Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Em 1968, uma das mais importantes bandas da história do Chile, o Quilapayun (que significa “Os Três Barbudos” em língua mapuche), lançou seu álbum Por Viet Nam. Ele foi publicado pela Dicap (Discoteca Del Cantar Popular), iniciativa ligada ao Partido Comunista do Chile, que teve Víctor Jara como diretor artístico e foi crucial para todo o movimento da Nova Canção Chilena.
Em sinergia com os movimentos cívicos nos EUA que se insurgiam contra a agressão imperialista contra o Vietnã, o Quilapayún denunciava a “águia do imperialismo” na primeira canção do álbum, para logo na sequência abordar a Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939), que engendrou a ditadura de Franco, em “Que La Tortilla Se Vuelva”.
Após visitar, através das canções de protesto, as lutas dos povos no Vietnam e na Espanha, realizam uma “canção fúnebre” em homenagem a Ernesto Che Guevara, médico argentino que havia participado da revolução em Cuba (que triunfou em 1959) e havia se mobilizado também em prol da libertação do Congo e na Bolívia, antes de ser brutalmente assassinado em 9 de outubro de 1967, em La Higuera.
Já não surpreenderá a ninguém, dado o teor das canções, que este tenha se tornado um dos LPs que os “milicos” e carabineiros mais se esforçariam por quebrar e incinerar após o Golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973.
O disco se tornaria alvo de repressão, de sanha exterminista, por parte da ditadura Pinochetista. Após a destituição violenta do governo da União Popular, encabeçado por Salvador Allende, o Quilapayún passou a ser uma espécie de “inimigo do Estado”. Por ter sido, antes, uma força cultural alinhada às forças da União Popular, vitoriosas nas eleições de 1970, e que só pôde governar até o dia fatídico em que as Forças Armadas do Chile traíram a democracia e se fizeram as serviçais dos EUA naquele coup d’état que, além da democracia e das liberdades civis, também levou a vida de Allende e o direito de um povo seguir cantando.
A carnificina grotesca e brutal que Pinochet dali em diante comandaria também tinha a ver com uma “guerra cultural”, bem ao gosto do que a extrema-direita Bolsonarista e Olavete hoje defende. No Chile Pinochetista, os Quilapayuns e Victor Jaras, os Inti-Illimanis e as Violetas Parras, tinham que ser silenciados; as obras deles tinham que ser destruídas, as mãos deles tinham que ser amputadas pra que nunca mais tocassem violão ou piano; os fuzis dos milicos tinham que encher as bocas e línguas de balas para que estes “esquerdistas” nunca mais ousassem soprar uma zampoña ou cantar uma décima libertária!
A cada vez que um brasileiro, ostentando sua ignorância como se mérito fosse, despreza a produção cultural dos pueblos latinoamericanos, desinteressando-se de qualquer contato com uma obra artística como esta, é de novo a vontade tirânica dos Pinochets que triunfa; mas a cada vez que estas músicas ressurgem, bombam alto nos alto-falantes, aí é que gritam de novo na cara dos opressores os agentes culturais que estiveram devotados às causas da beleza, da verdade e da justiça. Aí podemos celebrar que as mordaças das ditaduras, por mais que tenham tentado, fracassaram em silenciar o que precisava ser dito e o que prossegue querendo ser em coro cantado – como provam as fenomenais apresentações do Inti-Illimani com “El Pueblo Unido Jamás Será Vencido” na Santiago conflagrada de 2019.
Ouvir Quilapayun é um ato de resistência, e tocar um disco desses bem alto, para que toda a vizinhança ouça, é mais que democratização da boa música: é enviar pelos ares, re-ativada, a potência de uma arte que nada tem de “isentona” nem de cúmplice de tiranos e fascistas. Uma arte que atua no campo da história como força colaborativa e “coro fecundo” que se levanta “exigindo liberdade”. Exigir liberdade é o ofício deste canto, garantem em “Himno De Las Juventudes Mundiales”, uma canção emblemática do ano 1968 – este que, para além do eurocentrismo que nos leva sempre a lembrar das Jornadas de Maio em Paris, teve no México e no Brasil episódios históricos igualmente importantes.
As tiranias que, em 1968, massacraram os manifestantes mexicanos às vésperas das Olimpíadas ou que deram o golpe mais brutal nas liberdades civis dos brasileiros com o AI-5 (de Dezembro de 1968), sempre precisaram instaurar um clima de censura cultural exacerbado, exilando artistas ou mesmo praticando assassinatos contra os dissidentes contraculturais. Os exílios de Caetano e Gil, com a Tropicália trucidada em pleno vôo pelo AI-5, são emblemas disso no Brasil.
No belo documentário de Nanni Moretti, “Santiago, Itália”, em uma cena chave, polvilhada de melancolia e indignação, este vinil do Quilapayún queima em uma fogueira acesa por militares armados com fuzis. É uma cena que evoca lembranças das fogueiras em que os nazistas queimaram a literatura “degenerada” dos judeus, comunistas, ciganos e outros “párias” que perseguiram e exterminaram. Evoca também a Inquisição incinerando Brunos e bruxas.
01. Por Viet-Nam 00:00
02. Que La Tortilla Se Vuelva (De La Revolución Española) 02:20
03. Cancion Fúnebre Para El Che Guevara 04:32
04. Mamma Mia Dame Cento Lire (Del Folklore Italiano) 07:35
05. La Zamba Del Riego 09:57
06. Cuecas De Joaquín Murieta 12:45
07. Himno De Las Juventudes Mundiales 14:18
08. El Tururururú (De La Revolución Española) 16:30
09. Que Dirá El Santo Padre 18:55
10. Canto A La Pampa 21:36
11. La Bola 27:23
12. Los Pueblos Americanos 30:34
EXTERMINADORES DO FUTURO – A extrema-direita brasileira promove alguns dos piores crimes de ecocídio do século 21 na maior floresta tropical do planeta. Favorecidos pela política do desgoverno ilegítimo e oni-nefasto, bípedes irresponsáveis do agronegócio e do “ruralismo” predatório, os pecuaristas e latifundiários mais endoidecidos pela selvageria do capitalismo, avançam com fúria sobre a Amazônia. O clamor da Terra não é escutado por estes insensatos adoradores do vil metal, apaixonados pelas próprias polpudas contas bancárias, propulsionadas à riqueza mesmo que ao custo de ilegalidades e atrocidades.
Vão derrubando uma das áreas mais biodiversas da Terra para sobre as cinzas espalhar o gado e a monocultura – quando não o deserto. As arminhas que o fascista fã-de-torturador fazia no palanque estavam apontadas também para a cabeça da natureza – e agora elas estão atirando na cabeça de todos nós, terráqueos humanóides insanizados por uma doença chamada capitalismo.
Ao atentar contra direitos trabalhistas, salário mínimo ou aposentadoria digna, o governo destroçava “apenas” direitos de cidadãos brasileiros. Agora, em sua ofensiva contra Gaia, ao incinerar em ritmo acelerado a maior e mais biodiversa floresta tropical do planeta, avança sobre todos os cidadãos do planeta. O caráter necro e mortífero do desvario Bolsonarista, esta psicose de massas, manifesta-se ainda mais fortemente, com florestas virando cinzas e biodiversidade aniquilada irresponsavelmente. Tudo contribuindo para a intensificação de uma necropolítica, de um desgoverno da morte, de um reinado insano dos exterminadores do futuro.
Foto de Araquém Alcântara, 2019.
O Bolsonarismo é o triunfo da pulsão de morte, é uma espécie de estupidez piromaníaca, niilista e insensata, usando a máscara antiga da defesa de valores “tradicionais”. Um projeto político que diz ser “a favor da família tradicional brasileira”, mas que aniquila as condições de vida digna de centenas de povos que compõe a teia viva da brasilidade concreta, enquanto pratica o nepotismo oportunista mais grosseiro.
Neste Agosto turbulento, em nosso país obscurecido e adoecido pelo neofascismo, chegou a cair uma noite súbita sobre São Paulo às 15h da tarde. Não era um eclipse, nem nuvem pesada de tempestade, era a fumaça da floresta morta, a cinza de milhares de árvores chegando ao invés dos salutares rios voadores. Era a apocalíptica Queda do Céu anunciando-se, como na profecia xamânica de Davi Kopenawa, o sábio Yanomami.
A QUEDA DO CÉU. O céu está escuro às três da tarde. Não é preto, não é cinza. É uma mescla estranha de cores. É escuro. Há uma floresta queimada sobre São Paulo. Vai cair sobre a cidade a cinza de milhares de árvores. Assim se dá o encontro entre o Brasil que se julga civilizado e o Brasil que queimamos para civilizar. O Brasil que matamos cai sobre o Brasil que se acha vivo, esperto, moderno. A floresta vem visitar, vem avisar. Vai cair o céu. – Tarso de Melo
Em Brasília, onde mais de 100.000 mulheres manifestaram-se recentemente na Marcha das Margaridas e na Marcha das Mulheres Indígenas, o centro do poder federal era também chaqualhado pela potência popular no território também devastado do Cerrado. Brasília, se depender de nós, jamais será o bunker da Elite do Atraso como sonham os que se pretendem donos do poder em uma era pós-democrática.
A Amazônia em chamas fez Brasília acusar o golpe que começou a vir de todos os lados da Aldeia Global. O “mundo civilizado” enfim acordando para o flagelo terrível que é o necrogoverno neofascista brasileiro, #PrayForAmazonia ascendendo a trending topic, e muita gente se radicalizando e querendo ir muito além da oração. Afinal, orar é um modo de estar passivo e inativo, o que necessita-se de fato é de ação coletiva, como a que foi proposta de imediato por ecosocialistas, anarcoprimitivistas e neohippies: QUEIME FASCISTAS, NÃO FLORESTAS!
A Amazônia fica, Bolsonaro cai. Good deal, dudes. Pois precisamos muito mais de presidentes à la Evo Morales, que ascendeu de suas raízes como indígena Aymará e sindicalista cocalero à posição suprema do executivo Boliviano prometendo e cumprindo a proteção à Pachamama, do que de facínoras irresponsáveis como Jair Messias, este “projetinho de Hitler tropical” como diz Mário Magalhães. E é melhor já ir se acostumando com o total descrédito global desta figura que o mundo todo não compreende como pôde “hipnotizar” 57 milhões de cidadãos a ponto de concederem a ele seu voto. Tendo sido obviamente, nos últimos 30 anos, apenas um ricaço oportunista de opções morais retrógradas e práticas políticas truculentas, capaz de diarréias verbais em prol da ditadura e da tortura, e que nada fez em 30 anos enquanto deputado federal senão destruir a conta-gotas. Agora lhe foi dado o poder para destruir em larga escala.
Florestas e direitos vão sendo incineradas em velocidade recorde, a ponto de alguns movimentos sociais internacionalistas como o Extinction Rebellion estarem propondo um novo imperativo categórico para nossa época: percam toda a esperança e ajam como se a casa estivesse pegando fogo!Pois está. (Como bem expressou a jovem ativista Greta Thunberg)
“De acordo com o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), somente em junho deste ano, foram destruídos 920,2 km² de floresta na Amazônia, um aumento de 88% em comparação com o mesmo mês do ano passado. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) havia alertado que a devastação aumentou 88% junho e 278% julho na comparação com iguais períodos de 2018.”
O Sr. BolsoNero Motoserra, principal responsável pela catástrofe ambiental em curso, um ecocídio de vastas proporções que estarrece e preocupa a todo o planeta, colocando a Amazônia no centro do mundo, indicou para o Ministério do Meio Ambiente o Sr. Ricardo Salles.
Ninguém ainda soube explicar a contento como as instituições do país permitiram que tomasse posse como ministro de Estado o sr. Salles, uma vez que ele tinha sido condenado na justiça, em Dezembro de 2018, por improbidade administrativa e teve seus direitos políticos suspensos por três anos.
“Salles ocupava então o cargo de secretário estadual do Meio Ambiente do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A ação diz respeito à elaboração do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, área de proteção ambiental que contém 7.400 hectares. A área foi criada em 1987 e abrange 12 municípios da Grande São Paulo.” – Veja mais em UOL: https://bit.ly/2R7p0I5
A demagogia eleitoral engana-trouxas de Bolsonaro continha o promessa de que não indicaria para Ministro ninguém que tivesse sido condenado por corrupção – e eis o Brasil de 2019, com um condenado no MMA, um réu confesso de Caixa 2 (Onyx) na Casa Civil e um juiz ladrão que fraudou a eleição no super-ministério da Justiça e da Segurança Pública (Moro).
Derrotado nas eleições de 2018, em que concorreu para deputado federal pelo Novo, o Sr. Salles presidia o Movimento Endireita Brasil e sua campanha eleitoral teve vários momentos criminosos – como exemplificado pela imagem anexa. Reportagem do The Intercept Brasil, em Agosto de 2018, pede com ironia que “apreciemos um dos santinhos de Ricardo Salles”:
“Não sei se incitação ao crime contra adversários políticos pode ser considerada uma novidade na política. Salles escolheu o número 3006, uma referência ao calibre da bala que aparece no santinho, o que também não chega a ser uma novidade. O então candidato a deputado federal Delegado Waldir (PSDB) apresentava o número 4500, e seu slogan era “45 do calibre, 00 da algema”. O partido Novo rechaçou publicamente o candidato logo após a publicação da imagem, que claramente possui conteúdo ilegal. Se o partido desaprova e “diverge totalmente” dessa aberração, como é que aceitou que o criador dela se tornasse um dos seus principais candidatos a deputado federal?” – JOÃO FILHO. Veja mais: https://bit.ly/2nTcuf4.
O Sr. Salles nunca foi eleito para nada por ninguém. Mas como estes políticos estão cagando e andando para a democracia, isto não o impediu de ascender ao poder:
“Se o povo não lhe concedeu nenhum cargo público, Geraldo Alckmin resolveu esse problema. E não foi qualquer carguinho. Em 2013, Salles foi nomeado secretário particular do governador, uma função importante dentro do governo. Nessa época, o Movimento Endireita Brasil estava de vento em popa, e a página do grupo no Facebook já era uma referência para os reacionários brasileiros. Lá, eles faziam uma oposição radical aos governos petistas, se posicionavam radicalmente contra o casamento gay e defendiam, entre outros absurdos, a ditadura militar. O nível do Endireita Brasil é tão rasteiro que o grupo chegou a oferecer R$ 1000,00 para quem hostilizasse Ciro Gomes em um restaurante de São Paulo. Salles também chama o golpe de 64 de “movimento de 31 de março” e considera que “felizmente tivemos uma ditadura de direita no Brasil”. – THE INTERCEPT BRASIL (op cit)
Recentemente, em programa da Globo News, o Sr. Salles confrontou em debate Ricardo Galvão, ex-diretor do INPE (assista: https://www.youtube.com/watch?v=IpRUIvKbl0E), logo após o lamentável episódio em que, de modo autoritário e ditatorial, o sr. Jair Messias demitiu Galvão de seu cargo. A “falha” de Galvão, merecedora de demissão, havia sido divulgar dados verídicos e irrefutáveis sobre a escalada dos incêndios criminosos e do desmatamento ilegal na Amazônia. Como era de se esperar, Salles agiu diante de Galvão (professor titular de física da USP) como um rottweiller de seu patrão e um ardoroso defensor do facínora fascista que hoje ocupa a presidência da República.
É uma das primeiras vezes em nossa História que um idiota irresponsável age, na presidência da república, em prol da destruição insana das riquezas naturais e da biodiversidade do país que deveria governar, escalando um anti-ambientalista para o MMA, um aniquilador da educação pública para o MEC, uma pastora evangélica fundamentalista para o Ministério da Família e dos Direitos Humanos, um ex-juiz golpista para o Ministério da Justiça, um banqueiro Pinochetista com função de Privatizador Geral de Tudo no Ministério da Economia, uma dondoca agrotóxica conhecida como Musa do Veneno no Ministério da Agricultura, dentre outros absurdos surreais. Tá tudo de ponta-cabeça nestes tempos obscuros! Eis mais sobre o Ministro Salles:
“Ex-militante do DEM, incentivador do assassinato de sem-terras e defensor dos latifundiários, o ministro do Meio Ambiente que mente no currículo e foi condenado por fraude ambiental, tenta se esquivar da responsabilidade pelo aumento exponencial das queimadas que estão destruindo a Amazônia. Saiba mais sobre o ministro que, inclusive, tentou processar a Revista Fórum e perdeu” – saiba mais: https://bit.ly/2Hn7DgA.
Uma charge famosa que circula nas redes e que voltou a viralizar mostra o planeta Terra adoecido, todo esculhambado, cheio de esparadrapos e hematomas, sendo atendido por um médico que lhe diz: “Sinto muito, a sua doença é grave: você tem humanos.” A piada é afiada e certeira, mas acreditamos que o nome da doença, de fato, não é Humanidade mas sim Capitalismo.
Bolsonaro e Salles são monstros atrozes pois só enxergam a grana: obcecados pela insânia da ambição, agem de maneira completamente contrária ao que se espera de agentes públicos que tem por missão zelar pelo bem comum. Eles só querem saber do próprio ganho e do favorecimento de fazendeiros, latifundiários, pecuaristas e outros endinheirados. Bolsonaro e Salles são exemplos nefastos de gente desqualificada, irresponsável e brutal que entra na política com um único fim: o enriquecimento próprio e de seu círculo familiar:
“Em julho deste ano, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar suposto enriquecimento ilícito de Salles. De acordo com o MP, o ministro teve um enriquecimento atípico entre 2012 e 2017. Em 2012, quando foi candidato a vereador pelo PSDB, ele declarou à Justiça Eleitoral R$ 1,4 milhão em bens. Na última eleição, quando foi candidato a deputado federal pelo Novo, declarou R$ 8,8 milhões, um estranho aumento de 335%.” – REVISTA FÓRUM
Enquanto cresce no mundo todo uma tsunami de revolta e indignação diante dos crimes de ecocídio cometidos com a conivência do governo de extrema-direita brasileiro, que realizou a Festa da Desregulação Ambiental para favorecer pecuaristas, garimpeiros, madeireiros, latifundários etc., a Amazônia vai tendo altas porções de seu território reduzida a cinzas. Enquanto isso boa parte dos 57 milhões de eleitores do Coiso seguem passando pano pra fascista ou mantendo-se em silêncio conivente e cúmplice diante de crimes brutais contra o Brasil, contra o Planeta e contra as futuras gerações.
A imprensa internacional, com TeleSur, The Guardian e Democracy Now! na vanguarda, já repercute pelo globo o fato de que “os incêndios são sintomáticos das políticas mais amplas que estamos vendo do governo Bolsonaro”. Ou melhor, BolsoNero, o piromaníaco, o exterminador do futuro. O que nos empurra prum rolê Mad Max – não mais nos cinemas mas na distopia do real.
Se você acha que grana é mais importante que ambiente, tente segurar a respiração enquanto conta suas cédulas. O Brasil, que se rachou e se apartou por causa da polarização política em tempos de Golpes de Estado e Guerras Híbridas, não encontrou ainda o caminho à consciência coletiva da nossa interdependência: sem a Amazônia e seus “rios voadores”, o Cerrado e o Sudeste seriam lançados à desertificação. Ao colapso de um ecosistema biofílico. O Necrogoverno nos conduz a este abismo.
Estamos com 84 mil bolsas de estudo e pesquisa cortadas, 6.000.000.000 de reais bloqueados no orçamento da rede de educação federal, uma hecatombe ecológica na Amazônia e no Pantanal, e a festa do agrotóxico atingindo o auge (o veneno está na mesa, o veneno está no corpo…). Eis alguns dos efeitos do suicídio coletivo que o Brasil pratica ao permitir o prosseguimento do desgoverno neofascista, ilegítimo e oni-nefasto, ovo parido pela serpente do golpe de Estado.
O crime de etnocídio e de genocídio já estão bem tipificados no direito internacional, e possuem várias entidades de defesa de direitos humanos que buscam defender as populações contras estas atrocidades de extermínio. Mas o crime de ECOCÍDIO ainda é pouco conhecido – agora Bolsonaro e as hordas que se sentem por ele representadas e autorizadas servem como o sangrento emblema de um novo paradigma global de ecocídio. Boa parte da mídia progressista internacional, com o The Guardian e o The Intercept à frente, já perceberam que o mundo enxerga cada vez mais Bolsonaro como “exterminador do futuro”, como um estadista-demente que atinge o auge de insânia no trato com o meio ambiente.
Alguns podem pensar que o crime de ecocídio é menos grave que etnocídio ou genocídio, mas creio que estes três conceitos estão interligados de formas muito intensas pois quem destrói um ecosistema pratica de fato um genocídio e vários etnocídios caso consiga de fato aniquilar as condições para que a condição humana prossiga existindo em tal território.
O ecocídio, que é um gravíssimo atentado contra as condições da vida florescente, talvez deveria ser tipificado não como “crime contra a humanidade”, o que seria limitante pois confinaria o escopo do conceito à influência sobre os humanos, mas sim como “crime contra a Teia da Vida” (Fritjof Capra), pois implica agir como carrasco de uma fauna e flora que transcende o humano e constitui a pluridiversa Teia da Vida. A filosofia contemporânea, com Michel Serres e Hans Jonas, argumentou que a Teia da Vida deveria ser objeto de um Contrato Natural ou de um Pacto de Responsabilidade firmado entre os humanos e todo o restante da vida-em-teia-que-integramos.
O Bolsonarismo, para além da psicopatia de sua “política de costumes” (racista, machista, heterosexista, elitista, armamentista, sectária, sádico-perversa até os ossos), funciona concretamente sobre o planeta como mais uma mega-máquina exterminadora de Gaia, aniquiladora de diversidade. Um fascismo ecocida full throttle.
A Amazônia é de fato o centro do mundo, como disse Eliane Brum, mas no centro do mundo está uma distopia em chamas e uma floresta atrozmente devastada. E a necessidade inadiável de um planeta que se una em Resistência e que salve-nos – pela ação coletiva, nunca por preces inúteis à Providência Divina – da catástrofe ecocida-genocida conexa ao desgoverno bolsonarista.
Venezuela e as guerras híbridas na América Latina é o título do dossier n.17 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado em junho de 2019. O documento, com cerca de 50 páginas, reporta de forma breve e contundente os acontecimentos do primeiro semestre do ano, extremamente turbulentos na política e na vida do povo venezuelano, sem deixar de contextualizar os antecedentes históricos dos conflitos que tiveram lugar no país.
Em fevereiro deste ano, a fronteira colombiana, nos limites da cidade venezuelana de Cucutá, foi forçada com a prerrogativa da entrada, não autorizada pelas autoridades venezuelanas, de ajuda humanitária dos Estados Unidos, via Colômbia. Dois meses depois, no dia 29 de abril, um levantamento militar foi orquestrado por Juan Guaidó, deputado e ex-presidente da Assembleia Nacional, hoje em desacato à nova constituinte amplamente referendada pelo governo bolivariano. Apesar da intensidade dos ataques à ordem política do país em 2019, a história da intervenção à soberania da Venezuela tem uma passado longínquo.
Só para tomar-se os governos bolivarianos iniciados em 1999, com a eleição de Hugo Chávez, o intervencionismo dos Estados Unidos, já em 2002, tentou promover uma reação à Lei de Hidrocarbonetos e à Lei de Terras em prol da distribuição de renda e da nacionalização das reservas naturais, prefigurando o que hoje se conhece como Guerra Híbrida (Korybko, 2018). Através da paralisação das atividades produtivas e do desabastecimento programado, os chamados locautes, promovidos por empresários alinhados ao capital extranjeiro e à ingerência imperial, a guerra econômica foi usada como método de desestabilização dos governos populares.
O documento ainda aponta que ao longo dos anos, um renovado intervencionismo promove uma verdadeira guerra, um conflito permanente que, entretanto, adota métodos não convencionais na doutrina militar, caracterizando-se, por isso, como uma guerra difusa, não-declarada, porém com efeitos devastadores para o povo latino-americano.
Também chamada de Guerra de Quinta Geração, as novas ofensivas imperiais se caracterizam por uma assimetria de forças em campo e por sua multidimensionalidade, abarcando os planos econômicos, territoriais e até psicológicos, sempre em vista a um domínio total do espectro político dos países alvos do interesse estadunidense em busca da perpetuação de seu frágil hegemonia. Dos liberais ao comunistas, ninguém estaria livre da fraude, da corrupção e do poder de chantagem dos estrategistas militares norte-americanos.
Ao considerar-se a mudança do eixo de acumulação do capital para a Eurásia, especialmente em seu pólo oriental, na China, pode-se entender a voracidade renovada da ofensiva neoliberal estadunidense que busca reforçar o padrão de acumulação predatória; aprofundar a financeirização e a transnacionalização; e ainda exasperar a competição por territórios ricos em bens naturais, em busca da apropriação dos recursos escassos disputados entre as potências globais.
Nesse sentido, teóricos como Thomas Barnett definem, sem nenhum pudor, a “América Latina” como área de atenção prioritária do Pentágono, ou ainda, como zona de influência natural. O nível de exploração de minérios, água, biodiversidade e, claro, petróleo na região referenda essa tutela, sendo que mais da metade das exportações destes materiais são destinados aos Estados Unidos, às vezes chegando à 93 por cento, como no caso do estrôncio, um importante material para fabricação de eletrônicos, equipamentos médicos e ligas metálicas de alta resistência.
Essa visão neocolonial serve à exploração dos limites políticos ao fomentar as oposições com armas e logística operacional; controlar os bens naturais, o mercado produtivo, as rotas de distribuição de insumos, o transporte e até a energia essenciais às populações dos países alvos de intervenção. Na América do Sul, a região amazônica na qual está incluída a Venezuela é alvo de especial cobiça por parte do imperialismo neocolonial.
A maior floresta tropical do planeta integra nove países, abriga vasta biodiversidade e recursos minerais ainda inexplorados. Certificada como a maior reserva de petróleo do mundo, além de saberes milenares em torno das aplicações médicas de sua flora, a Amazônia venezuelana é a jóia da coroa sob a qual a decadente hegemonia estadunidense busca se apoiar. Por isso o projeto de retomar a Venezuela como “espaço privilegiado de influência” ser orquestrado principalmente pelos executivos das petroleiras Exxon e Chevron, em detrimento do controle estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), que promove redistribuição de renda no país e teve suas transações bloqueadas para o comércio internacional e sua participação acionária recentemente expropriada em território norte-americano, através da concessionária Citgo.
Em resposta ao cerco econômico, o governo bolivariano de Nicolás Maduro, continuador de Hugo Chávez, avançou em acordos comerciais com outros países, à revelia do dólar. Desenvolveu uma criptomoeda para comercializar petróleo sem a intermediação financeira, chamada “Petro”, seguindo medidas similares de China, Rússia e Irã, além das intenções correlatas anunciadas pela própria União Europeia, aliada militar dos EUA, de comprar gás da Rússia em euros. Como consequência da política de insubordinação aos bloqueios do norte por parte do bolivarianismo e da guerra comercial entre China e EUA, em 2018 a Venezuela tomou emprestado 5 bilhões de dólares da China e, ao longo dos primeiros meses de 2019, recebeu insumos militares e apoio logístico da Rússia.
Renato Costa Silveira, estudante de Jornalismo da UFG, criador do blog Maduro Motorista
Quer você se cale, quer você fale; quer você se abstenha, quer saia à luta; quer seja atuante, quer prefira quedar passivo, no fim das contas vai acabar morto. O teu silêncio, a tua abstenção, a tua passividade, nunca vão te impedir de morrer. Por que não, então, fazer das vísceras coração para falar, lutar, agir, sempre na ciência de que “we were never meant to survive”?
Diante das calamidades triunfais, diante das liberdades suprimidas, diante dos zumbis políticos do ecoapocalipse, diante da restrição da renovação e do amordaçamento das vozes, quem seríamos nós, caso calássemos, senão cúmplices do pior?
Na América Latina se respira luta, como sabe qualquer um que tenha se aventurado a conhecer a história conturbada deste continente. E não há nem sinal no nosso Horizonte Histórico de que isso pare de ser verdade no futuro próximo: seguiremos respirando luta. Na Chiapas zapatista, na Bolívia de Evo, com os Mapuches chilenos, na companhia das resistências indígenas e quilombolas, em toda parte do continente onde se peleja por dias melhores, seguiremos hasteando a bandeira colorida (onde o vermelho e o preto, é claro, sempre terão seus devidos lugares de honra…).
Seguir respirando lutas libertárias: é esta nossa sina e tarefa histórica, a da ação coletiva para construir “um outro mundo possível”, como propôs o Fórum Social Mundial nascido em Porto Alegre na aurora do século 21. Um mundo onde caibam todos os mundos. E cuja construção coletiva inspira-se nas sugestões e utopias de figuras como Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Naomi Klein, Leonardo Boff, Vandana Shiva, Raj Patel, Arundhati Roy, Boaventura dos Santos, dentre tantos outros.
O Sistema que temos a missão de fazer colapsar, no mesmo processo em que o substituímos por um melhor, é aquele que degrada a Teia da Vida, submetendo-a ao deus Lucro, esse devorador Mammon que conspurca tudo.
Historiadores do futuro talvez se debrucem sobre a época que atualmente atravessamos com o interesse de compreender como se deu esta bizarra fusão, que ora nos desgoverna, do capitalismo neoliberal “selvagem” (a doutrina de que nenhum Estado deve controlar a economia, tudo deve ser entregue ao livre jogo da mão invisível do deus Mercado…) com um neofascismo todo calcado em conservadorismo moral.
Revista Piauí – Ilustração: Roberto Negreiros. Matéria de Marcos Nobre, “O Caos Como Método”.
Sabemos que vivemos, de novo, em uma era de liberdades proibidas, de direitos interrompidos, de regressões à barbárie. E que de nós depende a pulsão de primavera que possa fazer irromper, de novo, a biophilia perdida, a solidariedade estilhaçada, a rota reencontrada da reconstrução de um projeto coletivo norteado pelo bem comum. Isso exigirá que a gente se embrenhe no labirinto dos fascismos, nele agindo como libertários destruidores-construtivos, aqueles que, como Nietzsche ensina, só destroem pois são criadores e só aniquilam aquilo que superam.
Ajudemos os historiadores do porvir, fazendo uma espécie de relato histórico a quente das últimas ocorrências no cabaré incendiado chamado Brasil – e compartilhando algumas reflexões sobre todos os pertinentes movimentos sociais e ativismos cívicos que tem contribuído no sentido de alargar os limites da democracia (falha, de baixa intensidade, sempre restringida por elites contrárias à renovação).
“O golpe de 2016 encerra um ciclo que se iniciou com a Constituição de 1988”, avalia a cientista política Flávia Biroli, professora da UnB e autora de vários livros publicados pela Ed. Boitempo (dentre outros). O encerramento de ciclo que o golpeachment instaura se deu após a ruptura constitucional operada com a meta da deposição de Dilma Rousseff. Hoje, a dita Constituição Cidadã se encontra em frangalhos, sangrando na UTI.
“A Constituição de 1988 é o resultado de disputas e pactos”, lembra Biroli. Todo o processo Constituinte (vejam isso em minúcias na obra de Florestan Fernandes, deputado constituinte pelo PT, em seus artigos e livros da época) ocorreu um confronto de forças opostas, numa espécie de cabo-de-guerra entre a Ditadura debatendo-se por sua vida e a Democracia em seu ímpeto de renascença: opuseram-se naquela época “ações de elites políticas bem posicionadas no regime de 1964, que foram capazes de manter o controle sobre recursos econômicos e políticos no processo de democratização, e as reivindicações que partiram de outros grupos e públicos, com agendas alternativas e conflitivas.”
“O predomínio de setores religiosos conservadores, de interesses empresariais, de proprietários de terra e de empresas de comunicação, em um ambiente internacional de ascensão da agenda neoliberal, barrou a possibilidade de que o processo democrático alargasse as condições para uma igualdade mais substantiva, para o controle popular sobre a economia e para a igual cidadania das mulheres e da população negra.” (BIROLI, In: Tem Saída?, Ed. Zouk, Porto Alegre, 2017. p. 17)
Estes movimentos cívicos que se envolveram na luta pela Constituição de 1988 – “luta pelos direitos humanos, pela igualdade de gênero e racial, pelo direito à saúde e à moradia, pela universalização do acesso à educação, pelo direito à terra” – não podem ser enxergadas pelo viés apequenador das batalhas já ganhas. Mas muito menos como batalhas perdidas. São ainda as nossas batalhas, e sempre haverá na América Latina lutadora – aquela de Martí, de Zapata, Bolívar, de Fidel, de Guevara, de Sandino… – quem siga em levante contra o tropel triunfante das injustiças multiformes.
Vivemos, no Brasil, numa espécie de híbrido entre Ditadura militar e Democracia liberal, uma simbiótica cooperação entre Estado e Mercado para que o primeiro seja o punho visível do Leviatã que garante, a partir de seu poder policial e encarcerador, um grau mínimo de ordenação social para que a mão invisível do Deus Mammon possa fazer seu traquinice peralta mais recorrente: Robin Hood às avessas, rouba dos pobres pra dar aos ricos.
A despeito de ter quase a mesma carga tributária que países como o Reino Unido, por exemplo, o Brasil é um dos países mais ineficazes na redução da desigualdade de renda, beneficiando mais a camada mais rica da população.
É o que conclui um estudo da Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), do Ministério da Fazenda, publicado nesta sexta-feira (8), que classifica o país como um “Robin Hood às avessas”.
“Em vez de tributar os mais ricos para distribuir para os mais pobres, [o Brasil] termina tributando a todos para distribuir via transferência monetária, em especial aposentadorias e pensões, para a metade mais rica da população”, afirma o levantamento.
De acordo com o documento, o país gasta cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto) com programas de transferência de renda, o que inclui aposentadorias (que representam 83% do total) e programas sociais como seguro-desemprego e Bolsa Família.
Apesar disso, a diferença entre a carga tributária e essas transferências contribui para reduzir o índice de Gini, indicador que mede a desigualdade, em apenas 17%.
É a metade da média dos países da OCDE, onde esse percentual é de 34%.
“Fica evidente que, no caso do sistema fiscal brasileiro, o impacto redistributivo mais fraco não resulta de uma baixa arrecadação tributária, mas sim da forma que o Estado brasileiro devolve os recursos arrecadados para a sociedade”, afirma o levantamento. “Só o México e o Chile apresentam desigualdade no mesmo patamar do Brasil depois das transferências e tributos.”
Enquanto esta mentalidade obcecada por lucros e ganhos financeiros for hegemônica, seguirá acarretando a lamentável e epidêmica degradação da vida em que estamos imersos até o pescoço. Degradação das condições dignas de trabalho – nossos celulares, por ex., sujos com o sangue das crianças africanas que são escravizadas nas minas de cobalto do Congo. Degradação dos ecossistemas e biomas, antes repletos de biodioversidade, hoje áreas com jeitão de Chernobyl (vide as tragédias socioambientais em Minas Gerais, Mariana e Sobradinho…).
Degradação de todos os mecanismos de participação política efetiva, corrosão das portas e pontes abertas para a real manifestação da soberania popular. Em canetada palaciana, Jair Bolsonaro extinguiu boa parte dos conselhos destinados a intermediar a relação entre representantes e população. Uma das muitas sabotagens ao processo democrático que estão sendo feitas.
É como se os dois regimes pós-Golpe – ou seja, os governos encabeçados pelos presidentes Temer e Bolsonaro – estivessem devotados a revogar a Constituição de 1988 de modo análogo ao que fez a Ditadura promulgando, em 1967, uma Constituição que reforçou a censura e a repressão: “a dura política repressiva que se instalara com o AI-5”, a partir de Dezembro de 1968, já havia sido prenunciada pelo reforço dado, no ano anterior, à Divisão de Censura de Diversões Públicas. A liberdade de expressão era cada vez mais duramente cerceada e combatida, como mostra, para o caso da literatura brasileira, a obra da Sandra Reimão, Repressão e Resistência: censura a livros na ditadura militar.
Autores como Darcy Ribeiro, Rubem Fonseca, Caio Prado Jr., Inácio de Loyola Brandão, Cassandra Rios e Rose Marie Muraro foram alguns dos alvos do amordaçamento. Entre os editores, foram atacadas figuras como Ênio Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, que teve sua sede invadida, livros confiscados e enxurradas de processos provindos da lawfare ditatorial.
Na MPB, como é bem sabido, a repressão também desceu com seu porrete amedrontador sobre vários artistas, e um caso emblemático é o espetáculo de Gal Costa, Gal a Todo Valor, em 1971.
Segundo Eduardo Jardim, podemos ler todo o contexto histórico ou zeitgeist em canções de Caetano que Gal interpreta, a exemplo de “Como 2 e 2”. No Teatro Teresa Raquel, em Copabacana, “o público que lotava o teatro” entendia a palavra DESERTO, no verso “TUDO EM VOLTA ESTÁ DESERTO”, com significados profundos que remetiam ao estrangulamento das liberdades, da supressão dos ímpetos libertários pela ditadura militar:
“Quando você me ouvir cantar Venha, não creia, eu não corro perigo! Digo, não digo, não ligo, deixo no ar. Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar…
Tudo vai mal, tudo! Tudo é igual quando eu canto e sou mudo Mas eu não minto, não minto Estou longe e perto Sinto alegrias tristezas e brinco
Meu amor Tudo em volta está deserto, tudo certo Tudo certo como dois e dois são cinco.
Quando você me ouvir chorar Tente, não cante, não conte comigo Falo, não calo, não falo, deixo sangrar Algumas lágrimas bastam pra consolar…
Tudo vai mal, tudo! Tudo mudou, não me iludo e contudo: A mesma porta sem trinco, o mesmo teto E a mesma lua a furar nosso zinco…
Meu amor Tudo em volta está deserto, tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco…”
“Aqueles jovens apinhados em uma sala fechada, em um estado de forte emoção , sabiam que, fora dali, tudo era mesmo um deserto e tudo estava tão errado como a matemática da canção. O público era basicamente de estudantes e jovens artistas, os quais, de algum modo, tinham sido atingidos pela dura política repressiva que se instalara com o AI-5.
O governo avaliava com razão que os quadros das organizações armadas, que contestavam o regime, eram recrutados no meio universitário. Por este motivo baixou o decreto 477, em fevereiro de 1969, que punia com a expulsão da universidade e impedia o reingresso nela, por 3 anos, de todos os que participassem de atividades consideradas subversivas, como convocação de greves, organização de passeatas, produção ou porte de material de propaganda política, uso das dependências escolares para fins de subversão ou prática de ‘ato considerado imoral ou contrário à ordem pública’.
Além de dificultar a arregimentação de quadros para os grupos armados, outro objetivo do decreto foi impedir que o movimento estudantil se reorganizasse e voltasse a promover manifestações como as ocorridas nos anos anteriores.”
JARDIM, Eduardo. Tudo em volta está deserto: Encontros com a literatura e a música no tempo da ditadura.
Este desvio pela arte tropicalista nos tempos da ditadura não é à toa: é pra lembrar que, na Ditadura, as inovações estéticas e comportamentais sugeridas pelos artistas da Tropicália foram duramente reprimidas e silenciadas. E que foi justamente a Constituição de 1988, aquela da “redemocratização”, que enfim derrubou a censura às artes e aos meios de comunicação:
As obras de pensadores como Flávia Biroli, Márcia Tiburi, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Edson Telles, Maria Rita Kehl, Rubens Casara, Débora Diniz, para citar apenas alguns dos mais ilustres, são cruciais para que questionemos a fundo se está viva e saudável, ou se está moribunda e agonizante, a dita Constituição Cidadã e a chamada “Redemocratização”.
Os governos Temer e Bolsonaro mostram toda a fúria destrutiva da Elite do Atraso que não deixa dúvidas: Cultura e Educação não apenas estão longe de serem prioridades, mas também merecem todo o ímpeto de desmonte e destruição que ora presenciamos, com a extinção do MinC e com cortes brutais nos investimentos na rede federal de educação.
Bolsonaro é o cadáver insepulto da Ditadura que ressurge da tumba. Um zumbi que vem para nos relembrar de nosso mal enterrado passado de violências de Estado impunes. A velha face de uma elite brutal que perpetra opressões e impunemente se deleita com as inúmeras degradações da dignidade humana dos mais vulneráveis que impõe.
Lembremos que o regime nascido do golpe de Estado de 1964, exatamente como o regime de Bolsonaro em 2019, usava instrumentos repressivos “contra os professores das universidades”: durante o domínio dos milicos que golpearam o governo Jango em 1964, “foram feitas listas de docentes que deveriam ser demitidos” e “houve casos em que estas medidas foram devastadoras, como no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ”.
Ali, rememora Edu Jardim, estavam reunidos os cursos de Filosofia, Ciências Sociais e História – velhos inimigos jurados dos regimes totalitários e dos autocratas que os encabeçam. Choveu repressão, mordaça e expurgo patrocinados pela Ditadura, e “com o esvaziamento do quadro docente, professores tinham que improvisar aulas das mais diferentes disciplinas e agentes infiltrado da polícia, chamados de assessores pedagógicos, circulavam pelos corredores da antiga Escola de Engenharia, no Largo de São Francisco, no centro do Rio de Janeiro. Lembro-me de um casal de namorados sendo admoestado, a mando de um professor, pelo fato de a moça estar com a cabeça reclinada no ombro do rapaz.” (JARDIM, op cit, p. 59)
Hoje não estamos muito melhor: Bolsonaro não difere tanto de um Médici; Paulo Guedes é admirador do regime ditatorial que Pinochet instalou no Chile, para testar a doutrina neoliberal burgofascista dos Chicago Boys; Sérgio Moro é uma figura meio Torquemada, meio Grande Inquisidor, que fede um pouco à jurisprudência medieval (aquela história de quem acha que, para condenar e aprisionar, não são necessárias provas, bastam as convicções); já no MEC e no Itamaraty, temos sectários Olavetes que não tem muito a propor senão despautérios imbecilóides como “o nazismo com certeza foi um movimento de esquerda” e “aquecimento global é uma fraude inventada pelos marxistas”…
Diante da restrição à renovação, renovação que é essencial ao avanço coletivo rumo a uma realidade alternativa menos injusta e menos sofrida, não nos resta caminho a não ser “sacar a voz”, como recomendam Anita Tijoux e Jorge Drexler, e irmos à luta. Até o Patriarcado cair, até a cleptocracia rodar, até o fascismo vazar, até tudo reflorescer – pois se o inverno é deles, a primavera pode ser nossa.
Resta saber se você é cúmplice do gelo, ou aliado da flor. Sabendo sempre que o silêncio nunca vai te proteger e no final, na certa, você vai morrer. Com o risco supremo: no momento fatal, olhando de cara para silêncios, passividades, obediências e inações, aí se concentre todo o fardo pesado do arrependimento. Pela vida não vivida, pela luta não lutada.
“Your silence will not protect you!”
É TEMPO DE SEMEAR A LUTA & FLORESCER POR MARIELLE
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HISTÓRIA DA MÚSICA LATINO AMERICANA: ALGUNS DISCOS INDEPENDENTES QUE ILUSTRAM NOSSO PASSADO E PRESENTE
Por Tamyres Maciela, colunista d’A Casa de Vidro
Vivo em um vai e vem de estudos musicais. Quando paro pra descansar a cabeça das contemporaneidades aprofundo mais no passado musical brasileiro e das nuestras hermanas nações latino americanas. Me encontro agora no garimpo dos sons produzidos lá pelas décadas de 70 e 80. Acho que já comentei que sou usuária assídua do Youtube e sempre percebo movimentações novas nesse site, pessoas publicando sons e créditos de discos de vinil que guardam há anos, sites de resgate da memória cultural nacional, até mesmo canais de tv como Canal Brasil e TV Cultura, que têm um acervo riquíssimo das produções culturais de antigamente. Têm todo meu respeito e admiração as pessoas que disponibilizam seus acervos pela internet. Muchas gracias!
Alguns discos independentes são fundamentais na história musical brasileira e latino americana. Musicistas que falam do nosso povo, nossas riquezas naturais, nossos sentimentos mais singelos, nossas lutas eternas por justiça, igualdade, equidade. Divido com vocês o início de uma viagem rumo ao que há de mais rico e necessário na Música Popular Latino Americana.
Em algumas conversas com a Doroty Marques ela sempre afirma o caráter independente de seu trabalho. Trata-se de uma das primeiras mulheres no Brasil a produzir músicas de forma independente. A capa desse disco simboliza muito do que somos enquanto América Latina: trabalhadores do campo. Esse desenho foi criado no Presídio Político do Barro Branco – São Paulo em 1978 e descreve com fidelidade o conteúdo das canções interpretadas por Doroty. As músicas carregam mensagens de reflexão política por todo o álbum, contam histórias de lutas, além de exaltar a vivência nos interiores, as chuvas e geadas que acometem nossos cafezais.
Das mais belas obras musicais regionais da nossa história. O terceiro disco do mineiro Dércio Marques conta com participações especiais de sua irmã Doroty Marques, além de Diana Pequeno, Paulinho Pedra Azul, Parê e grupo Paranda. No repertório, muitas músicas dedicadas a figuras emblemáticas da música popular, sonoridades que nos levam aos mais longínquos interiores do Brasil e riquíssima mescla de elementos sonoros, como na música Fulejo (ritmos negros fundidos de Moçambique mineiro, samba rural do litoral, chula gaúcha, manha maranhense e cajón afroperuano). As canções retratam a preservação de valores e virtudes, a vida no campo, sons de passarinhos e a realidade de quem sempre viveu lutando por justiça e amores impossíveis. “Saudade, morena, sei que vou sentir, tenho um coração no peito, não posso ficar aqui, porque a polícia se espalhou no mundo inteiro e até hoje vive atrás de cangaceiro”.
Cátia de França representa pra mim um dos símbolos mais legítimos de resistência pela arte. Mulher negra paraibana compositora lançou Estilhaços em 1980 em parceria com outras gigantes da nossa música. Esse disco conta com participação especial de Clementina de Jesus e Pedro Osmar. A poeta se inspira em diversos outros poetas da nossa literatura nas letras e recita suas obras numa harmonia sonora incrível. Panorama traz uma metáfora genial da cidade grande, em que “tudo isso não faz inveja pra quem vem lá do sertão, bicho de qualquer qualidade soltinho na amplidão…” e Menina Passarinho é a descrição mais verdadeira de amor livre que já ouvi, “amor bom é o nosso, que sabe aceitar a hora da apartação”.
A Banda de Pau e Corda também faz parte dos sons necessários que melhor descrevem nossa história. Esse disco de 1973 traz causos, histórias, cenários, até o cheiro dos matos do interior dá pra sentir. Me gusta mucho a canção “Lampião”, uma poesia que ilustra a história do cangaceiro, diferente das perspectivas limitadamente negativas de sua existência. Roberto Andrade é uma grande inspiração como compositor e estudioso da cultura popular.
Contemplo aqui uma mulher que muito representa a música latino-americana. Outra guerreira que sempre falou sobre, pelo e para o povo. Em diversos registros que a internet nos traz dos shows de Mercedes Sosa percebemos que, além do espetáculo musical, ela trazia ricas referências sobre as inspirações das letras que interpretava.
Amplio meu olhar para músicas da América Latina por acreditar que a história do Brasil e de nossas hermanas latino americanas é a mesma. Disseram nos livros de história que fomos descobertos, mas na verdade fomos invadidos, explorados, estuprados. Porém nossa ancestralidade jamais se resumiu ou se limitará à glória das conquistas nortistas. Nosso povo sempre resistiu e resistirá com luta e sabedoria. Aquí se respira lucha!
“Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
(…) Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue…” Chico Buarque e Gilberto Gil
Lula durante discurso em 2003, ano em que lançou o programa Fome Zero, que se desenvolveria no Bolsa Família
Fala, Lula! – Confira na sequência o pronunciamento do ex-presidente antes do início da entrevista concedida a Folha de S.Paulo e El País.
“Minha condenação injusta e minha prisão ilegal, há mais de um ano, são mais que o resultado de uma farsa jurídica. São consequências diretas do fracasso social, econômico e político do golpe político do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Aquele golpe começou a ser preparado em 2013 quando a Rede Globo de Televisão usou sua concessão pública para convocar manifestações de rua contra o Governo e até contra o sistema democrático. Tudo valia para tirar o PT – Partido dos Trabalhadores do Governo, inclusive a mentira e a manipulação pela mídia.
Isso aconteceu quando nossos governos tinham alcançado nossas maiores marcas: multiplicamos o PIB por várias vezes, chegamos a 20 milhões de novos empregos formais, tiramos 36 milhões de pessoas da miséria, levamos quase 4 milhões de pessoas às universidades, acabamos com a fome, multiplicamos de modo espetacular a produção e o comércio da agricultura familiar, multiplicamos por quatro a oferta do crédito, isso em meio a uma das maiores crises do capitalismo da história. E, ainda assim, quase quadruplicamos as nossas exportações.
O novo Brasil que estávamos criando junto com o povo e as forças produtivas nacionais, foi retratado pela Rede Globo e seus seguidores na imprensa como um país sem rumo e corroído pela corrupção. Nem em 1954 com Getúlio nem em 1964 contra Jango se viu tanta demonização contra um partido, um governo ou um presidente. Centenas de horas do Jornal Nacional e milhares de manchetes de revistas contra nós. Nenhuma chance de defender nossas opiniões.
Mesmo assim, em 2014, derrotamos os poderosos nas urnas pela quarta vez consecutiva. Para quem não conhece o Brasil, nossas elites dizimaram milhões de indígenas desde 1500, destruíram florestas, enriqueceram por 300 anos a custas de escravos tratados como se fossem bestas. Colonos e operários tratados como servos. Divergentes como subversivos, mulheres como objetos. Diferentes como párias. Negaram terra, dignidade, educação, saúde e cidadania ao nosso povo.
Mas a Globo, o mercado e os representantes dos estrangeiros, os oportunistas da política e os exploradores da gente simples, disseram que era preciso tirar o PT do Governo para resolver os problemas do Brasil e do povo brasileiro. Hoje, o povo sabe que foi enganado.
Criamos o PT em 1980 para defender as liberdades democráticas, os direitos do povo e dos trabalhadores. O acúmulo das lutas do PT e da esquerda brasileira, do sindicalismo dos movimentos sociais e populares nos levou a consolidar um pacto democrático na constituinte de 1988.
Esse pacto foi rompido pelo golpe do impeachment em 2016 e por seu desdobramento que foi a minha condenação sem culpa, e minha prisão em tempo recorde para que eu não disputasse as eleições.
Reafirmo minha inocência, comprovada por todos os meios de prova nas ações que fui injustamente condenado pelo ex-juiz Sérgio Moro, sua colega substituta e três desembargadores acumpliciados do TRF-4. Repudio as acusações levianas dos procuradores da Lava Jato e denuncio Dallagnol, que nunca teve a coragem de sustentar, ante meus olhos, as mentiras que levantou contra mim, minha esposa e meus filhos.
Mais de um ano depois da minha prisão arbitrária, está cada dia mais claro para o povo brasileiro que fui injustiçado para não ser candidato às eleições presidenciais do ano passado. Nas quais, segundo todas as pesquisas de opinião pública, teria sido eleito em primeiro turno contra todos os adversários. O povo sabe que minha prisão teve motivos políticos. Posso reafirmar com a consciência tranquila por ser inocente, os que me condenaram, não.
Fui condenado sem prova e sem crime. Minha pena ilegal foi agravada pelo arbítrio de três desembargadores do TRF-4, tão parciais como o juiz Sergio Moro. Os recursos da minha defesa lastreados em argumentos sólidos foram ignorados burocraticamente pelo STJ. Meus direitos políticos foram negados contra a lei, a jurisprudência e uma decisão da ONU pela Justiça Eleitoral.
Mesmo assim, minhas ideias e meus ideais continuam vivos na memória e no coração do povo brasileiro. Mantenho minha esperança e a confiança no futuro em um julgamento justo, por causa das generosas manifestações de solidariedade que recebo todos os dias aqui em Curitiba por parte dos companheiros maravilhosos da vigília e de todos os cantos do Brasil e do mundo.
Eu sei muito bem qual o lugar que a história nos reserva, meus companheiros e companheiras, e sei também quem estará na lixeiras dos tempos quando o povo vencer mais essa batalha.
Mais importante do que isso, sei que a injustiça cometida contra mim recai sobre o povo brasileiro que perdeu direitos, oportunidades, salários justos, emprego formal, renda e esperança num futuro melhor.
Hoje estou aqui para falar com jornalistas como sempre fiz ao longo da minha vida. Na verdade, para falar com o nosso povo. Esse direito me foi negado por sete meses e durante o processo eleitoral e que estava absolutamente fora da lei.
Mas guardo comigo uma certeza. Preso ou livre, censurado ou não, tenho com o povo brasileiro uma comunhão eterna que o tempo não vai apagar. Contra todos os poderosos, contra a censura e a opressão, estaremos sempre juntos por um Brasil melhor, mais justos com oportunidades para todos. Obrigado.
“Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a Conquista européia castigou a adoração da Natureza, que era pecado ou idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre a Natureza e a gente, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda América, e no mundo, seguimos sofrendo as consequências desse divórcio obrigatório.”
Em 1967, o ministro do Interior, general Afonso Augusto de Albuquerque Lima, ordenou a realização de uma comissão de inquérito administrativo para apurar os delitos praticados pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Queria punir funcionários e moralizar o órgão. Nomeou para presidir a comissão o procurador federal Jáder de Figueiredo Correia. A iniciativa havia tardado quatro anos e derivava das graves denúncias de desmandos administrativos e financeiros no relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), de 1963. Figueiredo fez valer que a CPI havia apenas examinado os anos de 1962 e 1963 e ainda assim só três inspetorias do SPI, uma no Amazonas e duas no Mato Grosso. O ministro foi levado a estender o âmbito do inquérito a todo o Brasil.
A Comissão Figueiredo percorreu uns cem postos indígenas dos cerca de 130 existentes, em cinco inspetorias regionais do SPI, e apresentou um relatório de quase 7 mil páginas datilografadas. Incluía uma síntese em que descrevia muito mais do que problemas administrativos e os corriqueiros desvios financeiros. Denunciava com indignação crimes e violações de direitos humanos contra os indígenas. Dava nomes, detalhes e provas. Havia conluio de funcionários do SPI com fazendeiros, políticos locais, arrendatários, mineradoras; havia corrupção e desvio de dinheiro, apropriação de recursos, usurpação do trabalho dos índios; dilapidação do patrimônio dos índios, com venda de gado, de madeira, de castanha e outros produtos extrativistas, exploração de minérios, doação criminosa de terras; havia trabalho obrigatório ou escravo, venda de crianças, maus-tratos, espancamentos, prostituição, cárcere privado, seviciamento, torturas, suplício no tronco que esmagava os tornozelos, mortes por deixar faltar remédios, assassinatos, em suma um vasto rol de “crimes contra a pessoa e o patrimônio do índio”. Em termos estatísticos, os crimes por ganância eram os mais comuns, mas os crimes contra a pessoa mais hediondos.
Figueiredo salientou também a omissão na assistência devida pelo SPI aos índios, “a mais eficiente maneira de praticar o assassinato”. E por fim, explicitamente, mencionou a omissão institucional do SPI diante de massacres de extermínio. Citou o massacre por fazendeiros no Maranhão de toda uma “nação” indígena sem que o SPI se interessasse. Mencionou denúncias, nunca apuradas pelo SPI, de inoculação de vírus da varíola que provocou a “extinção da tribo localizada em Itabuna, na Bahia, para que se pudesse distribuir suas terras entre figurões do governo”. Falou do que passou a ser chamado de “Massacre do Paralelo 11”, quando os cintas-largas em Mato Grosso, atacados por dinamite jogada de avião, foram envenenados por açúcar com estricnina, abatidos por metralhadora, pendurados e cortados ao meio, de cima a baixo, com um facão, sem que ninguém incomodasse os perpetradores do crime.
Esse relatório foi divulgado oficialmente em 1968. O próprio ministro Albuquerque Lima, diga-se em sua honra, deu uma entrevista coletiva para a imprensa em 20 de março e consta que o Diário Oficial publicou o relatório conclusivo em setembro de 1968. Baseio-me aqui na primorosa pesquisa de mestrado em memória social de Elena Guimarães, defendido em 2015 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com orientação de José R. Bessa Freire, intitulada “Relatório Figueiredo: entre tempos, narrativas e memórias”.
O ministro do Interior continuou a divulgar massacres dos craôs, dos canelas, dos maxacalis, dos nhambiquaras, dos tapaiunas. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5, a situação mudou e aparentemente os documentos foram arquivados. O paradeiro do Relatório Figueiredo ficou ignorado durante mais de quatro décadas e o documento só reapareceu em 2012, graças ao pesquisador Marcelo Zelic, que o identificou no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Tornou-se imediatamente uma fonte essencial para o capítulo sobre os povos indígenas na Comissão Nacional da Verdade que investigou crimes do Estado contra os índios de 1946 a 1988.
O Relatório Figueiredo levou à criação e funcionamento efêmero de uma nova CPI do Índio em 1968, encerrada por ocasião do AI-5, com a cassação de alguns de seus membros; e ensejou a extinção do SPI e a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio) para substituí-lo.
O SPI havia sido fundado em 1910, em decorrência de outra acusação de chacinas de índios nos estados do Paraná e Santa Catarina para dar lugar nas terras aos imigrantes europeus. A denúncia foi feita no 16º Congresso Internacional de Americanistas, em Viena, em 1908, e provocou no Brasil forte reação de cunho nacionalista. Acabou desaguando, com a participação de Cândido Mariano da Silva Rondon e do movimento positivista, na criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais. No intuito de proteger negocialmente os índios, o Código Civil de 1916 passou a classificá-los como “incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, o mesmo status que tinham as mulheres casadas (essa situação perdurou até 1962) e os jovens entre 16 e 21 anos. Assim enquadrados no Código Civil, os índios passaram a merecer a proteção de um tutor, papel que foi atribuído ao Estado e que este delegou ao SPI e depois à Funai.
O Relatório Figueiredo causou grande indignação na opinião pública e repercutiu amplamente na imprensa do país e do exterior. Chegou a ser assunto da primeira página do New York Times no dia seguinte à sua divulgação. Assinado por Paul L. Montgomery e usando excertos do Relatório Figueiredo, a reportagem mencionava uma escandalosa série de assassinatos, estupros e roubos cometidos contra os índios no Brasil nos últimos vinte anos.
A palavra “genocídio” foi criada em 1944 para designar a política nazista de extermínio de judeus e ciganos. Uma Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, organizada pela ONU em 1948, caracterizou o crime e definiu as punições a ele. Desde então, “genocídio” foi o termo empregado para se referir ao que os turcos praticaram contra os armênios, em 1915, ou os hutus aos tutsis, em Ruanda, em 1994.
A lei brasileira no 2889, de 1o de outubro de 1956, seguindo a formulação da ONU, definiu como genocídio o crime praticado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. São eles: “a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”
Embora as denúncias da comissão de inquérito presidida por Figueiredo se encaixassem na definição acima, a palavra “genocídio” não constava no relatório final do procurador federal. Diante do risco de o tema entrar na pauta da primeira Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, em Teerã, e pressionado pelo Itamaraty, o Ministério do Interior tentou minimizar a situação, declarando: “Os pretensos crimes de genocídio praticados contra índios brasileiros não passam de conflitos muito mais violentos na história de outros povos entre a cobiça da civilização sem humanismo e a propriedade do silvícola, desequipado mental e materialmente para defendê-la.” (Jornal do Brasil, 10/4/1968)
A longa reportagem que a Piauí publica da página 38 à 50 insere-se nesse contexto. Foi escrita por um celebrado jornalista do século XX, o inglês Norman Lewis (1908-2003), que o diário The Sunday Times enviou ao Brasil em 1968, acompanhado de um importante fotógrafo de guerra, Don McCullin.
Lewis era um escritor prolífico e muito respeitado. Ficaria famoso por seus relatos de viagem e suas reportagens internacionais a respeito de povos tribais da Índia, de conflitos na Indonésia, da guerra francesa na Indochina e da Segunda Guerra Mundial – sobre a qual escreveu um clássico do jornalismo, o livro Nápoles 1944. Sua matéria a respeito dos índios brasileiros foi publicada na Sunday Times Magazine, em 23 de fevereiro de 1969 – posteriormente, seria editada no livro A View of the World: Selected Journalism. A reportagem estampava em letras garrafais o título “Genocide” e causou tal impacto na opinião pública britânica e europeia que motivou a criação da ONG inglesa Survival International, dedicada à defesa de povos indígenas no mundo inteiro, ativa até hoje.
O texto de Lewis é autoexplicativo e tenho poucos comentários a fazer sobre ele. O jornalista recua ao século XVI para mostrar que a dizimação dos povos indígenas das Américas não representava novidade na década de 60. Só os métodos haviam mudado. Em sua narrativa, dá muito realce à figura do fazendeiro, à sua cobiça pelas terras dos índios. Pode-se dizer que Lewis e McCullin viajam pelo Brasil numa época em que se encerra uma fase do indigenismo, caracterizada pela iniciativa, digamos, privada do fazendeiro e pela omissão institucional do SPI e, portanto, do Estado. Enquanto isso, está entrando em cena a Funai, criada às vésperas do grande projeto dos anos 70 de “integração da Amazônia” para ser a ponta de lança de uma política ativa do próprio Estado, que irá deslocar e varrer os povos indígenas que estariam obstando os projetos de infraestrutura e de ocupação de terras por aliados do regime. Foi sobretudo nessa época que se insistiu na alegação de que os índios representariam um entrave ao desenvolvimento.
O que mudou meio século depois do Relatório Figueiredo? Na prática, pouca coisa. Os índios continuam sendo mortos a bala e resistindo como podem à espoliação de suas terras. Declarações do presidente Jair Bolsonaro estimularam, antes mesmo de sua posse, a violência contra os índios, as populações tradicionais, os funcionários da Funai e os do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Os vários povos indígenas que, depois de uma primeira experiência desastrosa com a dita civilização, preferiram se isolar, estão agora reaparecendo, encurralados pelo “desenvolvimento”. São os mais vulneráveis e só terão alguma chance se for mantida a política de não estimular novos contatos.
À falta de mudanças nas velhas práticas, o que mudou, e muito, foi a teoria. A ideia de “integração” deixou de ser sinônimo de assimilação. A missão do Estado não é mais entendida como sendo a de descaracterizar sociedades indígenas para trazê-las ao regaço da civilização, até porque elas só têm a perder nesse regaço. Integrar não é mais tentar eliminar diferenças, e sim articular com justiça as diferenças que existem. Assim, a Constituição de 1988, no caput do artigo 231, declara algo, isso sim, muito novo: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições…” E no parágrafo 1º do mesmo artigo, ao caracterizar o que são terras indígenas, inclui todas aquelas necessárias à reprodução física e cultural dos índios.
A diversidade biológica e social deixou de ser vista como um passivo: é um ativo, como enfatizou recentemente a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foi-se o tempo em que derrubar a mata significava fazer uma benfeitoria, em que massacrar índios era “desinfestar os sertões”. Na era da biomimética e da busca por novos princípios ativos, a floresta em pé e seus melhores conhecedores, que são as populações tradicionais, tornam o Brasil um campo de imenso potencial para a inovação de ponta. E consta que se conhecem até agora apenas uns 10% dos supostos 2 milhões de espécies de fauna, flora e microorganismos da nossa biodiversidade.
Hoje, o Brasil se orgulha internacionalmente de sua megadiversidade socioambiental. No Censo do IBGE de 2010, contaram-se 305 etnias e 274 línguas diferentes, inclusive de troncos linguísticos completamente distintos. E, pela sua diversidade biológica, o Brasil figura com grande destaque no seleto grupo de dezessete países megadiversos.
Os conhecimentos e práticas dos povos indígenas têm sido reconhecidos em foros internacionais, como ficou patente no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), criado em 1988, e na Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), de 2012. A arqueologia brasileira tem posto em evidência que o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta – as fertilíssimas “terras pretas” – é fruto das práticas de populações indígenas desde a era pré-colombiana até hoje. E sabe-se agora que na Amazônia foram domesticadas dezenas de plantas, entre as quais a batata-doce, a mandioca, o cará, a abóbora, o amendoim e o cacau. Um artigo publicado recentemente mostra que até mesmo o milho, originário do México, passou por uma segunda domesticação na Amazônia.
Os povos indígenas e comunidades tradicionais são também provedores da diversidade das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar. A Revolução Verde do pós-guerra, que investiu nas variedades mais produtivas de cada espécie agrícola, teve grande sucesso no volume das colheitas, mas produziu danos colaterais. Um deles foi a perda maciça de variedades agrícolas, como as de arroz na Índia e de milho no México.
Foi a falta de diversidade das variedades cultivadas de batata que levou à Grande Fome da Irlanda, entre 1845 e 1849. Domesticada nos Andes, onde existem até hoje mais de quatro mil variedades com diferentes propriedades e resistência a doenças, a batata se tornou no século XVIII a base da alimentação de boa parte da Europa, onde só poucas variedades, entretanto, foram selecionadas. Quando um fungo destruiu por vários anos seguidos as batatas plantadas na Irlanda, a fome causou a morte de um milhão de pessoas e a emigração de outras tantas.
A consciência do risco criado pela perda da diversidade levou o próprio pai da Revolução Verde, Norman Borlaug, a propor a criação dos chamados bancos de germoplasma pelo mundo afora, para a conservação das variedades de plantas. Mas não basta: as plantas e seus inimigos, como os fungos, encontram-se em uma perpétua corrida armamentista. A cada novo ataque, as plantas desenvolvem novas defesas, num processo de coevolução, que também ocorre devido a mudanças de outra natureza, como as climáticas.
Essa coevolução não se dá em bancos de germoplasma, onde as variedades estão depositadas para se conservarem sem mudanças. Por isso é essencial que elas continuem a ser cultivadas. Órgãos científicos cuidam disso mediante pesados investimentos. Mas povos indígenas e comunidades tradicionais também mantêm por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e observam as novidades. É por isso que no Alto Rio Negro há mais de 100 variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimenta – sem falar na diversidade de espécies em cada roçado e quintal. Para os caiapós, bonito é um roçado com muita diversidade, pois os povos indígenas são mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie. Eles são, de fato, colecionadores.
A tragédia irlandesa das batatas se tornou uma história exemplar. Mostrou que se deve dosar a produtividade e a diversidade. É coisa que o mercado financeiro tanto quanto a ecologia ensinam: a homogeneidade é perigo sério. A quem pergunta o que produzem os povos indígenas, pode-se responder que eles são e produzem justamente a diversidade. De graça.
O chamado “interesse nacional” é um coringa muito utilizado, mas pouco analisado. Onde exatamente reside o interesse nacional no caso dos indígenas? Um exemplo interessante é o da mineração em suas terras. A partir da década de 70, o projeto Radam (Radar da Amazônia) começou a fazer o mapeamento aéreo da região e criou grande expectativa para as companhias de mineração. Rapidamente, o mapa da Amazônia ficou coberto de pedidos de pesquisa e de lavra.
Na Constituinte de 1988, as mineradoras, em sua maioria de capital estrangeiro, combateram com afinco as restrições à lavra em terras indígenas. Tinham o apoio do economista Roberto Campos, então senador. Foi a Coordenação Nacional dos Geólogos, a Conage, que defendeu essas restrições. Lembrou que, na exploração mineral, não existe segunda safra, e que era de interesse nacional manter reservas minerais em terras indígenas. Nesse embate, o interesse nacional foi defendido pela Conage contra as mineradoras. O que mudou agora?
O mapa das terras indígenas do Brasil é eloquente: as maiores estão em áreas que até há pouco tempo não interessavam a ninguém, e são extensas justamente por isso. Povos indígenas, como os macuxis, foram levados ou atraídos pelo próprio Estado no século XVIII para as fronteiras mais sensíveis do país com o objetivo de lá constituir uma fronteira viva, “uma muralha do sertão”. Hoje, são os ashaninkas do Acre que, por conta própria, rechaçam invasores madeireiros do Peru. Seja como for, foi sábia a Carta de 1988 ao ter mantido a tradição constitucional brasileira de definir as terras indígenas como propriedade da União, embora de posse exclusiva permanente dos índios. O Estado pode e deve estar presente nas fronteiras. Inclusive para defender os índios e para ser defendido por eles quando necessário.
Se continuarmos a olhar o mapa das terras indígenas, veremos que, não por acaso, nas áreas de colonização antiga, as terras indígenas são diminutas. E nas que foram ocupadas por fazendas nos anos 40, durante a “marcha para o oeste” (sul de Mato Grosso e oeste do Paraná), o conflito é permanente. Esses conflitos incessantes são, aliás, um bom motivo para manter a Funai na alçada do Ministério da Justiça, que teria maior agilidade, já que coordena a Polícia Federal, para intervir quando necessário.
Quais são os mais eficientes blocos políticos com que o Brasil poderia se alinhar na defesa do interesse nacional? O Ministério do Meio Ambiente publicou que o valor da biodiversidade brasileira é incalculável e que os serviços ambientais que oferece, “enquanto base da indústria de biotecnologia e de atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais”, são estimados em trilhões de dólares anuais. Dada a importante atuação do Brasil no bloco dos países megadiversos, é favorável ao interesse nacional abandonar esse grupo?
Perguntaram-me há alguns dias o que eu esperava da política do novo governo. Minha resposta é esta: espero que cumpra a Constituição de 1988.
Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga, professora titular aposentada da USP e professora emérita da Universidade de Chicago.
Xavantes no vale do rio Batovi, em Mato Grosso, em 1949. Os povos indígenas e comunidades tradicionais são provedores da diversidade das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar. FOTO: JOSÉ MEDEIROS, 1949.
Fotografia que abre o post: Ex-presidente Lula em ato de demarcação da Raposa Serra do Sol, via Carta Capital.
“O que é a História de toda a América senão uma crônica do real-maravilhoso?” Alejo Carpentier
O Salar de Uyuni é um dos locais mais deslumbrantes sobre a face da Terra. É o maior e mais alto deserto de sal do mundo: estende-se por 10.582 km quadrados e encontra-se a 3.656 metros acima do nível médio do mar. Está localizado nos estados de Potosí e Oruro, na Bolívia, sendo um dos destinos turísticos mais procurados do país.
Era época de chuvas, quando o salar se transforma em um “Imenso Espelho do Céu” – “El Inmenso Espejo Del Cielo”, título deste documentário curta-metragem, falado em espanhol, em que registro um pouco da travessia maravilhosa que fiz na excelente companhia de Elvis Félix (nosso guia), o peruano Alexander Ccoycca Ccaulla, a holandesa Amanda Sabat, os chilenos Hans Richard Carrasco Jorquera e Carla Ríos Martinez, e o japonês Hiroki Matsubara.
Ali passei algumas das experiências mais extraordinárias que essa existência já me proporcionou. Era o início de 2018 e eu vinha de uma travessia extremamente fascinante pelo Peru – primeiro, por Cuzco e Macchu Picchu, depois em Puno para as festividades folclóricas da Candelária no Lago Tititica. Após deixar para trás a região do Titicaca, chegando em La Paz e seus teleféricos de transe, peguei um vôo doméstico da BOA rumo à Uyuni que foi um dos piores que já tive o desprazer de experimentar: tanta turbulência e tempestade que eu, em meio às taquicardias, já estava me despedindo dos vivos e imaginando que morreria espatifado no chão com a queda daquele teco-teco treme-treme. Chegar vivo em Uyuni foi um alívio tão maravilhoso que me colocou na vibe certa para apreciar cada segundo da jornada.
No vídeo, registro algumas conversas que tive com os companheiros de viagem sobre temas importantes de nossa latinoamericanidade: o que significa que a Bolívia tenha se tornado, na era Evo Morales, um “Estado Plurinacional”? Por que há um “Cemitério de Trens” nas proximidades do salar e para quê finalidades eram utilizados os vagões e trilhos? Que minérios foram extraídos dali no passado, e quais os minérios que hoje fazem crescer os olhos dos mineradores? Por que este é um dos locais mais “fotogênicos” do planeta e por que tanta gente gosta de levar pra lá dinossauros em miniatura?
Este filme, mescla de diário turístico com tentativa de etnografia documental a quente, revela alguns vislumbres das belezas infindas da paisagem natural e humana da Bolívia. Filmagem, montagem e som direto por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro. Trilha sonora com canções queridas do Quilapayun e do Perotá Chingó.
Talvez a mais sagaz e sarcástica das definições que já encontrei sobre esta figura bizonha que é Jair Messias Bolsonaro seja esta: “a comunhão de todos os tiozões de zap num só animal” (Acessar post), definição proposta pelo Vitor Teixeira, cartunista e ativista do PCO.
Já suas massas de manobra e apoiadores idólatras – aqueles que ficaram conhecidos como Bozominions, podem ser caracterizados por analogia a avestruzes que escondem a cabeça debaixo do solo, para seguirem crédulos em fés inacreditáveis (como esta: Bolsonaro é o messias, um cara honesto, patriota, cidadão-de-bem que nunca se meteu em maracutaia de corruptos etc.).
Neste fim de 2018, vimos sair dos armários, em imensas hordas, estas figuras tão banais: eleitores irresponsáveis ao extremo, totalmente desprovidos de senso crítico, analfabeto políticos mas cheios de certezas, apegados a verdades absolutas a que chegaram depois de fazer graduação, mestrado e doutorado na UniZap. Figuras que outro cartunista, Custódio, apelidou de Whatstruz.
Em artigo recente, outra das mais perspicazes mentes do Brasil, a Eliane Brum, sugeriu que enfim chegou ao poder uma espécie de encarnação do homem médio – ao que poderíamos acrescentar, nos trilhos dos ensinamentos de Hannah Arendt, que Bolsonaro é medíocre como Adolf Eichmann. Bem-vindos à nova versão da Banalidade do Mal!
Estamos em plena distopia. Mas longe de ser somente catastrófica, esta cena distópica é também hilária, tão ridículos são as falas e ações de muitos de seus protagonistas.
Vivemos num tempo tragicômico: assim como nos EUA a eleição de Trump soa similar a um cenário bizarro em que fossem alçados à presidência personagens satíricos como Homer Simpson, Eric Cartman ou Waldo (de Simpsons, Southpark e Black Mirror), no Brasil não é muito diferente: elegemos um sujeito que mais se parece um vilão caricato, um caubói lambe-botas de Tio Sam, um corajosão que sabe fazer sinal de arminha, mas não consegue juntar a audácia para participar de nenhum debate eleitoral com os outros candidatos.
Em artigos recentes, argumentei que Bolsonaro baseou sua campanha à presidência em um mergulho de cabeça na Era da Pós-Verdade. Inspirou-se nas táticas de sequestro de big data e de viralização corporativa de conteúdos fascistas nas mídias sociais para fazer por aqui aquilo que foi realizado por Donald Trump na América do Norte e exposto pelo importante documentário Trumping Democracy / Driblando a Democracia. Deram mais um um golpe na democracia já duramente combalida após o impeachment sem crime de responsabilidade que derrubou Dilma Rousseff.
Foi um processo com direito a facada provavelmente fake, enxurrada de fake news pagas com caixa 2, além de tramas inconfessáveis de nepotismo para enriquecimento de seu clã familiar através de desvios via laranjas. O TSE, acovardado, permitiu que isso se desenrolasse, assim como o STF, cúmplice e co-partícipe do Golpe de Estado que faz o Brasil iniciar 2019 com hegemonia de togas e fardas com pendores para a extrema-direita.
Este “tiozão de zap”, hoje empoderado, de quem poderíamos rir como fazemos com Homer Simpson, mas que agora devemos temer como os romanos temiam Calígula, já está sendo comparado a outros tiranos neofascistas do cenário global (como Duterte e Orbán). Pois este ser humano não parece ser minimamente capaz de empatia com a pluralidade dos seres humanos com o quais compartilha o mundo.
Ele e sua turma vem imbuídos de um fanatismo ideológico que prega um Brasil re-militarizado e teocrático. Um regime autoritário ao extremo no aspecto policial-carcerário, ainda que neoliberal até as raias da insanidade em economia e extremamente careta no que toca às políticas sexuais e às pautas identitárias.
Em outras circunstâncias históricas, em que estivéssemos sob condições normais de temperatura e pressão, Bolsonaro seria apenas uma caricatura ridícula – uma figura semelhante a um Tiririca do mal, quase um personagem da Escolinha do Professor Raimundo, um afrontador do “politicamente correto” com uma enxurrada de pensamentos maldosos e intolerantes. Uma excêntrica espécie de dinossauro vivo, que esqueceu de ser extinto, e que fica vomitando racismo, misoginia e louvores a torturadores em uma época esclarecida e civilizada.
Porém, em nossos tempos, o poder de fascinação dele se manifestou de modo chocante – e muitos se tornaram idólatras de um “mito” que se sente no direito de pisotear os direitos humanos com seus discursos em que des-recalca a agressividade e a intolerância contra minorias. Bolsonaro encontrou massas imensas para aplaudi-lo e tratá-lo como “mito”, apesar de ser um mitomaníaco que vem levando o maquiavelismo populista, mentiroso e fraudulento, a níveis que merecerão entrar nos anais da história dos farsantes da política nacional.
Começamos o ano de 2019 com notícias como esta, por Exame:” O governo Jair Bolsonaro fará uma revisão de toda a estrutura da administração pública e exonerará os funcionários que defendam ideias ‘comunistas’, informou nesta quinta-feira o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.”
O fascismo sempre precisou construir um Inimigo Interno, demonizado e perseguido, para justificar as torturas, atrocidades e assassínios que comete em sua sangrenta e impiedosa marcha totalitária. E com a versão brasileira do neofascismo – distopia tragicômica encabeçada por Bozo / Onyx / Guedes / Damares / Moro / Olavo… – também é assim: fanatismo ideológico extremo, mas com políticos que ficam vestindo a máscara engana-trouxa da “neutralidade”, enquanto insistem no estúpido re-avivamento de cegueiras morais e políticas que deram à luz os monstros insepultos da “Banalidade do Mal” e dos “massacres administrativos” (a Alemanha do III Reich, a Itália sob Mussolini, a Espanha sob Franco, o Camboja sob Pol Pot, as ditaduras militares na América do Sul etc.).
Esta é uma extrema-direita cuja ideologia é ultraliberal em economia, chegando ao Pinochetismo explícito e à reedição de experiências macabras como o Peru sob Fujimori. Mas ultracareta e ultraautoritário nos “costumes”, impondo a ideologia do patriarcado supremacista heteronormativo de maneira truculenta e explícita. A caricata e risível Ministra Damares é a expressão mais explícita da imposição de uma camisa-de-força da caretice binária, amparada em crenças obscurantistas que reinstalam entre nós uma espécie de teocracia que nos deixa parecidos com uma versão tupiniquim do status quo de Gilead em The Handmaid’s Tale / O Conto da Aia (M. Atwood).
Nesse contexto é que já foi destravada uma caça às bruxas, que esses machões metidos a caubóis da extrema-direita Bozonazista já colocam em pleno curso, para salvar a Família Tradicional Brasileira, o Cidadão-de-Bem, a Moral e os Bons Costumes, do perigoso complô comuno-petista para tornar-nos uma nova Cuba.
Num re-ativamento do Macartismo da Guerra Fria, com a utilização da velha e mofada lorota do “combate ao comunismo” sendo mobilizada como ferramenta de propaganda para enganar os otários, os fascistas e plutocratas – homens, velhos, brancos e ricos, vomitando de tanto se deleitarem com os banquetes de seus privilégios injustos! – massacram os direitos mais fundamentais da população em prol de minúsculas elites econômicas.
Curioso que Bolsonaro, que adere de maneira acéfala e fanática à ideologia anti-comunista que anima o militarismo capitalista no Brasil, hoje esteja morando em um palácio projetado pelo notório arquiteto comunista Niemeyer. As obsessões cromáticas do alto escalão do governo – Bolsonaro mandando remover as cadeiras vermelhas dos palácios, Damares pregando em vídeo-viral que na “nova era” os “meninos vestem azul e as meninas vestem rosa” – são mais indícios da insanidade dos que agora pretendem nos governar. Os eleitores irresponsáveis que fizeram esta péssima escolha nas urnas realmente acreditam que existe qualquer novidade ou renovação nestas atitudes ridículas desses reacionários estúpidos?
A peste fascista já está entre nós, como já fareja quem tenha o mínimo de faro crítico e cuca lúcida. E a luta antifa terá que lidar, com a urgência que esta emergência histórica exige, que respondamos coletivamente de maneira sábia àquela “questão-chave” já formulada por Wilhelm Reich: como combater a peste emocional do fascismo sem nos transformarmos em autômatos e monstros como se tornaram aqueles que agora somos forçados a combater? Como combater o fascismo sem transformar-se em um monstro? “Tentar derrotar tais autômatos recorrendo aos seus próprios métodos é como tentar esconjurar o diabo por meio de Belzebu”, escreveu Reich em “Psicologia de Massas do Fascismo” (p. 311)
“Nossa concepção de luta antifascista é outra. É um reconhecimento claro e impiedoso das causas históricas e biológicas que determinaram tais assassínios. Só por este processo, e nunca pela imitação, será possível destruir a peste fascista. Não se pode vencer o fascismo imitando-o ou exagerando seus métodos, sem o perigo de incorrer, voluntária ou involuntariamente, numa degeneração de tipo fascista. O caminho do fascismo é o caminho do autômato, da morte, de rigidez, da desesperança. O caminho da vida é radicalmente diferente, mais difícil, mais perigoso, mais honesto e mais cheio de esperança…
É fácil provar que, quando a organização patriarcal da sociedade começou a substituir a organização matriarcal, o principal mecanismo que levou à adaptação da estrutura humana à ordem autoritária foi a repressão e o recalcamento da sexualidade genital nas crianças e adolescentes. A repressão da natureza, do ‘animal’ nas crianças, foi e continua sendo a principal ferramenta na produção de indivíduos mecânicos.” (REICH, São Paulo: Martins Fontes, 2001, 3a ed, p. 311 e 318)
Longe de estar numa vibe patriótica, sinto profunda vergonha de ser brasileiro neste momento escrotíssimo de nossa História. Que imensas massas tenham sido irresponsáveis a ponto de serem feitas de trouxas por um falso patriota e pseudomessias é desanimador para qualquer educador que acredite que senso crítico é uma virtude a ser desenvolvida por todos e quintessencial a uma autêntica democracia. Bolsonaro nada tem de patriota: sua única pátria é o dinheiro, a ganância e ambição de domínio. Presta continência à bandeira americana, admira a truculência do sionismo de Netanyahu, provavelmente aplaude o genocídio de palestinos com a mesma atitude em que comemora o massacre dos povos indígenas e quilombolas.
Quer entregar as riquezas da Amazônia, o petróleo do pré-sal e a água doce abundante do Aquífero Guarani para o saque corporativo transnacional. Deseja aventuras bélicas que custarão imenso sangue e sofrimento humana na iminente campanha golpista para a derrubada de Maduro na Venezuela. Quer massacrar os direitos trabalhistas e a previdência social, impondo austeridade para os 99% enquanto permanece gozando das mamatas junto ao 1% de ricaços em seus bunkers militares.
É uma turma que pretende sucatear o SUS e desmontar a educação pública, e para isso pôs nos ministérios um ex-presidente da Unimed, uns fanáticos discípulos de Olavo de Carvalho fãs da militarização escolar e da submissão aos EUA. Querem um Brasil capacho de Tio Sam, com um povo silenciado e imbecilizado, que se entretêm com memes idiotas enquanto qualquer horizonte de justiça social escorre pelo ralo.
Este é o funeral da democracia: o golpista Temer passou a faixa para o neofascista e tomou posse um governo encabeçado por um farsante ditatorial e desumano. Um cara que idolatra Ustra e Duque de Caxias. Um nazi tropical, fraudulentamente eleito com uma fakeada, uma enxurrada de fake news pagas com caixa 2, torrentes de propaganda fascista nos púlpitos evangélicos, para além do golpe desferido contra a candidatura do preso político injustamente encarcerado em Curitiba.
Uma figura que, para além de todo repúdio ético e nojo existencial que desperta em quem ainda tenha o poder de reflexão e a capacidade de empatia, é completamente desprovido de qualquer apego aos valores democráticos e qualquer amor pela pluralidade humana que é, como Arendt ensina, a lei ontológica da terra. Somos os que fomos estigmatizados como extermináveis, marcados para morrer, mas que ficaremos vivos. E com as bocas nos trombones. Com os corpos em aliança, nas ruas, nas camas, nas redes. Resistindo e re-existindo, na usina cotidiana da construção coletiva de um outro mundo possível.
Marcha em direção ao TSE de Brasília para o registro da candidatura de Lula à Presidência da República. Foto: Gustavo Bezerra. Data: 15/agosto/2018.
“Não sei se eles vão passar para a história como juízes ou como algozes.” Luiz Inácio Lula da Silva, preso político e candidato a presidente pelo Partido dos Trabalhadores
O golpismo que derrubou Lugo no Paraguai e Dilma no Brasil, que atentou contra Chávez e Maduro na Venezuela, que segue tentando desestabilizar o governo Evo Morales na Bolívia, que celebra a chegada de neoliberais como Macrí na Argentina e Piñera no Chile, não opera mais com tanques de guerra, soldados e escopetas.
Hoje, um Golpe de Estado é dado nos tribunais. Seu maquiavélico xadrez é jurídico. Sua guerra é jogada em conluio com as mídias, com altas comemorações no topo (estreitíssimo) da pirâmide social quando se consegue substituir um governo de soberania popular por um outro que seja fantoche dos interesses da elite, ou que seja a elite tirânica ela mesma, exercendo sua supremacia sem intermediários.
“É o segundo golpe de Estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado em 2016 por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo” – Dilma Rousseff, presidenta do Brasil entre 2010 e 2016. In: SINGER, André. O Lulismo em Crise. Pg. 14. Companhia das Letras, 2018.
Sempre que a elite, já privilegiada ao excesso, puxa o tapete do adversário para manter-se em sua palaciana posição, não faltam os aplausos dos idiotas úteis que, na classe média, preferem a solidariedade com as elites opressoras à empatia com os oprimidos. Eis um breve retrato do Brasil…
O grande “beneficiário” do coup d’état de 2016 é a maré montante de fascismo, que ameaça colocar o Brasil na rota dos países decaídos no autoritarismo, no genocídio racista, no terrorismo de Estado. Como se fôssemos incuráveis amnésicos, que não só reduzem a cinzas o Museu Nacional do RJ, mas recusam-se a aprender com lições do passado, vítimas do que um de nossos melhores escritores e pensadores, Bernardo Kucinski, chama de “mal de Alzheimer nacional”.
São milhões teleguiados pela rede Globo, e só um punhado de leitores de K – Relato de Uma Busca. Triste povo que não aprende com a sabedoria de sua própria literatura. Que não se informa com Kucinski, mas sim com os Marinho. Um povo que não lamenta a morte da revista Caros Amigos, pois julga que sua fonte confiável de informação está semanalmente na Veja (mesmo com o colapso generalizado do grupo empresarial Abril…).
É como se não quiséssemos aprender com as lições da Ditadura inaugurada pelo golpe militar de 1964 e que nos lançou a bem mais que 21 anos de trevas políticas: estamos até hoje atolados no “entulho autoritário”, nos legados tenebrosos daquela época, e ao invés de tirar sabedoria desta História, nós… incineramos nosso passado. Nossos museus estão virando cinzas, e nossa sanidade coletiva também.
Vamos rumo ao caos da guerra civil caso a democracia termine seu processo de auto-destruição com a tomada de poder pela extrema-direita Bolsonazista. Digo tomada de poder pois não existirá, jamais, nunca, em nenhuma hipótese, um “regime Bolsonaro” que seja legítimo. Das eleições de 2018, com a exclusão via guerra jurídica da candidatura do Lula, não existe possibilidade de nascer um governo legítimo. Muito menos um que busque se basear em inaceitáveis práticas de genocídio, limpeza étnica, tortura, fuzilamentos, como prega o candidato.
O sintoma mais grave da psicopatologia coletiva que nos acomete – e que mereceria ser decifrada na companhia de Wilhelm Reich, Erich Fromm e Hannah Arendt – é o tamanho do eleitorado da chapa presidencial do PSL: Bolsonaro/Mourão.
Aquela excelente video-reportagem da Vice já escancarou o tamanho do nosso buraco. Pois nosso buraco deixou de ser a presença entre nós de um partido fascista, o nosso problema é um fascismo social, o fato de que uma parte significativa da nossa população realizou já uma espécie de conversão ao campo do fascismo. De onde, aliás, talvez nunca tenha de fato saído, dada à pregnância e disseminação, entre nós, da “personalidade autoritária”, que faz de nossas elites políticas, tão frequentemente, estes mandões escrotos e tirânicos que carregam a mão na opressão truculenta contra o povo, enquanto gozam de iguarias e privilégios defendidos com base na força militar escancarada e na imposição terrorista do Medo intimidador.
Quando um candidato é capaz de falar no Jornal Nacional que um policial militar que entrasse na favela metralhando, e que matasse 15 pessoas, deveria ser “condecorado”, e quando as intenções de voto para esta figura boçal e truculenta atingem mais de 20% dos eleitores, sentimos que o Brasil é um país que fracassou. A nossa “polarização política” já não pode ser vista com um sintoma normal de uma pujante sociedade democrática que experimenta os riscos e aventuras do pluralismo e do pluripartidarismo. A nossa polarização é bélica e violenta, e o Mito do Brasileiro Cordial vai se esboroando cada vez mais. Querem-nos brutos e brutais como os Bolsonazistas. Nós insistiremos na senda difícil da solidariedade com os injustiçados, endurecendo pero sin perder la ternura jamás, como o Che.
O que a extrema-direita faz com o debate público é puxá-lo para o nível (boçal e truculento) deles, convidando-nos a compartilhar da psicopatia deles. Pois Bolsonaro não é nada menos que um psicopata (diferente do normopata Alckmin, o picolé-de-chuchu da mediocridade burguesa, mas que em período de crise se mostra, como se fez no Pinheirinho em São José dos Campos, como burguesia-fascista também… Como Brecht ensinava: nada mais parecido com um fascista que um burguês assustado).
Bolsonaro, em sua psicopatia, em sua personalidade repleta de fobias, em seu temperamento de genocida, é a pior pessoa do mundo a quem confiar poder em excesso, dado a alta probabilidade de abuso em larga escala desse poder, e subsequente crise humanitária. Com Bolsonaro no poder, estamos falando da banalização ainda piorada dos crimes contra a humanidade que já ocorrem tanto no Brasil.
Um país “do futuro” (que nunca chega), o Brasil é tanto a pátria das róseas esperanças do judeu perseguido Stefan Zweig e a pátria onde o mesmo naufragou com os destroços de suas ilusões (suicidou-se com a esposa em Petrópolis). Um país desencaminhado, como de praxe, por suas elites, responsáveis por tantos de nossos atrasos. Vamos afundando no lodaçal que aprofunda o estado de guerra civil latente. É guerra de classe, e os ricos estão vencendo. Eles não vencem mais com tanques, vencem com PECs. Eles não impedem as eleições, mas eles nos proíbem de votar em quem eles não querem que vença. E assim vamos, caminhando e cantando…
Com Bolsonaro no poder, porém, esqueçam o papo hippie de flores contra canhões. Preparem-se para novas guerrilhas, para uma nova onda de novos Marighellas, pois aqueles que querem impor tamanha violência militarizada aos governados podem esperar uma reação também violenta por parte dos violentados.
Não haverá governo Bolsonaro sem uma clandestina efervescência de movimentos que serão obrigados à tomar a via insurrecional e revolucionária, já que a democrática foi travada pela apropriação indevida das elites golpistas, transmutadas em Estado fascista.
A catástrofe que foi o governo Temer, nascido da aliança golpista entre PMDB e PSDB, entre ruralistas e velha mídia corporativa, pôs no poder elites lambe-botas de gringos endinheirados. Elites que cagam em cima da soberania nacional e são totalmente entreguistas, dando de mão beijada nossas riquezas para as corporations: nosso petróleo da camada do pré-sal já não é nosso: é da Shell… e o Aquífero Guarani, encaminha-se para ser da Nestlé? A Amazônia um dia será um parque privado gerido pela Walt Disney Corporation?
“A atual eleição é incompreensível sem o golpe de 2016”, afirma o sociólogo Jessé Souza em Carta Capital. É significativo, por exemplo, que exatos 2 anos após a deposição final de Dilma Rousseff, o TSE recusou a legitimidade da candidatura de Lula, contrariando um imenso movimento de massas que está fervilhando nas ruas e nas redes (vide Festival Lula Livre nos Arcos da Lapa), e desrespeitando inclusive uma recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Segundo Jessé:
“O cheiro é de coisa podre e todos o sentem. A grande dificuldade do conluio golpista comandado pela mídia venal e pela “casta jurídica” do Estado, ansiosa por mesquinhos dividendos corporativos de curto prazo, é o fato de serem lacaios de um capitalismo rentista não só improdutivo como abertamente fraudulento e destrutivo.
O País é literalmente assaltado pela pirataria rentista e o povo empobrece a olhos vistos. Este é o real pano de fundo das eleições.
Lula cresce a cada dia posto que é a memória viva de quando as coisas eram diferentes e melhores. Ainda que não tenha havido uma reconstrução coletiva consciente dos motivos inconfessáveis do golpe, essa lembrança basta como esperança para muita gente.
Preso, seu prestígio só aumenta, pois seu ordálio é concomitante e tem o condão de representar o sofrimento da imensa maioria da população. Ele é, portanto, o “profeta exemplar” do crime cometido contra todo o povo brasileiro. Isso é algo que os pigmeus intelectuais da “casta jurídica”, que comanda a estratégia golpista na dimensão conjuntural e concreta, têm enorme dificuldade de compreender.
Exceto a eficiente rapina de todos os ativos importantes do País, articulada de fora para dentro, a estratégia interna dos pigmeus jurídicos e midiáticos é burra e, por conta disso, obviamente ineficiente.
A condenação pela ONU da perseguição política a Lula só faz agravar o processo. A “casta jurídica” golpista, embora não confesse, foi atingida no coração e posta na defensiva. O “ônus da prova” foi simplesmente invertido. O Brasil tende a perder qualquer credibilidade e respeitabilidade internacional, cujo reflexo interno, ainda mais em um país “vira-lata” que idealiza as “culturas superiores”, não é pequeno.
Como a “casta jurídica” não vai ficar mais inteligente de um dia para o outro, o preço no médio prazo será altíssimo em termos de perda de respeitabilidade institucional das corporações jurídicas.”
Para incremento das tensões e incertezas, em Setembro de 2018 a temperatura, literalmente, esquentou até a ebulição. Os ânimos estão em incêndio. Bolsonaro, enquanto o Museu Nacional do RJ ardia em chamas, estava no Acre fazendo o que ele sabe fazer de melhor: cagar pela boca para entreter os idiotas desumanizados que não se envergonham de apoiar um homem sádico e boçal.
O candidato fascista prometeu “fuzilar a petralhada”, assim como dias antes tinha dito que ia tratar o MST como “grupo terrorista”. Em pleno Jornal Nacional, falou em cadeia nacional que deveriam ser “condecorados” os policiais militares que entrassem na favela para perpetrar chacinas. Em um país que desceu a tal grau de barbárie, nem nos surpreende mais que o Bozonazi possa andar solto pelo país, fazendo apologia da tortura e do genocídio, vomitando discurso de ódio, propagando misoginia e racismo, expressando a mais truculenta e acéfala “receita” para tudo: resolver no tiro.
A existência de um crápula fascista de mentalidade retardada como Bolsonaro já seria em si mesma uma lástima, mas o pior de tudo é o tamanho de seu fã-clube. Ou, pior ainda, de seu eleitorado. A mente custa a compreender que existam tantos milhões de cidadãos brasileiros que são estúpidos a esse ponto – tão estúpidos que sequer enxergam a sua própria estupidez – e que seguem celebrando uma figura tão execrável.
Enquanto isso, um ser humano da estatura histórica e da excelência ética que é Luiz Inácio Lula da Silva continua padecendo nas masmorras de Curitiba um cárcere político pré-eleitoral que nos envergonha diante do mundo.
Um cara que deixou seu cargo na presidência com mais de 80% de aprovação do povo (e não foi à toa); que liderou o governo que mais fez pela inclusão social e pelo combate à miséria em toda nossa história republicana (mesmo a oposição mais ferrenha não nega a ascensão social de mais de 30 milhões de cidadãos); que realizou a maior expansão das universidades públicas e institutos federais que alguém já realizou como chefe de Estado (escudado por Fernando Haddad como Ministro da Educação); que pôs Gilberto Gil no MinC para fazer florescer a Cultura Viva naquela que foi talvez a melhor gestão de todos os tempos no Ministério da Cultura; que atentou para as necessidades dos milhões de desvalidos com programas como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, o Luz Para Todos etc.; que “fez o sertão virar mar” com a transposição do Velho Chico; que forjou solidariedades internacionais do Brasil com o Mercosul, a África, os BRICS, e mesmo contestando a subserviência brasileira aos EUA retirou de Obama o elogio de que era “O Cara”; que fez a economia seguir pujante por muitos anos, em que o salário mínimo não parou de subir, a inflação manteve-se sobre controle, o emprego era quase pleno, e até os tubarões do capitalismo não tiveram motivo para reclamações; que como democrata impecável costurou um jogo de conciliações e governabilidades que o tornam um verdadeiro gênio do xadrez político dentre aqueles que escolhem a via institucional do reformismo ao invés da via revolucionária; bem… esse “cara” hoje está impedido pelas elites de disputar as eleições devido à fraude jurídica do triplex que o Judiciário vergonhosamente está secundando com sua criminosa cumplicidade.
Presidente do Sindicato dos Seringueiros de Xapuri.
Diante da trajetória de vida do Lula, do seu caráter de entusiástico defensor da justiça social, do seu ethos de indignação diante daqueles que impõe uma existência indigna àqueles que pisoteiam, não há como ficar em cima do muro: Lula é a civilização que resiste a duras penas, Bostossauro e sua manada de seguidores retardados é a Barbárie que avança. De que lado vocês vão ficar?
Nós aqui jamais estaremos junto aos desumanos, mas sim entre aqueles que labutam, dia e noite, no pensamento e na ação, para que possamos juntos nos humanizar mais e mais. Esta Humanidade como valor, espezinhada pelo fascismo desumano, ainda pulsa em nossas utopias, em nossas indignações, em nossas revoltas, em nossos poemas e canções, em nossos filmes e reportagens, e eles podem até matar-nos e enterrar-nos, mas sempre ressurgiremos das cinzas para provar a eles que éramos, somos, seremos Sementes.
Eduardo Carli de Moraes – A Casa de Vidro – Setembro de 2018
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
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