Conheça o thriller distópico “Soylent Green: À Beira do Fim” (1973), que representa NYC na década de 2020

por Eduardo Carli para A Casa de Vidro

Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Greendirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).

Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!, Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.

Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”:  o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.

A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.

Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.

Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.

O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.

Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).

Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.

In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)

No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.

O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…

O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”

O artigo excelente de Maria Ramos em Bitch Flicks destaca muito bem os elementos de crítica do sexismo / machismo que a obra traz:

Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”

Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.

Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.

Supostamente fabricados a partir de planktonsos alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.

Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal. 

Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news marketing. 

Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.

O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em ParasitaO Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.

Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)

É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.

O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.

A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.

Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.

Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.

O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.

SOYLENT GREEN

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 19/04/2020
http://www.acasadevidro.com

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Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.

Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.

A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.

Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.

Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.

Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.

Na época da gravidez, Courtney Love foi escorraçada na imprensa, sobretudo numa reportagem da Vanity Fair que denunciava que a vocalista do Hole teria usado heroína com Frances ainda em seu útero (saiba mais lendo o célebre artigo “Strange Love” de Lynn Hirschberg). O texto comparava o casal mais célebre do grunge com Sid Vicious e Nancy Spungen – e contribuiu para que Frances, por um breve período, tivesse sua custódia retirada dos pais pela justiça.

Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.

Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.

Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.

Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.

As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.

Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.

E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.

Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.

Keyart for Last Days.

Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood. 

De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.

A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.

Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.

Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.

O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.

Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.

Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.

Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.

Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.

Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.

O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.

Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.

“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE

Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.

Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.

Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.

A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.

Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.

Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.

“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.

Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK 

Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.

Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…

Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.

Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.

Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.

E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.

Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.

Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.

E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.

São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.

Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!

Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.

Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…

Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.

Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro
Goiânia, 16 de Março de 2020

“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRICKE, DavidLive Through This. In: Rolling Stone.

GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.

HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair. 

A ODISSÉIA DUM PEIXE DANÇARINO PRA FUGIR DE UM AQUÁRIO-PRESÍDIO – Sobre o filme “FISH TANK” (U.K., BBC Films, 2009), de Andrea Arnold

“I’m good at being uncomfortable
So I can’t stop changing all the time.”

FIONA APPLEExtraordinary Machine [ouça]

O desconforto com o atual enrosco, o inconformismo diante de situações intragáveis, são motores dos movimentos de auto-transcendência. A superação-de-si exige de nós que tenhamos uma boa dose de discórdia conosco mesmos, uma vontade de deixar-se para trás rumo a uma melhor versão de si.

Eis alguns dos ensinamentos possíveis de sugar da narrativa cinematográfica arrojada, comovente e impactante de Fish Tank. Através do belo filme da Andrea Arnold, lançado pela BBC Filmes em 2009, temos acesso a uma vivacidade juvenil intensa, ingovernável, que lida com as opressões à sua volta com o sadio desrespeito pelas correntes que têm, quando capturados, os animais que haviam sido antes selvagens – e que passaram todas as suas vidas correndo livres e soltos pela floresta.

Em um filme que aposta em metáfora bastante significativas, a mensagem parece ser um conclame ao amadurecimento criativo que envolve, sempre, revoltas contra limitações e travas socialmente impostas e que bloqueiam o nosso crescer. A protagonista de Fish Tank é uma peixona adolescente faz de tudo para romper com o confinamento em um aquário que é seu presídio. Melhor dizendo: Mia é uma espécie de símbolo de uma juventude que, caso as velhas gerações ainda vivas, em sua autoritária gerontocracia, tentem encerrar na jaula de uma tanque de peixes onde a ração são só migalhas, explode em revolta.

Mia dá conta, no processo, de que fazer com que esta revolta, para além dos elementos destrutivos que carrega, refulja como uma revolta criativa, uma criatividade revoltada. Uma femme revolté que talvez agradasse a Camus ou Beauvoir, caso estivessem vivos para espiarem com olhar existencialista esta bela obra do cinema contemporâneo. Em Mia, refulge algo à la Emma Goldman,  pulsa no anarquismo espontâneo de Mia a determinação a ir dançando sua revolução.



Ao assistir ao filme, por vezes me lembrei do que canta Fiona Apple na bela canção que dá título a seu maravilhoso álbum em parceria com Jon Brion, Extraordinary Machine: quem é “bom em sentir desconfortável não pode parar de mudar o tempo todo”.

Em Fish Tank (Aquário), filme de Andrea Arnold , a vida de uma adolescente britânica chamada Mia (interpretada por Katie Jarvis) é explorada nos meandros de seu labirinto existencial. Nós somos lançados direto para o epicentro deste labirinto que é Mia, desnorteada e enfurecida, irrompendo na tela com a fúria de uma punk urbana que taca pedras em vidraças e quebra o nariz dos desafetos a cabeçadas. Algumas cenas adiante, a mãe anuncia a Mia que, em 2 semanas, ela irá para a “casa de correção”.

Fish Tank revela, de maneira instigante, o labirinto em que Mia se debate feito um peixe-dançarino em revolta contra as dimensões estreitas demais de seu aquário-presídio, repleto de opressões que a rodeiam e tentam esmagá-la. Envolta numa miríade de opressões, ela vai dando um jeito de driblar as adversidades da vida, um pouco no remelexo, um pouco na irrupção de raiva reativa. Com os beats do hip hop bombando em seus fones-de-ouvido e soundsystem, esta peixa irritada com o confinamento em aquário demasiado estreito debate-se querendo fugir.

Um dos símbolos supremo que o filme ergue para representar este ímpeto de fuga é a égua de seu amigo, sempre acorrentada e raquítica. A égua que ela tenta roubar, arrojando contra o cadeado que mantêm o animal preso a golpes de pedras e marteladas. Esta égua, que ela fracassa em libertar através da martelada, faz com que ela descubra-se confrontada, mais uma vez, pelo “monstro” social onipervasivo, Minotauro de seu labirinto: uma cultura onde as relações sociais são brutas, sem delicadeza, norteadas pela ofensa mútua. À semelhança da estética dos Sex Pistols, ficamos com a impressão inicial de que esta é uma Inglaterra da Juventude No Future e que todos estão cuspindo uns nas caras dos outros.

Incapaz de resgatar a Égua, com quem ela provavelmente fugiria pra bem longe de sua vida-inferninho nos subúrbios de Londres, esta princesa-punk tem que encarar o Minotauro da macheza tóxica. Vemos uma gangue de três caras e um rottweiler tentando estuprá-la. Ela se debate com todas as forças de seu corpo, briga com eles esperneando e desferindo socos. Até que se liberta o bastante para correr na velocidade de um atleta dos 100m raso nas Olimpíadas.

Ter escapado de uma tentativa de estupro não a torna muito predisposta a ser gentil com os homens em geral – muito menos com o novo namorado de sua mãe, Connor (interpretado por Michael Fassbender). Se ela, de cara, antipatiza com ele e o trata como inimigo, é pois isto tornou-se sua reação emocional padrão diante dos humanos em geral. Ela tem antipatia por gente. Uma antipatia que engloba os que tem pica e os que tem buceta numa mesma onda de misantropia adolescente. Tanta fúria precisa expressar-se, caso contrário este aquário explodirá pelos ares como uma panela de pressão esquecida por tempo demais no fogão.

Se me permitem uma digressão pela Cultura Pop contemporânea que me parece significativa como chave de leitura do filme, é importante notar a semelhança do nome da protagonista de Fish Tank, Mia, com a artista, de nome bastante semelhante e de imensa repercussão no Reino Unido neste últimos anos: M.I.A., originária do Sri Lanka, hoje uma das mais provocativas artistas britânicas do séc. 21.

Assim como M.I.A. horrorizou muitos – e atraiu processos contra si que quase a levaram à falência – quando mostrou o dedo médio, em cima do palco com Madonna, no famigerado show da NFL, a Mia do filme também gosta de uma cultura que provoque, que confronte, que não seja demasiado “boa-moça”. Com vínculos fortes com a cultura hip hop, seu corpo, quando tem tempo livre, dedica-se a treinar-se nas artes do breakdancing. 

INDIANAPOLIS, IN – FEBRUARY 05: MIA performs during the Bridgestone Super Bowl XLVI Halftime Show at Lucas Oil Stadium on February 5, 2012 in Indianapolis, Indiana. (Photo by Christopher Polk/Getty Images)

Mia está animada pelo sonho deem tornar-se uma dançarina de sucesso, uma artista de renome. Diante da tela da TV onde assiste a videoclipes sacolejantes da black music globalizada, ela sacode o esqueleto nos interstícios desta vida que parece oprimi-la por todos os lados.

Primeiro e sobretudo, a opressão materna, que explode na tela logo nos primeiros momentos de um filme que explora, a fundo e com densidade poética, a metáfora entre a adolescente rebelde de 15 anos, que protagoniza o filme, e um peixe aprisionado num aquário. Um peixe cheio de inquietude, querendo expressar seus encantos de sereia. Mas, assim como M.I.A., radicalizando no confronto com as situações materiais do mundo em que vive, socialmente convulsionado por conflitos e antagonismos que polvilham por toda parte a praga das relações de dominação e subalternidade, de opressor e oprimido, trava suprema para a superação humana da atual nossa fase de fratricidas no labirinto.

O filme não está interessado na vida de quem é pop star, mas sim na vida anônima que sonha em sair dum pântano de anonimato. A filmagem de Andrea Arnold é bastante realista, lembrando o estilo de mestres britânicos do cinema realista sobre a riff raff como Mike Leigh e Ken Loach, mas o olhar atento à juventude de uma mulher em seu aquário de opressões transforma a obra em algo que toca fundo na questão do feminino no mundo contemporâneo. Dificilmente Fish Tank poderia ser considerado feminista, o que não o impede de ter muita food for thought sobre as relações sociais entre mulheres. A começar por mãe e filha, que estiveram um dia em simbiose tão intensa, fundidas num organismo, e que na adolescência são descritas como extremamente arredias.

Algumas vertentes do feminismo, por centrarem a mira de suas críticas no Patriarcado, acabam por pintar o retrato do opressor como sinônimo de macho, o que dificulta a apreensão da realidade inegável que são as mulheres que oprimem mulheres, a começar pelas mães que oprimem suas filhas, irmãs-mais-velha que oprimem suas irmãzinhas, dentre outras manifestações disso que é o avesso da sororidade. A irmãzinha de Tyler, ao despedir-se de Mia que se vai para o País de Gales, diz: “I hate you”, ao que a irmã responde: “I hate you too.” É uma das cenas mais fofas do filme.

Instantes antes, a mãe, ao ser avisada que a filha maior estava de partida, com malas feitas e uma carona para outro país, lança-lhe na cara um “fuck off!” A mãe, cansada de reter no aquário aquela rebeldia indomável, enfim concede a Mia o direito de vazar. Antes, esta mãe era sentida como carcereira, agora transmuta-se de súbito numa mulher, falível como todas, humano demasiado humana, e que tenta driblar com dança as deprês dessa vida. Mãe e filhas entram na dança da despedida e, sem palavras, estão temporariamente em trégua em sua longa guerra doméstica.

O modo como o filme articula o tema da dança no tecido vital da protagonista. Mia parece se identificar com a figura do animal que tem seus movimentos impedidos: é o caso da Égua que ela tantas vezes tenta salvar, e cuja morte lamenta com lágrimas que ela não derruba, através do filme todo, para nenhum humano. A dança parece estruturar sua subjetividade em transformação como uma espécie de espinha dorsal da fantasia que motiva o caminhar-adiante. Ela faz planos de tornar-se alguém no mundo da dança, articula com Connor uma ajuda para que ela possa participar de um teste, consegue uma câmera com ele pra que filme um vídeo (pré-condição para ser uma das candidatas desta audition que passa a servir como isca para esta peixona louca para saltar de seu aquário direto para a vastidão do oceano.

Desde seu título, Fish Tank demonstra um certo desejo de metaforizar sua narrativa através de peixes e éguas, evocados em relações com Mia que vão revelando para nós as características de seu labirinto. Numa cena chave, Connor leva as 3 mulheres para um rolê de carro que termina numa estranha pescaria. Connor entra no lago a fim de catar um peixão com as próprias mãos e Mia é a única a topar o desafio (ainda que não saiba nadar). A captura do peixe, seguida por um quadro em que o animal agoniza no solo, fora de seu habitat aquático, revela a Mia o poder daquele homenzarrão charmoso capaz de carregá-la nas costas, gentilmente, quando ela corta os pés.

A caminho da daquele episódio de queer fishing, Connor toca no carro a sua canção predileta de todos os tempos, “California Dreaming” na voz de Bobby Womack. A canção traz um eu-lírico que, no Inverno, sonha com uma Califórnia ensolarada – semelhante àquela que, na casa de Mia, decora a sala-de-estar como papel de parede. Mia decide escolher esta canção para dançar. Bola uma coreografia. Todos os incentivos de Connor surtem um certo efeito sobre a auto-estima de Mia, ela vai caindo para os encantos daquele cara que há poucos dias era um completo estranho que dançava com a mãe nas festanças domésticas e que ela observava transando, escondida na obscuridade do corredor.

Fish Tank é um filme desprovido de moralina e retrata comportamentos dificilmente aplaudíveis com tanta empatia que a gente é lançado para além do bem e do mal, como queria Nietzsche. É um filme que não quer nem crucificar nem inocentar sua protagonista – quer que viajemos com a vida dela, com empatia ligada no talo, mas sem perder a capacidade crítica. Nem santa, nem puta: Mia apenas. Mia, cheia de tesões, dançando seu caminho para fora do aquário, rompendo certos limites temíveis – como transar com o namorado da mãe…

Com a mãe desmaiada no quarto após um porre, Connor e Mia transam na sala logo após a performance dela de “California Dreaming” (papel de parede todo Californiano servindo de plano de fundo). A vida de Mia é o próprio inverno, e sua dança é a Califórnia. But the fantasy comes crashing down. No clímax dramático do filme, Mia vai atrás de saber mais sobre a vida de Connor, este cara que já esteve com a pica dentro dela e de sua mãe – e que de repente sumiu. Vazou. Escafedeu-se.

Mia invade a casa de Connor saltando o muro dos fundos e penetrando por uma janela. A câmera com filmagens enfim revela a Mia que Connor é casado e tem uma filha, o que inspira a reação instintiva de tacar a câmera longe e depois mijar no tapete da sala. Na sequência, Mia tenta sequestrar a filha de Connor, que a certo momento escapa pela mata. Em uma das cenas que deixa o espectador gasping for breath, após uma briga violenta em que a criança tenta ser libertar de seu cativeiro aos pontapés contra sua carcereira, Mia empurra a criança na água. Aos 15 anos, Mia quase se torna uma sequestradora e uma assassina.

Evocando outros filmes da história sobre rebeldias juvenis, como Vidas em Fuga de Lumet (com Marlon Brando) ou Rebelde sem Causa de Nicholas Ray (com James Dean), Fish Tank é a crônica de várias pequenas rebeliões contra os jugos opressores. Mia se debatendo para escapar da garra de seus estupradores é uma cena análoga à filha de Connor debatendo-se para escapar da fúria vingativa de Mia. Os elos na cadeia da opressão estão bem encadeados. E este filme não vende falsas esperanças – tanto que o caminho do sucesso permanece vedado para Mia. Não se trata de uma ascensão para o estrelato como dançarina – não estamos diante de nenhum fenômeno semelhante ao de M.I.A., de Janelle Monae ou de Flaira Ferro.

O filme nos frustra ao focar no fracasso de Mia na conquista de seu sonho de ser dançarina – chegando na audition, ela descobre que de fato eles estavam selecionado strip dancers, que ela estava no lugar errado, que ali não havia espaço para sua expressão corporal nem como breakdancer, nem como coréografa dos Sonhos de Califórnia. Ela abandona aquele palco onde o corpo da mulher agita-se apenas para instigar o tesão dos machos e parte para outra.

A atitude de Connor, que comete um adultério duplo, com mãe e filha, antes de abandoná-las e voltar para sua “família tradicional britânica” numa “Safe European Home” (The Clash), é retratada sem panfletagem feminista, mas a mensagem da narrativa é clara: Mia não aceita calada ser comida e depois jogada de lado como uma casca de banana. Mia está disposta a uma irrupção no cenário proibido da família feliz de Connor, para demarcar com seu mijo e sua presença disruptiva aquele território de que está segregada. A área proibida, que Connor impede que ela acesse, temeroso da revelação da verdade, instiga Mia a cometer seu “crime” de sequestro e quase assassinato da filha de Connor.

A cena em que Mia é apedrejada pela criança que dela busca fugir, essa cena que ressoa fortemente na memória pois ali Mia está em full throttle na posição de “opressora” vingativa, é uma das cenas-chave que mostra a disposição do filme em sublinhar o Inferno não é exclusivamente masculino. Quero dizer, com isso, que uma vertente reducionista do feminismo torna-se incapaz de ir mais profundo à raiz dos antagonismos das relações humanas quando culpabiliza unicamente o Patriarcado e “o Macho” por todos os males do mundo, quando é óbvio que também as mulheres são capazes de serem maléficas e opressoras umas com as outras, em diferentes situações onde diferenças de poder propiciem oportunidades para os abusos de autoridade – seja na relação mãe e filha, professora e aluna, médica e paciente, adolescente e criança etc.

Através de seu cinema do fluxo, da transmutação, Andrea Arnold inaugura novos horizontes para a senda dos filmes problematizadores da Juventude na sociedade contemporânea. Há algo de Larry Clark ou de Gus Van Sant em seu cinema, mas algo também singular – e que ela seguirá explorando com maestria em seu próximo filme, Docinho da América. Um Oceano Atlântico inteiro separa EUA e U.K., mas as semelhanças entre eles ainda sobressaem devido ao mesmo caldo de cultura anglo-saxã, protestante e “liberal”. Em seus filmes, Andrea Arnold registra o movimento de reinvenção da juventude nas sociedades contemporâneas através de um cinema de alta intensidade, rica rítmica, montagem de dinamismo videoclíptico e capacidade de propor metáforas de largo alcance.

Ainda sobre o tema da revolta, ou do comportamento revoltado desta figura feminina inconformada e agressiva que é Mia, vale lembrar aos espectadores mais apressados que o filme não está nos convocando para um tribunal, não interessa julgar se Mia é do bem ou do mal, se é uma menina-bandida ou se podemos adorá-la sem culpa. Mia é uma vida complexa que nos oferece seu labirinto para que possamos tentar decifrá-la, e aí percebemos, como fez Jon Savage em seus estudos sobre a Youth, que o individual é indissociável do social. Mia é assim por causa do Patriarcado, da masculinidade tóxica, da cultura do estupro, sim, é possível, mas ela não é redutível a isto, pois estes elementos da cultura, disponíveis a todos os sujeitos que compartilham desta mesma cultura, será “sintetizado” por ela de maneira específica, singular e única.

Seja reproduzindo explosões de agressividade e de dispêndio de força física contra o outro que ela provavelmente aprendeu com os machos da espécie, de certo praticando a mimese das atitudes machomen, seja criando maneiras de empoderamento feminino para sobreviver na selva de intentos de estupro e de irresponsabilidades gerais, tanto masculinas quanto femininas. A ausência completa da figura do pai na família de Mia dá também o que pensar sobre o tema das “famílias desestruturadas” pela falta daquilo que supostamente deveria ser, desta família, a “espinha dorsal”, o pai.

De todo modo, o filme não convida à abstração, não fala sobre o geral, não pretende ser um tratado sobre a família britânica na era contemporânea, é muito mais um dispositivo de ativação de afetos. Mia ativa justamente nossos afetos ativos, nossos afetos que conduzem a ações, nossos afetos que tem um ímpeto inerente de predileção pelo ritmo, pelo movimento, pela mudança, pelo fluxo.

Eis um cinema com alto teor de corporalidade, um cinema que flagra o corpo de Mia movendo-se e agindo-se com uma espécie de volúpia libertária pela captura de imagens onde os gestos falam mais que as palavras. Um filme digno de estudo para quem quer que se interesse por expressão corporal danças contemporâneas. Na esteira de Paul Gilroy e seu livro abre-horizontes O Atlântico Negro, o filme de Andrea Arnold fala também sobre uma Inglaterra das culturas híbridas, que inclui uma forte expressividade da cultura hip hop, esse fruto tardio e hiper contemporâneo da diáspora dos africanos escravizados que pelo mundo se espalharam, sempre criando e recriando a cultura humana em seus movimentos, mesclas, miscigenações e aventuras de fuga.

Com a sabedoria de William Blake já pulsando em seu corpo de 25 anos, Mia sabe: “He who desires but acts not, breeds pestilence.” (“Aquele que deseja e não age gera uma prole de pestilência.”) Não sei se o que pesou foi a sinapse que conectou a personagem Mia à rapper real M.I.A., mas fiquei com a impressão de que o filme sugeria, para além dos créditos finais, que a protagonista não ficaria presa ao pântano. Que esta peixona estava destinada, num futuro que o filme não conta, a arrasar nas artes.

Mina-rebelde na Inglaterra no future forjada pelo neoliberalismo econômico somado ao puritanismo moral, a Mia encarnada por Katie Jarvis é uma força feminina exuberante, quebra-correntes, como que a anunciar ao mundo, com seus gestos e suas danças, a relevância deste episódio supremo na história da linguagem humana que são os Provérbios do Inferno de Blake:

In seed time learn, in harvest teach, in winter enjoy.
Drive your cart and your plow over the bones of the dead.
The road of excess leads to the palace of wisdom.
Prudence is a rich ugly old maid courted by Incapacity.
He who desires but acts not, breeds pestilence.
The cut worm forgives the plow.
Dip him in the river who loves water.
A fool sees not the same tree that a wise man sees.
He whose face gives no light, shall never become a star.
Eternity is in love with the productions of time.
The busy bee has no time for sorrow.
The hours of folly are measur’d by the clock, but of wis­dom: no clock can measure.
All wholsom food is caught without a net or a trap.
Bring out number weight & measure in a year of dearth.
No bird soars too high, if he soars with his own wings.
A dead body, revenges not injuries.
The most sublime act is to set another before you.
If the fool would persist in his folly he would become wise.
Folly is the cloke of knavery.
Shame is Prides cloke.

WILLIAM BLAKE

 

NÃO HÁ REVOLUÇÃO SEM INDIGNAÇÃO MORAL – Reflexões sobre “O Jardineiro Fiel” (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles, na companhia de Jankélévitch

“Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral.”  JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em “O Paradoxo da Moral” (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

 

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), lançado em 2005 e dirigido por Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a Cegueira), é um belíssimo filme que nos impulsiona a refletir as multiformes injustiças de que o mundo está repleto e, em meio a tanto caos e fúria, o florescimento desta força material ainda misteriosa e mal compreendida: a indignação moral. O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle…

Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia… que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância…”, p. 21). “As montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal… só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)? O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).

É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência…” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador – e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este “ponto de vista de Terceiro Mundo” que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante – e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental… E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar… Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população…), que escondem interesses e atos repugnantes.

A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem… o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. “Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito”, ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas – cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas… – na eventualidade de uma grande epidemia global. 

Virando pelo avesso o hino utópico “Imagine” de John Lennon, vamos fazer um exercício de compor um quadro de uma “Imagine” distópica. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, se uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. 

Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem diante das políticas impostas pelas empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres… Que formidável ferramenta de “limpeza étnica” não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica… 

É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn’t be so sure. Gosto que “O Jardineiro Fiel”  seja uma “escola da suspeita” e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won’t get fooled again…

Há razões bem mais “pessoais” que explicam porque este filme de Meirelles é pra mim tão querido, altamente prezado: ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia a um só tempo moral e física. Um filme que eu ousaria chamar até mesmo de “sábio”, por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Leio nele, latentes, estas mensagens de sophia: o excesso de prudência não nos deve impedir de ousar coragens. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades – armadas até os dentes! – que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados… 

Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, da indignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência, é uma mulher sábia em um mundo transtornado por injustiças multiformes.

 A tragicidade do filme está no fato de que o “jardineiro fiel” vivido por Fiennes é o sobrevivente de uma catástrofe pessoal e coletiva – a exclusão violenta de Tessa deste mundo dos vivos, que não deixa de evocar exemplos concretos, que atravessam a história, como Flora Tristán, Rosa Luxemburgo ou Marielle Franco. A fidelidade que ele deve a Tessa transcende a própria coexistência dele entre os vivos: é lealdade a uma morta, ao legado, à chama moral que a animou enquanto vivia.

É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, como formigas bradando contra elefantes e sendo por eles esmagadas. Ou como pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. 

Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” [“Não há refúgio contra a mudança no universo”], ensinava Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto. Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas..

Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não tenham percebido que o céu de Deus está vazio – apesar de estar repleto de estrelas. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! 

“Platão, num diálogo intitulado Teeteto, faz Sócrates falar sobre o sábio Tales: ‘Somente o corpo do sábio tem localização e morada na cidade. Seu pensamento voa por toda parte, sondando os abismos da terra e seguindo a caminhada dos astros […] sem nunca se deixar descer de volta ao que está imediatamente próximo. Assim, Tales observava os astros e, olhos fixos no céu, caía num poço. Uma trácia, criada viva e trocista, caçoa de seu zelo em saber o que acontece no céu, logo ele, que não sabia ver o que tinha diante de si, a seus pés. Essa caçoada vale contra todos os que passam a vida filosofando.’ (174 a-b) Esse exemplo mostra portanto que um sábio não deve olhar unicamente para o seu modelo ideal e racional, mas deve igualmente manter um olhar na terra firme, isto é, na realidade.” – JANKÉLÉVITCH, Vladimir.  Curso de Filosofia Moral.  Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 110. Trad. Eduardo Brandão

Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação, é desperdiçar tempo precioso no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa… E que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de uma heroína sem deus, uma heroína que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade. Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair com toda a vida na estrada da alteridade? Por que não ousar este mergulho na realidade, inclusive na mais dura, na mais amarga, na mais letal das realidades?

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme, auxiliado pelo talento e pela beleza descomunais de Rachel Weisz.

 Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante… 

Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neoliberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, aliás, que é outro nome para o velho capitalismo selvagem que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações transnacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis… são criminosos! 

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou nem porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? 

Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não nos satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com as injustiças grotescas que maculam o planeta? E o que pode o cinema, como mobilizador de afetos, para inspirar a fazermos juntos uma outra realidade possível, menos sórdida, mais camarada, transcendendo a atual condição em que tantas mortes imerecidas e tantas dores desnecessárias ainda imperam?

Se o filósofo Jankélevitch tem razão ao vincular a revolução à necessidade de uma indignação moral que a instigue – “para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral”, escreve o grande pensador -, então não se pode desprezar o cinema como força que difunde, através da nossa identificação com personagens representados na telona, a possibilidade de incandescência destas indignações sublimes e revoltas magníficas sem as quais a nossa vida coletiva chafurda no lodaçal dos imobilismos cretinos ou dos retrocessos bárbaros.

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – http://www.acasadevidro.com

 

“A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” – Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo francês, professor da Sorbonne (de 1951 a 1979), em seus Cursos de Filosofia Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.

A HUMANIDADE DESPEDAÇADA – Lições de Dilaceramento no filme “Em Pedaços”, de Fatih Akin (Alemanha, 2017, 1h46min)

“A desumanidade terá um grande futuro.”
Paul Valéry

Não há porque temer o desaparecimento do despedaçamento humano: prosseguimos divididos e nos matando como se fôssemos feras ferozes. O foco principal do perturbador Em Pedaços (título original em alemão: Auf Der Nichts; título em inglês: In The Fade), do cineasta turco-alemão Fatih Akin (o mesmo de Contra a Parede), é o cruel dilaceramento de uma mãe e esposa vê seu marido e filho serem reduzidos a pedaços por um ato terrorista neonazi.

Nascido de pais turcos em Hamburgo, no ano de 1973, o diretor Akin sedia em sua cidade natal este seu denso conto de desumanização, incompreensão e desatamento incontrolável de violências. Explora a geopolítica européia contemporânea, em especial a re-ascensão de movimentos de extrema-direita xenófoba, em um filme pungente que revela as profundezas abissais do sofrimento humano enquanto denuncia a onda de islamofobia e de crimes conexos à intolerância racista.

A esplêndida interpretação da atriz alemã Diane Kruger, premiada no Festival de Cannes, não permite a nenhum espectador ficar frio e indiferente diante das atribulações da protagonista Kátia. Ela tem sua existência transtornada subitamente e tirada de órbita pela bomba que explode na frente do escritório de seu marido Nuri Sekerci, matando-o junto com o filho do casal.

O filme mergulha em toda a aflição do trauma que se abate sobre esta mulher, repentinamente privada dos amores de sua vida em um crime cujos mistérios o filme tratará de decifrar. Do drama privado em que poderia ter ficado atolado, o filme se alça às alturas de uma tragédia grega adaptada à Alemanha contemporânea. Pinta um retrato de uma Hamburgo onde o supremacismo racista dos neonazis produz monstruosidades que a Justiça, aburguesada e pusilânime, fracassa em punir.

No momento histórico em que a crise dos refugiados está em seu estado mais grave deste a 2ª Guerra Mundial (segundo estudo da Anistia Internacional e da ACNUR), em que as polêmicas sobre políticas de imigração são intensas e as ações segregacionistas da direita se assanham (como ocorre com o discurso encabeçado por Le Pen na França, ou com as crianças-separadas-dos-pais durante a gestão Trump nos EUA), o filme é de imensa atualidade. Pode nos ajudar a debater os rumos futuros da belicosidade humana, do etnocentrismo alterofóbico e das ações extremistas contra imigrantes.

A grande questão que o filme nos faz talvez seja esta: quando aqueles que juraram defender a Justiça, e tem este dever por ofício, fracassam em seus trampos, permitindo a impunidade aos mais atrozes criminosos, temos o direito de agir em prol da punição dos mesmos por fora das instituições? Através da descrição crível do ímpeto emocional e das atividades indignadas desta mãe, que viu seu filho e seu marido terem seus corpos explodidos até não restarem senão pedaços incinerados do que antes foram pessoas vivas e amadas, a questão do filme tem a ver com aquela velha indagação ética-jurídica: tem-se o direito de “fazer Justiça com as próprias mãos” quando as autoridades competentes mostram-se incompetentes?

Triturando todos os estereótipos racistas sobre a figura do terrorista e do delinquente, o filme nos coloca diante do crime horrendo cometido por aquela Cara Gente Branca que é alfinetada no filme e na série Dear White People. Vocês realmente precisam ser tão estúpidos e bestiais, caros espécimens da Cara Gente Branca, a ponto de explodir vidas apenas por serem turcas ou curdas, afegãs ou iraquianas? E vocês realmente querem se vender ao mundo como aqueles que vão ensinar ao “Terceiro Mundo” como se deve comportar no tabuleiro geopolítico, forçando-nos a frequentar sua magnífica Escola Ocidental de Humanitarismo?…

O cineasta Fatih Akin em ação no set de filmagens de “Em Pedaços”, vestindo uma camiseta do álbum “…and Justice for All” do Metallica

O atentado foi perpetrado por um casal de neonazistas, os Möeller, que idolatram Adolf Hitler. As investigações policiais indicam que eles explodiram a bomba caseira em um bairro turco por motivos conexos à xenofobia, ao racismo, ao ódio anti-islâmico etc. Isso acaba se confirmando quando, no tribunal, um grego afiliado ao partido neonazista grego Aurora Dourada (A.D.) testemunha a favor dos réus, procurando fornecer aos juízes um álibi que provaria a inocência dos acusados. Como poderiam eles ter perpetrado o atentado se estavam numa colônia de férias na Grécia?

O advogado de acusação, aliado de Kátia, logo aponta que este grego, militante neonazi, com sua cara carrancuda de pouquíssimos amigos, publicou fotos em suas mídias sociais em um ato em que aparece empunhando a bandeira com a suástica da A.D. em um post curtido pelos assassinos. O advogado mostra evidências das tenebrosas conexões entre a testemunha e os réus, frisa a natureza forjada do pseudo-álibi.

Ainda que dentro da grande tradição dos filmes sobre vingança, Fatih Akin não trilha sendas já exploradas com maestria por antecessores ilustres como Sergio Leone, Sam Peckinpah, Quentin Tarantino ou Chan Wook Park (Oldboy). Constrói sua protagonista, de modo similar à Beatrix Kiddo de Kill Bill, como vítima de injustiças em série; mas Fatih Akin, ao contrário de Tarantino, não tem predileção pela caricatura e pelo humor de HQ, preferindo um tom mais trágico, soturno, com certos acentos punk.

Kátia encarna uma vingatividade justiceira que, no âmbito ético e filosófico, poderia ser compreendida como ação violenta justificável diante da falência do Estado burguês em punir os assassinos. Cansada de não ter saciada sua ânsia por Justiça, ela decide agarrar o problema em suas próprias mãos, já que o Estado se mostrou ineficiente em coibir o crime: ao invés de punição, o casal de assassinos é libertado e absolvido, e logo após o julgamento vai para uma colônia de férias na Grécia, o que só faz o ímpeto vingativo-justiceiro em Kátia se exacerbar.

Que ela tem o direito de tomar o problema da punição dos assassinos em suas próprias mãos é algo que Kátia percebe não no nível da verbosidade sociológica de um linguajar acadêmico, mas em suas próprias vísceras de mãe e de esposa que teve amputados de seu corpo estes outros que constituíam, para ela, um ninho de calor e sentido.

O filme explicita também os mecanismos que buscam culpar a vítima para assim melhor absolver os perpetradores de atrocidades. Tanto Kátia quanto seu marido morto tem suas vidas devassadas pela polícia, suas reputações colocadas em cheque, tanto pelos antecedentes criminais do marido enquanto traficante de drogas ilícitas, quanto pelo uso de drogas variadas que Kátia usa em seu luto para amainar a dor de sua súbita perda.

O advogado dos réus precisa atacar Kátia, acusando-a de ser uma drogada. Levanta dúvidas sobre a capacidade de testemunhar por parte daquela junkie desequilibrada, criando assim uma teia de desconfiança em relação à mulher dilacerada. São cenas angustiantes em que o espectador que se identifica com o infortúnio da protagonista sofre horrores com ela. Encurralada naquela jaula-tribunal, ela subitamente se transmuta de vítima da opressão homicida da extrema-direita em acusada. Contra ela levantam-se os dedos cretinos destinados a humilhá-la e desacreditá-la, o que só favorece a impunidade do casal neonazi perpetrador do crime.

Assim, o tribunal dilacera ainda mais aquela mulher cuja resiliência o filme, de maneira subliminar, descreve e celebra. Não estamos diante de uma mulher frágil, que fosse quebrável com a facilidade do cristal. Estamos sim diante de uma crumbling fortress, uma fortaleza que se desfaz em pó, mas que neste processo prepara-se para sair do mundo dos vivos através de um ato de sacrifício supremo.

O tema do sacrifício, que recebeu de Andrei Tarkovsky uma densa meditação em seus últimos filmes Nostalghia e O Sacrifício (vide a excelente análise de Slavoj Zizek em Lacrimae Rerum), passa por inúmeras variações na obra de Fatih Akin. Ainda no primeiro ato do filme, ela tenta o suicídio, este auto-sacrifício de um sujeito que perdeu o gosto de viver após ser privado de seus vínculos afetivos mais amados. Um suicídio que ela quase consuma: após cortar os pulsos e deitar-se na banheira, cuja água vai rapidamente se tingindo com o escarlate do seu sangue, ela enfim se agarra à última corda que a prendia aos vivos, a mensagem de seu advogado que anuncia a descoberta da autoria do crime – “foram os nazistas, a polícia os prendeu!”.

A sede de Justiça talvez tenha sido a força que a fez levantar daquela banheira onde, alguns minutos depois, estaria afogada e morta. Quando esta ânsia de Justiça é malograda e os réus ganham sua absolvição, ela perde todo o esteio nas instituições jurídicas. A mulher dilacerada, que aprendeu amargas lições na escola do sofrimento recente que o destino lhe impôs, agora é impelida, no terceiro ato do filme, a um processo de vingança que para ela já tornou-se visceralmente inextricável de uma fome de justiça.

Fatih Akin e Diane Kruger

Nesta fome de justiça que transcende a própria racionalidade e torna-se um vulcão de afetos imperiosos está a beleza do ímpeto violento de Kátia. Nisso está a chave para compreender porque o cinema de Fatih Akin é mais profundo, cheio de compaixão e empatia, repleto de compreensão ampla da condição humana, do que o cinema frequentemente raso e pipoquento do Tarantino – que cometeu Bastardos Inglórios, Django Livre e os Kill Bills, fortes referências na produção fílmica recente sobre o tema da Justiça e da Vingança, sempre transformando as cataratas de sangue jorrado numa espécie de lucrativa commodity.

violência animada pela ética, ou a vingança entremesclada com a fome de justiça, aparece de modo muito forte em Aos Pedaços, um filme que atinge alturas que Tarantino nunca soube explorar. O filme também é interessantíssimo quando adere ao “drama de tribunal”, na melhor tradição de Sidney Lumet (Doze Homens e Uma Sentença), Otto Preminger (Julgamento em Nuremberg) e Stanley Kramer (O Vento Será Sua Herança).

A irrupção de ódio de Kátia, no tribunal, após ouvir a médica legista relatar suas experiências no IML com o cadáver da criança explodida pela bomba, é compreensível ainda que tenha prejudicado a causa de Kátia. Quando esta mãe em luto parte pra cima da assassina, pra descer o cacete na neonazi Möller, isto é certamente uma irrupção selvagem naquele ambiente controlado e esfriado do tribunal, uma quebra de protocolo que as mentalidades protocolares não aceitam com facilidade. Mas de todo modo é difícil não se identificar com a justeza do ato em que a indignação represada rompe os diques e se manifesta aos urros.

É esta selvagem irrupção do afeto indignado que se comunica ao espectador e torna esta obra um daqueles raros casos em que a arte é a escola do sentimento, a universidade da ética. Foi assim também com a personagem magnífica interpretada por Rachel Weiss na subestimada obra-prima de Fernando Meirelles, O Jardineiro Fiel (2005), em que Tessa, que no filme é vítima de uma morte injusta, tem sua vida e obra reanimadas pelo ímpeto de seu viúvo dilacerado, o constant gardener do título, que celebra uma vida arrefecida replantando as sementes das lutas que animaram a vida de ativista de Tessa. 

A atuação de Diane Kruger, evocando a linda interpretação de Weiss no filmaço de Meirelles, também transmite muito bem a noção de uma mulher que, rompendo com as correntes do comportamento apropriado, deixa sua emotividade e seu radar ético, sentimentalmente carregado até o talo, guiá-la no sangrento labirinto do mundo.

Não há dúvida de que haverá quem queira tacar pedras condenatórias no comportamento de Kátia no 3º ato do filme: ela estaria sendo louca, incivilizada e aderindo à Lei de Talião. Ela estaria recusando o caminho apropriado concedido pela justiça burguesa, que seria entrar com recursos e apelações contra a absolvição dos assassinos. Não estou entre estes espectadores que sacam as pedras para atirá-las a uma mulher já demasiado dilacerada; é verdade que ela adere à lógica da retaliação, que quer pagar aos assassinos na mesma moeda, que inclusive fabrica uma bomba caseira idêntica à que o casal neonazi usou no atentado.

Mas dois elementos que o filme de Fatih Akin apresenta tornam o quadro bem mais complexo do que o simplismo de julgar que uma Kátia tresloucada, indignada com o veredito baseado no in dubio pro réu (na dúvida, a favor do réu), simplesmente decidiu-se pelo ancestral “olho por olho, dente por dente”.

O primeiro elemento é a belíssima cena em que ela coloca a bomba debaixo do trailer dos assassinos, afasta-se para aguardar que retornem do cooper, quando planeja explodi-los através de um controle remoto. A súbita aparição de um belo pássaro, pousando no retrovisor do veículo, fazendo suas inocentes doçuras aladas na brisa da manhã, faz com que um insight se acenda em Kátia: suponho que ela tenha pensado que aquele beija-flor inocente não tinha nada a ver com os descalabros humanos e que não era justo explodi-lo junto com os alvos de seu atentato vingativo-justiceiro. Ela decide adiar seu ataque e mudar de plano.

O segundo elemento é a conclusão do enredo através do sacrifício supremo, da atitude kamikaze, que enfim Kátia consuma. Isto estabelece uma diferença radical entre os dois atos de bombardeio: quando o casal Möller perpetrou o atentado que matou pai e filho e lançou Kátia à condição de viúva amputada de sua criança, eles permaneceram ilesos e imunes, sem ferimentos. Assassinaram sem que seus corpos tenham sido sequer arranhados. Kátia, de modo contrastante, decide-se por colocar um ponto final em sua existência cuja dor, angústia, solidão e dilaceramento nenhuma droga neste mundo seria capaz de aplacar. E assim, abraçada à mochila que aninha a bomba, decide encarar pela última vez os algozes de sua família, num gesto bastante curioso para uma mulher de aparência em tudo similar ao estereótipo da “ariana”-germânica: é o ato do suicide bomber, terrorista suicida, que costumamos conectar ao soldado jihadista muçulmano.

É um desenlace que, de certo modo, evoca o final de Dogville (Lars Von Trier), quando Grace, após todas as opressões que sofreu naquela Cidade do Cão em que foi abusada sexualmente e escravizada brutalmente, decide decretar: “Se há alguma cidade que, excluída do mapa, deixa como resultado um mundo melhor, é esta aqui.” Grace, utilizando o poder que lhe concede o poderoso gangster que é seu pai, decide-se pelo genocídio e pela limpeza étnica, numa irrupção de vingança cuja única gota de misericórdia se manifesta pelo cachorro, que ela permite que fique vivo.

Já Kátia, com o seu sacrifício supremo, seu suicídio kamikaze, a um só tempo liberta-se da dor intolerável que tornou-se o tema in ritornello de sua dolorida e insuportável existência de dilacerada. Ela também conduz os corpos vivos dos algozes neo-nazis a se tornarem também pedaços incinerados. Talvez seja verdade que na base do olho por olho e do dente por dente terminaremos todos cegos e banguelas. Talvez tenha uma dose de razão quem queira julgar que Kátia agiu de modo errado, do ponto de vista ético e jurídico, na última atividade de sua vida. Mas volto a dizer: nesta personagem, após testemunhar com empatia seus dilaceramentos, eu não ousaria tacar pedras.

Hannah Arendt em 1941. Fotografia de Fred Stein (1909-1967).

Num dos trechos mais surpreendentes de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt argumentou em favor da pena capital que terminou por ser aplicada ao criminoso nazista pelo tribunal israelense. Arendt, reativando um argumento semelhante a “não devemos ser tolerantes com os intolerantes”, disse que ao ter se envolvido, durante anos, em atos de extermínio em massa de pessoas com quem convivia no mundo comum, Eichmann tornou-se veículo da banalidade do mal que massifica e dissemina a atitude tóxica do “não permito que você viva no mesmo mundo que eu”.

São justamente as pessoas que são incapazes de conviver com a pluralidade intrínseca à condição humana, que não sabem respeitar a diversidade que constitui o múltiplo colorido da humanidade, que assassinam este colorido por razões racistas e supremacistas, que tornam-se assim indignas de viver.

Acredito que, sem filosofias, mas com os atos éticos nascidos de suas vísceras dilaceradas e de sua psique transtornada por sofrimentos em demasia, Kátia tenha chegado a uma conclusão semelhante e tenha, com o fim de sua vida, expressado o que Arendt expressou: em tempos sombrios, os exterminadores da diversidade e os propagadores das intolerâncias, que agem pela “limpeza étnica” e pela diminuição da pluralidade do mundo, são os únicos que merecem ser exterminados e os únicos indignos de nossa tolerância. Porém, Kátia sabe também que, ao assassinar os assassinos, torna-se ela mesma uma assassina, e talvez não conseguiria viver consigo mesma na mescla insuportável de luto e culpa. Por isto, o sacrifício supremo de si no ato de sacrificar os outros.

Eduardo Carli de Moraes, jornalista e filósofo, professor do IFG.
Artigo escrito em 11 de Abril de 2019 para a sessão de crítica cinematográfica
Cinephilia Compulsiva de A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com).

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Leia também: Resenha de Aníbal Santiago
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Cinebiografia da escritora Colette tematiza “ghostwriting”, empoderamento feminino e práticas queer

A escritora francesa Colette (1873 – 1954) é a deslumbrante protagonista da cinebiografia dirigida por Wash Westmoreland (Para Sempre Alice). Ela se notabilizou pelo sucesso estrondoso dos livros que escreveu como ghostwriter de seu esposo Willy – uma série de 4 romances centrados na personagem Claudine. Inicialmente atribuídos ao maridão, os livros já tiveram sua correta autoria restabelecida e hoje, na capa, é o nome de Colette (e não de Wily) que rebrilha.

Ao assistir à reconstrução histórica precisa que o filme nos oferta, é revelado ao espectador que esses livros estrelados por Claudine foram escritos, em larga medida, por uma Colette em situação de cárcere privado – o maridão Willy, quando a esposa não produzia literatura com a quantidade e a maestria que ele exigia, era trancada no quarto por 4 horas para que fosse forçada a produzir. Detrás de chaves, praticamente enjaulada, consultando suas próprias memórias e experiências biográficas, Colette produziu aqueles estouros literários que serviriam para construir a fama de seu pseudo-autor Willy.

O filme foca sua atenção no contexto de produção dos livros protagonizados por Claudine, best-sellers que eram devorados por toda Paris e que geraram um frenesi que o filme descreve como se fosse uma Beatlemania Literária. O sucesso foi tamanho que toda uma série de produtos invadiram o mercado, destinados a auxiliar as mulheres francesas a realizar uma mímesis consumista desta personagem que bombava na cena cultural da época. Todo mundo queria ser Claudine, e os fabricantes de batons e sapatos se aproveitaram espertamente disso.

Em uma das cenas mais dramáticas do filme, depois de descobrir que Willy vendeu os direitos autorais dos livros que ela escreveu, Colette faz a catarse de todo seu ressentimento e diz que se sentia, enquanto trancada naquele quarto, como uma escravizada (slaving away), oprimida pelo maridão sedento pelos lucros da venda de livros que ele não escreveu, mas cuja glória deseja roubar ao imprimir seu nome na capa e ao gozar dos elogios públicos nos salões chiques de Paris.

ruptura com Willy se dá em circunstâncias dramáticas que o filme também explora. Em uma cena notável, Willy pede a seu funcionário que lance às chamas todos os manuscritos originais dos romances, onde se revela a caligrafia da autora Colette. Desobedecendo à ordem de incinar estes manuscritos, de modo similar ao que fez Max Brod com a obra que seu amigo Franz Kafka lhe havia legado, com o pedido de que a destruísse pelo fogo, este assessor acabou tendo um papel de destaque no restabelecimento da autoria autêntica ao se recusar a seguir as ordens do patrão. Palmas pra ele. 

Colette – escritora cujas obras e posturas existenciais inspirará outras mulheres importantes da literatura, como Erica Jong (Medo de Voar) –  também ousou subverter os papéis de gênero convencionais. Aderindo a uma postura queer, rejeitando o matrimônio “careta”, ousando assumir seus relacionamentos não-binários, ela ousou confrontar os dogmas relacionais dos “quadrados”. Tanto que há no filme um bocadinho da pimenta lesbo-erótica que faz um pouco do charme de grandes películas contemporâneas, como Azul É a Cor Mais Quente, de Abdel Kechiche.

Por isso, o filme atua como uma edificante narrativa feminista e queer  que aponta para o empoderamento de Colette, que ousa sair das sombras a que estava relegada, sem reconhecimento por seus méritos literários. Mostra como ela vai rumo aos holofotes do teatro, assumindo uma persona performática, buscando expressar-se não apenas através das palavras, mas também pela dança, pela pantomima, pelo teatro.

A atriz inglesa Keira Knightley, que se notabilizou por atuar em adaptações de romances célebres de Jane Austen (Orgulho e Preconceito) e Ian McEwan (Reparação), manda bem na sua interpretação, auxiliada por sua beleza sutil, mas está longe de ser uma mobilizadora de afetos, capaz de comover, como as melhores atrizes de sua geração (prefiro, de longe, o trabalho de figuras como Natalie Portman, Rachel Weisz, Juliane Moore, Nicole Kidman…).

De todo modo, Colette  é um filme interessante, bem produzido, que instiga a conhecer a obra desta mulher que fez história com a pena na mão. Uma cinebiografia que merece ser vista, esmiuçada em críticas de viés feminista ou queer, discutida em salas-de-aula e que soma-se a uma maré montante de produções sobre grandes personalidades literárias femininas, visto que recentemente foram lançados filmes notáveis sobre Mary Shelley e Lou Andreas Salomé.


CINEPHILIA COMPULSIVA – Trajetórias cinematográficas: Listas de filmes assistidos em 2017 / Parte 2 (Julho a Dezembro)

CINEPHILIA COMPULSIVA
Trajetórias cinematográficas
Itinerários 2017 / Parte 2 (Junho a Dezembro)

“Animal Político”, de Tião
(Pernambuco / BR, 75 min, 2017)



CANÇÃO DA VOLTA (2016, 1h 38min)
Direção: Gustavo Rosa de Moura
Elenco: Marina Person, João Miguel, Marat Descartes.



CORRA! (Get Out), de Jordan Peele (EUA, 2017)
Reviews: Salon



MUNDO CÃO (2016), um filme de Marcos Jorge. Com Lázaro Ramos, Adriana Esteves, Babu Santana
Disponível no Netflix Br





A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA,
um filme de Vinicius Coimbra, inspirado em conto de Guimarães Rosa



À Queima Roupa, Documentário de Theresa Jessouroun (Brasil, 2014).



Trash (2015), um filme de Stephen Daldry e Christian Duurvoort,
baseado no romance de Andy Mulligan, com Wagner Moura e Selton Mello.

Resenhas em Rotten Tomatoeshttps://www.rottentomatoes.com/m/trash_2015



 


COMO FUNCIONAM QUASE TODAS AS COISAS
Um filme de Fernando Salem (Argentina, 2016)
Assistido em Goiânia durante o Sappi no Lumière Bougainville




BORN IN FLAMES ou NASCIDAS EM CHAMAS
de Lizzie Borden



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