, como seres que interagem e coabitam. A questão da ética define, portanto, sempre o modo da relação que se tem com o outro.

Aristóteles foi o primeiro filósofo importante que refletiu sobre a ética. Para o autor do clássico Ética a Nicômaco, o maior problema da ética era a felicidade. Ética era a forma de vida que levava à felicidade. A busca da felicidade dava o sentido da vida humana em sua dimensão pessoal e coletiva. A polis, de onde vem a palavra política, dependia da ética. E se falar em ética era falar em felicidade, a felicidade como parte da ética tinha um cunho político. Isso é o que nós perdemos de vista em nossos dias.

A ética e a virtude

Naquele tempo, justamente por ser “sabedoria prática”, sabedoria aplicada à ação, a ética dependia de uma teoria da virtude, ou seja, de uma sabedoria que explicasse como o ser humano poderia fazer-se excelente, o que para os gregos significava ser civilizado, bom, belo, rico, culto, corajoso e livre, e, sobretudo, filósofo. Por que ser filósofo? Porque o filósofo era aquele que buscava a sabedoria, procurava as respostas melhores, e, principalmente, se esforçava por propor as perguntas certas para as questões da vida. O filósofo era o pensador livre e responsável, apto a buscar o sentido passado e presente das coisas e o rumo futuro de sua própria vida como ser pensante diante da sociedade onde vivia.

A felicidade representava na obra de Aristóteles muito mais do que apenas uma sensação própria a um indivíduo voltado para a alegria ou os prazeres. Não queria dizer bem-estar pessoal, nem qualidade de vida, não queria dizer apenar ter saúde ou bens, nem realização profissional, nem estar em paz consigo mesmo e com os que vivem ao seu redor, traços do que tratamos como felicidade que – para além da mera satisfação com mercadorias e bens – podem ser compreendidos e desejados por todos nós. Antes a felicidade era a máxima virtude. Um modo de ser humano, sem almejar ser divino, nem deixar-se ser mero animal.

Não podemos, é óbvio, pensar que a felicidade tal com a concebia Aristóteles nos serve hoje. A felicidade só pode ser pensada com base na sua evolução histórica. Havia, porém, aquele aspecto da felicidade que não levamos em conta em nossos dias e que precisa ser recuperado. É preciso lembrar que a felicidade era, em Aristóteles, um ideal ético da vida. A vida ética era a vida justa, boa, corretamente vivida por um cidadão, alguém que sabia de seu papel na sociedade, que ao pensar em si levava em conta o todo: família, amigos, sociedade, natureza.

Aristóteles chamava a felicidade de eudaimonia. Palavra que continha o termo daimon, espécie de espírito interior, guardião da intimidade, do valor pessoal de cada um. Este ideal de felicidade era diferente do que apareceu depois com Epicuro, o filósofo da escola do Jardim, que tratou a felicidade como hedonismo. Hedoné era a palavra grega para significar o prazer. Não o mero prazer da carne, mas também o do espírito. Para Aristóteles, porém, a felicidade tinha uma relação maior com a justiça. Para ambos, a felicidade dependia de uma realização espiritual, mas também material que excluía miséria e violência.

A felicidade como conflito

Com o passar dos séculos os seres humanos permaneceram em conflito com o ideal de felicidade. Apenas no século XVIII Kant, formulando uma ética revolucionária que abandonou a tutela da igreja, pretendeu valorizar a liberdade e a dignidade humanas. Kant via a sociedade submetida à ignorância e à superstição e acreditava que a ética só poderia surgir pela confiança no potencial racional do humano. Acreditava que o pensamento reflexivo, filosófico libertaria o humano da escuridão da ação impensada. Talvez a felicidade tenha se tornado um ideal difícil demais diante dos limites humanos que envolveram, mais tarde, a descoberta do inconsciente e que há mais que nossa vontade por trás de nossas ações.

Kant disse que o máximo que o homem poderia esperar era ser digno de ser feliz e não realmente feliz. Hoje, uns acham, como Kant, a felicidade impossível, outros tratam-na como algo banal, mera realização de prazeres pessoais. O desentendimento quanto à felicidade apenas mostra que ela não está bem situada como conceito dentro de nossas vidas. Apenas aqueles que puderem pensá-la como potência ética, como algo que se constrói na fusão da vida pessoal com a vida pública é que podem continuar falando de felicidade. Antes de ser feliz devo perguntar se posso ser ético. Será mais fácil ser feliz.

Via Marcia Tiburi.com

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Marcia Tiburi


A ONIPERSEGUIDA – “Uma reflexão (histórico-filosófica) sobre a felicidade”(com Camus, Comte-Sponville, Epicuro, Buda, Thoreau e cia)

Foto 1

“Se deveras existe um pecado contra a vida,
talvez não seja tanto o de desesperar com ela,
mas o de esperar por outra vida,
furtando-se assim à implacável grandeza desta.”

ALBERT CAMUS, Núpcias

Originalmente publicado no Glück Project

O DIREITO INALIENÁVEL DE CAÇAR A VIDA FELIZ

Não são só os filósofos que estão sempre em seu encalço. À caça de felicidade vamos todos, embriagados pelo sonho e impelidos pelo coração (que tem razões que a própria razão desconhece, como dizia Pascal). “A felicidade sempre foi e continua sendo um grande fim, se não a finalidade suprema, em nome do qual se justificam escolhas na vida pública e privada” – escreve Eduardo Giannetti (Felicidade, Cia das Letras, p. 68).

Dizer que a felicidade é a finalidade suprema, oniperseguida, deixa subentendido que os meios escolhidos para atingir este fim podem ser fracassados, ineficazes, desastrosos. Pergunto-me se, talvez, para ser feliz, a gente tenha que insistir e persistir na infelicidade, tropeçando nos percalços de que os caminhos do viver estão repletos e aprendendo com as feridas e os tombos?

Dá pra dizer que não há sociedade, contemporânea ou histórica, onde a busca da felicidade inexista – ela é perseguida em toda parte, deveras, mas em diferentes épocas e contextos socioambientais vai adquirindo múltiplas faces. Ademais, adquire sentidos os mais diversos e contraditórios em diferentes bocas: Santo Agostinho, em sua época, contava não menos que 289 opiniões diferentes sobre o tema; e hoje em dia o mercado editorial registra uma enlouquecedora quantidade de tratados filosóficos, livros de auto-ajuda, sermões de gurus, em uma Babel de diferentes receitas para atingir a beatitude.

Da felicidade, pode-se dizer que é a universalmente perseguida, se pelo termo “universal” entendermos não uniformidade, homogeneidade e monotonia, mas presença em todas as latitudes e longitudes. Tanto indivíduos quanto sociedades estão sob o encanto desta busca pela melhor vida e os problemas da ética não estão limitados aos filósofos mas dizem respeito a todo mundo e qualquer um.

Um bom exemplo da ampla gama de diversas manifestações históricas da perseguição à felicidade é a Europa quando o zeitgeist da Idade Média foi revolucionado pelo Iluminismo. Neste ponto-de-mutação, escancararam-se duas visões-de-mundo antagônicas sobre aquilo que a Declaração de Independência dos EUA (1776) declara então ser um direito humano inalienável: “the pursuit of happiness”. A perseguida torna-se então um direito-do-cidadão, a ser respeitado pelas repúblicas democráticas, nada menos que um pilar da pólis. “Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade…”

FELICIDADE: UM PRATO QUE SÓ SE COME QUANDO MORTO?

Na Idade Média, a história era outra: a Cristandade medieval acreditava na pecaminosidade da perseguição aos prazeres e alegrias mundanos; solicitava-se do rebanho de fiéis que carregasse sua própria cruz pelo vale de lágrimas da Terra e que deixasse para depois da morte o gozo de uma paradisíaca felicidade. A tradição judaico-cristã, de seus primórdios até hoje em dia, tende a prometer aos aflitos uma bem-aventurança do além-túmulo, entronando a fé e a esperança como virtudes teologais.

Em radical contraste, a visão de mundo que associamos ao Iluminismo e à Revolução Francesa (e também à Independência dos EUA), tem a ver com uma maré montante de secularismo, de crítica contra as monarquias absolutistas e os pilares teocráticos que as sustentavam. Na França, figuras como Voltaire, Diderot e Holbach ergueram suas vozes, com lábia afiadíssima, para denunciar como farsa a promessa de um paraíso transcendente e criticar como engodo as pregações do ascetismo judaico-cristão, que mandava macerar e torturar a carne para melhor liberar o alma.

Bruckner

Neste ponto-de-mutação, quando a Cristandade Medieval, em sua decadência, vai cedendo lugar aos poucos aos avanços da luz que os Esclarecidos traziam acesa em suas tochas, a felicidade torna-se exigência de algo a ser vivido aqui-e-agora, nesta vida, antes da morte e não mais depois dela. Em seu livro A Euforia Perpétua – Ensaio sobre o Dever de Felicidade, Pascal Bruckner pondera que o cristianismo não negava a aspiração humana à felicidade, mas colocava-a fora de alcance, seja no Éden de antes da Queda, seja no futuro Reino dos Céus, prometido aos fiéis. “O século XVIII iria se contentar em repatriá-la, trazendo-a aqui para baixo.” (Bruckner, pg. 22) De objeto de nostalgia e esperança, a felicidade torna-se agora um imperativo do presente.

Como aponta Eduardo Giannetti, “o século XVIII deslocaria o ponteiro da confiança no progresso e no aumento da felicidade humana ao longo do tempo até o ponto mais extremo de que se tem notícia nos anais da história intelectual. (…) Na aurora do pensamento moderno, sob o efeito inebriante da ‘tripla revolução’ (científica, industrial e francesa), a crença no progresso foi aos céus. A equação fundamental do iluminismo europeu pressupunha a existência de uma espécie de harmonia preestabelecida entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade.” (Giannetti, pg. 22)

As ideologias religiosas monoteístas, em especial judaicas e cristãs, diziam que a felicidade era um prato que a gente só come morto, um banquete a que só tem acesso o espírito depois de liberado do corpo; já o iluminismo instaurou outro regime, uma espécie de “terra prometida da razão secular” (Giannetti, pg. 26), que pretendia conduzir à humanidade à felicidade em vida através do progresso material, da dominação ampla e irrestrita da natureza.

A ideia religiosa de que a felicidade é um prato que só se come morto sofreu sob o impacto de saraivada de críticas (não só dos iluministas, mas também de figuras posteriores como Ludwig Feuerbach e Karl Marx), de modo que essas crenças caem em progressivo descrédito, a ponto de Nietzsche, na segunda metade do séc. XIX, diagnosticar na Europa os sintomas da “morte de Deus” e apontar a necessidade de uma “transvaloração dos valores” que tornasse o ideal ascético, enfim, um item de museu.

Mas também o ideal iluminista é amplamente criticado, como esclarece Eduardo Giannetti:

Eduardo Giannetti, pensador brasileiro, autor de

Eduardo Giannetti, pensador brasileiro, autor de “Auto-Engano” e “Felicidade”

 “O ideal iluminista é criticado por dar livre curso a certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material”; “representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. (…) Desse modo poderíamos recriar pelo engenho e sagacidade um novo jardim das delícias, um paraíso tecnológico de turbinas, robôs, viagras e disneylândias no qual o homem se faria um deus sobre a terra… Vejam no que deu brincar de aprendiz de feiticeiro na manipulação do meio ambiente e no consumo pantagruélico de recursos naturais. A ameaça de uma catástrofe ecológica não deixa de ser um espantoso paradoxo desta civilização que fez da racionalidade e do progressos os seus grandes princípios unificadores.” (Giannetti, Felicidade, pgs 39-40)

No século XX, mesmo após duas guerras mundiais, mesmo após bombas atômicas e campos de extermínio, prosseguiu-se perseguindo a felicidade, ainda que por outras vias: alguns dos movimentos mais importantes da contracultura dos anos 1950 e 1960, por exemplo, buscavam inspiração no misticismo oriental (zen-budismo, hinduísmo, hare-krishna…), reavivavam um hedonismo de sabor dionisíaco (evocando o espírito livre nietzschiano…), lançavam-se à política sob a influência de maoístas, Black Panthers e Ches… Nos grandes levantes da juventude dos anos 60, sob a influência de Marcuse e Debord (dentre outros), as ruas e os festivais ousavam demandar: que os sacerdotes não venham mais nos pregar que somos pecadores só porque exigimos “gozar sem entraves”, como se reivindicava em Maio de 68! E que os poderes tirânicos cessassem de perseguir e pisotear todos aqueles que, à maneira de beatniks e hippies, cantam e dançam em Woodstocks em louvor à paz, ao amor, à justiça – pra já e não pra depois!

O LABIRINTO DA ESPERANÇA E DO TEMOR

Felicidade

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Vicente de Carvalho

A recorrência, na linguagem, de termos como perseguição da felicidade [pursuit of happiness] é um índice da frequência com que a felicidade nos escapa (se não, por que a perseguiríamos?). Vide o filme estrelado por Will Smith, baseado no livro de Chris Gardner, uma saga-da-vida-real que pretende ilustrar-nos sobre o caminho que leva da miséria ao luxo, da pobreza à Wall Street, que chama-se justamente A Busca Pela Felicidade [The Pursuit of Happyness] e é uma epopéia kitsch de sua conquista, ao modo yankee e com propaganda do self-made-man, auto-empreendedor narcísico.

Perseguida sempre pois raramente possuída, a felicidade só parece conceder-nos pequenas fatias de tempo feliz, mas nunca a felicidade duradoura. Não somos poucos aqueles que contam os dias felizes como minoritários, na quantidade total de dias que engloba uma vida de mortal como a nossa. Não somos poucos aqueles que consideram que são mais comuns e frequentes aqueles dias em que padecemos sob o sofrimento, oprimidos por trabalhos estafantes e não-recompensadores, tolhidos por temores e melancolias, incertos quanto ao futuro, insatisfeitos no amor, cegos quanto à significação última de tudo – em especial da nossa função e sentido no conjunto cósmico completo.

Há filósofos que juram que vão chegar ao túmulo sem terem deixado por um único dia de ter coração e mente afligidos por alguma dor, alguma culpa, alguma preocupação, alguma angústia… Da vida, tudo o que se pode dizer é que nela misturam-se e mesclam-se, na imanência concreta do fluxo cósmico, os afetos alegres e os tristes, os prazeres e as dores, os êxtases e as depressões, tudo junto e misturado numa coisa só. Começar a compreender o mundo nestes termos é dar aquele passo que, segundo Nietzsche, é essencial para que a filosofia siga avante: ir além do Bem e do Mal, cindidos em domínios separados, e abraçar a Phýsis e a fate dizendo: “evoé!”. Amor fati. 

Se perseguirmos uma felicidade que fosse só alegrias, uma condição purgada de todos os afetos tristes, um êxtase duradouro e sem desdouro, corremos o risco de estarmos perseguindo uma quimera. E infelizes justamente pois perseguimos o que não existe. Às vezes o abismo que nos separa da felicidade é cavado por nós mesmos: imaginamos algo de quimérico e irrealizável cuja ausência continuada nos dilacera. Talvez convenha, pois, distinguir entre a felicidade como vivência/experiência e como ideal/quimera. A felicidade vivida em carne-e-osso, e a felicidade meramente sonhada e perseguida.

AndreO filósofo francês André Comte-Sponville tem vasta obra dedicada a nos esclarecer sobre este problema: em sua obra O Mito de Ícaro, composta por Tratado do Desespero e da Beatitude e Viver, realiza uma crítica filosófica magistral da esperança, que considera um afeto triste, fruto da impotência e da ignorância, sempre geradora de temores e inquietudes. A esperança é como uma idealização da ausência que nos impede de amar o real em sua presença. Quando a felicidade é apenas uma esperança, e não uma vivência, estamos na infelicidade; quando a felicidade apenas esperamos, sentados com a bunda no sofá, ao invés de agir e amar no sentido de inventá-la, estamos na infelicidade.

“Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos. Não conheço símbolo algum mais emocionante do que este”, escreve Albert Camus em Núpcias.

A esperança, para André Comte-Sponville, é apenas uma das modalidades do desejo – e justamente o desejo como falta, como Platão o definia, ou o desejo como sofrimento, para falar como Schopenhauer e Buda. “O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (Felicidade, Desesperadamente, p. 58). Donde a definição clássica e sintética: “esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”.

“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se…”), não podemos escapar da decepção… É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” (Felicidade, Desesperadamente, p. 37).

Lembrem-se do que diz a canção de Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”. Pois quem sabe e pode, age; quem ignora e não pode é que espera e reza. Quem espera não goza: teme e sofre. A palavra esperança, que carrega a “espera” em seu ventre, indica o suficiente o erro em que incorremos quando esperamos ser felizes. A felicidade não é questão de espera, mas sim de ação, criação, invenção. Não vem de graça, de mão beijada, mas precisa ser construída – e tem quem diga que não é construção passível de ser erguida a sós. Donde a importância fundamental do amor e da amizade: é impossível ser feliz sozinho.

O sábio, pois, não espera nada: vive no presente, impulsionado pela força alegre de seu desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos. Como sintetiza Sponville:

“Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.” (F.D., p. 76)

A receita para a infelicidade é justamente sonhar uma vida radicalmente diferente do que aquela que realmente vivemos. Os infelizes não cessam de projetar no futuro uma utopia pessoal que insatisfaz com o presente que se tem – é o real que nunca está à altura do sonho. Por exemplo: aquele que sonha em ganhar 100 milhões na megasena, e tem esperança de que isso representaria um encontro marcado com a felicidade perpétua, não estaria na ilusão, apostando suas fichas em algo de improvável, condenando-se à frustração perene dos perdedores crônicos na loteria? Ao invés de largar tudo nas mãos da sorte, não seria melhor arregaçar os braços e pôr mãos à obra para a construção e invenção da felicidade, ainda que sob restrições orçamentárias?

OS TESOUROS DE DENTRO

Eis uma das controvérsias que opõe os pensadores quando o tema é a felicidade: a intensidade da ênfase que deve ser dada aos elementos ditos “exteriores” ou “objetivos” na determinação concreta de um bem-estar subjetivo durável. O príncipe Sidarta Gautama, é bem sabido, abandonou o luxo do palácio e todos os confortos da vida principesca, optando com os pés por uma existência de buscador-de-sabedoria, nômade e frugal, que declara através de sua atitude que as riquezas exteriores importam bem menos – quase nada! – em comparação com os tesouros de dentro. O Nirvana importa bem mais que um trono.

A atitude do Buda simboliza a muito comum recomendação de desprendimento e desapego, como se feliz fosse aquele que sabe desprender-se dos vínculos entristecedores e dos desejos insuportáveis (pois insaciáveis) de glória, riqueza e poder.

Sob o nome de “ascetismo” – esse fenômeno que, como Nietzsche bem viu, é comum a muitos credos religiosos, e transcende mesmo o domínio das religiões, instituídas ou místicas, deixando sua marca indelével também em algumas filosofias pretensamente seculares (Schopenhauer, Cioran…) – podemos abarcar as doutrinas que desprezam as “exterioridades”. Digamos, esquematicamente, que há uma rixa entre ascéticos versus sensualistas. Nesta controvérsia, um dos elementos mais interessantes no budismo é seu ponto-de-partida: o sofrimento, indubitavelmente real e concreto, que a condição humana comporta, e isso pelo simples fato de sermos mortais e passíveis de adoecimento, inapelavelmente destinados à tumba (seja pela via do envelhecimento ou pela precoce doença ou acidente fatal). A doutrina búdica nasce para ser remédio para males concretos – Buda fisiologista e psicoterapeuta! – que serve como caminho a ser percorrido no processo de superação da ignorância samsárica. Uma terapêutica da vontade, pois, renovadora dos fluxos energético-existenciais. Buda irmão de Epicuro; Grécia e Índia dão-se as mãos, abraçam-se.

A proposta búdica é vencer a tirania dos desejos brutos e cegos, fazendo com que reine sobre eles uma sábia consciência nirvânica. O ponto-de-partida da busca búdica é a descoberta da dor de existir e a vontade de viver menos mal: desta base de angústia, poderíamos dizer, nasce a árvore Bodhi. A semente da árvore debaixo da qual Sidarta atinge a Iluminação precisou, para germinar e erguer-se em galhos, folhas, frutos e flores, do influxo indispensável de esterco, chuva, minhocas e lágrimas…

Walden

Em figuras como Thoreau, Gandhi e Pepe Mujica encontramos o elogio de uma união entre sabedoria e frugalidade, que é também fundamental no budismo: mais vale uma cabana de madeira às beiras do lago de Walden, habitada por um sábio escritor, do que uma mansão luxuosa em metrópolis poluída e cheia de apartheids, habitada por um milionário ignoramus.

A riqueza, é claro, permite gozar de certos prazeres sensíveis refinados (vinhos caros, carros de luxo, viagens a ilhas tropicais de beleza exuberante, o que seja), mas nunca se pode afirmar com certeza que o bilionário é mais feliz que o pobretão; há príncipes e reis que se suicidam ou agem como psicopatas homicidas (as páginas de Shakespeare estão deles repletas), e há mendigos e ciganos despossuídos, iluminados, que parecem abençoados por uma intensa alegria-de-viver.

O Iluminado, porém, é uma raridade estatística; a multitude é vasta, ignara e sofrente. Para citar Eduardo Giannetti, não é raro que a gente sinta que “a consciência pesa. Em casos extremos, o tormento da vida ciente de si adquire tal força que o animal humano reflete e contempla com amarga nostalgia a perda de sua inocência animal. O que nos aconteceu? De onde a sina de um viver cindido e aflito, expectante do inalcançável e à míngua de explicações?” (Felicidade, pg. 143)

Se não gera grande controvérsia afirmar que a felicidade é a finalidade suprema que indivíduos e coletividades perseguem, a coisa muda quando saltamos para a conclusão de que o dinheiro é o meio supremo para alcançá-la. Neste ponto, multiplicam-se aqueles que afirmam, por experiência ou raciocínio, que dinheiro não compra felicidade (ainda que te leve para sofrer em Paris). A canção de McCartney sintetiza bem o argumento: “money can’t buy me love.” Apesar das lorotas dos publicitários, é preciso sublinhar que a felicidade não é um item à venda em shopping centers e supermercados.

Para conquistar a felicidade, que ele concebia como tranquilidade (eutymia), Sêneca recomendava a parcimônia, a frugalidade, uma vida retirada, “uma cama que não seja adornada de modo exagerado”, “roupas que sejam caseiras e baratas”, “comida comum que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo” (Da Tranquilidade da Alma, L&PM, p. 36-37) – em suma, recomenda que não vivamos uma vida de atribuladas perseguições ao ouro, ao poder, à fama, a tudo aquilo que acende a inveja alheia e provoca distúrbios na placidez da alma. É a maneira estóica de conceber a vida feliz, e que tem certas similaridades com a doutrina epicurista da ataraxia, ou paz-de-espírito, com algumas diferenças importantes: Epicuro – e seu genial discípulo romano Lucrécio – acreditavam que eram também essencial à felicidade o convívio fecundo e mutuamente recompensador entre os amigos seletos que frequentam o Jardim.

Dito isto, podemos apontar ainda que os filósofos podem ser diferenciados em relação à valorização da sociabilidade como meio para uma vida feliz. Não faltaram na história aqueles que supuseram possível um isolamento bem-aventurado, uma feliz auto-suficiência, simbolizada pelo faquir hindu que medita, sereno e imperturbável, quase inteiramente fechado ao contato humano. Em contraposição, o epicurismo, revivido nos últimos tempos por autores como Jean Marie Guyau e Michel Onfray, julga a amizade um elemento indispensável da vida feliz. Bertrand Russell também defendia a necessidade de “eliminar o egocentrismo, o fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais” (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 507).

A controvérsia opõe, portanto, os defensores de um certo ascetismo anti-social que enxerga a felicidade como busca estritamente pessoal àqueles que concebem-na como inconquistável quando desvinculada das relações intersubjetivas. De um lado, a contemplação solitária beatífica, de outro, as delícias da alteridade fecunda.

Será mesmo preciso escolher, ou podemos surfar entre estes dois pólos?

Eduardo Carli de Moraes é filósofo e jornalista e criador dos sites Depredando o Orelhão e A Casa de Vidro