“O socialismo é antidemocrático?” – Por Joseph M. Schwartz na Jacobin

O socialismo é antidemocrático?

(Rosa Luxemburgo em um comício em)

(Rosa Luxemburgo em um comício em 1907)

Por Joseph M. Schwartz*, na Jacobin

Tradução Mauricio Búrigo

Ensinaram a uma geração de norte-americanos que a Guerra Fria se travou entre a liberdade e a tirania, com a vitória decisiva a favor do capitalismo democrático. O socialismo, de todos os tipos, foi confundido com os crimes da União Soviética e jogado na pilha de lixo das ideias ruins.

No entanto, muitos socialistas foram sólidos opositores do autoritarismo, quer fosse de esquerda, quer de direita. O próprio Marx compreendeu que somente pelo poder democrático da maioria os trabalhadores poderiam criar uma sociedade socialista. Para tal fim, o Manifesto Comunista termina com um toque de clarim aos trabalhadores, para que vençam a batalha pela democracia contra as forças aristocráticas e reacionárias.

Legiões de socialistas seguiram esta trilha, defendendo com ardor direitos políticos e civis, ao mesmo tempo que lutavam para democratizar o controle sobre a vida econômica e cultural através de direitos sociais ampliados e democracia no local de trabalho. Apesar da afirmação comum de que “o capitalismo é igual à democracia”, os próprios capitalistas, sem a pressão de uma classe trabalhadora organizada, nunca apoiaram reformas democráticas.

Enquanto o sufrágio universal para homens brancos chegou aos Estados Unidos por volta do período jacksoniano (de 1824 a 1840), os socialistas europeustiveram de lutar até o fim do século 19 contra regimes capitalistas autoritários na Alemanha, França, Itália e em outras partes para conquistar o direito ao voto para os homens da classe trabalhadora e os pobres. Os socialistas ganharam apoio popular como os mais sólidos defensores do sufrágio universal masculino –e, em seguida, do sufrágio feminino–, bem como do direito legal de formar sindicatos e outras associações voluntárias.

Os socialistas e seus aliados no movimento trabalhista também compreenderam há muito que o povo num estado calamitoso de necessidade não pode ser um povo livre. Assim, a tradição socialista é popularmente identificada, fora dos EUA, com a manutenção pelo Estado da educação, da saúde, da assistência infantil e das aposentadorias, e, dentro dos EUA, por defender muitas destas lutas.

(Marcha do Partido Socialista dos EUA em 1914. Foto: Biblioteca do Congresso)

(Marcha do Partido Socialista dos EUA em 1914. Foto: Biblioteca do Congresso)

Para muitos socialistas, o apoio a reformas democráticas era incondicional; mas eles também acreditavam que o poder de classe necessário para deter o poder do capital tinha de ser fortalecido a fim de que os trabalhadores pudessem controlar totalmente seu destino social e econômico. Enquanto criticavam o capitalismo como antidemocrático, os socialistas democráticos se opunham de forma consistente aos governos autoritários que se proclamavam socialistas.

Revolucionários como Rosa Luxemburgo e Victor Serge criticaram o governo soviético desde o início, por proibir partidos de oposição, eliminar experiências de democracia no local de trabalho e fracassar em abraçar o pluralismo político e as liberdades civis. Se o Estado possui os meios de produção, a pergunta permanece: quão democrático é o Estado?

Como escreveu Luxemburgo em seu panfleto de 1918 sobre a Revolução Russa, “sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa, liberdade de expressão, liberdade de reunião, sem a livre batalha de opiniões, a vida em cada instituição pública murcha, torna-se uma caricatura de si mesma, e a burocracia surge como a única condição determinante”.

Luxemburgo compreendeu que a Comuna de Paris de 1871, a breve experiência de democracia radical à qual Marx e Engels se referiam como um verdadeiro governo da classe trabalhadora, tinha múltiplos partidos políticos em seu conselho municipal, dos quais apenas um estava afiliado à Associação Internacional de Trabalhadores de Marx.

Leais a esses valores, socialistas, comunistas dissidentes e sindicalistas independentes lideraram as rebeliões democráticas contra o governo comunista na Alemanha Oriental em 1953, na Hungria em 1956 e na Polônia em 1956, 1968 e 1980. Os socialistas democráticos lideraram também a breve, mas extraordinária experiência do “socialismo com uma face humana” sob o governo de Dubček na Tchecoslováquia em 1968. Todas estas rebeliões foram esmagadas por tanques soviéticos.

A queda da União Soviética, porém, não significou que a democracia venceu. Os socialistas rejeitam a alegação de que a democracia capitalista seja inteiramente democrática. Os ricos, na verdade, abandonaram seu comprometimento até mesmo com a democracia mais básica quando se sentiram ameaçados por movimentos de trabalhadores.

A análise de Marx, em O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, do apoio capitalista francês ao golpe de Napoleão III contra a Segunda República francesa, prenuncia friamente o apoio do capital, mais tarde, ao fascismo nos anos 1930. Em ambos os casos, uma pequena burguesia decadente, uma classe média acossada e as elites agrárias tradicionais ganharam o apoio dos capitalistas para frustrar a militância nascente da classe trabalhadora, derrubando governos democráticos.

Os regimes autoritários dos anos 1970 e 1980 na América Latina recorreram da mesma maneira a um apoio corporativo de natureza semelhante. Muito do prestígio da esquerda europeia do pós-guerra e da esquerda latino-americana de hoje deriva de serem as mais coerentes opositoras do fascismo.

Os movimentos socialistas e anticolonialistas do século 20 compreenderam que os objetivos democráticos revolucionários de igualdade, liberdade e fraternidade não poderiam ser realizados se o poder econômico desigual for transformado em poder político e se os trabalhadores forem dominados pelo capital. Os socialistas lutam pela democracia econômica a partir da crença democrática radical de que “o que atinge a todos deveria ser decidido por todos”.

O argumento capitalista de que a escolha individual no mercado é sinônimo de liberdade mascara a realidade de que o capitalismo é um sistema antidemocrático no qual a maioria das pessoas perde a maior parte da vida sendo “chefiada”. As corporações são formas de ditaduras hierárquicas, visto que aqueles que nelas trabalham não têm voz alguma em como produzem, o que produzem, e em como o lucro que geram será utilizado.

Os democratas radicais acreditam que a autoridade obrigatória (não somente a lei, mas também o poder de determinar a divisão de trabalho numa firma) será válida apenas se cada membro da instituição afetado por suas práticas tiver voz igual na tomada de decisões.

Democratizar uma economia complexa poderia tomar uma variedade de formas institucionais, estendendo-se desde a propriedade do trabalhador e as cooperativas até a propriedade estatal de instituições financeiras e monopólios naturais (tais como telecomunicações e energia) –bem como o regulamento internacional de padrões trabalhistas e ambientais.

A estrutura geral da economia seria determinada pela política democrática e não por burocratas do Estado. Mas permanece a pergunta: como passar além da oligarquia capitalista para a democracia socialista?

No final dos anos 1970, muitos socialistas democráticos reconheceram que a lucratividade corporativa foi pressionada pelos constrangimentos que os movimentos trabalhistas, feministas, ambientais e antirracistas dos anos 1960 causaram ao capital. Eles compreenderam que os capitalistas retaliariam através de mobilização política, terceirização e retenções de capital.

Assim, por toda a Europa, os socialistas fizeram pressão por reformas que visassem ganhar maior controle público sobre os investimentos. O movimento operário sueco abraçou o Plano Plano Meidner, um programa que tributaria lucros corporativos durante um período de 25 anos a fim de instituir a propriedade pública de grandes firmas. Uma coalizão socialista-comunista que elegeu François Miterrand à presidência da França, em 1981, nacionalizou 30% da indústria francesa e aumentou radicalmente a capacidade coletiva de barganha.

(O primeiro-ministro sueco Olof Palme com Fidel Castro em 1975)

(O primeiro-ministro sueco Olof Palme com Fidel Castro em 1975)

Em resposta, o capital francês e sueco abandonou os investimentos domésticos e investiu no exterior, criando uma recessão que deteve os passos promissores do país na direção do socialismo democrático. As políticas de Thatcher e Reagan, que resultaram em mais de 30 anos de retrocesso nos sindicatos e em cortes à rede de seguridade, confirmaram a predição da esquerda de que, ou os socialistas iriam além do estado de bem-estar social em direção ao controle democrático do capital, ou o poder capitalista iria fazer erodir as conquistas da social democracia do pós-guerra.

Hoje, socialistas em todo o mundo encaram o desafio desencorajador de como reconstruir o poder político da classe trabalhadora para que seja forte o bastante para derrotar o consenso, tanto dos conservadores quanto dos sociais-democratas da Terceira Via, em favor da austeridade ditada pelas corporações.

Mas e os vários governos no mundo em desenvolvimento que ainda se chamam socialistas, em particular estados de partido único? De muitas maneiras, os estados comunistas de partido único tinham mais em comum com estados autoritários capitalistas “desenvolvimentistas” do passado –tais como a Prússia e o Japão do fim do século 19, e a Coréia do Sul e Taiwan do pós-guerra– do que com a visão de mundo do socialismo democrático. Estes governos priorizavam a industrialização dirigida pelo estado ao invés de direitos democráticos, em particular aqueles de um movimento trabalhista independente.

Nem Marx nem o socialismo clássico europeu anteciparam que partidos socialistas revolucionários pudessem tão prontamente tomar o poder em sociedades autocráticas, predominantemente agrárias.

Em parte, estes partidos tinham origem numa classe trabalhadora nascente que se radicalizou pela exploração do capital estrangeiro. Mas, na China e na Rússia, os comunistas também chegaram ao poder porque a aristocracia e os comandantes militares fracassaram em defender o povo contra invasões –exércitos de camponeses derrotados queriam paz e terras.

A tradição marxista tinha pouco a dizer acerca de como sociedades pós-coloniais predominantemente agrárias poderiam se desenvolver de uma maneira equitativa e democrática. O que a história nos diz é que tentar forçar camponeses, aos quais recentemente foram dadas terras privadas por revolucionários comunistas, a voltar para fazendas coletivas estatais, resulta em guerras civis brutais que impedem o desenvolvimento econômico por décadas.

Reformas econômicas contemporâneas na China, Vietnã e Cuba favoreceram uma economia de mercado misto com um papel significativo ao capital estrangeiro e camponeses proprietários de terras. Mas as elites do partido único que instituem estas experiências de pluralismo econômico têm quase sempre reprimido os defensores do pluralismo político, das liberdades civis e dos direitos trabalhistas.

Apesar do contínuo assédio do estado, as crescentes lutas trabalhistas independentes em lugares como a China e o Vietnã talvez renovem o papel da classe trabalhadora na promoção da democracia. É a estes movimentos, não a governos autocráticos, que os socialistas dirigem sua solidariedade.

É claro que também existe uma rica história de experiências de socialismo democrático no mundo em desenvolvimento, que se estende desde o governo da Unidade Popular de Salvador Allende no Chile, nos anos 1970, até os primeiros anos de governo de Michael Manley na Jamaica, naquela mesma década.

A “maré vermelha” latino-americana na Bolívia, Venezuela, Equador e Brasil representa hoje experiências diversas de desenvolvimento democrático –embora suas políticas de governo dependam mais da redistribuição de ganhos de exportações de commodities do que da reestruturação das relações de poder econômico. Mas o governo dos EUA e os interesses capitalistas globais trabalham consistentemente para minar até mesmo estes modestos esforços de democracia econômica.

A CIA e a inteligência britânica derrubaram o governo democraticamente eleito de Mohammed Mossadegh no Irã em 1954, quando ele nacionalizou o petróleo britânico. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial cortaram crédito ao Chile, e a CIA participou ativamente do brutal golpe militar de Augusto Pinochet naquele país. Os EUA igualmente conspiraram com o FMI para exercer pressão sobre a economia jamaicana da era Manley.

A hostilidade capitalista até mesmo para com governos reformistas moderados no mundo em desenvolvimento não conhece quaisquer limites. Os EUA derrubaram pela força tanto o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala em 1954 como a presidência de Juan Bosch na República Dominicana em 1965 porque eles promoviam modestas reformas agrárias.

Para os estudantes de História, a questão não deveria ser se o socialismo leva necessariamente à ditadura, mas se um movimento socialista renovado pode superar a natureza oligárquica e antidemocrática do capitalismo.

*Joseph M. Schwartz é vice-presidente nacional dos Socialistas Democráticos da América e professor de Ciência Política na Temple University, na Filadélfia.

Reblogado do Socialista Morena