Artista popular genial, Gilberto Gil revolucionou o Ministério da Cultura com o “do-in antropológico” || A Casa de Vidro

Roma, julho de 2003: o Ministro da Cultura e artista popular Gilberto Gil manifesta-se diante de vários personalidades políticas européias: “a cultura não pode ser excludente, deve ser entendida como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem todos os atos criativos de um povo.”

Criticando todo tipo de imobilismo ou conservadorismo que quisesse manter a cultura em estado de rigor mortis ou de estátua, o genial artista tropicalista, no início de sua trajetória enquanto ministro do presidente Lula, afirmava que esta “constelação dinâmica” de “todos os atos criativos de um povo” deveria estar no foco do agente público que tem por função e ofício estimular a florescência de uma multidiversa criatividade popular.

Para melhor explicar quais as funções que concebe para o poder público na área cultural, Gil evocava a técnica de massagem de origem oriental, o do-in: “É preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país.” (GIL, O Chamado de Roma, pg 215)

Tal concepção – objeto de estudo pormenorizado na tese de Ariel Nunes: Por um “Do-In Antropológico”: Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Políticas Públicas Culturais (UFG, 2012) – reflete toda a amplidão da sabedoria de Gilberto Gil: ao invés de fechar-se em paradigmas ocidentais e eurocêntricos, ele abriu-se para sabedorias ancestrais vindas do Oriente, concebendo uma renovação da cultura brasileira  a partir deste do-in antropológico, uma espécie de acupuntura cultural, em que cada um dos pontos-de-cultura no território nacional constituiriam uma teia solidária numa mega-organismo criativo, a ter suas atividades de colaboração produtiva na construção conjunta de uma realidade alternativa estimulada pelo MinC.

Ou seja, Gil quis, na prática, auxiliar a insurgência de nossa nação contra os epistemicídios, como diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O recurso à metáfora da massagem oriental do-in já explicita que Gil quer ir além do discurso hegemônico eurocêntrico, etnocêntrico ou norte-americanizado, em busca da valorização de epistemes e práticas que foram injustamente colocadas à margem – sobretudo as africanas e as orientais. Oriente-se, rapaz! E acorde para todos os Eldorados negros!


Em seu belíssimo livro A Poética e a Política do Corpo em Gilberto Gil (Perspectiva, 2012), a estudiosa Cássia Lopes sintetizou o marco histórico que representou a ascensão de Gil ao ministério:

“Em seu discurso de posse como Ministro da Cultura, Gil propõe um entendimento da noção de cultura que abala as hierarquias consolidadas pela eleição do saber erudito e acadêmico. Abre-se o campo político para ouvir o traçado de uma epistemologia crítica no modo de assimilar o processo cultural: exige-se o diálogo com outras formas de conhecimento, que venham pôr em colapso a perspectiva monolítica do conceito de cultura, ainda colonialista, mantido na valorização da prática letrada. A assunção de Gilberto Gil como ministro permite refletir sobre o exercício epistemológico dominante que silenciou tantas vozes e muitos ritmos, para desqualificar, ou mesmo negar, diferentes formas artísticas e culturais no Brasil e em várias partes do mapa mundial. (…) É indispensável interpretar a ascensão política do cantor popular com lentes atentas a mecanismos que venham validar a multiplicidade de diferentes saberes que compõem o tecido social brasileiro. Em seu discurso, podem-se entrever a exaustão do modelo epistemológico norte-eurocêntrico, cuja prática ratificou representações, sustentou a tradição crítica etnocêntrica, consolidou a ausência de países, de comunidades, de tantos saberes e de rostos nas tomadas de decisões políticas, sem o necessário compartilhamento do poder.” (LOPES, C; 2012, pg. 207 – 208)

Cássia Lopes aponta ainda que Gil busca colaborar para a emergência de uma “consciência bailarina”, em contraste com a consciência petrificada em conceitos rígidos e ortodoxias limitadoras do movimento. Esta consciência que dança, “tal como exercitada pelo ministro e artista, capta o mundo a partir da percepção de suas ondulações, da transformação que pode emergir nos encontros e nas fronteiras interculturais, sem fazer da corporeidade uma serva da razão. De acordo com os versos do cantor, se há um deus eterno, ele se traduz na dinâmica da “Mu-dança”, que reintegra a interioridade e a exterioridade nos movimentos entre o sujeito e o seu campo de atuação na sociedade. O corpo dançarino desenha o social e o político como um campo dinâmico e mutável, capaz de produzir outras partituras de sociabilidade.” (CÁSSIA LOPES, p. 188)

A Casa de Vidro, ao aventurar-se aos trabalhos como ponto de cultura no ano de 2019, apostou na necessidade crucial de manter viva e acesa a chama do do-in antropológico e da teia da Cultura Viva. Nós, agentes culturais que estudamos a fundo as políticas culturais propulsionadas pelo Governo Lula, sabemos que há ali um precioso legado a ser defendido e reativado, posto de novo em ação, em reXistência ativa diante da barbárie estupidificante do bolsonarismo.

O (des)governo Bozofascista, assim que ascendeu ao poder em 2019, decretou a extinção do Ministério da Cultura e tratou com imenso desdém todos os avanços ocasionados pelas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC. A seita Bolsonarista perpetrou, além da obscena destruição do MinC, e da submissão da secretaria de cultura ao Ministério da Família chefiado pela pastora obscurantista Damares Alves, teve ainda alguns episódios lamentáveis como o cosplay de Goebbels de Alvim e a apologia dos anos-de-chumbo da Ditadura no “sejam leves” de Regina Duarte (cantarolando a canção “Pra Frente Brasil”, destinada a alienar nosso povo enquanto a tortura e os assassinatos políticos seguidos de desaparecimento de cadáveres eram práticas correntes do Terrorismo de Estado inaugurado pelo Golpe de 1964 e aprofundado pelo AI-5 de Dezembro de 1968).

Aproveitamos a ocasião para mais uma vez recomendar ao conhecimento de todos o livro digital e ilustrado “Encontros no Encontro: Participação Social da Rede Nacional de Pontos de Cultura”, co-escrito por mim (Eduardo Carli de Moraes) e meu colega Rafael Moreira do Carmo, ambos professores do IFG (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), sob a coordenação do Vinicíus Ferreira (PROEX – Pró-Reitoria de Extensão e Cultura), com colaboração de Maíra Soares Ferreira.

A publicação disponível gratuitamente – um livro gráfico colorido, repleta de lindas fotos e diagramada com primor – busca revelar em minúcias o que ocorreu em 2015, durante o XV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, uma realização da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Naquela ocasião, ocorreu ali a reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, com representantes de todo o Brasil reunidos para pensar as potencialidades e os obstáculos no contexto do programa Cultura Viva.

O conceito chave e fio condutor do livro é a participação social, de modo que buscamos dar voz a muitos dos ponteiros, artistas, produtores culturais, jornalistas, ativistas, agentes comunitários, dentre outros, que participaram desta Polifonia Participativa dentro do “Encontrão”. No manifesto gerado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, nesta ocasião – a Carta de São Jorge – os trabalhadores da cultura escreveram:

“A Política Nacional Cultura Viva (Lei n. 13.018/2014) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Essa política é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos os governos federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a exercer protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização.” – Carta de São Jorge


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