Conheça o thriller distópico “Soylent Green: À Beira do Fim” (1973), que representa NYC na década de 2020

por Eduardo Carli para A Casa de Vidro

Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Greendirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).

Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!, Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.

Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”:  o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.

A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.

Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.

Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.

O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.

Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).

Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.

In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)

No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.

O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…

O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”

O artigo excelente de Maria Ramos em Bitch Flicks destaca muito bem os elementos de crítica do sexismo / machismo que a obra traz:

Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”

Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.

Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.

Supostamente fabricados a partir de planktonsos alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.

Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal. 

Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news marketing. 

Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.

O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em ParasitaO Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.

Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)

É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.

O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.

A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.

Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.

Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.

O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.

SOYLENT GREEN

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 19/04/2020
http://www.acasadevidro.com

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No filme “Kursk”, a tragédia submarina filmada por Thomas Vinterberg ilustra o conceito existencialista de “situação-limite” (Karl Jaspers)

“No one has forever… but I wanted more.”
Uma das frases na última carta antes da morte
escrita por um marinheiro no Kursk

A ninguém é concedida a eternidade. Esta verdade que soa banal – ou seja, o fato que qualquer um de nós é mortal e nunca ninguém terá um tempo infinito para viver – é diferencialmente apreendida em vários pontos do nosso fluxo de vida.

Na infância e primeira juventude, podemos ter a ilusão da imortalidade advinda da falta de experiência da morte alheia ou de vivência prévia de ameaça grave contra nossa vida própria. Mas é só um cachorro ser atropelado e morrer diante dos olhos da criança, ou o jovem ter que acompanhar a agonia senil de uma avó ou um bisavô, para que comece a raiar – frequentemente de forma traumática – a consciência da mortalidade.

Baseado no livro A Time To Die, de Robert Moore, e roteirizado por Robert Rodat (o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan), o novo filme de Vinterberg tranforma o submarino naufragado Kursk numa espécie de palco trágico para encenar a Situação-limite daqueles marinheiros.

Situações-limite, segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883 – 1969), são como “paredes com as quais nos deparamos, uma parede em que batemos e fracassamos.” (JASPERS, 1932, vol. 2, pg. 178) Situação-limite é aquela que o filme se interessa em capturar, através de uma narrativa fílmica potente e impiedosa: obrigados a encarar o fracasso, batendo os crânios contra as paredes da necessidade, sentindo na língua o sabor amargo da morte precoce, eles estão levados aos limites da condição humana e aos confins extremos do nosso sofrimento.

Confinados no fundo do mar, tremendo com o frio do Ártico, rodeados pela água que avança por todos os lados a ponto de molhar até os ossos, contemplam na cara o corte da foice iminente. A monstra invisível já afia suas lâminas para terminar de ceifar todas aquelas vidas naufragadas no nada.

Filósofo Karl Jaspers no seu lar em Basel, 1956

Em “Kursk”, filme que desembarcou nos cinemas do Brasil no início de 2020, aparentemente Vinterberg aderiu ao gênero do filme-catástrofe – já repleto de blockbusters sobre tragédias marítimas. Mas seu tom é muito mais próximo a do o clássico esplendoso Moby Dick, em que John Huston adaptou, na companhia de Ray Bradbury, o romance épico de Herman Melville em um dos grandes filmes da história da sétima arte.

Em Kursk, não há baleia em guerra contra Ahab, causando muitos rolês cheios de desventuras e que trituram toda a tripulação do Pequod, mas há sim a batalha humana contra “monstros de nossa própria criação” (como cantava Renato Russo em “Será” da Legião). Estes monstros que criamos – os submarinos bélicos lotados de torpedos e movidos a energia nuclear, por exemplo, e que podem acabar nos devorando.

Kursk é uma espécie de Titanic de teor existencialista, em que o complexo afetivo Vinterberguiano é radicalmente distinto daquele que anima o filme – melodramático e grandiloquente – do papa-bilheterias James Cameron. O filme de VInterberg se baseia em fatos reais: a catástrofe no submarino nuclear russo Kursk, em 2000, no mar de Barents, ao norte da Noruega, com 118 mortos. O submarino tinha sido batizado em homenagem a uma batalha épica da 2ª Guerra Mundial entre alemães e soviéticos.

Esse evento histórico que o filme evoca serve como ocasião para que uma poderosa narrativa fílmica nos leve a acompanhar a agonia claustrofóbica de marinheiros colocados diante da iminência da morte: “No one has forever, but I wanted more”, escreve o protagonista à sua esposa em sua carta de despedida. Um clima de Eclesiastes pulsa nesta frase que faz lembrar ditos como “ninguém é senhor do dia da própria morte, e nessa guerra não há trégua.”
Bíblia (Eclesiastes, 8-8)
Este “eu queria mais” também é prova de que o conatus pulsa mesmo em meio à agonia. Uma sabedoria que só ensinam as situações-limite?

O que é extremamente interessante nesta situação-limite em que o filme nos imerge é uma espécie de proliferação social da angústia extrema daqueles sobreviventes que no submarino, esperam por resgate enquanto agem desesperadamente para se manterem vivos. A angústia prolifera, é evidente, sobretudo sobre os parentes, que na cidade portuária preocupam-se desde as vísceras com os destinos de seus pais, de seus maridos, de seus irmãos, de seus primos. A angústia também prolifera para a hierarquia de comando da Marinha, obrigada, pela situação-limite, a tomar decisões urgentes.

O filme pode ser estudado em faculdades e cursos de relações internacionais pelo retrato realista que faz das dificultosas relações entre os russos e os britânicos – estes, com equipamento de resgate mais avançado, poderiam ter salvado a parcela dos marinheiros que sobreviveram à explosão. Não é nada louvável o retrato que se faz das autoridades russas, que teriam perdido o kairós (o momento propício) em que suas decisões poderiam ter salvado vidas, e isto em decorrência de uma reticência em admitir o despreparo tecnológico para lidar com aquela emergência.

No entanto, creio que é preciso ter uma boa dose de desconfiança em relação à crítica cinematográfica que instrumentaliza o filme para tacar pedras nos russos, ignorando os aspectos de tragicidade que esta situação-limite envolve. Isabela Boskov, da revista Veja, em uma resenha tão rasa que ocupa apenas um parágrafo, apedreja os russos com esta frase peremptória:

“Quase uma década após o fim da União Soviética, a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença: em 12 de agosto de 2000, quando o supersubmarino nuclear Kursk sofreu uma explosão e afundou no Mar de Barents, o governo preferiu proteger seus segredos militares a dar uma chance real de resgate aos sobreviventes aprisionados na embarcação.” (BOSCOV, Veja, 2020)

O comentário de Boscov comete uma injustiça elementar: atribui à “Rússia” um equívoco de agentes públicos da Marinha deste país, num caso de generalização em que o tom condenatório parece querer abarcar todo um país (“a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença”). Não se confunde o Estado e a população de um território; não se taca pedras na Rússia como um todo, quando os culpabilizáveis por decisões errôneas são funcionários públicos de uma entre centenas de outras instituições públicas deste Estado-nação.

O próprio filme é repleto de tensões entre os familiares dos marinheiros do Kursk e as autoridades militares e políticas responsáveis pela gestão da crise, mostrando que, se houve negligência ou indiferença pela vida humana, com os segredos de Estado sendo colocados acima da abertura imediata à colaboração internacional que poderia ter salvado algumas vidas, de modo algum se pode atribuir à “crueldade russa” (como faz Boscov em sua frase desastrada). A crueldade, caso fosse atribuída a alguns personagens, que se mostraram um tanto frios e indiferentes diante dos horríveis momentos de agonia dos marinheiros, incapazes de se colocarem na pele dos que estavam confinados naquela submarina infernaria, poderia até ser um juízo moral defensável. O que não é defensável é a atitude de Veja de veicular a ideia, em manchete sensacionalista, de que o filme fala sobre “a crueldade dos russos em meio a uma tragédia”.

É o tipo de resenha que, além de não contribuir em nada para uma apreciação mais aprofundada e nuançada da obra-de-arte, como é uma das funções do crítico, presta à produção encabeçada por Vinterberg o desserviço de atribuir a ele um intento difamatório contra toda a Rússia que não está no cineasta, mas sim na articulista da revista.

Fotografia do submarino russo Kursk – O Globo

Para explicar mais a fundo o que quero dizer, sublinho que uma das melhores cenas do filme é aquela em que o menino, após o funeral de seu pai, tem a mão a ele estendida por uma alta autoridade de hierarquia da Marinha (interpretado por Max Von Sydow) e recusa o cumprimento. Este russinho, recusando a vênia a este russão, já é prova inconteste da falácia absurda da generalização realizada por Boskov. Trata-se de um ato de desobediência civil que logo prolifera e é imitado por todos os outros órfãos que se perfilavam, no enterro de seus entes queridos, para receber os pêsames da parte daquele oficial que tinha fracassado em resgatá-los e trazê-los de volta com vida.

Lembrei-me na hora de uma das melhores cenas de The Handmaid’s Tale, episódio 10 da primeira temporada, em que a desobediência civil também é ilustrada quando as mulheres recusam-se a apedrejar uma outra mulher, a mando da mandona xerifa Tia Lydia. Pequenos gestos, grandes significados.

Além do significativo gesto de desobediência civil que o menino realiza diante do velho comandante, demonstrando uma revolta silenciosa diante da instituição que fracassou em salvar vidas resgatáveis naquela difícil situação-limite, o filme também dá o que pensar sobre o tema do sacrifício. Pouco depois da explosão, temos o exemplo de marinheiros dispostos a sacrificar seus últimos alentos e derramar suas últimas gotas de suor para evitar o que se chama, no filme, de “uma nova Chernobyl”. O filme de Vinterberg nos convida a pensar numa certa formação prévia que gerou nos marinheiros uma atitude de aceitação do sacrifício por um bem maior, ou pelo menos pela evitação de um mal pior.

 Em situações-limite, o apego tradicional do indivíduo por sua existência pode ser transcendido por um ímpeto de utilização produtiva de uma vida em iminência de acabar em prol do bem-estar de outros. Ou seja, a morte iminente não necessariamente instala um clima de egoísmo total, abjeto, brutal, mas abre a possibilidade também de atos de um heroísmo extremado, nos limites das capacidades físicas do organismo humano – como naquela cena em que os dois nadadores mergulham nas águas de frio ártico para irem resgatar os cartuchos de oxigênio que permitirão a sobrevida daquela pequena comunidade de desesperados e ofegantes sobreviventes temporários de uma catástrofe gigante.

A reflexão pós-filme que me domina é esta: quase sempre a morte vem nos pegar quando queríamos um tempo a mais para sorver a vida, por pior que ela seja. Aquele submarino serve de palco para o drama trágico da resiliência humana – e despontam ali momentos de intenso companheirismo. Mesmo que seja no singelo gesto de emprestar uma caneta ao companheiro que quer rabiscar suas últimas palavras antes de morrer. Seja no gesto heróico de não abandonar o companheiro desmaiado no mergulho e içá-lo a um patamar onde o ar seja respirável.

Até mesmo o humor se ergue na cara da morte – como a piada do ursinho polar mostra. Aqueles caras, tiritando com o gélido frio daquelas águas extremadamente geladas, aquecem-se por dentro com a graça do ursinho polar perguntando pra mãe: “se você é uma ursa polar, e meu pai também, e sou filho de vocês, isso faz de mim um ursinho polar, não? Então por que caralho estou com tanto frio?”O humor também desponta na última refeição – comida com tragos generosos da última garrafa de vodka -, onde sentir o bafo da bocarra aberta da morte já perto de nos devorar não consegue impedir o riso. É bela esta última gargalhada bêbada dos condenados. A situação-limite pode ter como consequência, se conseguirmos, um estouro de riso. Nosso fracasso é tão hilário, nossa espécie tão estúpida, nossa cooperação tão falha, nossas tecnologias tão traiçoeiras! É rir pra não chorar….

Thomas Vinterberg, o cineasta dinamarquês que iniciou o movimento estético Dogma 95 na companhia de Lars Von Trier nos anos 1990, nunca teve medo de frustrar as expectativas de uma platéia fissurada no happy end hollywoodiano (similarmente, Michael Haneke dedica-se a triturar nossas vontades de filmes leves, agradáveis e conformistas, crowd-pleasers de gostosa alienação industrializada).

Aqueles que acompanham a obra de Vinterberg já se acostumaram a esperar dele finais infelizes – que nos impactam justamente por um certo tom trágico, desesperançado. Assistir a “Submarino”, “A Caça”, “A Comunidade”, “Dear Wendy”, “Far From The Madding Crowd”, dentre outros de seus filmes, é expor-se a um artista disposto a realizar, através do cinema, um processo de provocação existencial que sacuda a apatia e a normose do espectador, fazendo-o considerar a vida através do viés meio dark, repleto de humor negro, que é uma das marcas do olhar Vinterberguiano. Se estivesse vivo, talvez o grande filósofo romeno Emil Cioran teria em Vinterberg um de seus cineastas contemporânos prediletos.

A Jasperiana situação-limite do Kursk, que envolve todos os personagens numa trama sinistra de decisões difíceis diante de mortes evitáveis, revela muito sobre a condição humana: a personagem de Léa Seydoux (que neste filme está loura e não com os cachos azuis que usou em Azul É a Cor Mais Quente, de Kechiche) é emblema das cicatrizes que os “fracassos” ocasionados pela confrontação insuficiente das situações-limite acarreta. As lágrimas que Vinterberg nos obriga a assistir caindo dos olhos desta mulher que acaba de enviuvar, com um filho pequeno para criar e um outro filho em gestação em seu ventre, é bem mais que melodrama apelativo. São lágrimas que nos convidam à reflexão sobre a precariedade, a fragilidade, o caráter radicalmente destrutível de nossas vidas e, portanto, de nossos laços afetivos. A resiliência do amor em face da catástrofe triunfal é um dos encantos maiores que reluz, como um Nabokoviano fogo pálido, na escuridão deste luto coletivo enquanto o filme se encerra.

O clima afetivo que domina Kursk, afinal de contas, é mesmo o que eu chamaria de uma vibe death-conscious, um sentimento de ciência da mortalidade, muito marcante em vários pensadores e artistas identificados com o existencialismo, e que o Nabokov sintetiza, recuperando a percepção de Lucrécio sobre os dois vazios – antes-de-nascer e depois-de-morrer – que estão nos extremos de uma vida humana: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.” (NABOKOV)

Vladimir Nabokov

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/01/2020

LINKS SUGERIDOS – SAIBA MAIS:

Assembléia Legislativa de Goiás, em comemoração ao Dia Mundial do Cinema, homenageia 57 cineastas goianos

O CINEMA NÃO SE CALARÁ

por Eduardo Carli de Moraes

Talvez seja em tempos tão obscuros como os nossos que o Cinema seja capaz de acender suas tochas para que brilhem com uma luz ainda mais refulgente em meio à escuridão reinante. De um lado, o desgoverno neofascista e obscurantista de Bolsonaro impôs duros golpes a todo o campo da cultura, impondo a extinção do MinC (saiba mais em Brasil de Fato) e tentando de instalar “filtros ideológicos” que fedem a Censura em órgãos como a Ancine (como noticiado por Jornal GGN).

Por outro lado vivemos tempos gloriosos na sétima arte com a consagração do cinema brasileiro em nosso território e também no exterior. Filmes como Bacurau, A Vida Invisível, Espero Tua (Re)Volta e Marighella entram para a história do Cinema do globo terrestre neste 2019. Um ano em que no Brasil a governança neoliberal-fascista prosseguiu suas truculentas “guerras morais”, como diz Eliane Brum, mirando também na produção cultural estigmatizada por eles como “esquerdista” ou “subversiva”.

O Bolsonarismo quer de fato uma monocultura totalitária que os pluridiversos Brasis jamais vão aceitar. Pois assim como não é possível enfiar o Oceano dentro de uma garrafa de vidro, as vozes da diversidade que pulsa no Brasil não serão silenciadas e afastaremos de nossos lábios todos os cálices venenosos ofertados pelos novos censores.

Apesar de ainda não oficializada como política de Estado, a Censura já está entre nós (e ninguém vai conseguir assistir a Marighella no Dia da Consciência Negra – e alguém crê de fato que isso se deve a meros problemas com a tramitação burocrática do filme dirigido por Wagner Moura?). Cálices amargos de “calem-se!”, impostos pelo desgoverno neofascista, são forçados goela abaixo de “peças, filmes e mostras” (como mostra a reportagem da BBC).

A liberdade expressiva das artes no Brasil atual sofre com a tentativa de silenciamento e subfinanciamento de tudo que cheire à “subversão esquerdista” aos narizes dos novos censores da extrema-direita tanatopolítica, miliciana e altericida. Um painel do drama foi publicado na Folha de S. Paulo: No STF, Caetano e outros artistas dizem que governo criou nova forma de censura –  “Guimarães Rosa não poderia desenvolver a maior obra-prima brasileira se dependesse do governo de hoje”, disse Caio Blat.

Nesta conjuntura, é significativo e louvável que a Assembléia Legislativa de Goiás (ALEGO), em atitude inédita na história da Casa, tenha realizado uma sessão especial dedicada ao reconhecimento de alguns trabalhadores do audiovisual que vem desenvolvendo trabalhos significativos em solo goiano. A iniciativa partiu do mandato de Adriana Accorsi, deputada estadual do PT – Partido dos Trabalhadores, que “em seu discurso de homenagem a cineastas criticou a postura do Governo Federal em relação à categoria”:

– Em mais uma ofensiva contra a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) decidiu atacar a principal fonte de fomento de produções audiovisuais no País. Recentemente, encaminhou ao Poder Legislativo um projeto de lei que prevê para 2020 um corte de quase 43% do orçamento do fundo setorial do audiovisual, reduzindo-o para R$ 415,3 milhões. É a menor dotação nominal para o fundo desde 2012.

Accorsi, na sessão especial que homenageou 57 trabalhadores do cinema em Goiás, louvou os artistas e produtores culturais que a ALEGO reconheceu e valorizou:

– É uma honra prestar homenagem a diversos cineastas, produtoras goianas e produtores goianos. São mulheres e homens, profissionais talentosos que desempenham sua função com grande maestria e perfeição. Produzem belas obras, as quais têm o poder de nos proporcionar o sentimento de diversas emoções, entreter, alegrar, refletir e despertar uma consciência crítica sobre os mais diversos temas. (Adriana Accorsi)

A cerimônia na ALEGO aconteceu um dia depois da prova do ENEM que teve como tema A Democratização do Acesso ao Cinema no Brasil. Diante disso, o diretor, roteirista e produtor audiovisual Cristiano de Oliveira Sousa provocou: “Como chamar milhões de jovens a pensar a democratização do acesso ao cinema se já estamos vivendo uma época de censura velada neste país?”, questionou. “Centenas de projetos no Estado são excluídos sem resposta, na forma de uma censura velada. Pessoas que passam pelos processos legais e burocráticos estão sendo deixadas de lado sem explicações e motivos. Não queria defender o obvio aqui, mas passamos por tempos escuros e malcheirosos, que deveriam ter sido excluídos da nossa história.”

Os 57 produtores cinematográficos condecorados com o certificado do mérito legislativo foram: Aldene José, Alice de Fatima Muniz, Almir Pereira de Amorim, André Luiz Machado, Ângelo Lima, Boanerges Filho, Carmelita Gomes, Cirlene Pereira de Jesus, Cristiano de Oliveira Sousa, Danilo Milhomem Kamenach, Daya Laryssa, Déborah Tomaselli, Diogo Diniz, Dustan Oeven, Edson Barbosa, Edson Luís de Almeida, Eduardo Carli de Moraes, Ellen Stephany, Erick Eli, Eudaldo Guimaraes, Fabiana Assis, Francisco Lillo, Hugo Batista da Luz, Isaac Brum, Itamar Borges, Itamar Gonçalves, Jacob Alexandrino, Júlio Motta, Kassio Kran, Lázaro Ribeiro de Lima, Lidiana Reis de Oliveira, Luiz Eduardo Rosa Silva, Luzia Mello, Marcelo Costa, Marly Mendanha, Martins Muniz, Mel Gonçalves, Naira Rosana, Noe Luís da Mota, Pedro Afonso Allyen, Pedro Augusto de Brito, Pedro de Diniz, Pedro Novaes, Rafael Sepúlvera, Raphael Gustavo Silva, Rochane Torres, Rooberchay Rocha, Rosa Berardo, Ruyter Fernandes, Samuel Peregrino, Silvana Belini Teixeira, Silvana Maria Silva, Úrsula Ramos, Vanessa Goveia, Weber Ferreira Santana, Weslle Fellippe de Araujo, Willian Alves dos Santos.

Deixo aqui meus agradecimentos à Carmelita Gomes, produtora cultural do Curta Canedo, que me incluiu entre os fazedores-de-filmes celebrados nesta “Homenagem aos Cineastas Goianos”. Em sua fala na tribuna, Carmelita fez um “conclame para continuação da criação cinematográfica em Goiás”:

– É uma noite memorável, a primeira vez que o cinema goiano é homenageado em Goiás pela Assembleia Legislativa. Vejo  aqueles que fomentam a arte e a cultura, neste País, como guerreiros resistentes. E vamos continuar produzindo, vamos acordar e lutar contra censuras e ditaduras. As dificuldades vêm para levantar guerreiros. (Carmelita Gomes)

A noite contou ainda com um pocket show de um dos artistas goianos mais geniais, o Diego de Moraes, hoje conhecido pelo seu codinome Diego Mascate. O cantor e compositor acaba de lançar seu novo álbum Na Estrada Antes da Curva, destacado em reportagem recente da Carta Capital, e nesta ocasião apresentou as canções “Bicho Urbano” (da banda que integra, a Pó de Ser) e “Todo Dia” (presente no clássico álbum Parte de Nós, lançado por Diego e o Sindicato).

Foi uma rara felicidade poder estar pela primeira vez nas entranhas da Assembléia Legislativa, um espaço que em Goiás é dominado por políticos de centro e de direita, ou seja, com alta preponderância reacionária, e sentir que ao menos excepcionalmente se passa ali algo de valioso – como o reconhecimento dos trabalhadores e guerreiros da cultura que batalham dia-a-dia para a criação de obras artísticas que expandam nossos horizontes e instiguem debates públicos importantes.

O reconhecimento e a valorização são essenciais para que nós não nos deixemos dominar pelo desânimo nestes tempos de tratores obscurantistas que trucidam direitos sociais duramente conquistados – mas isto não substitui o devido fomento estatal à cultura, hoje em frangalhos, nem o respeito à liberdade de expressão, hoje igualmente em ruínas. De todo modo, a condecoração é sentida, por aqui, como bem-vinda pela demonstração, por parte da ALEGO, de que enxerga nossos esforços criativos e nosso suor derramado na lida difícil de fazer cinema independente nas ruas, praças e escolas.

Exemplo disso é que em 2019, no IFG câmpus Anápolis, em um projeto integrador transdisciplinar que uniu as áreas de Filosofia (Prof. Eduardo Carli), Sociologia (Profa. Francine Rebelo) e História (Prof. Jacques de Carvalho), nós conseguimos produzir junto com a estudantada nada menos que 14 curtas-metragens, fortalecendo assim o cenário do Cinema nas Escolas. Não apenas o Cinema como algo a ser assistido passivamente pelos estudantes, mas sim o Cinema como algo que a estudantada faz! Assista alguns dos filmes produzidos pelos alunos anapolinos do 3º ano do Ensino Médio Técnico Integrado: Ordem e Progresso, Alucinações, Até Quando?, Ocultadas, A Voz dos Surdos, Isso Não É Um Curta Feminista.

Além disso, o reconhecimento, no meu caso, é bem-vindo também para estimular a continuidade de um trabalho intenso, nos últimos anos, de documentarismo sobre os agitos cívicos e culturais que venho realizando. Esclareço que, apesar de não ser goiano de nascença (sou nascido no ABC paulista), nesta década em que estive vivendo aqui produzi muito audiovisual midiativista e a imensa maioria dos documentários independentes da minha filmografia foram realizados em Goiás – dentre os quais destaco e disponibilizo os seguintes:


FILMOGRAFIA GOIANA DE EDUARDO CARLI DE MORAES


* TSUNAMI DA BALBÚRDIA #1, #2, #3 e #4 (Goiânia, 2019):



* MULHERES COMPORTADAS NÃO FAZEM HISTÓRIA (Goiânia, Março de 2019):

* BRISAS LIBERTÁRIAS (Marcha da Maconha Goiânia, 2019):

* O FUTURO NOS FRUTOS: AS SEMEADURAS DO ENCONTRO DE CULTURAS (Chapada dos Veadeiros, 2018):

* AFINANDO O CORO DOS DESCONTENTES (Goiânia, 2018):

* ELENÃO.DOC – PRIMAVERA ANTIFASCISTA (Goiânia, 2018):

* A MULHER MOVE O MUNDO (8M, 2018):

* EXU NAS ESCOLAS – V Seminário da Educação das Relações Étnico-Raciais do IFG (Uruaçu, 2018):

* PÔ!ÉTICA – XIV Festival de Artes de Goiás do IFG (Cidade de Goiás, 2017):

* NEVOEIRO SALUTAR: A Marcha da Maconha de Goiânia 2017:

* FERMENTO PRA MASSA – Greve Geral em Goiânia: 28 de Abril de 2017:

* PRIMAVERA SECUNDARISTA – (Goiânia, Novembro de 2016):

* ABRE ALAS – Vislumbres da Primavera Secundarista (Goiânia, Outubro de 2016):

* TRANSMUTANDO DOR EM LUTA – Insurgências Feministas (Goiânia, 2016):

* A IRRUPÇÃO – Assembléia na UFG (2016)

* DESTRUA O FASCISMO ANTES QUE ELE DESTRUA VOCÊ (Goiânia, 2016, 18 min):

* PALESTINOS DA PASSAGEM: Frente De Luta Pelo Transporte Público (Goiânia, 2015):

* * * * *

TAMBÉM PARTICIPEI DA EQUIPE DE PRODUÇÃO DOS FILMES:
* Novos Goianos, de Isaac Brum;
* Gastrite, de Hugo Brandão;
* O Tempo de Clarice, de Dayane Viana Castro.

CONSIDERANDO TAMBÉM AS OBRAS FILMADAS EM BRASÍLIA (DF), DESTACO TAMBÉM:
* O Céu e o Condor (2016)
* A Babilônia Vai Cair (2016)
* Ponte Para o Abismo (2016)
* Levantem-se! (2016)
* Não Temos Tempo a Temer (2017)
* Não Matem Nosso Futuro (2019)

O pavor das vilanias viralizáveis na recepção do filme “Coringa” (Joker), de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro em Veneza

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

1. OS FILMES VOLTARAM A SER PERIGOSOS?

Durante a insurreição parisiense de Maio de 1968, muitos muros pixados gritavam: “O que queremos de fato é que as idéias voltem a ser perigosas.” Esta frase-tijolada, de autoria atribuída a Guy Debord mas viralizada por anônimos, poderia ser adaptada pra falar sobre certos filmes contemporâneos e sobre os enfants terribles que ousam realizá-los, de Lars Von Trier a Gaspar Noé: são figuras que querem que o cinema volte a ser perigoso.

Um filme pode pôr um sistema em perigo, ou isto é só fantasia de grandeza dos artistas cinematográficos que exageram seu próprio poder de subverter o status quo? Uma obra fílmica subversiva pode se transformar em blockbuster e fazer sucesso popular a ponto de preocupar as elites plutocratas? É possível que um filme represente um perigo que leve as elites a perderem o sono e fundirem a cuca de preocupação diante das provocadoras perturbações da ordem que tomam de assalto as salas de exibição?

Como fã de filmes perigosos, provocativos e anti-conformistas, afirmo que precisamos sim de uma arte cinematográfica que jamais se renda a considerar uma sala de cinema como mero templo de consumo, repleta de poltronas confortáveis onde a passividade dos alienados vai pastar seu conformismo após encher de grana o cu das corporações dos Kinoplexes dentro de shopping centers. Aliás, o preço-facada deste ingresso, e este combo pipoca-com-Coca-Cola a 30 reais, não têm nenhuma graça.

 Queremos um cinema que mobilize afetos anti-sistêmicos, anti-capitalistas, sabotando o insustentável business as usual que atua na atual Máquina do Apocalipse conhecida como capitalismo neoliberal globalizado.

 O mínimo que se pode dizer sobre o ano de 2019 é que esta vontade está sendo muito bem atendida: Bacurau, Marighella e Espero Tua (Re)Volta fizeram isto lindamente pelo cinema brasileiro, com força descomunal e grande beleza expressiva; e no cenário do cinema-pop internacional é Joker, de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, quem cumpre com esmero a função de re-lançar a arte do cinema ao campo do risco, do perigo, da confrontação aberta, sem medo da polêmica. Exemplo disso é o “pânico moral” que tem se tornado um dos grandes temas de debate sobre as repercussões do mais novo filme do Coringa.

Na Jacobin Brasil, o artigo de Eileen Jones pontua:

“O pânico moral sobre filmes provocantes como “Coringa” é tão antigo quanto o próprio cinema. Filmes de Spike Lee, Oliver Stone, Luís Buñuel e Jean Renoir já sofreram a mesma acusação pela direita liberal. Na maioria das vezes são apenas mais uma prova do mérito de um filme – e de uma classe com medo de se reconhecer nas telas. (…) O número de vezes na história em que filmes criaram um alvoroço que levou à violência é surpreendentemente pequeno, tornando as recentes previsões sombrias de que Coringa provavelmente inspirará caos em massa uma aposta ruim.”

Um filme seria capaz de “inspirar caos em massa”? A pergunta não é absurda e já está em discussão há muito tempo na sociologia da arte – pelo menos desde que Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, inspirou muitos suicídios entre jovens alemães que mimetizavam Werther. O medo dos críticos, noiados com a força do personagem Coringa, é que vejamos uma epidemia de mímesis das atitudes psicopatas e sangrentas do Joker da telona. Questiona-se na imprensa liberal-burguesa sobre todos aqueles que poderiam se ver tentados a imitar o exemplo do Coringa e que se lançassem a explodir cabeças de âncoras televisivos ou confrontar diretamente tubarões corporativos como o Sr. Wayne.

Eis um temor razoavelmente justificado quando se considera que o grau de identificação com o protagonista é grande o bastante para que seja um ótimo negócio para Warner e D.C. Comics lançarem este filme para colherem centenas de milhões de dólares em lucro de bilheteria. Tem gente pra cacete querendo ver Coringa, e dentre esta multidão decerto não vão faltar aqueles que se identificam com ele e enxergam no personagem muito mais um herói, um soulbrother, do que apenas um psicopata doidão que mereceria ser trancado num hospício com as chaves de sua cela jogadas no fundo do oceano.

Um fenômeno semelhante é a identificação positiva com o Tyler Durden de Clube da Luta (Fight Club), o filme de David Fincher baseado no livro de Palahniuk. Temeu-se que pudessem surgir, no mundo real, “movimentos sociais” assemelhados aos Space Monkeys que Tyler Durden (Brad Pitt / Edward Norton) encabeça em um enredo que termina com um atentado terrorista contra empresas de cartão de crédito. Temeu-se que se viralizasse a atitude de revolta contra este sistema nojento em que trabalhamos em trampos que odiamos para poder comprar lixo que não precisamos, em que “as coisas que você possui acabam por ter possuir”.

O curioso no caso Coringa é a excelente recepção que o filme tem recebido em festivais internacionais e em boa parte da crítica especializada – a começar pela consagração em Veneza. O filme, propulsionado pela interpretação magistral de Joaquin Phoenix (magistral em sua performance do personagem já vivido em filmes anteriores por Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto). O filme tem sido debatido por seus supostos “perigos” em despertar o “caos em massa”, mas seus méritos artísticos não estão sendo negados nem pelo mais paranóico dos críticos liberais fanáticos por law & order.

Joker rapta o Leão de Ouro em Veneza: filme de Todd Phillips, protagonizado por Joaquin Phoenix, vence o prêmio máximo da 76ª edição do festival – Público

O furor em torno do novo filme Coringa começou não de uma sessão desastrosa, mas de uma estreia extremamente bem sucedida: foi ovacionado durante oito minutos no Festival de Veneza, e em sequência ganhou o prestigiado prêmio Leão de Ouro. Apenas para contextualizar, o Leão de Ouro vai para filmes como “Rashomon”, “O Ano Passado em Marienbad”, “A Infância de Ivan”, “A Batalha de Argel”, “Os Renegados”, “Adeus Meninos”, “The Story of Qiu Ju”, “O Segredo de Vera Drake”, “Brokeback Mountain” e “Roma”. Apenas esperando que alguém esteja se divertindo em algum lugar, gosto de pensar que os europeus que votaram no Festival de Cannes estavam apenas nos trolando, antecipando o surto moral e estético entre os guardiões da cultura estadunidense na elevação de Coringa a padrões significativos de filmes de arte. Eu os imagino bebendo tanto até que o vinho saia pelo nariz.

No entanto, na verdade eles provavelmente foram sinceros, e sua reverência ao filme foi, para dizer o mínimo, inesperada para mais um filme com o Coringa, o gargalhante e amado vilão psicopata da DC Comics, um personagem que já foi interpretado três vezes em filmes de super-heróis, por Jack Nickolson (Batman,1989), Heath Ledger (Batman: O Cavaleiro das Trevas, 2008), e Jared Leto (Esquadrão Suicida, 2016). Mas com o altamente respeitado ator Joaquin Phoenix reconcebendo o papel como um raivoso e isolado incel branco da classe trabalhadora levado ao limite, esse aplauso chocou e irritou críticos de cinema e jornalistas de entretenimento. Houve uma enxurrada de comentários alarmistas desde então, incluindo especulações nervosas sobre a possibilidade de violência imediata como uma aparente resposta ao filme, como na crítica de Sarah Hagi na Jezebel: ‘A pergunta na mente de todos quando assistirem Coringa é e será: o quão perigoso é isso? O público alvo de jovens homens brancos será inspirado por Coringa?’ – JACOBIN

2. A VIRALIZAÇÃO DA VILANIA: PARANÓIA JUSTIFICADA?

Esta histeria paranóica dos liberais tem suas razões: de fato, Joker é um filme fascinado pelo tema da viralização. O filme descreve a cidade de Gotham tomada por riots em que os clowns protestam violentamente nas ruas, botando fogo em carros, confrontando ousadamente a polícia feito Black Blocs e destravando processos anárquicos que um dia, no futuro não muito distante, irão justificar as ações extralegais de um playboy metido a vigilante que limpará a escória das ruas fantasiado de morcego.

Por isto o filme dialoga fortemente com V de Vingançaoutra obra fortemente marcada pelo fascínio com a viralização. A máscara de Guy Fawkes se torna viral no enredo forjado por Alan Moore em V de Vingança, e depois transbordou para o mundo real e histórico, tendo sido utilizada por manifestantes em protestos. As máscaras, saindo da arte para a vida, inspirando também movimentos hackers digitais como o Anonymous, é um fenômeno que certamente interessa à sociologia fílmica de Joker.

Este contexto social repercute na viralização dos palhaços revoltados que constitui um Exército de Coringas, emblemático na cena em que o metrô de Gotham está lotado por figuras à la Coringa, levanto os policiais ao completo desnorteio. É isso que tem colocado tantas pulgas nas cuecas das elites liberais.

Estas, acostumadas à paranóia pois costumam viver em ilhas de privilégios que mais se parecem bunkers militares do novo apartheid, tem o temor de que aquela Gotham caótica e em chamas seja algo muito diferente de apenas uma fantasia distópica. O medo é o de que seja a imagem-espelho de nosso futuro próximo.

O medo se aprofunda nestas elites quando pensam que filmes assim podem acelerar este processo de convulsão social que o filme expressa em seu momento mais emblemático: sobre a viatura destruída por um crash, acordando de seu desmaio, Arthur Fleck, dentro da sua persona de Joker, tem seus “15 minutos de fama” diante da horda de clowns que o considera alguma espécie de inspirador do movimento. Após os 15 minutos de fama, o “famosinho” estará imobilizado numa camisa de força e sendo moído vivo no Cemitério dos Vivos (como dizia Lima Barreto) que é o sistema prisional-manicomial.

Arthur Fleck começou o movimento, a despeito de quaisquer intenções suas: ele garante que não é um sujeito politizado e nunca pretendeu começar um movimento. Mas o assassinato triplo que comete no metrô contra três funcionários da Corporação Wayne mudam seu destino pessoal para sempre, e no processo destravam processos que mudam também os destinos coletivos.

Arthur era um zé-ninguém, um invisível, uma destas pessoas anônimas que, se morrem e caem na calçada, os transeuntes seguem andando como se nada tivesse acontecido, desviando-se do corpo como se fosse um pacote de arroz caído no chão. O assassinato triplo, por ser também efeito de uma cultura de hegemonia do armamentismo e da masculinidade tóxica, faz emergir, como um monstro do pântano que se ergue causando rebuliço na superfície da lagoa, o Coringa que não é mais zé-ninguém nem invisível: agora, Arthur Fleck sente o sabor da fama através de seu alter-ego: o Coringa é famoso, é o cara na capa dos jornais. Este gostinho de sucesso, ainda que seja através da notoriedade de um crime, é essencial para a compreensão do filme.

Em muitos aspectos, Joker lembra Réquiem Para um Sonho de Darren Aronofsky. Neste, a senhora interpretada por Ellen Burstyn é viciada em TV e anfetaminas, entrando em vários delírios alucinados diante de seus programas de TV prediletos. O filme de Todd Phillips se apropria de uma estrutura muito semelhante ao descrever as fantasias de Arthur Fleck diante da TV: ele sonha em ser uma estrela de TV, não se recusa a participar do programa de entrevistas que bomba no Ibope, mas tudo dá errado em seus planos de se transformar num pop star pois sua esquisitice, seu fracasso em sua tentativa de tornar-se um bem-sucedido stand-up comedian, o conduzem a ser ridicularizado na televisão onde ele desejou ser entronado.

Deste modo, tanto Joker quanto Réquiem exploram as neuroses decorrentes de um star system em que viralizam-se os sonhos de fama televisada, mas onde há um verdadeiro apartheid operando: os estranhos, os feios, os loucos, os maltrapilhos, tudo que é queer e inadaptado aos padrões normóticos vigentes, ficará apartado da fama, por mais que sonhe e delire com ela. Arthur Fleck faz parte do exército dos que deliram em um dia serem famosos na TV, mas que nunca o será – e que fica muito puto da vida quando o descobre. Na catártica cena em que ele finalmente está ao vivo na TV, diante do entrevistador encarnado por Robert De Niro, ele dirá algumas verdades inconvenientes que também evocam o clássico Network – Rede de Intrigas, de Sidney Lumet.

3. GOTHAM: LIXO, RATOS, PLAYBOYS, RIOTS E INCELS

Logo em suas primeiras cenas, o filme Joker lança o espectador a uma Gotham afundada no caos com uma grave greve dos lixeiros. As ratazanas infestam uma Gotham que está há semanas sem o devido recolhimento de lixo. O todo-poderoso playboy Wayne – pai daquele Bruce Wayne que um dia se transmutará no Homem-Marcego, O Cavaleiro das Trevas – está se candidatando a prefeito.

O filme deixa no escuro as causas da greve e as demandas dos grevistas, mas em outra cena joga mais luz sobre as causas subjacentes do caos em que Gotham está mergulhada: diante de uma assistente social, Arthur Fleck, sedado com mais 7 medicamentos psicotrópicos, ouve uma má notícia. O Estado resolveu cortar investimentos para aquele serviço de assistência social para os mentalmente instáveis das classes subprivilegiadas.

Tanto a social worker quanto o altamente medicalizado Artur Fleck são tratados como lixo pelos governantes de Gotham. Estes aplicam políticas de austeridade que fazem colapsar os serviços públicos mais importantes – da coleta de lixo à assistência social concedida às multidões de adoecidos psíquicos.

É um filme na tradição de thrillers como O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs), de Jonathan Demme, e O Iluminado (The Shining), de Stanley Kubrick. Tanto Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins, quanto Jack Torrance, encarnado por Jack Nicholson, eram personagens afligidos pela doença mental (mental illness) e seus atos eram manifestações sintomáticas de suas condições “clínicas”. São obras onde o mal tenta ser compreendido a partir de princípios psicológicos (como a psicose) e não teológicos (como o pecado).

É por aí que Joker segue: na trilha da exploração psicológica da gênese de um psicopata. Velhas figuras, que bordejam o clichê, levantam suas cabeças no roteiro: o abandono do pai, a infância cheia de traumas, uma relação pouco sadia de dependência mútua em relação à mãe, uma fobia do contato social decorrente da condição de risada compulsiva etc. Esta infância problemática, com o pai ausente, a mãe delirante, o padrasto abusador, frisa aquela velha tese: todo adulto com psicose foi um dia uma criança traumatizada por circunstâncias que não escolheu.

Somam-se aos “males da infância” de Arthur sua situação presente de homem solteiro, celibatário, que mora com a mãe, incapaz de estabelecer vínculos afetivos significativos, sexualmente inativo, capaz apenas de fantasiar o amor com sua vizinha, mas nunca de viver na carne as conjunções carnais e os arrebatamentos orgásticos. Inúmeras críticas e artigos sobre Joker apontam a proximidade entre o caráter do protagonista e os homens “incel” (celibatários involuntários), recentemente celebrizados após o atentado de Toronto:

BBC – Quando o canadense Alek Minassian atropelou um grupo de pedestres com uma van, matando dez pessoas em Toronto, no Canadá, a notícia correu rapidamente em um grupo muito específico na internet: fóruns de discussão dos autodenominados “incels” – homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso. O termo “incel” é um diminutivo da expressão “involuntary celibates”, ou celibatários involuntários. A notícia de que Minassian se autodeclarava “incel” virou o assunto principal dos fóruns de conversa desses homens na internet.

Se pode haver uma certa graça na própria expressão “celibatários involuntários”, decerto que não tem graça nenhuma as ondas de spree killings praticados por estes auto-denominados incels. Podemos descrevê-los como os caras que são virgens revoltados contra as mulheres – não transaram nunca, não é por não desejarem, mas por não conseguirem, e a culpa é toda das malditas mulheres. Incapazes de criticarem doenças sociais do Patriarcado, como a masculinidade tóxica que lhes impede qualquer manifestação de afeto mais delicada, qualquer enlevo carinhoso, qualquer “derretimento” afetivo que aproxime do “sexo oposto”, eles projetam sua libido insatisfeita, represada e mau sublimada em uma agressividade destrutiva e misógina que muitas vezes explode em serial killing. 

Tanto que o incel de Toronto, assassino de 10 concidadãos, antes de pisar no acelerador e atropelar dez vidas, escreveu, segundo a reportagem da BBC: “A rebelião ‘incel’ já começou! Vamos derrotar todos os Chads (homens atraentes e sexualmente ativos) e Stacys (mulheres sexualmente ativas). Todos saúdem o cavalheiro supremo Elliot Rodger!”

“Em 2014, Elliot Rodger matou seis pessoas a tiros e facadas, na Califórnia, se matando em seguida. Ele tinha várias publicações em redes sociais falando sobre sua frustração por ser rejeitado e pregando ódio às mulheres. Num vídeo que postou no YouTube, Rodger reclamou de ainda ser virgem aos 22 anos e revelou nunca ter ao menos beijado uma menina. Ele disse ainda que era o “ideal e magnífico cavalheiro” e que não compreendia porque as mulheres não queriam ter relações sexuais com ele.” (BBC)

O personagem vivido por Phoenix, Leto, Ledger e Nicholson de fato assemelha-se a um celibatário involuntário: nunca é descrito amando uma mulher que consente com ele nas delícias do amor físico. Wilhelm Reich talvez o diagnosticaria como alguém tristemente enjaulado na couraça de um caráter que impede a manifestação vital da potência orgástica. Aquele risinho nervoso, que ao invés de disseminar alegria causa uma epidemia de mal-estar, é sintoma neurótico mais do que espontânea explosão de hilariedade. O Coringa ri sozinho, nunca em coro com os outros. E quando ele ri, sem ser acompanhado, sua solidão é sublinhada.

A todo momento, ele se refere à sua mãe que teria em sua infância lhe ensinado a sempre usar uma cara sorridente. Este “vestir um sorriso”, ainda que artificial e forçado, erguido a imperativo ético, trafegando entre as gerações, de mãe para filho, parece ter gerado uma neurose que fica muito emblematicamente representada pelo gesto de forças os músculos da cara e da boca para cima, com a força mecânica impositiva dos dedos da mão.

Por detrás da maquiagem ou da máscara do Coringa, não há jovialidade, mas sofrimento que beira o intolerável. Quando ele ri, não é de alegria, é muito mais como um soluço afetivo que lhe prende ao trauma ainda não superável. Riso triste, nada zaratustriano, o avesso daquele riso dionisíaco que Nietzsche propôs em sua obra magistral e que o próprio Fritz, em carne-e-osso, talvez nunca alcançou. Não tenho notícia de nenhuma foto em que os longos bigodes de Fritz Nietzsche estivessem iluminados por um sorriso que lhes brilhasse por debaixo.

Se há um fascínio em figuras como Arthur Fleck / O Coringa, isto talvez se deva à expressividade excêntrica com que manifestam suas contradições íntimas mais profundas e dilacerantes, em ruptura com a normose, com o politicamente correto e com padrões aceitáveis de conduta segundo o Ser Humano Careta e Medíocre. Interessante notar, neste contexto, que o diretor Todd Phillips, em início de carreira, em um filme estudantil que causou muito rebuliço, manifestou interesse por uma das figuras mais extremas e controversas do movimento punk, G. G. Allin:

Até aqui ninguém parece intrigado pelo início da carreira de Phillips, que inclui alguns anos estudando na Tysch School of the Arts da Universidade de Nova York, onde ele fez o documentário “Hated: GG Allin and the Murder Junkies” (algo como “Odiados: GG Allin e os Drogados Assassinos”), um retrato de um escabroso roqueiro punk que teve lançamento nos cinemas e em DVD – algo quase inédito para filmes estudantis. Abandonando a faculdade para terminar “Hated”, ele trabalhou na lendária, decadente e abrangente “Kim’s Video and Music”, uma locadora especializada em filmes raros e voltados a iniciados, que “graduou” seu próprio grupo ilustre de notáveis ex-funcionários, que se tornaram cineastas, músicos e artistas.

Ele co-dirigiu seu segundo documentário, “Frat House“, que trouxe uma sombria visão crítica da vida em uma fraternidade na faculdade e que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance, mas que afundou logo na estreia por causa de alegações de que membros da fraternidade teriam sido pagos para reencenar eventos. Seu terceiro filme, o “rockumentário” “Bittersweet Motel” (algo como “Hotel Agridoce”), levou Phillips em uma turné com a banda Phish, onde ele conheceu o diretor Ivan Reitman, e o resto, como se costuma dizer, é história. – Jacobin

G. G. Allin seria o equivalente musical do Coringa fílmico. O simplismo dos lemas do cantor punk, morto numa overdose de heroína em 1993, como “kill the police, smash the system” tem eco nas frases que os clowns levam aos riots de Gotham, demandando “kill the rich” ou coisa assim. De fato, um dos clowns performa o dito literalmente e assassina num beco o todo-poderoso Wayne, em um assassinato testemunhado pelo jovem Bruce Wayne, criança traumatizada que logo se tornará o riquinho que se transmuta em vigilante noturno, The Batman.

4. O ÚNICO ANIMAL QUE RI – E A MULTIPLICIDADE DOS RISOS POSSÍVEIS

Joker, um filme complexo, multifacetado, abordável por múltiplas perspectivas, é também um tratado sobre o riso, a comicidade, o lúdico. Sobre como a sociedade estadunidense lida com o entretenimento de comédia, sobre como este instiga sonhos e fantasias naqueles que gostariam de ser os novos Chaplins.

Pode até ser verdade que o homo sapiens é o único animal terráqueo que ri, mas há risos de uma imensa variedade de tipos. O riso neurótico do Coringa, descrito neste filme em seu próprio processo de devir-personagem (similar ao Batman Begins que dá início à Trilogia Cavaleiro das Trevas de Nolan), é bem diferente do riso cheio de escárnio e desdém que manifesta o personagem de Robert De Niro. Este último manifesta um humor arrogante, que rebaixa o outro, é o humor daquele privilegiado, cheio da grana, que pisa em alguém para ridicularizá-lo. Este humor repleto de desdém e crueldade, que menospreza os alvos de seu riso-machucante, recebe no filme uma sangrante “desforra” na cena em que o Coringa enfim adquire sua fama suprema e comete um homicídio live on TV.

O Coringa mata aquele cujo serviço é rir, na TV, seu riso elitista e escarninho. Revolta-se, assim, contra os abusos sem-graça que muitas figuras do star system cometem ao colocar sua comicidade a serviço do racismo, da misoginia, do elitismo. Jair Bolsonaro é um desses palhaços sem graça, que pensa estar sendo um gênio da stand-up comedy quando sobe num palanque para dizer que vai limpar a Pátria do Cocô (um “cô” de comunista, um “cô” de corrupto). Quem podia imaginar que o Brasil teria um chefe de Estado que um dia usaria seu Twitter para divulgação de fake news, goldenshower e demagogia anti-cocô? Apesar da horda Bolsominion urrar nas caixas de comentários seus kkks diante do “Mito”, fica óbvio que ele não passa de um macho tóxico da supremacia branca que, além de péssimo comediante, é um cara escroto, mucho escroto.

Recentemente, tivemos outro exemplo deste riso que fere o outro, e que é uma espécie de adaga pontiaguda manejada pela crueldade, na figura do Sr. Abraham Weintraub. Em seu Twitter, colhendo os “kkk”s da horda bolsonarista, o Ministro da Educação, depois que encontraram 39kg de cocaína em um avião da FAB que ia na comitiva de Jair Bolsonaro, disse: “Avião já transportou drogas em maior quantidade. Qual o peso de Lula e Dilma?” Não vi graça, mas não duvido que houve uma horda de hienas que tenha se regozijado com a tiradinha “esperta” de Weintraub, que ao invés de cuidar das atribuições de seu cargo resolveu comparar ex-presidentes petistas a “drogas bem piores” que “39 kg de cocaína”. Segundo Veja, o Ministro será alvo de processo movido pela Comissão de Ética Pública por sua piada infeliz.

Não posso terminar sem antes falar um pouco sobre as reflexões de Slavoj Zizek sobre o riso enlatado, que voltaram à minha cabeça durante e depois da projeção do filme. A tragicomédia do único animal que ri ganhou um novo capítulo com a invenção das sitcoms com riso enlatado (canned laughter): o espectador de Seinfeld ou Friends não precisa nem se dar ao trabalho de acompanhar com atenção os diálogos destas comédias-de-situação.

Você não precisa gastar neurônio tentando “pescar” a comicidade das falas para rir na hora oportuna. O estouro de risos gravados faz o serviço por você – é como se a TV desse risada por você. Ou então, caso você não queira a passividade extrema de ficar “pastando” diante da teletela enquanto seus ouvidos são inundados por torrentes de risos artificiais, você pode rir junto, sentindo-se parte daquele jovial auditório que se diverte junto. Basta que você siga a manada e ria junto – caso não esteja com preguiça. Caso esteja cansado demais após uma jornada fatigante de trabalho, simplesmente permita que os risos enlatados, inseridos na banda sonora da série, façam por você uma espécie de hahaha por procuração.

Este fenômeno da jovialidade artificial, ou seja, a comercialização de mercadorias cômicas que a indústria cultural “recheia” com risadas pré-fabricadas, é comparado por Zizek com outro fenômeno presente em sociedades tradicionais (ditas “primitivas”): o das mulheres especializadas em chorar nos funerais:

“A rich man can hire them to cry and mourn on his behalf while he attends to a more lucrative business (like negotiating for the fortune of the deceased). This role can be played not only by another human being, but by a machine, as in the case of Tibetan prayer wheels: I put a written prayer into a wheel and mechanically turn it (or, even better, link the wheel to a mill that turns it). It prays for me—or, more precisely, I “objectively” pray through it, while my mind can be occupied with the dirtiest of sexual thoughts.” ZIZEK, In These Times

Ora, o filme Joker também manifesta um desconforto Zizekiano com estes fenômenos das risadas falsas, dos risos enlatados, da ideologia don’t worry be happy. O “perigo” tão temido por muitos críticos talvez esteja na atitude de Arthur Fleck / Coringa de recusa do status quo que nos pede um risonho conformismo diante do estado das coisas. Na Gotham onde se acumula o lixo, onde grassam as ratazanas, onde playboys querem ser prefeitos, onde mega-corporações mandam e desmandam, onde na TV reinam riquinhos escrotos especialistas no riso escarninho, onde as redes de proteção colapsam diante das políticas neoliberais de austeridade, ergue-se o riso dissonante e perturbador do Coringa.

A perturbação ocasionada pelo lançamento deste filme se deve a seu potencial viralizatório, pela sua capacidade de conexão com um amplo “exército” de insatisfeitos que já está se cansando de usar a máscara dos sorrisos falsos. Tem muita gente que, como Arthur Fleck, não está achando graça em perder seu emprego, ser lançado ao precariado ou ao lumpenproletariado, numa sociedade de selvageria competitiva normalizada como se fosse o fim e o suprasumo da História. Assim como Tyler Durden, após dar um tiro na cabeça, assiste de camarote à demolição dos prédios das empresas de credit card ao som de “Where’s My Mind” dos Pixies ao fim de Fight Club, o personagem do Coringa amedronta o sistema pois ele cada vez parece mais pervasivo em nossa cultura.

O Coringa serve hoje como símbolo de uma “horda de bárbaros” que ameaça a pseudo-civilização capitalista-liberal de seu próprio interior. Presente em todo jogo de baralho, o Coringa é aquele que se recusa a ser um mero peão, just a pawn in their game, e que decide fazer a performance pública de sua própria loucura socialmente determinada. Ele é o espelho sombrio de uma sociedade doente e carcomida. É o Black Mirror encarnado em emblema de uma sociedade adoecida de armamentismo, encarceramento em massa, masculinidade tóxica, incels misóginos, spree killings.

O Coringa é um personagem que está entre as possibilidades de cada um de nós neste enlouquecedor mundo de predomínio do capital desumanizador, perigoso pelo convite que faz ao destravamento das anarquias incendiárias com as quais muitos crêem que podem fabricar um outro mundo a partir das cinzas do velho. O verdadeiro perigo, no entanto, consiste em acreditar na transformação social pela via individual, pela performance midiática de um, pelo efeito viral de alguém que devêm-famoso, quando toda transformação coletiva será sempre obra coletiva.

Não está descartada, porém, em nossa realidade profundamente marcada pela cultura pop, onde o cinema é uma indústria poderosa, que existam irrupções coletivas de um devir-Coringa de pessoas irritadas com uma opressão que, de tão comprida, já não tem nenhuma graça. É o temor das elites diante das vilanias viralizáveis dos oprimidos, cansados de tomarem porrada e dispostos a dar o troco (“dá neles, Damião!”, como no samba de Douglas Germano), o que explica este senso de perigo que envolve a recepção deste filmaço, provocativo e performativo, que é Joker. 

 

SIGA VIAGEM:

JESSÉ SOUZA

CHRISTIAN DUNKER

SLAVOJ ZIZEK

* * * *

P.S. MUSICAL

“THAT’S LIFE” – Frank Sinatra

That’s life (that’s life) that’s what people say
You’re riding high in April
Shot down in May
But I know I’m gonna change that tune
When I’m back on top, back on top in June
I said, that’s life (that’s life) and as funny as it may seem
Some people get their kicks
Stompin’ on a dream
But I don’t let it, let it get me down
‘Cause this fine old world it keeps spinnin’ around
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself flat on my face
I pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) I tell ya, I can’t deny it
I thought of quitting, baby
But my heart just ain’t gonna buy it
And if I didn’t think it was worth one single try
I’d jump right on a big bird and then I’d fly
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself layin’ flat on my face
I just pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) that’s life
And I can’t deny it
Many times I thought of cuttin’ out but my heart won’t buy it
But if there’s nothing shakin’ come here this July
I’m gonna roll myself up in a big ball and die
My, my

Dá neles, Damião!
Dá sem dó nem piedade
E agradece a bondade e o cuidado
De quem te matou

Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma.
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não

Sangue e suor pelo vão.
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão

Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação

Sangue e suor pelo vão
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Bate até cansar, e quando cansar…
Me chama.

(Douglas Germano)

Greve Geral mobiliza milhões de trabalhadores contra Reforma da Previdência e cortes na Educação – Veja o documentário “Tsunami da Balbúrdia #3″#14J

NINJA – Educação sucateada, aposentadoria em risco, meio ambiente ameaçado, cultura do ódio, mais de 13 milhões de desempregados, escândalos de corrupção, despreparo e vergonha internacional, é por esse motivo que o Brasil parou na #grevegeral do último 14J. O governo Bolsonaro não representa o Brasil. Confira a galeria de fotos da Mídia Ninja e parceiroshttp://bit.ly/2Xii4v1.

A Casa de Vidro lança novo documentário: “É Greve porque é Grave!”, 3ª parte da série documental “Tsunami na Balbúrdia”

Foram três fortes Tsunamis de Cidadania que, nestes últimos tempos, insuflaram ânimo a todos aqueles engajados na construção coletiva de um menos injusto e opressivo. O primeiro tsunami, em 15 de Maio, levantou altas ondas de indignação contra os 5 bilhões e 700 milhões de reais cortados da Rede Ferderal Educação, como anunciado pelo ministro Weintraub (MEC) em já antológica transmissão em que tentou acalmar o furacão a base de chocolatinhos e de percentagens enganosas.

Após tesourarem 30% das verbas discricionárias do Ministério da Educação, o Ministro e seu patrão Bozo tentaram nos convencer a ficarmos apáticos, de bunda sentada no sofá, babando diante de Globos, Ratinhos e outras ratazanas – dizendo que só protestariam os “idiotas úteis” alimentados pelos petralhas com mortadela. Mas fracassou a conclamação dos brucutus a que fôssemos obedientes e bom-comportados, aceitando bovinamente a brutal subtração de nosso direito coletivo à educação pública de qualidade. Fomos às ruas, num levante histórico, demandando: “Tira a Mão do meu IF!”, bradando: “Quero estudar pra ser inteligente / Porque de burro já basta o presidente!”, dentre outras erupções de rebeldia coordenada.

Em 30 de Maio o #TsunamiDaEducação voltou às ruas de mais de 200 cidades pelo Brasil, num segundo tsunami de democracia de alta intensidade, reforçando a mensagem contra o Governo de Bolsonaro: “Nenhum Direito a Menos!” Através do #15M e do #30M, o movimento estudantil, somado à mobilização de professores e servidores técnico-administrativos, mostraram-se capazes de levantar-se na hora certa, em resistência contra o Desmonte dos Bens Públicos, marcando época nestas memoráveis Jornadas de Maio de 2019.

E assim, com este Maio caliente ainda em nossos retrovisores, foi que nos encaminhamos para o 14 de Junho, quando um mar de gente voltou a fluir pelas ruas e praças do Brasil em novas Aulas de Cidadania Ativa: era a Greve Geral contra a Reforma da Previdência e contra os cortes de investimento na Educação.

Foram manifestações em que não faltaram também críticas ao atual Ministro da Justiça, o Sr. Sergio DesMoronando: “o juiz era o bandido”, lia-se em um cartaz; “de herói a vilão”, proclamava outro cartaz que trazia estampadas as Duas Caras do malvadão de “Batman – Cavaleiro das Trevas”). Camisetas e faixas reiteravam a demanda por Lula Livre, com a exigência articulada coletivamente por “justiça de verdade” para o ex-presidente Lula, preso político ainda encarcerado em uma solitária da PF em Curitiba, apesar das acachapantes evidências de que foi vítima de um Tribunal de Exceção.


 
Confira o álbum dos atos pelo Brasil: https://bit.ly/31Bfb7J.

Neste documentário produzido por A Casa de Vidro, acompanhe um pouco dos agitos que animaram o protesto nas ruas de Goiânia neste 14 de Junho. Vibre junto com os discursos de mulheres empoderadas que falam à rua (e ao filme): como Danny Cruz, da UJS – União da Juventude Socialista, além de presidenta da UEE GO, e Kátia Maria, que em 2018 foi a candidata ao Governo de Goiás pelo PT – Partido dos Trabalhadores. Flagre também um pouco da participação do Pedro Wilson, ex-prefeito de Goiânia, além de performances artísticas e batuqueiras por parte dos criativos cidadãos ativos que desfilaram pela urbe suas salutares rebeldias.

O curta-metragem é a 3ª parte da Trilogia Documental TSUNAMI DA BALBÚRDIA. Dê o play, aumente o volume, e boa viagem!

 

ASSISTA TAMBÉM:

  • TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta: https://wp.me/pNVMz-5mx
  • TSUNAMI DA BALBÚRDIA #1: Documentário sobre a mobilização em defesa da Educação pública em 15 de Maio de 2019: https://wp.me/pNVMz-5kq.

A HUMANIDADE DESPEDAÇADA – Lições de Dilaceramento no filme “Em Pedaços”, de Fatih Akin (Alemanha, 2017, 1h46min)

“A desumanidade terá um grande futuro.”
Paul Valéry

Não há porque temer o desaparecimento do despedaçamento humano: prosseguimos divididos e nos matando como se fôssemos feras ferozes. O foco principal do perturbador Em Pedaços (título original em alemão: Auf Der Nichts; título em inglês: In The Fade), do cineasta turco-alemão Fatih Akin (o mesmo de Contra a Parede), é o cruel dilaceramento de uma mãe e esposa vê seu marido e filho serem reduzidos a pedaços por um ato terrorista neonazi.

Nascido de pais turcos em Hamburgo, no ano de 1973, o diretor Akin sedia em sua cidade natal este seu denso conto de desumanização, incompreensão e desatamento incontrolável de violências. Explora a geopolítica européia contemporânea, em especial a re-ascensão de movimentos de extrema-direita xenófoba, em um filme pungente que revela as profundezas abissais do sofrimento humano enquanto denuncia a onda de islamofobia e de crimes conexos à intolerância racista.

A esplêndida interpretação da atriz alemã Diane Kruger, premiada no Festival de Cannes, não permite a nenhum espectador ficar frio e indiferente diante das atribulações da protagonista Kátia. Ela tem sua existência transtornada subitamente e tirada de órbita pela bomba que explode na frente do escritório de seu marido Nuri Sekerci, matando-o junto com o filho do casal.

O filme mergulha em toda a aflição do trauma que se abate sobre esta mulher, repentinamente privada dos amores de sua vida em um crime cujos mistérios o filme tratará de decifrar. Do drama privado em que poderia ter ficado atolado, o filme se alça às alturas de uma tragédia grega adaptada à Alemanha contemporânea. Pinta um retrato de uma Hamburgo onde o supremacismo racista dos neonazis produz monstruosidades que a Justiça, aburguesada e pusilânime, fracassa em punir.

No momento histórico em que a crise dos refugiados está em seu estado mais grave deste a 2ª Guerra Mundial (segundo estudo da Anistia Internacional e da ACNUR), em que as polêmicas sobre políticas de imigração são intensas e as ações segregacionistas da direita se assanham (como ocorre com o discurso encabeçado por Le Pen na França, ou com as crianças-separadas-dos-pais durante a gestão Trump nos EUA), o filme é de imensa atualidade. Pode nos ajudar a debater os rumos futuros da belicosidade humana, do etnocentrismo alterofóbico e das ações extremistas contra imigrantes.

A grande questão que o filme nos faz talvez seja esta: quando aqueles que juraram defender a Justiça, e tem este dever por ofício, fracassam em seus trampos, permitindo a impunidade aos mais atrozes criminosos, temos o direito de agir em prol da punição dos mesmos por fora das instituições? Através da descrição crível do ímpeto emocional e das atividades indignadas desta mãe, que viu seu filho e seu marido terem seus corpos explodidos até não restarem senão pedaços incinerados do que antes foram pessoas vivas e amadas, a questão do filme tem a ver com aquela velha indagação ética-jurídica: tem-se o direito de “fazer Justiça com as próprias mãos” quando as autoridades competentes mostram-se incompetentes?

Triturando todos os estereótipos racistas sobre a figura do terrorista e do delinquente, o filme nos coloca diante do crime horrendo cometido por aquela Cara Gente Branca que é alfinetada no filme e na série Dear White People. Vocês realmente precisam ser tão estúpidos e bestiais, caros espécimens da Cara Gente Branca, a ponto de explodir vidas apenas por serem turcas ou curdas, afegãs ou iraquianas? E vocês realmente querem se vender ao mundo como aqueles que vão ensinar ao “Terceiro Mundo” como se deve comportar no tabuleiro geopolítico, forçando-nos a frequentar sua magnífica Escola Ocidental de Humanitarismo?…

O cineasta Fatih Akin em ação no set de filmagens de “Em Pedaços”, vestindo uma camiseta do álbum “…and Justice for All” do Metallica

O atentado foi perpetrado por um casal de neonazistas, os Möeller, que idolatram Adolf Hitler. As investigações policiais indicam que eles explodiram a bomba caseira em um bairro turco por motivos conexos à xenofobia, ao racismo, ao ódio anti-islâmico etc. Isso acaba se confirmando quando, no tribunal, um grego afiliado ao partido neonazista grego Aurora Dourada (A.D.) testemunha a favor dos réus, procurando fornecer aos juízes um álibi que provaria a inocência dos acusados. Como poderiam eles ter perpetrado o atentado se estavam numa colônia de férias na Grécia?

O advogado de acusação, aliado de Kátia, logo aponta que este grego, militante neonazi, com sua cara carrancuda de pouquíssimos amigos, publicou fotos em suas mídias sociais em um ato em que aparece empunhando a bandeira com a suástica da A.D. em um post curtido pelos assassinos. O advogado mostra evidências das tenebrosas conexões entre a testemunha e os réus, frisa a natureza forjada do pseudo-álibi.

Ainda que dentro da grande tradição dos filmes sobre vingança, Fatih Akin não trilha sendas já exploradas com maestria por antecessores ilustres como Sergio Leone, Sam Peckinpah, Quentin Tarantino ou Chan Wook Park (Oldboy). Constrói sua protagonista, de modo similar à Beatrix Kiddo de Kill Bill, como vítima de injustiças em série; mas Fatih Akin, ao contrário de Tarantino, não tem predileção pela caricatura e pelo humor de HQ, preferindo um tom mais trágico, soturno, com certos acentos punk.

Kátia encarna uma vingatividade justiceira que, no âmbito ético e filosófico, poderia ser compreendida como ação violenta justificável diante da falência do Estado burguês em punir os assassinos. Cansada de não ter saciada sua ânsia por Justiça, ela decide agarrar o problema em suas próprias mãos, já que o Estado se mostrou ineficiente em coibir o crime: ao invés de punição, o casal de assassinos é libertado e absolvido, e logo após o julgamento vai para uma colônia de férias na Grécia, o que só faz o ímpeto vingativo-justiceiro em Kátia se exacerbar.

Que ela tem o direito de tomar o problema da punição dos assassinos em suas próprias mãos é algo que Kátia percebe não no nível da verbosidade sociológica de um linguajar acadêmico, mas em suas próprias vísceras de mãe e de esposa que teve amputados de seu corpo estes outros que constituíam, para ela, um ninho de calor e sentido.

O filme explicita também os mecanismos que buscam culpar a vítima para assim melhor absolver os perpetradores de atrocidades. Tanto Kátia quanto seu marido morto tem suas vidas devassadas pela polícia, suas reputações colocadas em cheque, tanto pelos antecedentes criminais do marido enquanto traficante de drogas ilícitas, quanto pelo uso de drogas variadas que Kátia usa em seu luto para amainar a dor de sua súbita perda.

O advogado dos réus precisa atacar Kátia, acusando-a de ser uma drogada. Levanta dúvidas sobre a capacidade de testemunhar por parte daquela junkie desequilibrada, criando assim uma teia de desconfiança em relação à mulher dilacerada. São cenas angustiantes em que o espectador que se identifica com o infortúnio da protagonista sofre horrores com ela. Encurralada naquela jaula-tribunal, ela subitamente se transmuta de vítima da opressão homicida da extrema-direita em acusada. Contra ela levantam-se os dedos cretinos destinados a humilhá-la e desacreditá-la, o que só favorece a impunidade do casal neonazi perpetrador do crime.

Assim, o tribunal dilacera ainda mais aquela mulher cuja resiliência o filme, de maneira subliminar, descreve e celebra. Não estamos diante de uma mulher frágil, que fosse quebrável com a facilidade do cristal. Estamos sim diante de uma crumbling fortress, uma fortaleza que se desfaz em pó, mas que neste processo prepara-se para sair do mundo dos vivos através de um ato de sacrifício supremo.

O tema do sacrifício, que recebeu de Andrei Tarkovsky uma densa meditação em seus últimos filmes Nostalghia e O Sacrifício (vide a excelente análise de Slavoj Zizek em Lacrimae Rerum), passa por inúmeras variações na obra de Fatih Akin. Ainda no primeiro ato do filme, ela tenta o suicídio, este auto-sacrifício de um sujeito que perdeu o gosto de viver após ser privado de seus vínculos afetivos mais amados. Um suicídio que ela quase consuma: após cortar os pulsos e deitar-se na banheira, cuja água vai rapidamente se tingindo com o escarlate do seu sangue, ela enfim se agarra à última corda que a prendia aos vivos, a mensagem de seu advogado que anuncia a descoberta da autoria do crime – “foram os nazistas, a polícia os prendeu!”.

A sede de Justiça talvez tenha sido a força que a fez levantar daquela banheira onde, alguns minutos depois, estaria afogada e morta. Quando esta ânsia de Justiça é malograda e os réus ganham sua absolvição, ela perde todo o esteio nas instituições jurídicas. A mulher dilacerada, que aprendeu amargas lições na escola do sofrimento recente que o destino lhe impôs, agora é impelida, no terceiro ato do filme, a um processo de vingança que para ela já tornou-se visceralmente inextricável de uma fome de justiça.

Fatih Akin e Diane Kruger

Nesta fome de justiça que transcende a própria racionalidade e torna-se um vulcão de afetos imperiosos está a beleza do ímpeto violento de Kátia. Nisso está a chave para compreender porque o cinema de Fatih Akin é mais profundo, cheio de compaixão e empatia, repleto de compreensão ampla da condição humana, do que o cinema frequentemente raso e pipoquento do Tarantino – que cometeu Bastardos Inglórios, Django Livre e os Kill Bills, fortes referências na produção fílmica recente sobre o tema da Justiça e da Vingança, sempre transformando as cataratas de sangue jorrado numa espécie de lucrativa commodity.

violência animada pela ética, ou a vingança entremesclada com a fome de justiça, aparece de modo muito forte em Aos Pedaços, um filme que atinge alturas que Tarantino nunca soube explorar. O filme também é interessantíssimo quando adere ao “drama de tribunal”, na melhor tradição de Sidney Lumet (Doze Homens e Uma Sentença), Otto Preminger (Julgamento em Nuremberg) e Stanley Kramer (O Vento Será Sua Herança).

A irrupção de ódio de Kátia, no tribunal, após ouvir a médica legista relatar suas experiências no IML com o cadáver da criança explodida pela bomba, é compreensível ainda que tenha prejudicado a causa de Kátia. Quando esta mãe em luto parte pra cima da assassina, pra descer o cacete na neonazi Möller, isto é certamente uma irrupção selvagem naquele ambiente controlado e esfriado do tribunal, uma quebra de protocolo que as mentalidades protocolares não aceitam com facilidade. Mas de todo modo é difícil não se identificar com a justeza do ato em que a indignação represada rompe os diques e se manifesta aos urros.

É esta selvagem irrupção do afeto indignado que se comunica ao espectador e torna esta obra um daqueles raros casos em que a arte é a escola do sentimento, a universidade da ética. Foi assim também com a personagem magnífica interpretada por Rachel Weiss na subestimada obra-prima de Fernando Meirelles, O Jardineiro Fiel (2005), em que Tessa, que no filme é vítima de uma morte injusta, tem sua vida e obra reanimadas pelo ímpeto de seu viúvo dilacerado, o constant gardener do título, que celebra uma vida arrefecida replantando as sementes das lutas que animaram a vida de ativista de Tessa. 

A atuação de Diane Kruger, evocando a linda interpretação de Weiss no filmaço de Meirelles, também transmite muito bem a noção de uma mulher que, rompendo com as correntes do comportamento apropriado, deixa sua emotividade e seu radar ético, sentimentalmente carregado até o talo, guiá-la no sangrento labirinto do mundo.

Não há dúvida de que haverá quem queira tacar pedras condenatórias no comportamento de Kátia no 3º ato do filme: ela estaria sendo louca, incivilizada e aderindo à Lei de Talião. Ela estaria recusando o caminho apropriado concedido pela justiça burguesa, que seria entrar com recursos e apelações contra a absolvição dos assassinos. Não estou entre estes espectadores que sacam as pedras para atirá-las a uma mulher já demasiado dilacerada; é verdade que ela adere à lógica da retaliação, que quer pagar aos assassinos na mesma moeda, que inclusive fabrica uma bomba caseira idêntica à que o casal neonazi usou no atentado.

Mas dois elementos que o filme de Fatih Akin apresenta tornam o quadro bem mais complexo do que o simplismo de julgar que uma Kátia tresloucada, indignada com o veredito baseado no in dubio pro réu (na dúvida, a favor do réu), simplesmente decidiu-se pelo ancestral “olho por olho, dente por dente”.

O primeiro elemento é a belíssima cena em que ela coloca a bomba debaixo do trailer dos assassinos, afasta-se para aguardar que retornem do cooper, quando planeja explodi-los através de um controle remoto. A súbita aparição de um belo pássaro, pousando no retrovisor do veículo, fazendo suas inocentes doçuras aladas na brisa da manhã, faz com que um insight se acenda em Kátia: suponho que ela tenha pensado que aquele beija-flor inocente não tinha nada a ver com os descalabros humanos e que não era justo explodi-lo junto com os alvos de seu atentato vingativo-justiceiro. Ela decide adiar seu ataque e mudar de plano.

O segundo elemento é a conclusão do enredo através do sacrifício supremo, da atitude kamikaze, que enfim Kátia consuma. Isto estabelece uma diferença radical entre os dois atos de bombardeio: quando o casal Möller perpetrou o atentado que matou pai e filho e lançou Kátia à condição de viúva amputada de sua criança, eles permaneceram ilesos e imunes, sem ferimentos. Assassinaram sem que seus corpos tenham sido sequer arranhados. Kátia, de modo contrastante, decide-se por colocar um ponto final em sua existência cuja dor, angústia, solidão e dilaceramento nenhuma droga neste mundo seria capaz de aplacar. E assim, abraçada à mochila que aninha a bomba, decide encarar pela última vez os algozes de sua família, num gesto bastante curioso para uma mulher de aparência em tudo similar ao estereótipo da “ariana”-germânica: é o ato do suicide bomber, terrorista suicida, que costumamos conectar ao soldado jihadista muçulmano.

É um desenlace que, de certo modo, evoca o final de Dogville (Lars Von Trier), quando Grace, após todas as opressões que sofreu naquela Cidade do Cão em que foi abusada sexualmente e escravizada brutalmente, decide decretar: “Se há alguma cidade que, excluída do mapa, deixa como resultado um mundo melhor, é esta aqui.” Grace, utilizando o poder que lhe concede o poderoso gangster que é seu pai, decide-se pelo genocídio e pela limpeza étnica, numa irrupção de vingança cuja única gota de misericórdia se manifesta pelo cachorro, que ela permite que fique vivo.

Já Kátia, com o seu sacrifício supremo, seu suicídio kamikaze, a um só tempo liberta-se da dor intolerável que tornou-se o tema in ritornello de sua dolorida e insuportável existência de dilacerada. Ela também conduz os corpos vivos dos algozes neo-nazis a se tornarem também pedaços incinerados. Talvez seja verdade que na base do olho por olho e do dente por dente terminaremos todos cegos e banguelas. Talvez tenha uma dose de razão quem queira julgar que Kátia agiu de modo errado, do ponto de vista ético e jurídico, na última atividade de sua vida. Mas volto a dizer: nesta personagem, após testemunhar com empatia seus dilaceramentos, eu não ousaria tacar pedras.

Hannah Arendt em 1941. Fotografia de Fred Stein (1909-1967).

Num dos trechos mais surpreendentes de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt argumentou em favor da pena capital que terminou por ser aplicada ao criminoso nazista pelo tribunal israelense. Arendt, reativando um argumento semelhante a “não devemos ser tolerantes com os intolerantes”, disse que ao ter se envolvido, durante anos, em atos de extermínio em massa de pessoas com quem convivia no mundo comum, Eichmann tornou-se veículo da banalidade do mal que massifica e dissemina a atitude tóxica do “não permito que você viva no mesmo mundo que eu”.

São justamente as pessoas que são incapazes de conviver com a pluralidade intrínseca à condição humana, que não sabem respeitar a diversidade que constitui o múltiplo colorido da humanidade, que assassinam este colorido por razões racistas e supremacistas, que tornam-se assim indignas de viver.

Acredito que, sem filosofias, mas com os atos éticos nascidos de suas vísceras dilaceradas e de sua psique transtornada por sofrimentos em demasia, Kátia tenha chegado a uma conclusão semelhante e tenha, com o fim de sua vida, expressado o que Arendt expressou: em tempos sombrios, os exterminadores da diversidade e os propagadores das intolerâncias, que agem pela “limpeza étnica” e pela diminuição da pluralidade do mundo, são os únicos que merecem ser exterminados e os únicos indignos de nossa tolerância. Porém, Kátia sabe também que, ao assassinar os assassinos, torna-se ela mesma uma assassina, e talvez não conseguiria viver consigo mesma na mescla insuportável de luto e culpa. Por isto, o sacrifício supremo de si no ato de sacrificar os outros.

Eduardo Carli de Moraes, jornalista e filósofo, professor do IFG.
Artigo escrito em 11 de Abril de 2019 para a sessão de crítica cinematográfica
Cinephilia Compulsiva de A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com).

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Leia também: Resenha de Aníbal Santiago
Descubra outros filmes: Sobre Dogville de Lars Von Trier >>>

CONTRACULTURAS: Laboratórios de outras formas de existir – Sobre o legado de Luiz Carlos Maciel

“A liberdade se dá como conquista porque só existe como empenho de libertação”, escreve Luiz Carlos Maciel (1938 – 2017) em seu texto Ontologia da Liberdade (RJ: 2014, p. 268). Nenhuma liberdade cairá do céu, chovendo de graça no colo de quem nada fez por ela. Pois toda liberdade é conquistada por aqueles que estão empenhados no trampo infindável de libert-ação. 

Eis uma das lições de Maciel, cognominado “Guru da Contracultura” no Brasil. Um cara que foi figura-chave na determinação dos destinos da cultura brasileira na segunda metade do séc. XX, em especial por seu envolvimento intenso com a Tropicália. Descrita como fruto da “necessidade de uma arte popular de ponta, de caráter internacionalista”, a “rebelião tropicalista” é compreendida por ele não apenas como “uma estética de vanguarda”, mas como um movimento que “ofereceu uma nova visão da chamada ‘realidade brasileira’, sem as limitações ideológicas tradicionais” (MACIEL, 2014, p. 165).

Para resistir aos encantos nefastos e paralisadores das ideologias reinantes, que nos querem adestrar para conformismos indignos e vidas fúteis-inúteis, é preciso aprender nas escolas de transgressão e subversão. Com hippies e punks, com beatniks griots, com MCs e rastafaris, temos muito a aprender. Desde que queiramos cumprir a imanente missão que anima tantas vidas cujas criações culturais vão contra a corrente.

“Minha geração”, escreve Maciel, “foi marcada pela política. Achávamos que tínhamos a missão sagrada de libertar nosso país da dominação, nosso povo da exploração, nossas vidas da neurose e nosso planeta da catástrofe. E o meio adequado para atingir tais objetivos era a política. Pelo menos, foi isso o que Sartre nos ensinou.” (Geração em transe, memórias do tempo do tropicalismo,pg. 25 e 26)

Na aprendizagem com as vidas que saíram dos eixos, que deixaram-nos como legado o exemplo de suas singularidades inimitáveis, podemos nos libertar. Como só o fazem aqueles que, ao se moverem, sentem-se as correntes que os prendem – para lembrar um pensamento emblemático da Rosa Luxemburgo.

As contraculturas nos ensinam a sermos nós mesmos, para não decairmos ao status triste de indivíduos que se tornam ovelhas brancas nos alvos rebanhos das conformidades estúpidas. Nenhum mérito ou valor no ethos de quem somente faz mímese do que a sociedade impõe como modelo dominante. As contraculturas, como na música celebrizada por Doralyce e Bia Ferreira, nos ensinam a levantar a voz dizendo “foda-se o padrão!”

Maciel produziu uma obra magistral em que é capaz de interlocução intensa com tudo o que já existiu de mais libertário naquilo que o ser humano já produziu sob O Sol da Liberdade, título de seu belo livro publicado em 2014. Em intenso diálogo com o Existencialismo (Sartre, Camus, Kierkegaard, filtrados por seu mestre Gerd Borheim), Maciel foi também um discutidor e disseminador da Psicologia subversiva de W. Reich, H. Marcuse e Norman O. Brown. Além de ter mergulhado nas obras de visionários psicodélicos como Timothy Leary, Alan Watts e Carlos Castañeda. Tudo isso em íntima conexão com aquilo que o Brasil produziu de melhor no campo das culturas que vão contra a corrente.
 
Da Antropofagia oswaldiana à Tropicália, as Contraculturas brasileiras difundiram o convite para que fôssemos, todos e cada um, singulares e conectíveis,mas jamais uniformizados e em uníssono. Se quisermos ser avessos e contrários aos que nos querem rezando de joelhos, resignados às injustiças e apáticos suportadores de tiranias, devemos beber em largos goles as fortes e salutares poções contraculturais.

As diferentes contraculturas – que merecem ser pensadas sempre no plural, nunca no singular – são laboratórios de outras formas-de-existir, outros modos-de-ser. Se, nos EUA, costumamos conectar contracultura com “gurus” como Allen Ginsberg e Ken Kesey, no Brasil poucas figuras são mais emblemáticas desse modo-de-existir da contraculturalidade  do que Luiz Carlos Maciel – um cara que pôde transformar um livro de memórias, como é Geração em Transe, em uma espécie de tratado estético-político para a cultura contrahegemônica em terra brasilis.

Neste livro magistral, focando sua atenção sobre 3 gênios, Maciel sobrevoa nossa contracultura nas asas de Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Correa e Caetano Veloso. E acaba pintando um excitante retrato das transas e transes de toda uma geração que acreditava de maneira entusiástica nas potências libertárias, emancipatórias e revolucionárias da arte:

Luiz Carlos Maciel (1938 – 2017)

“Uma das descobertas fundamentais de minha geração foi a de que a experiência pessoal, de cada um de nós, tem uma relação íntima, essencial, com a experiência coletiva, social. Trata-se, no mínimo, de uma relação de sincronicidade, como diria C. G. Jung, que fez com que a minha vida e a vida de todos, a vida comum, tivessem sido interdependentes. Numa visão mais radical, pode-se dizer que se trata, no fundo, de uma relação de pura identidade: a vida de todos e a de cada um são, na verdade, uma e a mesma coisa.  

Se alguém pedisse para dizer a principal crença da juventude da minha geração, eu diria sem titubear: a atribuição à arte de uma função transformadora da sociedade. Acreditava-se realmente que a arte poderia modificar a maneira das pessoas viverem. Essa crença impulsionou a minha geração e levou-a para caminhos inusitados, surpreendentes, criadores.

Os jovens daquela época pensavam que o sentido da vida humana era transformar. O quê? De preferência, tudo, mas principalmente o que estava estabelecido pela nossa cultura ocidental e burguesa. O não ao establishment se refletia em posturas iconoclastas, em negativas irreverentes, em atitudes inovadoras – às quais atribuíamos um grande valor. A arte colocava a mudança na ordem do dia.” (MACIEL, Geração em Transe – memórias do tempo do tropicalismo, Ed. Nova Fronteira. pg. 15  e 73.)

Glauber Rocha, como fica evidente desde o título do livro, é um dos protagonistas de Geração em Transe, encarnação do gênio contracultural que seguia a risca a práxis sintetizada no lema: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.” Para Glauber, fazer filmes importa bem mais que somente assisti-los. Ainda que tenha sido também um crítico de cinema, Glauber era essencialmente um criador cinematográfico, um dos maiores inovadores na história da 7ª arte, um espírito indomável, jamais adestrável, declarado como inimigo público pela Ditadura Militar – tal como revelado pela reportagem da Socialista Morena Cynara Menezes:

Glauber – cuja juventude foi exposta com maestria por Nelson Motta em A Primavera do Dragão – propunha de modo explícito um cinema de guerrilha que tivesse como alvo supremo “combater a ditadura estética e econômica do cinema imperialista ocidental ou do cinema demagógico socialista.” (citado por Maciel, p. 49)

A recusa desses dois modelos – nem os filmes Yankees, nem os filmes Stalinistas – fez de Glauber o aventureiro que cria caminhos próprios e marca a história de nossa arte com 20 e poucos anos de idade ao lançar a tríade magnífica de filmes com que lançou seu metereórica carreira: Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe.

Maciel relembra seu amigo e colaborador como um cara de personalidade forte e irreverente, que sabia dar ordens com determinação aos outros atores e agentes culturais com quem interagiu. O livro é repleto de crônicas saborosas que envolvem figuras como Helena Ignez, musa glauberiana e Glamour Girl da Bahia, que enquanto noiva do cineasta contrabandeava material escrito por Glauber para a imprensa, já que ela era colunista social do Diário de Notícias de Salvador.

O florescimento cultural conexo às figuras de Glauber, Helena, Maciel, Abujamra etc. envolve um entusiasmo infatigável pela produção ou criação do novo –  o que demanda não só talento mas coragem.   Sabendo da imensa força cultural da Bahia de seu tempo, o jovem Glauber foi uma espécie de visionário da Tropicália antes desta nascer: segundo Maciel, “Glauber anteviu tudo com suas privilegiadas antenas de artista.” (p. 55)

Segundo Maciel, Glauber “botava todo mundo pra trabalhar” e “não podia suportar a complacência, a indulgência, a inação” (p. 91). Acreditava no cinema como forma de ação – e foi assim que ajudou a pôr em transe criativo toda uma geração. Uma das mais corajosas, ousadas e inventivas que já botou em efervescência a cultura brasileira. 

Hoje já é bem conhecida a responsabilidade de Glauber na eclosão da revolução estética tropicalista, cujos cabeças beberam muito na experiência de Terra em Transe (1967). Segundo Maciel, 1967 foi de fato um “ano excepcional na história da cultura brasileira, só comparável a 1922, com a eclosão do Modernismo” (2014. p. 143).

Naquela translação do planeta ao redor do Sol de 1967, em plena Ditadura Militar, também eclodiram O Rei da Vela, peça do Teatro Oficina atualizando Oswald de Andrade, PanAmérica, romance experimental de José Agrippino de Paulo, e a canção “Tropicália” de Caetano Veloso, batizada em homenagem à exposição de Hélio Oiticica e que batizaria o movimento nascente.

Comentando um livro crucial, Maciel aponta: “Para os norte-americanos Ken Goffman e Dan Joy, em A Contracultura Através Dos Tempos (2007), a nossa Tropicália é uma contracultura. Como a contracultura norte-americana, o Tropicalismo enfrentou a censura política, tanto da direita quanto da esquerda, os preconceitos morais gerados pela repressão sexual, os cânones rígidos da estética tradicional, entre outros – em suma, o establishment, em seus traços essenciais -, a alienação, a reificação e a serialização.” (2014: p. 274)

Para que pudesse produzir inovação e criatividade em intensos jorros durante seu curto período de vida, antes de ser “abatida em pleno vôo pelo A.I. 5” (como diz Tárik de Souza), a Revolução Tropicalista apostou tudo na criação baseada na mestiçagem, no hibridismo, no sincretismo, no amálgama, processos distanciados de todos os purismos e puritanismos que sempre prejudicam o nosso empenho libertário e criativo. 

Jorge Mautner (baixe a discografia dele) enfatiza o caráter de amálgama para definir a própria natureza da cultura brasileira e de sua criação incessante. A relação entre o modernismo de 1922 e o tropicalismo de 1967, por exemplo, é reveladora. A Tropicália, nítido exemplo de amálgama superior expressa o próprio espírito dessa cultura, sua liberdade real. Caetano Veloso diz que os Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, de Oswald de Andrade, foram ‘uma redescoberta e uma fundação do Brasil’. E destaca, nos textos de Oswald, a antropofagia como uma metáfora da devoração de toda informação vinda de fora, a exemplo da deglutição do bispo Sardinha por nossos índios, e, portanto, do próprio fundamento da nossa nacionalidade. 

Os manifestos de Oswald teorizam, pela primeira vez, o sincretismo brasileiro como a expressão mais plena da índole da cultura que estamos construindo. Ainda segundo Caetano, ‘a palavra-chave para entender o tropicalismo é o sincretismo’, ou seja, o amálgama de Mautner. Emancipado de coações naturais e históricas, independente em face de censuras, preconceitos e cânones, o sincretismo, não só o tropicalista, mas do brasileiro em geral, é liberdade real. 

Mesmo o primeiro que se apresenta, o sincretismo religioso brasileiro só foi possível graças à nossa vocação originária para a liberdade real. A umbanda é uma invenção brasileira que funde orixás africanos e santos católicos; as seitas criadas para a ingestão da ayahuasca são outra invenção brasileira que tem raízes ideológicas no catecismo católico, mas transformadas por uma mitologia indígena. A união entre as duas correntes, no que alguns chamam de Umbandaime, em que giras de umbanda são realizadas tendo o daime como curiador, parece culminar o sincretismo religioso brasileiro. 

O avanço do processo cultural brasileiro depende, direta e essencialmente, do sincretismo e, portanto, da liberdade real.” (MACIEL: 2014, p. 275 – 276)

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 2019

 

VÍDEOS RECOMENDADOS:





Orquestras nas Favelas: Desafios da inclusão cultural e da educação democratizada são retratados no filme “Tudo Que Aprendemos Juntos” (2015), de Sergio Machado

“Tudo que Aprendemos Juntos” (2015), do cineasta baiano Sergio Machado, estrelado por Lázaro Ramos e com participações dos rappers Criolo e RAPPIN HOOD, elege o ensino da Música numa comunidade desfavorecida pela Fortuna como premissa para explorar as fraturas e desafios da sociedade brasileira, enxergada através de um de seus microcosmos-em-convulsão: a favela de Heliópolis (SP).

O filme centra sua narrativa no professor de violino Laerte, considerado em sua infância como um músico prodígio, de ascensão meteórica, transformado em educador “durão” e não muito paciente.

Ele realiza aventuras pedagógicas na favela trampando para uma ONG: sua missão é conduzir alunos que não sabem ler partituras, e que estão mais acostumados com os bailes funk e os rappers do que com as composições de Beethoven, a se tornarem uma autêntica orquestra de música clássica.


Enquanto avança neste trampo desafiador em que entra em contato com uma série de mazelas sociais que afligem seu alunado, Laerte esforça-se para passar em um prestigioso concurso que lhe abriria as portas para tocar na Osesp – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

A crítica de Omelete destaca:

“Audacioso quando o assunto é Paganini, mas temeroso frente à dificuldade dos acordes de Bach, Laerte cresceu pobre na Bahia e teve chance de estudar violino quando pequeno com o apoio do pai (expresso apenas na voz de Milton Gonçalves).

Figuras como ele são frutos do redesenho sociológico do Brasil tracejado a partir da eleição de Luiz Inácio Lula a Silva em novembro de 2002: ele é conseqüência de um rearranjo da pirâmide social do país, com o desequilíbrio da classe média e a ascensão das parcelas C e D da pirâmide populacional.

Com o acesso destas ao consumo, elas passaram a se subjetivar aos olhos da arte, sobretudo do cinema, que deixou de ver essas classes apenas quantitativamente, como números de censo, e passou a vê-las sob um prisma qualitativo, entendo suas angústias suas necessidades. Dessa operação surgiram personagens como a doméstica Val, vivida por Regina Casé em ‘Que Horas Ela Volta?’, de Anna Muylaert. Val e Laerte têm, portanto, uma parentela sociológica.”

O filme de Sergio Machado foi inspirado na história real de criação da Orquestra Sinfônica de Heliópolis pelo Instituto Bacarelli e baseado na peça “Acorda Brasil” de  Antônio Ermírio de Morais. A grande imprensa já destacou a iniciativa: como nesta matéria de VEJA que fala na “beleza altissonante” deste projeto e o evidencia com “reportagem fotográfica que mostra a revolução que o projeto do Instituto Baccarelli tem promovido na vida de jovens da favela”.

Fotos: Ricardo Matsukawa

O filme revela as dificuldades e desafios de um professor que busca orquestrar alunos envolvidos no cenário dificultoso das periferias onde a violência policial, as gangues do narcotráfico, os atalhos criminosos para a grana fácil (como a clonagem de cartões de crédito), dentre outras tretas, parecem tornar altamente improvável o sucesso de uma Orquestra Clássica da Perifa. Apesar dos perrengues, estes batalhadores da ralé (para emprestar expressões do sociólogo Jessé Souza) vão longe. Ainda que muitos tenham suas asas cortadas. A tiros.

Na resenha de Plano Crítico, destaca-se que este “filme de inclusão”, de tom “engajante”, traz os cidadãos favelados em uma vibe em que são revelados em todo o seu potencial para o extraordinário – como é o caso de Samuel, adolescente ultra-talentoso no violino, talvez destinado à glória, mas que tem sua vida ceifada prematuramente pela violência urbana:

“O ambiente de favela (ou comunidade), em geral ligado a um estilo musical como o funk ou o pagode é “invadido” pelo clássico e Sérgio Machado o faz de forma poética e orgânica, quebrando o tabu de que tais melodias são excludentes e reservadas apenas a pessoas de maior poder aquisitivo. A cultura pode, sim, atingir a todos e o clássico ganha ainda um caráter único por resgatar no interior de cada um sentimentos muito específicos.”

Acusado pela Ilustrada da Folha de São Paulo de “otimismo” em demasia, o que o tornaria “inverossímil”, o filme na verdade é bastante realista, de tom emocional bem lúcido. Mostra com uma boa dose de pessimismo, no destino de Samuel, a aniquilação brutal de jovens negros promissores que não conseguem romper as muitas barreiras que o racismo e a injustiça de classe interpõe a seus caminhos.

Ainda que uma leitura meritocrática possa ser realizada, como se Laerte fosse o emblema do quanto se pode ir longe na vida a partir do próprio mérito, uma outra perspectiva é possível. Uma leitura alternativa à ideologia meritocrática veria no filme o conto trágico sobre as imensas dificuldades que as populações periféricas e faveladas possuem para acessar uma Cultura que nossa sociedade insiste em considerar como privilégio de classe.

Transcendendo o clima de filme-de-entretenimento sobre a escolinha-de-música que marca uma obra como “Escola de Rock” (de R. Linklater), a obra de Sergio Machado atinge sua maior grandeza e intensidade em uma cena particularmente enfurecida em que uma insurreição toma conta de Heliópolis após a polícia assassinar Samuel, o garoto-promessa da turma de música.

Este homicídio estatal de alguém que a comunidade reconhece como inocente e cheio de potencial é descrito no filme como estopim para uma sublevação popular que acarreta um desencadeamento de rebeldias. O levante toma a forma de ônibus incendiados, barricadas improvisadas e violentos conflitos com a polícia, xingada de assassina e cruel – e os “porcos fardados” são aqueles que os moradores tentam expulsar da comunidade como se estivessem numa Intifada Palestina.


É nestas cenas que “Tudo Que Aprendemos Juntos” alça-se à beleza punk e perturbadora de uma outra obra que marca a história recente do cinema paulista, “Riocorrente” de Paulo Sacramento. Dialoga também com o “Jonas” de Lô Politi – que tem na participação em ambos do Criolo, fazendo ponta como ator, um ponto-de-ligação -, obra que se utiliza do Carnaval de São Paulo, e em especial de um carro alegórico que é uma imensa baleia, como cenário onde aninhar um drama incendiário de paixão indomável, sequestro improvisado e esperanças reduzidas a cinzas.


Alguns sonham com um país onde enfim floresçam orquestras nas favelas e escolas de qualidade nos guetos. Alguns colocam-se em ação para a construção coletiva de uma educação mais inclusiva e democrática. O próprio ideal da Cultura Viva de Gilberto Gil e Juca Ferreira, através do revolucionário do-in antropológico que espalhou pontos de cultura interconexos pelo território do país, hoje encontra-se detonado e mal pago pelo Bozonazismo que pilota o Estado feito um ébrio (de ópio, de ódio!) no leme dum Titanic. Aos sonhadores de melhores dias para a educação e a cultura, o presente pode assustar pelo pesadelo pesado de sua distopia: tudo é tão difícil e fica tão emperrado neste país que parece condenado, como dizia Millôr, a ter “um longo passado pela frente”!

Ao fim de Tudo Que Aprendemos Juntos fica na boca, na mente, na ressaca dos olhos, uma confusa resposta à questão que o título coloca: talvez não tenhamos aprendido muito, como país, já que seguimos tombando em velhos erros e insistindo em sórdidos equívocos (como empoderar homens brancos e ricos com tendências autoritárias, ímpetos ditatoriais e idolatrias por torturadores e genocidas…).

Encarnados na expressão e na postura deste magistral artista que é Lázaro Ramos ficam a agridoce e indignante sensação de que, neste país de desigualdades desastrosas e injustiças indignantes, mesmo os mais batalhadores e talentosos muitas vezes acabam triturados e detonados pela Máquina de Desumanização vigente. Quantas Marielles, quantos Samuels, ainda vão ter que morrer?

Os poucos que, saindo do gueto, tornam-se “vencedores” – como Laerte na Osesp – não nos oferecem o consolo edulcorante e enjoativo fornecido pela Meritocracia, ideologia anestesiante propagada por quem está acima na pirâmide social. Estes poucos que vencem nos lembram de que são exceções e não regras, e que as injustiças ancestrais e infelizmente conservadas – como o racismo estrutural – prosseguem tornando a ideologia meritocracia uma piada de mau gosto.

Longe de vivermos a utopia onde triunfam os melhores e mais meritórios, a sensação que sobra é a de um sempre tenso e explosivo conflito entre a Elite do Atraso, ciosa de seus privilégios e que usa a brutalidade da força para defendê-los, e a Massa Excluída, que pastores e políticos desejam convencer à resignação mas que está sempre a um passo da insurreição.

Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro

 

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PROPOSTA DE OUTROS FILMES PARA DEBATER OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO

  • ELEFANTE / Gus Van Sant
  • A ONDA  / Dennis Gansel
  • CONRACK / Martin Ritt
  • O SUBSTITUTO / Tony Kaye
  • SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS / Peter Weir
  • INHERIT THE WIND / Stanley Kramer

 

“O Muro”, documentário de Lula Buarque Hollanda, revela um Brasil com fratura exposta

O MURO, documentário de Lula Buarque de Hollanda (2018, 1h 27min), produzido pelo Canal Curta, foca sua atenção sobre o “Muro do Impeachment”, erguido em Brasília durante o processo de deposição da presidenta Dilma Rousseff em 2016. O filme considera este muro como emblema de uma pátria com fratura exposta, em estado de acirramento da guerra de classes, em que o mito fundador da “cordialidade” brasileira jaz por terra.


Em entrevista à Revista Select, o cineasta disse: “Ver Brasília, a capital utópica, aquele lugar específico, imaginado para agregar, com um muro que dividia famílias, era a imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar. E não existe democracia sem diálogo” [1].

Lula Buarque de Hollanda.


Contando com a colaboração de grandes intelectuais – como a psicanalista Maria Rita Kehl, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a economista Laura Barbosa, o advogado Ronaldo Lemos, o historiador James Green, dentre outros – o filme parte do exemplo brasileiro para compreender um fenômeno global.

Por isso, estabelece analogias com outros Muros, tanto de nosso passado (como o de Berlim) quanto de nosso presente (como aquele que segrega Israel e Palestina, como aquele que se estende pela fronteira entre EUA e México, como aqueles que se multiplicam pelo mundo para conter refugiados e imigrantes ilegais…).

Em um artigo instigante chamado “A Era dos Muros”, Giselle Beiguelman escreve sobre aquela bizarrice segregatória que pintou no imenso gramado da Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional, na época em que foi votado o impeachment de Dilma (re-eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos):

Brasília – Manifestantes pró e contra o impeachment ocupam a Esplanada dos Ministérios durante o processo de votação na Câmara dos Deputados (Juca Varella/Agência Brasil)

“A barreira, erguida por presidiários, tinha a finalidade de separar os manifestantes, de esquerda e de direita, contra e a favor do impeachment, dividindo a Esplanada dos Ministérios ao meio. A partilha estava longe de marcar um momento de equilíbrio democrático. Ao contrário, assinalava uma fissura na vida política do País, que tinha sua metáfora na imagem do Eixo Monumental fraturado. O espaço projetado para o encontro era tristemente atualizado como o da total desagregação do consenso político.” [2]

Estive lá naquele dia histórico – 17 de Abril de 2016 – em que a maioria dos deputados votou “sim” ao prosseguimento do processo de impedimento da presidenta, ainda que as tais “pedaladas fiscais” e os tais “decretos de crédito suplementar” não tenham sido convincentemente comprovados como crimes de responsabilidade pelos quais a suprema mandatária merecia perder seu cargo. Ao contrário, ouvimos uma enxurrada de votos em prol da família, da Bíblia, de Deus, dos bons costumes, dos cidadãos de bem, sendo espetacularmente mobilizados ao microfone por hordas de deputados investigados por crimes de colarinho branco.

Não pude me abster de tomar posição em um dos lados da barricada, e estive lá entre os que gritavam “não vai ter golpe” e que vibravam a cada “não” ao impeachment que vinha das bancadas de partidos como PT, PSOL e PC do B. Sim, eu estava lá engrossando o caldo do Lado Vermelho da Força, e tratando como inimigos e proto-fascistas os “amarelinhos” lambe-botas de Moro que estavam do outro lado do Muro. Lembro-me de que foi um dia que começou na maior empolgação, com a belíssima e massiva mobilização cívica que tomou as ruas de Brasília, mas que terminou na maior tristeza, com a sensação de termos sido derrotados por uma corja de bandidos engravatados que estavam conseguindo estuprar a jovem e frágil democracia brasileira através de um mal-disfarçado golpe de estado. 

Naquele fatídico ano de 2016, em que viajei 3 vezes para a capital federal com uma câmera na mão e mil idéias e indignações fervilhando no coração e na mente, eu estava animado por uma noção de tête-à-tête com a história que exigia a presença crucial da figura do documentarista. Como testemunha ativa desta História presente, produzi então quatro curtas-metragens que constituem uma espécie de etnografia a quente das ruas brasilienses em tempos de golpe: O Céu e o Condor, A Babilônia Vai Cair, Levantem-se! e Ponte Para o Abismo.




Por ter me mobilizado para documentar estes tempos intensos e instáveis, tenho muito interesse por conhecer e estudar a obra de outros documentaristas que estavam fazendo o mesmo que eu – decerto com mais fomento, experiência e capacidade técnica do que eu tinha então a meu dispor. Tanto que já esmiucei O Processo de Maria Augusta Ramos em outro artigo.

Já o filme de Lula Buarque de Hollanda, que agora me ocupa, pareceu-me um filme instigante, provocativo, complexificador, mas não oferece nenhum consolo fácil, nenhuma solução para nossos antagonismos sociais cada vez mais irreconciliáveis.

Em uma crítica do filme chamada “Crônica da Polarização”, Carlos Alberto Mattos encarou um tema difícil: julgar se o documentário seria “imparcial” e se teria errado em somente nomear nos créditos as “pessoas importantes” que contribuíram com o filme, deixando no anonimato muitas das vozes que ouvimos durante a película:

“Ajustando o foco no muro, o filme de Lula Buarque de Holanda assume um certo caráter conceitual, em que as paixões de um lado e de outro se equivaleriam. Seria, portanto, um filme imparcial – essa “virtude” que tantos cobram de documentários políticos como “O Processo”.

Assim, pessoas favoráveis e contrárias ao afastamento da presidenta aparecem posando para a câmera, caladas e “fantasiadas” com seus adereços, em meio a manifestações. Enquanto isso, vozes desencarnadas em off declamam seus slogans e fazem a apologia de suas respectivas posições. Alguns comentários ultrapassam a superfície do óbvio ou do preconceito e soam mais analíticos ou supostamente ponderados, evidenciando tratar-se de gente culta e estudiosa do assunto. Estes serão apresentados e nomeados nos créditos finais, ao passo que os populares ficarão sem identificação. Uma divisão de classes culturais se coloca aí, separando os “de nome” dos anônimos.

O efeito é também de despersonalizar a discussão, fazendo com que tudo o que é dito permaneça numa nuvem indefinida de opiniões. Dessa maneira, O MURO adota um distanciamento cauteloso em relação ao clima reinante, como se almejasse uma mirada científica, neutra, desapaixonada. Mas eis que, em dado momento, como se não resistisse ao apelo da editorialização, Lula insere uma sequência de imóveis e propriedades postos à venda na época do golpe, como a querer confirmar os argumentos de quem acusava o governo Dilma de “afundar o país”. Além de estar completamente deslocado da lógica narrativa do filme, esse trecho tampouco se coaduna com o debate em pauta, uma vez que o impeachment não dependia da crise econômica, mas de supostas irregularidades fiscais.

Depois de oscilar entre os dois lados do muro, o filme se põe a tratar dos que ficam em cima do dito cujo. As figuras do “isentão” e do “apartidário” entram na roda, aqui também na base de “uma opinião para cada lado”, como se o roteiro fosse construído numa balança. Daí a impressão de um filme interessado em parecer, também ele, “isentão”.

O terço final de O MURO se converte numa espécie de ensaio sobre os dualismos da política a nível global. Entram em cena as barreiras montadas na campanha americana que elegeu Trump, o anti-exemplo histórico do Muro de Berlim e os dilemas que cercam o muro entre palestinos e israelenses na Cisjordânia. É quando surgem as melhores reflexões sobre as ambíguas funções dos muros, no Brasil como no mundo. Uma das vozes desencarnadas comenta o que ninguém pode negar: o muro de Brasília simplesmente concretizava o que sempre houve no país, adormecido, reprimido ou dissimulado no mito da conciliação e da cordialidade brasileiras. Um mito definitivamente soterrado sob muitos muros.” [3]

“O Muro” merece ser reconhecido como uma obra muito relevante do cinema de não-ficção no país, com sua proposta ensaística e intento complexificador – pois “todo reducionismo é paupérrimo”, como opina no filme Luiz Eduardo Soares.

O filme sabe erguer o muro ao status de emblema de uma bi-polarização ideológica que é nefasta. O Brasil é muito mais complicado e multicor do que a representação simplória e simplista que gostaria de nos reduzir, de um lado, a coxinhas com camiseta da CBF (precursores dos Bozominions); de outro, petralhas que gritam contra o golpe (precursores dos “defensores do presidiário de Curitiba” do movimento Lula Livre).

Comentando sobre o processo de “fanatização”, não muito afastado de torcidas organizadas de futebol, o filme aborda a crise política de 2016 concedendo esta carga simbólica ao muro divisório, estrutura física monumental que impede os cidadãos em discórdia de sair na porrada.

Alguns podem argumentar que era um dispositivo de segurança necessário para adiar a eclosão da guerra civil. Outros podem afirmar que o muro foi um cala-a-boca na democracia, que pressupõe o diálogo amplo e irrestrito como solução das conflituosidades sociais.

Fazendo a crítica das práticas de segregação / apartheid, o filme aponta para um horizonte utópico: investir na construção de um mundo onde caibam todas as pessoas, conviventes na diversidade. Um tema já tratado, ainda que em outra clave, por Lula Buarque de Hollanda em um de seus filmes anteriores mais importantes: “Pierre Verger: Mensageiro Entre Dois Mundos” (1998). [4]


Nada indica que estejamos de fato caminhando neste sentido com a eleição de Bolsonaro, que é a Lógica do Muro piorada até as raias da insanidade, apimentada com populismo fascista, que vem para impor a segregação militarizada em um país desgovernado por um plutocracia.

Longe de ser a panacéia, a eleição de Bolsonaro é a piora da peste. E, neste sentido, “O Muro” tem a vantagem de ser uma obra de cinema que soa profética e que tem muito a ensinar inclusive ao futuro.

Em amanhãs aos quais já estamos condenados, não temos mais como evitar sermos governados por uma extrema-direita subserviente aos EUA, desejosa de ser capacho de Trump e do Império Yankee, em aliança com o sionismo israelita apesar dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo Estado Israelense (sob Netanyahu e anteriormente Ariel Sharon).

status quo tende a proteger os antigos e erguer os novos Muros da Segregação que mantêm permanentemente separados, de um lado, a Elite do Atraso, e do outro um povo com seus direitos massacrados, seus empregos precarizados e suas existências radicalmente vulnerabilizadas. De um lado, uma plutocracia em seus blindados; do outro, a massa dos matáveis (mas que se recusam, em resistência, a serem mortos). O futuro será cheio de muros – e cheio também daqueles que os derrubam em prol de um mundo mais diverso e multipolar.

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro –www.acasadevidro.com

Filme assistido em 09 de Janeiro de 2019, baixado a partir do fórum da Making Off. Faça o download do filme completo em torrent: https://bit.ly/2C81txo.


REFERÊNCIAS

[1] – Revista Select >>> https://www.select.art.br/lula-buarque-de-hollanda-lanca-o-muro/

[2] – BEIGUELMAN, Giselle. >>>https://www.select.art.br/era-dos-muros/.

[3] – MATTOS, C. A. >>> https://carmattos.com/2018/06/11/cronica-da-polarizacao/

[4] – Biografia e filmografia de Lula Buarque de Hollanda em Wikipedia >>> https://pt.wikipedia.org/wiki/Lula_Buarque

 

 

Cinebiografia da escritora Colette tematiza “ghostwriting”, empoderamento feminino e práticas queer

A escritora francesa Colette (1873 – 1954) é a deslumbrante protagonista da cinebiografia dirigida por Wash Westmoreland (Para Sempre Alice). Ela se notabilizou pelo sucesso estrondoso dos livros que escreveu como ghostwriter de seu esposo Willy – uma série de 4 romances centrados na personagem Claudine. Inicialmente atribuídos ao maridão, os livros já tiveram sua correta autoria restabelecida e hoje, na capa, é o nome de Colette (e não de Wily) que rebrilha.

Ao assistir à reconstrução histórica precisa que o filme nos oferta, é revelado ao espectador que esses livros estrelados por Claudine foram escritos, em larga medida, por uma Colette em situação de cárcere privado – o maridão Willy, quando a esposa não produzia literatura com a quantidade e a maestria que ele exigia, era trancada no quarto por 4 horas para que fosse forçada a produzir. Detrás de chaves, praticamente enjaulada, consultando suas próprias memórias e experiências biográficas, Colette produziu aqueles estouros literários que serviriam para construir a fama de seu pseudo-autor Willy.

O filme foca sua atenção no contexto de produção dos livros protagonizados por Claudine, best-sellers que eram devorados por toda Paris e que geraram um frenesi que o filme descreve como se fosse uma Beatlemania Literária. O sucesso foi tamanho que toda uma série de produtos invadiram o mercado, destinados a auxiliar as mulheres francesas a realizar uma mímesis consumista desta personagem que bombava na cena cultural da época. Todo mundo queria ser Claudine, e os fabricantes de batons e sapatos se aproveitaram espertamente disso.

Em uma das cenas mais dramáticas do filme, depois de descobrir que Willy vendeu os direitos autorais dos livros que ela escreveu, Colette faz a catarse de todo seu ressentimento e diz que se sentia, enquanto trancada naquele quarto, como uma escravizada (slaving away), oprimida pelo maridão sedento pelos lucros da venda de livros que ele não escreveu, mas cuja glória deseja roubar ao imprimir seu nome na capa e ao gozar dos elogios públicos nos salões chiques de Paris.

ruptura com Willy se dá em circunstâncias dramáticas que o filme também explora. Em uma cena notável, Willy pede a seu funcionário que lance às chamas todos os manuscritos originais dos romances, onde se revela a caligrafia da autora Colette. Desobedecendo à ordem de incinar estes manuscritos, de modo similar ao que fez Max Brod com a obra que seu amigo Franz Kafka lhe havia legado, com o pedido de que a destruísse pelo fogo, este assessor acabou tendo um papel de destaque no restabelecimento da autoria autêntica ao se recusar a seguir as ordens do patrão. Palmas pra ele. 

Colette – escritora cujas obras e posturas existenciais inspirará outras mulheres importantes da literatura, como Erica Jong (Medo de Voar) –  também ousou subverter os papéis de gênero convencionais. Aderindo a uma postura queer, rejeitando o matrimônio “careta”, ousando assumir seus relacionamentos não-binários, ela ousou confrontar os dogmas relacionais dos “quadrados”. Tanto que há no filme um bocadinho da pimenta lesbo-erótica que faz um pouco do charme de grandes películas contemporâneas, como Azul É a Cor Mais Quente, de Abdel Kechiche.

Por isso, o filme atua como uma edificante narrativa feminista e queer  que aponta para o empoderamento de Colette, que ousa sair das sombras a que estava relegada, sem reconhecimento por seus méritos literários. Mostra como ela vai rumo aos holofotes do teatro, assumindo uma persona performática, buscando expressar-se não apenas através das palavras, mas também pela dança, pela pantomima, pelo teatro.

A atriz inglesa Keira Knightley, que se notabilizou por atuar em adaptações de romances célebres de Jane Austen (Orgulho e Preconceito) e Ian McEwan (Reparação), manda bem na sua interpretação, auxiliada por sua beleza sutil, mas está longe de ser uma mobilizadora de afetos, capaz de comover, como as melhores atrizes de sua geração (prefiro, de longe, o trabalho de figuras como Natalie Portman, Rachel Weisz, Juliane Moore, Nicole Kidman…).

De todo modo, Colette  é um filme interessante, bem produzido, que instiga a conhecer a obra desta mulher que fez história com a pena na mão. Uma cinebiografia que merece ser vista, esmiuçada em críticas de viés feminista ou queer, discutida em salas-de-aula e que soma-se a uma maré montante de produções sobre grandes personalidades literárias femininas, visto que recentemente foram lançados filmes notáveis sobre Mary Shelley e Lou Andreas Salomé.