SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

TROPICÁLIA: 50 anos de um movimento estético e político que catalisa as confluências

TROPICÁLIA: 50 anos de um movimento estético e político que catalisa as confluências

“Como todo movimento explosivo”, opina Luiz Tatit (oficial), “o tropicalismo deixou estilhaços em diversos lugares da cultura brasileira e, à medida que o tempo passa, descobrem-se fragmentos que ainda fervilham e geram novos focos de criação de alguma forma tributários daquele final dos anos 60.”

Cerca de meio século depois de ser “abatida em pleno vôo pelo AI-5”, como diz Tárik de Souza, a Tropicália faz por merecer um destino de Fênix, renascendo das cinzas. A chama ainda ardente da Tropicália inspira a nós do Confluências: Festival de Artes Integradas a dar novos impulsos às práticas e valores da trupe que revolucionou estética e política no Brasil que então gemia sob os tanques e torturas que se seguiram ao golpe militar de 1964 e suas “tenebrosas transações”.

Acreditamos que a Tropicália, apesar de ser compreendida pelo senso comum como um movimento musical, transborda das fronteiras da música e expressa-se através de variadas linguagens artísticas, tendo intenções mais amplas do que uma mera inovação das formas musicais. A Tropicália propunha a renovação da vida através das confluências sem medo de elementos aparentemente díspares, mas que a trupe provou serem deliciosamente mescláveis. Propunha que fôssemos todos Os Mutantes, jamais estagnados.

Na capa do disco manifesto “Tropicalia ou Panis et Circenses” (ouça: https://youtu.be/KIiwbHqtb7w), é explícita a confluência entre a cultura popular (de que Tom Zé e Gilberto Gil eram tão inventivos representantes) e a cultura mais erudita (ali representada pelo maestro Rogério Duprat, que parece tomar chá em um penico que remete à obra de MARCEL DUCHAMP). Ali também está clara a confluência entre a literatura e a música, com a presença do poeta e jornalista Torquato Neto (também um dos mais brilhantes letristas de nossa MPB) e do poeta José Carlos Capinam (representado em fotografia emoldurada que seu parceiro Gil carrega como porta-estandarte).

As confluências não param de proliferar na história da constituição da Tropicália: o nome do movimento vem do ramo das artes plásticas, era o nome de batismo de uma instalação bolada em 1967 por Hélio Oiticica, o célebre inventor dos parangolés e divulgador de motes vanguardistas como “incorporo a revolta” e “seja marginal, seja herói”.

Parangolé de Oiticica

Caetano e Nara na companhia dos Beatles (faltou cola e Paul McCartney ficou fora da parede…)

Quando Caetano Veloso criar a canção “Tropicália”, fará isto não só sob a influência de Hélio Oiticica e seus parangolés, mas tremendamente impactado também pelo cinema de Glauber Rocha – que havia realizado, aos 23 anos de idade, a obra-prima “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, e que na época de eclosão tropicalista havia lançado ao mundo seu desnorteante “Terra em Transe”. Pouco tempo depois de finalizar a composição da música, relembra Caetano, ele foi assistir a outro fenômeno descomunal da cultura brasileira da época: “O Rei da Vela”, peça de Oswald de Andrade encenada pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona de Zé Celso Martinez Corrêa.

A devoração antropofágica da diversidade cultural é um dos motes dos artistas Tropicalistas que, segundo Celso Favaretto em seu livro “Tropicália: Alegoria Alegria”, “retém do primitivismo antropofágico a concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses” (pg. 57).

No livro Antropofagia e Tropicalismo, publicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que me foi recomendado pela Salma Jô e pelo Macloys do Carne Doce, o artigo inaugural de Bina Friedman relembra que o próprio movimento antropofágico já era pura confluência. Confluências múltiplas entre Oswald e Tarsila, por exemplo, por razões tanto óbvias – a transa sexual-criativa do casal – quanto outras menos evidentes – entre o Manifesto Antropófago e o Abaporu (1928):

“Inspirado no quadro de Tarsila do Amaral – que aliás teria detonado a idéia do Manifesto Antropófago e que a artista reproduziu em bico de pena para ilustrar o primeiro número da Revista de Antropofagia, Oswald funda, cunha, teoriza e consagra na literatura modernista o tema e o tratamento da Antropofagia. (…) A devoração do bispo Sardinha, aproveitada por Oswald como metáfora, propõe, em irreverência e ironia, um novo calendário nacional: a história brasileira deveria iniciar a partir de uma data que sugeria uma reação dessacralizante com o poder… O episódio do bispo Sardinha é marotamente aproveitado por Oswald como data do Manifesto Antropófago (“Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”). Devorado em 1554 por índios antropófagos quando o navio em que viajava naufragou na costa brasileira, o Bispo Sardinha do texto alude ironicamente à história do Brasil Colônia. O Manifesto rende, com o chiste, uma ‘homenagem’ carnavalizada a todos que, na pessoa do bispo, deveriam ser comidos.” (FRIEDMAN: 1993, p. 9, 10)

Bebendo na fonte da utopia antropofágica oswaldiana, do Cinema Novo, do dionisismo teatral do Oficina, da Poesia Concreta, da “geléia geral brasileira” de que falou Décio Pignatari, a Tropicália explode em 1967 no cenário artístico como algo que chuta para escanteio a mesmice, a caretice e a zona de conforto. Bagunça com a polarização entre Jovem Guarda e MPB, subverte os códigos transformados em clichê que caracterizaram seja o iê-iê-iê, seja a canção-de-protesto engajada.

Muitos dos episódios lendários desta empreitada estão descritos por Carlos Calado em seu Tropicália – A História de Uma Revolução Musical (Editora 34). O mesmo autor, pela mesma editora, também publicou o seminal estudo biográfico sobre Os Mutantes – A Divina Comédia dos Mutantes. 

Frederico Coelho tem um excelente livro que nos ajuda a expandir os horizontes sobre o tal do Tropicalismo (termo cunhado pelo jornalista cariosa Nelson Motta): “Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado – Cultura Marginal no Brasil das Décadas de 1960 e 1970” (Civilização Brasileira & Paz e Terra, 2010, 335 pgs). Nele, Coelho defende que, a partir de 1967, o “movimento apresentou posturas e práticas que liberavam o artista e o intelectual do compromisso de obrigatoriamente relacionar sua obra a uma ‘cultura nacional’ ou a um ‘povo’. Suas ações abalaram a crença necessária desses segmentos no nacional-desenvolvimentismo de esquerda e colocaram em xeque seu temor xenófobo do ‘imperialismo estrangeiro’, assumindo uma nova forma de inserção desses agentes no mercado de bens culturais” (p. 111).

Embora a música popular brasileira seja o “epicentro” de eclosão do tropicalismo, Coelho argumenta que o tropicalismo foi “um movimento cultural mais amplo e diretamente conectado à emergência, pós AI-5, do que chama de marginália, que aproveita-se de aberturas e rupturas estabelecidas pelos artistas durante a breve aventura da Tropicália. “Mais do que um movimento musical, o tropicalismo representou um novo elemento em um espaço de ação que já estava ficando imobilizado pela díade engajados / alienados.” (p. 112) Abrindo espaços para a renovação da cultura brasileira, Tropicália e Marginália transbordam de qualquer caixa de categorização de diversos setores artísticos: Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Torquato Neto, todos eles são artistas do híbrido, da mescla, da confluência entre vertentes, sempre “desafinando o coro dos contentes” (para lembrar verso inolvidável de Torquato, musicado por Jards Macalé em “Let’s Play That”).

Se em 1967 a Tropicália pôde explodir no cenário através da exuberância de “Alegria, Alegria” ou de “Domingo no Parque”, em 1968 a situação torna-se mais escura, tensa, violenta. Glauber filma Câncer enquanto a barra pesada do aprisionamento, da tortura e do exílio se abate sobre boa parte dos artistas mais relevantes do país. A mordaça do regime de exceção instalado através da violência militar truculenta busca abater em pleno vôo a ave demasiado águia da Tropicália. É preciso calar a ferro e fogo esses arruaceiros que dizem seja marginal, seja herói e celebram heróis perigosos como Ernesto Che Guevara ou Carlos Marighella.

“Temas como banditismo, armas de fogo, enfrentamentos armados entre policiais e estudantes, desagregação de valores da classe média brasileira, grupos marginalizados da sociedade, entre outros, passam a fazer parte do universo temático das canções tropicalistas a partir da segunda metade de 1968. Canções como “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso), “Divino Maravilhoso” (Caetano e Gilberto Gil), “É Proibido Proibir” (Caetano), “Marginália II” (Torquato e Gil) ou “Deus vos salve esta casa santa” (Torquato e Caetano) eram emblemáticas para esse momento de radicalização. São canções que tratam de ‘bombas’ e de ‘botas’, de não ter tempo para ‘temer a morte’, das pichações dos jovens de maio de 1968 em Paris, de ‘pânico e glória’ e de ‘laço e cadeia’.” (COELHO, p. 116)


Levando adiante os ideais tropicalistas que convidam à miscigenação, ao hibridismo, à mistura de linguagens e à proliferação de pontos-de-vista, organizamos a Mostra Audiovisual em homenagem aos 50 Anos da Tropicália e disponibilizaremos vários dos livros importantes na decifração desta jornada.

Nesta 5ª edição do Confluências, na medida do possível, cientes da limitação espaço-temporal de um evento de apenas dia – autêntico “Domingo no Parque” (que, de preferência, termine sem crime de sangue!) – queremos contribuir para colocar mais lenha na fogueira dos debates públicos sobre a importância da Tropicália na história, no presente e no futuro da Cultura brasileira.



Mostra audiovisual celebrando os 50 anos da Tropicalia ou Panis et Circencis: assista documentários e filmes de ficção lendários:

► [14h às 15h30] “Meteorango Kid: O Herói Intergalático” (1969), de André Luiz Oliveira;

► [15h45 às 17h15] “Uma Noite em 67” (2010, 95 min), de Renato Terra e Ricardo Calil, dentre outros.

► [17h30 às 19h] “Tropicália” (2012, 87 min.), de Marcelo Machado;

► [19h15 às 20h30] “Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!” (2011, 76 min), de Ninho Moraes e Francisco Cesar Filho



LIVROS TROPICALISTAS – SELEÇÃO ESPECIAL


* Feirão de livros da Livraria A Casa de Vidro, em especial obras focadas nas Artes – cinema, música, teatro, além de biografias de grandes artistas e personalidades culturais. Selecionamos também um punhado de excelentes livros, que estarão à venda durante o evento, que estão entre as mais importantes obras já escritas no Brasil sobre o tema, tais como:

► “Tropicália: Alegoria Alegria”, de Celso Favaretto

► “Brutalidade Jardim”, de Christopher Dunn

► “Tropicália: A História de uma Revolução Musical”, de Carlos Calado

► “Torquatália: Geléia Geral”, de Torquato Neto

► “Hélio Oiticica: A Asa Branca do Êxtase”, de Gonzalo Aguilar

► “A Biografia de Torquato Neto”, de Toninho Vaz

► “Oiticica: Qual É O Parangolé?”, de Waly Salomão

Dentre outros!

* * * * *

SE LIGUE: CONFLUÊNCIAS #5: TROPICALIÊNCIAS
DOMINGO, 24 de Setembro de 2017, a partir das 14h.
Na Trip – Música e Artes: Rua 115e, Setor Sul, Goiânia.
Ingressos: R$5 até às 17h, R$10 reais a partir das 17h.

PROGRAMAÇÃO COMPLETA E OUTRAS INFORMAÇÕES: https://acasadevidro.com/2017/09/20/confluencias-festival-de-artes-integradas-5a-edicao-24-de-setembro-na-trip-em-goiania/

DISCOS ESSENCIAIS NA HISTÓRIA DA TROPICÁLIA

SIGA: CONFLUÊNCIASA CASA DE VIDRO