AINDA TEMOS A IMENSIDÃO DA NOITE – Por Renato Costa e Eduardo Carli em A Casa de Vidro

Na sessão de estreia do último 30 de janeiro de 2020, o Cine Cultura Goiás apresentou ao público goiano o filme longa-metragem brasiliense Ainda Temos a Imensidão da Noite. Trata-se de uma obra híbrida, corajosamente posicionada entre a música experimental da banda Animal Interior e a ficção cinematográfica de implicações político-existenciais urgentes, ainda que dissonantes, como bem sugere sua trilha sonora.

Karen (interpretada por Ayla Gresta) é uma designer e trompetista que sonha, junto a seus colegas de banda, em ‘viver da música’, apesar de enfrentar todas as dificuldades de manter dois trabalhos para ajudar nas despesas familiares, auxiliar sua mãe (Bidô Galvão) e, especialmente, cuidar de seu avô acamado (Fernando Teixeira).

O fato de morar no Gama, cidade satélite de Brasília, dificulta a integração de Karen à cidade, seu trabalho artístico e sua movimentação em torno da banda. Durante o filme vamos entender o lugar periférico que ocupa Karen e sua família, apesar da contribuição de seu avô na construção do Plano Piloto, área privilegiada do Distrito Federal.

Artur (Gustavo Halfeld) é o guitarrista que acaba de chegar de Berlim, trazendo consigo Martin (Steven Lange), um alemão que parece interessado na sonoridade da Animal Interior, mas especialmente no talento de Karen. Todos parecem muito envolvidos nos ensaios, mas a falta de público e reconhecimento desanima Artur e gera desgaste entre a banda. Cícero (Hélio Miranda) e Lara (Vanessa Gusmão) completam a Animal Interior como baterista e baixista, respectivamente. Todos lutam pela continuidade da banda ao promover pequenos shows em bares esvaziados, mas são constantemente levados ao ‘caminho mais fácil’, em uma cidade tomada pelo funcionalismo público, onde a saída da juventude é a estabilidade dos cargos administrativos na estrutura de Estado.

SINOPSE – Cansada de lutar por um lugar ao sol com sua banda de rock, onde é trompetista e vocalista, Karen decide ir embora de Brasília. Ela segue os passos do ex-parceiro de banda, Artur, que tenta a sorte em Berlim. O convite parte de Martin, amigo alemão com quem fecham um triângulo imprevisível. Meses depois, forçada a recomeçar em Brasília, Karen precisa entender o papel dela e o papel da arte na cidade que o avô ajudou a construir.

Influenciada por Artur e Martin, Karen vai tentar a sorte em uma Berlim conflagrada pela especulação imobiliária e pelo turismo predatório, onde os espaços públicos e privados sofrem um processo especulativo  e segregacionista (gentrificação) semelhante ao de Brasília, em sua origem.

Lá em Berlim, entretanto, Karen conseguirá expandir sua experiência musical e suas reflexões críticas acerca do mundo da arte e da luta por ocupar os espaços públicos com música experimental, em alto volume. Ficamos nos perguntando se há grande diferença entre as lutas por emancipação das juventudes nesses dois mundos tão distanciados pelo senso comum. Em realidade, como bem sugere a ficção, Brasil e Alemanha estão passando por desafios comparáveis quanto à estabilidade de suas democracias financeirizadas, à soberania de seus povos, acossados pelo imperialismo, e a liberdade de expressão de suas juventudes insurgentes.

Gustavo Galvão, diretor

Ao se colocar como contraponto crítico à cultura do silenciamento estrutural das grandes cidades, especialmente de uma ‘Brasília-cidade-dormitório’, como dito no filme, a obra de Gustavo Galvão se desenvolve apoiado nos descaminhos da rebeldia de uma juventude produtora de cultura, questionadora dos padrões estéticos e do comportamento quietista.

Produzido com o patrocínio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) de 2015, pertence a um momento de produção tristemente distanciado no passado recente, numa lógica de incentivo à produção cultural de outros tempos, tamanha a celeridade do desmonte do setor, que não sabemos quando irá retornar no apoio às obras críticas e insurgentes.

Exibido no 41º. Festival Nuevo Cine Latinoamericano (Havana, Cuba) e na 43ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Ainda Temos a Imensidão da Noite foi premiado como filme de melhor fotografia e melhor montagem no 52º. Festival de Brasília.

O músico Lee Ranaldo, do Sonic Youth, que colaborou na produção musical do filme.

Realizado em coprodução entre a 400 Filmes e a Dezenove Som e Imagem, de Sara Silveira, o longa conta ainda com a produção musical de Lee Ranaldo (integrante da banda estadunidense Sonic Youth), e com o alemão Tam Kunz como production designer (Em Pedaços e Contra a Parede, de Fatih Akin), e é distribuído pela Pandora Filmes.

Logo depois da sessão do Cine Cultura Goiás, que contou com a presença do núcleo de produção e realização do filme, os espectadores que estiveram na estreia de Ainda Temos a Imensidão da Noite foram convidados a permanecer na sala de cinema localizada no Centro Cultural Marieta Telles Machado, na praça Cívica, e agraciados por compartilhar perspectivas críticas com o diretor Gustavo Galvão, Cristiane Oliveira, produtora associada do filme, e as atrizes e musicistas Ayla Grestae, Gustavo Halfeld, Hélio Miranda e Vanessa Gusmão.

Além do debate, a presença dos realizadores e da banda completa ensejou ainda outro convite surpreendente, pela confluência de sentidos estéticos e da participação crítica do público, portanto, pela integração dos meios de expressão e dos conteúdos intelectuais de uma obra. A pacata sessão se desdobrou em um show, com presença crítica dos integrantes da obra, em continuidade lúdica e significante por aquela noite que, a princípio, seria apenas a de uma habitual estreia no nosso querido Cine Cultura.

Gustavo Galvão dirige os atores Steven Lange Pit Bukowski e Matthias Rheinheimer.

O que se viu de surpreendente, tanto na ficção e na apresentação musical, quanto nas perspectivas dos realizadores, para além da integração, mas justamente pela ênfase de que resultou esse esforço, foi uma renovada intensidade do fazer cultural, calcada na teimosia em dialogar ou no soprar do trompete de Ayla Grestae, aumentando o volume do ruído. Dessa forma, o que seria “apenas cinema”, se tornou crítica, música e celebração das inconformidades públicas e da revolta cultural.

Amplificar a desobediência ao toque de recolher, subentendido nas restrições de acesso à cultura ou acusar à segregação cultural e econômica, promovidas pelo conservadorismo censor, guardião do apagamento, silenciador e punitivista, de forma generalizada, em todas as cidades brasileiras, são os verbos que nos incita o filme. Seus desdobramentos narrativos e metalinguísticos dialogam, portanto, com a atualidade política nacional de forma imediata.

Dadas as condições de produção de arte no Brasil, é graças ao esforço criativo do cinema brasileiro – ainda que imerso em uma hegemonia cultural do entretenimento articulador do nivelamento das diversidades – que Ainda Temos a Imensidão da Noite consegue oferecer um contraponto crítico à censura velada vivida pelos brasileiros e representada, especificamente, no filme, pelas implicações perversas da Lei Distrital 4092/08, conhecida como Lei do Silêncio, que resulta no fechamento sistemático de estabelecimentos culturais e no consequente cerceamento da produção cultural de Brasília.

Financiado em edital de 2015 e produzido em 2017, é em tempos de pós-democracia e ‘bolsonazismo’, que o filme é lançado e vem reforçar a necessidade de mobilização cultural ao representar, e organizar, agentes culturais que seguem na batalha de ideias, modos, sentidos de vida e liberdade. Realizadores, atores e músicos, agentes que, em realidade, apenas adaptam à linguagem ficcional as suas próprias lutas cotidianas por emancipação econômica, reconhecimento público e valorização social de si da cultura da qual se fazem depositários e, assim, nos oferecem uma obra de longo fôlego estético, ilustrado pelo vigoroso trompete de Ayla Gresta, pelos crescentes rítmicos e pelas elaboradas melodias da banda de rock experimental.

Criada em apensa três meses, a Animal Interior alcançou, tanto no filme quanto ao vivo, uma expressividade e um rigor musical notáveis ao reunir músicos de diferentes trajetórias, em colaboração com o universo cinematográfico disparador de encontros e integrador das artes confluentes. A narrativa do filme, portanto, é centrada na sonoridade vitalista e provocativa da banda brasiliense, ao retratar a luta da Animal Interior e, principalmente, de Karen diante de várias limitações em realizar seu trabalho e afirmar sua vocação, através do ruído da vida e da arte. Como plano de fundo subjetivo crítico, a busca da desconstrução de imaginários silenciados e da reconstrução dos sentidos de vigor e potência de vida.

Com o foco em músicos que representam ficcionalmente, mas sem perder a intimidade da música, que lhes é própria, o filme alcança a excelência no cuidado de encenação da presença de palco dos personagens, além com o trabalho técnico de mixagem sonora, resultando em cenas de alta voltagem passional. As pungentes intervenções experimentais da banda, portanto, passam a ser o foco narrativo e também o desafio subjetivo da superação das barreiras à disseminação da cultura. Intervenções estéticas e discursivas críticas ao silêncio censor unem os personagens, representados em sua pulsão transgressora, ao público espectador, instigado pelas implicações políticas da música e do cinema, em tempos de cerceamento das liberdades individuais e coletivas, caracterizado pelo esvaziamento programado do espaço público e do sentido transgressor da democracia.

Em resumo, Ainda Temos a Imensidão da Noite nos apresenta uma forma primorosa de se fazer filmes em que a “música é alçada à condição de personagem”, nas palavras do diretor, ou filmes ‘sobre músicos’, ao fugir do estereótipo heróico da música como eixo privilegiado de valorização da cultura. Segundo Gustavo Galvão, a música como tema cinematográfico resulta em produções articuladas por realizadores não-músicos e representada por atores e atrizes profissionais, portanto alheios à produção sonora cuidadosa e à sua representação cênica adequada à performance musical.

Assim, por necessidade e por urgência, já lançado em mais de 14 cidades, o Ainda Temos a Imensidão da Noite e a Animal Interior devem repetir essa forma de distribuição que coloca realizadores e público corpo-a-corpo. Que se repita, onde seguirem apoiando o lançamento do filme e a apresentação de sua banda, ou da banda e com seu filme – nesse outro híbrido de tourné musical e première cinematográfica – em nome da valorização da cultura como meio de emancipação individual e coletiva. Em favor da música e do cinema como instrumentos de autoafirmação e radicalização dos sentidos.

OUTRAS PERSPECTIVAS

A sociologia contemporânea, sobretudo através de figuras como Henri Lefebvre, David Harvey e Zygmunt Bauman, tematiza de maneira aprofundada o tema que Ainda Temos a Imensidão da Noite encara debater através de seu enredo central: o Direito à Cidade. Uma banda de rock alternativo, barulhenta e estranha, que integra um cenário que inclui o Satanique Samba Trio, os Rios Voadores e Joe Silhueta, entre outros, tem direito a fazer seu som e compartilhar sua arte em plena praça pública?

O filme termina com um emblema do clash que põe em confronto as forças do silenciamento (o cidadão-de-bem que grita de sua janela aos músicos para que se calem, e ameaça chamar a polícia para acabar com aquele escarcéu) e as forças da expressão insurgente (a Animal Interior, lançando através da noite o fulgurante grito de seu som “punk psicodélico”). A obra se encerra com um piercing scream que parece querer atravessar a imensidão da madrugada e chegar ainda soando à autora da manhã. O trompete de Karen é a própria voz da arte que resiste em tempos obscuros – e numa das melhores e mais tragicômicas cenas do filme, a banda é toda levada diante de um delegado (encarnado por ninguém menos que Clemente d’Os Inocentes, pioneiro do punk no Brasil).

Presos por porte de maconha, a trupe artística do Animal Interior é interrogada por um delegado diferenciado, também ele emblema de alguém que um dia quis ser contracultural, mas depois se resignou ao destino dos vendidos ao sistema. O delegado debocha da descrição que a Animal Interior faz de seu próprio universo sônico: os músicos, na desafiadora tarefa de descrever através do verbo aquilo que é música (ou seja, linguagem que transcende e transborda o verbal), fornecem uns hibridismos bizarros, a ponto de ficar parecendo uma mistura de Sex Pistols com Pink Floyd, com pitadas de Miles Davis. Quando chega a hora de Karen expor sua função naquele coletivo, ela manda: “Eu sou o Miles Davis”. Através do filme, ela será mostrada como a encarnação de um ethos do quero-ser-artista – como na cena em que se demite de seu trampo como designer para não ter mais que engolir sapos diante do patrão escroto.

Numa conversa com os amigos que se perguntam porque os bares rock’n’roll de Brasília estão às moscas, a ponto de ser possível contar os roqueiros com apenas algumas mãos, Karen oferece-nos as vísceras de seu sentimento a respeito deste colapso de uma “cultura roqueira”: quando os pubs de rock estiverem enfim vazios de vez, diz Karen, “aí eu me mato”. O amigo cai na gargalhada, mas depois de alguns segundos de hilariedade percebe que Karen falava a sério. Aquilo era uma ameaça de suicídio. E uma prefiguração de seu futuro, em que ela se mostraria intransigente na perseguição de seu sonho de uma “vida de artista” – aquela tematizada com brilhantismo em canção de Itamar Assumpção.

Karen, a protagonista do filme, é aquela que se recusa a desistir de uma carreira artística – muitos dos músicos com quem ela tocou abandonaram a prática de seus instrumentos e a colaboração em bandas, mas Karen segue em frente, em metamorfose, buscando outros músicos com quem desenvolver seus consideráveis dons expressivos. Na Alemanha, conhece o sabor de ser cigana trompetista numa mini-tournê que faz com a banda dos squatters berlinenses – chega até a atravessar as fronteiras européias, porosas para europeus mas mais difíceis de penetrar para os latinoamericanos, indo tocar em Istambul.

Seu trompete chega ao auge na Turquia, mas a lua-de-mel com a nova banda dura pouco pois ela é apreendida como migrante ilegal, pois está com o visto vencido, e deportada de volta para o Brasil. Condenada à Brasília e a uma relativa solidão, ela porém está enriquecida pelas vivências em Berlim, em especial aquelas relativas à libertação sexual e à colaboração artística com semidesconhecidos: o ménage-à-trois berlinense é descrito por Karen como “a noite mais sublime que já vivi nesta vida de merda”, e a experiência musical com seus colaboradores berlinentes a fortalece em sua convicção de que sim, tem direito não só a ambicionar uma carreira artística, mas mais que isso: tem direito a ambicionar tornar-se, nesta cidade, um Miles Davis – ou uma Nina Simone.

Por isso o filme tem uma certa densidade de drama existencial: o grande tema que atravessa a noite desta psiquê desajustada e autêntica é a inquietude de Karen, a radicalidade de suas escolhas, a resiliência de seu valores. Na cultura do silenciamento, ela quer mandar o grito pungente de suas notas trompeteadas com a fúria de quem tem o opressor tentando pisotear seu pescoço. Contra os cálices de “cale-se” que o status quo de Brasília visa impor, ela é o “foda-se! Não me calo não!” E ela não se cala pois sabe que sua música dissonante é muito mais bela que o silêncio adorado pelos tiranos.

Diante da tentativa de silenciamento das culturas dissonantes e rebeldes, tendência que se exacerba sob o governo de extrema-direita do Bolsonarismo, Ainda Temos a Imensidão da Noite levanta seu ruído contracultural, e através do filme é como toda a arte brasileira berrasse. Através do trompete de Karen, que inicia e termina o filme, numa travessia narrativa que perfaz um “ciclo” perfeito e altamente significativo, o Brasil da diversidade que não se cala fala algo àquele Brazil que quer o reinado do homogêneo.

O trompete de Karen revela uma agente cultural que pega a “estrada menos viajada” de que fala o poema de Robert Frost. Ressoando dentro da Animal Interior, aquele trompete não parece estar à toa no começo e no fim do filme: indo do protesto punky contra os ruídos da construção civil nas metrópoles gentrificadas, passando pela via crúcis de sobreviver no cenário indie e de ser trotamundos como musicista nômade, Karen chega até aquelas notas pungentes finais. Nestas, um lamento à la Miles Davis parece perfurar todas as bolhas da noite de Brasília levando aos apês dos “cidadãos-de-bem” um emblema do “nunca me calarei!” da contracultura. Dissidente, dissonante, diversa e insilenciável.

Duas estradas divergiam em um bosque em setembro
E lamentando não poder seguir em ambas vias
E sendo único viajante, durante muito tempo me lembro
olhei para uma tão longe quanto eu conseguia
até onde ela dobrava na descida e sumia
Então peguei a outra, parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gastado ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhã igualmente fez
cobertas por folhas, pegada alguma a manchar
Oh, deixei a primeira para outra vez!
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar, há uma distância de tempo imensa:
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferença.

(Robert Frost – Tradução de Ângela Carneiro)

Renato Costa e Eduardo Carli

Goiânia, Fevereiro de 2020

www.acasadevidro.com

Conheça o videoclipe da canção “Morro Abaixo”, de Luiza Camilo e Iná Avessa, uma produção d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura

Presente em Nascência, álbum de estréia da artista goiana Luiza Camilo, a canção “Morro Abaixo” conta com participação especial de Inà Avessa, MC em ascensão no cenário Hip Hop de Goiânia.

O video-clipe é uma produção do ponto de cultura A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com), com filmagem e montagem por Eduardo Carli de Moraes, assistência e making of por Naihara Moraes.

O lançamento oficial aconteceu na Festa da Resistência Latinoamericana com shows de Adriel & Iná, n’A Casa de Vidro, durante a 3ª Jornada Goiana de Direitos Humanos, organizada pelo Comitê Goiano de Direitos Humanos ‘Dom Tomás Balduino’, em 14 de Dezembro de 2019.

O lirismo e a musicalidade ímpares da Camilo já lhe renderam o reconhecimento em festivais como Canta Cerrado, Canto da Primavera e Juriti – Festival de Música e Poesia Encenada. Neste último, por exemplo, Camilo foi a vencedora do 1º lugar, na terceira edição do Juriti no ano de 2013, por sua interpretação da obra de poesia encenada “Amanheçamos” (Fonte: https://bit.ly/2RZrgS6). Ela também integrou a banda Bandita Codá (assista, desta, ao clipe da canção “Destino”, também presente em Nascência). 

Convidamos a todos para que apreciem e disseminem o vídeoclipe oficial de “Morro Abaixo”, uma das mais belas canções do disco “Nascência”. A confluência entre Luiza Camilo e Iná Avessa, nesta canção emblemática do que de melhor tem nascido na cultura goiana, está em sintonia com outros trabalhos de protagonismo feminino que vem despontando e florescendo no cenário: AveEva (da dupla Paula de Paula e Flávia Carolina), Cocada CoralBanda MadáIngrid Lobo, Lorranna Santos, Coró Mulher, Retalha Vento, Luciana Clímaco, Nina Soldera e Banda Mundhumano e Meimundo, M’Bandi, dentre outros.

Este é o terceiro videoclipe produzido e publicado pel’A Casa de Vidro: antes vieram “Marginal Latina”, de Vitor Hugo Lemes (VH, O Escrivão) e Bergkamp Magalhães (acesse: https://www.youtube.com/watch?v=s2svqzGlXew), e “Peles Negras Máscaras Brancas”, de VH e Jordana Luz Negra (https://youtu.be/pwx-qGRtE_M).

“Morro Abaixo” nasceu da colaboração de muita gente que somou forças para atingir este resultado e que estão reconhecidas abaixo:

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO MUSICAL:
Arranjo, bateria e guitarra – Ricardo de Pina
Trombone – André Luiz
Percussão – Diego Amaral
Trompete – Wellington Santana
Composição, voz e contra-baixo elétrico – Luiza Camilo
Voz e composição – Iná Avessa

CRÉDITOS DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL:

Câmera e Montagem – Eduardo Carli de Moraes
Fotografia e Making Of – Naihara de Moraes
Figuração e Assistência – Guilherme Eurípides, Afrodite Flow
“Performers” / Atrizes – Luiza Camilo e Iná Avessa

CRÉDITOS DA COMPOSIÇÃO:
Camilo / Iná

MORRO ABAIXO [Letra]:

É, ‘tá difícil respirar aqui
Tanta gente que não vê
o dia florir, a sorrir.

É, tanta tragédia acontece aqui
Muita gente foi embora.
E na TV ainda tem um tal de besteirol
Enganando a cabeça de quem acha
Que tudo vai bem.
‘Tá na hora de pensarmos mais além.

Os dias passam,
Tudo continua o mesmo.
Pessoas morrem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta
E continua igual. Continua igual.

(RAP – Iná Avessa MC)

O tempo do plantio é diferente do tempo da colheita. Sobrevoam duvidas suspeitas, espreitam, e vezes ganham atenção que desejam. Então não pense que eu estou parada. Isso não é um simulador, a vida é um tiro, eu ‘tô engatilhada, ando pensando, conhecendo a escola do caminho, algo que agora beira o não espera nada. Nada melhor que o não visto, nada melhor que o não quisto. O horizonte com firmeza é bem maior que o objetivo, a alma calma, o indivíduo o coletivo e o subjetivo. Então não pense que eu estou parada. Poesia marginal contra toda alienação, guerrilha verbal no país da alegria, onde impera a covardia, liberdade é utopia e no momento é ilusão. P’ros parça força nessa caminhada. Não deixe não.

E no jornal uma reportagem sensacional,
Acomoda a cabeça
De quem acha a norma normal,

Basta olhar e ver
Que o mundo vai bem mal.

Os anos passam,
Tudo continua o mesmo
Pessoas matam, mentem,
Tudo continua o mesmo.
O lixo só aumenta e continua igual.
Continua igual.

É hora de atenção, muito mais ação
Porque se não,
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Felicidade vai virar ilusão.
Não deixe não.

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CLIPE DISPONÍVEL EM:
YouTube – https://youtu.be/VeLJb8die4E
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Vimeo – https://vimeo.com/332085237
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SAIBA MAIS:

Site oficial: www.acasadevidro.com
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Facebook: www.facebook.com/blogacasadevidro

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ÁLBUM DE FOTOS – MAKING OF e SCREENSHOTS

ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO – Em “Espero Tua (Re)Volta”, de Eliza Capai, o ativismo juvenil é retratado no calor das lutas e contradições que povoam a História

O ponto de cultura A Casa de Vidro, em parceria com Levante Popular da Juventude e Taturana Mobilização Social, promoveram a exibição e o debate sobre Espero Tua (Re)Volta, de Eliza Capai.  O filme foi o vencedor dos prêmios da Anistia Internacional e do “Filme da Paz” no Festival de Berlim: “o primeiro deles premia o autor do filme que melhor aborda questões relacionadas aos Direitos Humanos e o segundo coroa a produção que se destaca com uma poderosa mensagem de paz e execução estética habilidosa dos seus temas.” (Ultimato do Bacon)

Exibimos e debatemos o filme em 21 de Setembro de 2019, com a presença de aprox. 40 pessoas, na convicção de que é salutar que a sociedade conheça, debata e valorize as mobilizações do movimento estudantil brasileiro na atualidade e no passado recente. Acompanhe no nosso vídeo – disponível em YouTube, Facebook e Vimeo – os preciosos diálogos que tivemos após a projeção com os debatedores:

* Helen Clara (do Levante Popular da Juventude)
Juliana Marra (Historiadora, Produtora Cultural, Doutoranda em História na UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Sociologia da UFG e ativista do PT – Partido dos Trabalhadores)
* Isadora Malveira (Estudante da UFG e realizadora do curta-metragem Seja Realista, Exija o Impossível, também exibido na ocasião junto com outro curta-metragem, Tsunami da Balbúrdia, de Eduardo Carli de Moraes).

No vídeo, também registramos as contribuições ao debate feitas pelo fotógrafo José Carlos Almeida, da Mídia Ninja.

Agradecemos a todos que estiveram presentes, assistiram aos filmes, acompanharam e participaram dos debates, fortalecendo este rolê cultural de alta relevância e instigância. Também manifestamos nossa gratidão ao jornalista Marcus Vinícius Beck, que publicou a reportagem Resistência na Telona no Diário da Manhã (20/09/2019), destacando a importância da obra que retrata “minas, manos e tantos outros personagens que foram indispensáveis na luta contra o conservadorismo e em defesa da educação pública.” Na sequência, uma tentativa de artigo crítico-reflexivo escrito após a sessão por Carli:

CINECONFLUÊNCIAS DEBATE “ESPERO TUA (RE)VOLTA”:




ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO! 

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Vamos botar ponto final em todos ativismos do Brasil” – esse foi um dos objetivos anunciados por Jair Bolsonaro pra seu governo assim que se confirmou sua vitória no 1º turno das eleições de 2018. Farejando as atrocidades envolvidas na proposta de extermínio dos ativismos, “mais de 4 mil organizações da sociedade civil e movimentos sociais, como Conectas, Greenpeace, Intervozes e Instituto Alana, divulgaram uma nota de repúdio à declaração de Bolsonaro (PSL) sobre acabar com o ativismo no país” (Folha de S. Paulo, 12.12.2018).

Em Espero Tua Re(Volta), retomada em citação direta, a frase autoritária do governante neofascista do Brasil recebe uma resposta coletiva à altura: “esperem de nós tudo, menos o silêncio!” No arco temporal de 2013 a 2018, desenvolve-se a epopéia de ativismo estudantil-juvenil que propulsiona um dos mais pulsantes documentários já realizados no país. Cinema-ativista, sinal salutar de que a cultura não vai se calar, o filme de Capai, segundo Eduardo Escorel na Piauí, “é acessível, descontraído, ágil e alegre”, além de “bem narrado, valioso como registro histórico e que agrega ao olhar da realizadora gravações feitas por vários documentaristas independentes.”

O filme de Eliza Capai condensa em 93 minutos toda a potência do “audiovisual como forma de luta” e serve como plataforma para as imagens captadas por Caio Castor (Agência Pública), Henrique Cartaxo (Jornalistas Livres) e Tiago Tambelli (documentário 20 Centavos). Este é um dos aspectos a enfatizar na obra: a conexão íntima entre o cinema documental e os fenômenos de midiativismo que ganharam inédita propulsão a partir das Jornadas de Junho de 2013 (contexto muito bem analisado por Ivana Bentes em seu livro Mídia Multidão).

O filme é protagonizado por 3 jovens que participaram ativamente das ocupações das escolas paulistas em 2015, em resposta aà reorganização escolar anunciada pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A proposta previa o fechamento de mais de 90 escolas e o remanejamento de cerca de 300 mil alunos para outras unidades. Sob o lema “Ocupar e resistir”, os estudantes protagonizaram a ocupação de mais de 200 escolas, o que serviu de inspiração para jovens de todo o país e ajudou a deflagar, ao final de 2016, a maior onda de ocupações de escolas e universidades públicas de que se tem notícia na História deste planeta.

No Festival de Berlim, o júri responsável por premiar o filme assim se manifestou sobre seu mérito:

“Imagine seus filhos marchando pelas ruas porque o governo quer fechar suas escolas. Imagine seus filhos sendo atingidos por gás lacrimogêneo e espancados com cassetetes. Isso faz parte da realidade brutal do Brasil atualmente. Setenta anos após ser promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, crianças e jovens no Brasil são privados de seus direitos humanos à educação de qualidade. Centenas de escolas públicas correm o risco de ser vítimas de políticas governamentais que negligenciam a necessidade e o direito à educação de todos, independentemente de seu status social. Famílias pobres e desfavorecidas são particularmente afetadas. Mas a juventude do Brasil não aceita isso sem resistência intensa, clara e corajosa.

O vencedor deste ano do Prêmio da Anistia Internacional rompe as estruturas convencionais usando narrativa documental não linear. Ilumina os jovens em sua luta pela democracia e pela educação. Também mostra como esses jovens protagonistas vivem relações pautadas por valores solidários e democráticos. Eles são assim por obrigação e, ao mesmo tempo, de modo irresistível, nunca deixando que suas vozes sejam silenciadas por aqueles menos corajosos e menos comprometidos entre eles. Eles lutam por seus objetivos, expressam seus sonhos, suas esperanças e seus direitos humanos, e é por isso que estão sempre um passo à frente de todos ao redor. Este filme extraordinário nos dá esperança e nos inspira, através de todas as gerações e além de todas as fronteiras, a elevar nossas próprias vozes e a tomar posição em defesa dos nossos direitos humanos básicos. E um dos direitos humanos mais básicos que nos cabe defender, e que devemos defender unidos, é a educação para todos.” (Via Revista Piauí)

Espero Tua (Re)Volta é um notável capítulo da história do cinema documental brasileiro ao apostar numa narrativa polifônica, que dá voz e vez à diversidade que constitui o movimento estudantil e juvenil no Brasil. Com sua tríade de protagonistas, o filme fala muito sobre corpos revolucionários, pondo seus cus na reta, rompendo com o status quo da letargia instituída.  É a juventude fogo-no-pavio que se une na resistência contra a opressão e improvisa soluções para os graves dilemas que vivenciamos. São atitudes que encontraram reflexões à altura na obra de Judith ButlerCorpos em Aliança. 

São manos, minas e monas querendo dançar e beijar na revolução – como queria Emma Goldman. É uma juventude que não se deixou domar pelos chicotes e açúcares do fascismo. Eis onde mora a esperança concreta de renovação. Porém, não há nada de homogêneo ou uniforme neste microcosmo da juventude brasileira que são os movimentos estudantis organizados (UNE, UBES, APNG, mas também C.A.s, grêmios, coletivos etc.). O filme de Capai é didático na explicitação das fraturas que dividem e partidarizam os jovens, sobretudo na cena em que é descrito o CONUNE 2017 – e vale lembrar que A Casa de Vidro produziu um documentário no CONUNE 2019, Não Matem Nosso Futuro, que flui por rios semelhantes:

O desafio maior, para a eficácia coletiva de um movimento cidadão, é criar unidade na diversidade. O filme Espero Tua (Re)Volta é brilhante ao focar neste dilema através do diálogo entre os 3 protagonistas que vão lutando por seus lugares-de-fala, numa espécie de cabo-de-guerra onde se decide: “quem narrará este rolê, e como?” A perspectiva do homem é questionada pela perspectiva da mulher; a perspectiva da UJS é questionada pela perspectiva “autonomista”; e nesta irônica metalinguagem constrói-se o concerto da contradição que é o charme maior no cerne do filme.

O filme dirigido por Eliza Capai utiliza-se de seus três protagonistas principais para enfatizar as diferenças que povoam tanto o movimento estudantil quanto a esquerda, porém insere as relações da tríade de narradores em uma estrutura básica de empatia uns pelos outros, já que compartilham a mesma luta, estão no mesmo campo de batalha contra inimigos compartilhados. É evidente, por exemplo, que a Nayara, sendo uma menina branca de raízes no interior paulista, não vivencia na pele a violência policial dos “enquadros” racistas que os fardados impõe a adolescentes negros como Lucas “Koka” Peteado. Porém, ao invés de erguer um muro de indiferença e de cegueira voluntária entre o eu e o outro, Nayara é uma jovem capaz de empatia com o sofrimento do companheiro estudante que, para além das opressões que ambos compartilham enquanto pobres e vulneráveis, sofre ainda mais do que ela nas mãos dos fardados e suas práticas truculentas e racistas.

O Congresso da UNE, evocado logo no começo do documentário em sua 56ª edição, em 2017, serve como excelente emblema das fraturas expostas do movimento estudantil brasileiro. No filme, é evidenciada a diferença entre as diferentes “tribos” que ocupam o Ginásio Nilson Nelson nesta ocasião, com oposições um tanto radicais entre as frações à esquerda capazes de alianças e coalizações (Juventude do PT, UJS do PC do B, Levante Popular da Juventude etc.) em contraste brutal com os estudantes do Tucanato (PSDB) – tanto que estes últimos são trollados no filme como “gente jovem falando um monte de baboseira como se fossem uns velhotes” (cito de memória).

O Congresso da UNE exige pois o conceito de hegemonia para a compreensão das forças políticas que dominam e as que são mantidas subalternas: dizer que nos dois últimos CONUNES (2017 e 2019), constituiu-se uma hegemonia da UJS na presidência da UNE, com o Levante Popular da Juventude na vice-presidência, é um modo de apontar para as coalizões que, no concreto das lutas, constituem os arranjos possíveis de construção da união na diversidade. Em um processo todo polvilhado de contradições e no qual não faltam os disparos de fogo amigo.

Seria mentir sobre nós mesmos, ativistas mobilizados em prol da causa da educação ou dos direitos civis básicos, caso pretendêssemos nos pintar como extremamente unidos e solidários – a união e a solidariedade são desafios, construções difíceis, tarefas intermináveis, e cada um de nós carrega as cicatrizes das fraturas que já vivenciou. Lendo e aprendendo, nos últimos anos, com Audre Lorde, fui desenvolvendo a noção de que estaríamos equivocados desde a linha de partida se acreditássemos que nossa unidade e nosso poder exigem uma união homogênea.

Precisamos banir de corações e mentes a noção de que qualquer revolução é feita com uniformes, isto é, com indivíduos uniformizados – por fora e por dentro – que constituiriam a mais eficaz das massas revolucionárias para tudo mudar. Não é a uniformidade que faz nossa força, mas nossa capacidade de sermos diversos, mas não dispersos (como Marielle Franco também compreendeu: sejamos diversas mas não dispersas!). Como mudaríamos tudo se repetíssemos esta falácia do homogêneo e do uniforme como cimentos necessários de nossas forças?

Se queremos agir desde hoje na transfiguração concreta do mundo para que ele se pareça com o mundo em que desejamos viver, então desde o princípio precisamos enxergar nossas diferenças não pelo prisma de algo que nos separa e nos fratura, mas sim pelo prisma de diferenças que podem nos engrandecer caso saibamos sintonizá-las. Desde que saibamos fazer mais do que aquele pouco que hoje nos pedem os reformistas acomodados, os desejos de mudancinhas que não balancem as estruturas: eles, os reformistas que se conformam com pouco, dizem-nos que precisamos tolerar as diferenças. Mas isto é pouco demais, cheira demais a mesquinharia, a horizontes utópicos estreitos. Queremos rumar para um além onde nossas diferenças, mais do que toleradas, pudessem ser celebradas.

Não há facilidade nenhuma nisso, mas quem jamais disse que a transformação radical do mundo é fácil, rápida e indolor estava sendo ingênuo, falsificador ou coisa pior. É nossa capacidade de celebrar nossas diferenças ao mesmo tempo que permanecemos unidos que fará o caldo heterogêneo, complexo e multifacetado das pessoas partejando um futuro menos sórdido.

Sei que, ao dizê-lo, deixo que fantasmas de pessoas mortas infundam sua sabedoria às minhas palavras e reconheço minha dívida de gratidão com Audre Lordeshe’s speaking throught me. Conheço poucas mentes que foram capazes de expressar com tanta potência e eloquência esta filosofia da diferença enquanto positividade do que Lorde. Ela ensinava: “In order to work together we do not have to become a mix of indistinguishable particles resembling a vat of homogenized chocolate milk. Unity implies the coming together of elements which are, to begin with, varied and diverse in their particular natures.” (Sister Outsider, p. 136)

Em Espero Tua (Re)Volta, não se vende a farsa de que o movimento estudantil brasileiro fosse de fato uma entidade monolítica e uniforme. Também sabemos muito bem que aquilo que se chama de “esquerda”, no espectro político, é algo fragmentado e que não está imune aos males do sectarismo (fenômeno investigado por Sabrina Fernandes em seu livro, lançado em 2019, Sintomas Mórbidos). 

Espero tua (Re)volta não está aí pra nos mentir sobre as possibilidades de vitória neste cenário de adversidade daquelas forças que lutam em prol de educação pública, gratuita, laica, de qualidade. As adversidades são tremendas e transcendem o âmbito da educação – e nos vínculos que estabelece entre diferentes opressões, o filme é extremamente lúcido: sabe que os problemas da mobilidade urbana, da especulação imobiliária e do encarceramento em massa não são desvinculáveis; que o fechamento das escolas, proposto pelo Picolé de Xuxu, tinha relações com muita coisa além de decisões pedagógicas e “técnicas”, envolvendo o interesse de grandes construtoras em construir condomínios de luxo no local onde estão hoje escolas públicas que se queria liberar para demolição.

Além disso, o filme é repleto de denúncias pungentes de uma violência policial onipresente nas ações de repressão contra os movimentos estudantis, o que o filme não desvincula do gravíssimo cenário que Koka torna explícito: São Paulo é disparado o estado brasileiro com o maior número de presos, sendo o Brasil um dos 3 países no mundo que lidera o ranking do encarceramento em massa. Argumenta com claridade o Koka: “se prender geral resolvesse alguma coisa, não estaríamos entre os 10 países mais violentos do planeta”. Assim é desvelado, como o feminismo negro tanto destaca através de figuras como Angela Davis e Michelle Alexander, o vínculo sórdido entre a opressão policial e a carcerária, entre a violência dos PMs no asfalto e a violência contra os milhares de detentos nos Carandirus repletos dos que antes moravam nas quebradas.

Se a crítica social que o filme inclui é ampla o bastante para abraçar várias formas de opressão coligadas, a expressão das individualidades não fica nisto soterrada. Pelo contrário, Espero Tua (Re)Volta carrega toda a força destas 3 singularidades que propulsionam o filme adiante com suas narrativas confluentes. A Marcela de Jesus, com suas mutações identitárias radicais, é um excelente exemplo do que eu chamaria, para homenagear Raul Seixas, de uma singularidade em metamorfose ambulante.

De cabelos roxos, ela revê cenas dos primórdios de sua atuação enquanto estudante secundarista mobilizada politicamente, contrasta suas madeixas atuais com as de outrora: para ela os cabelos são mais do que estética ou aparência, envolvem sua essência como pessoa em travessia. No caso, uma pessoa de essência transformante, uma mutante identitária – mas não seríamos todos?

A juventude, sendo a fase da vida de acelerações destas mutações vitais, com toda a radicalidade alteritária que se destrava quando a infância flui rumo à puberdade e à adolescência, é capaz de nos ensinar um bocado sobre esta profunda verdade da existência: estamos condenados à mudança. Tudo flui é uma lei universal e cada um de nós está incluído neste tudo flui: borboleta precária a voejar efêmera por uma vida cuja única certeza com que podemos caracterizá-la é que ela não dura. Estamos aqui de passagem, e que esta passagem possa ter ao menos o sentido precário de que lutamos juntos por um mundo melhor.

Marcela não quer ficar muito tempo presa a si mesma. Não só acolhe a mudança, ela a procura e a produz. Quer expulsar quaisquer vestígios de racismo interiorizado que porventura os opressores possam ter lhe imposto. A juventude é esta idade da vida em que, como Marcela, facilmente passamos a discordar de nós mesmos, pois já não somos o que éramos há pouco, pois mudamos para outra posição singular de nossa jornada identitária. Queimem os RGs e CPFs, pois é uma fraude que aqueles números fixos pretendam descrever algo sobre os rios que somos! Marcela se transforma em profundeza (o que, é claro, expressa-se por muitos sinais extremamente aparentes, e não só o cromático exuberante do roxo em suas novas madeixas).

O filme faz magia ao encapsular modificações-de-si tão profundas no fluxo impetuoso de uma obra que parece propulsionada pela energia indomável de corpos juvenis que não aceitam coleira. Nem vão se calar quando explodem contra estudantes as bombas de tóxico gás lacrimogêneo – cada um deles de preço equivalente ao de 500 merendas.

“Marcela Jesus participou das ocupações estudantis de 2015 e 2016 em que ocupou sua própria escola contra um projeto de reorganização escolar do governo do Estado de São Paulo. Em 2016, iniciou sua formação artística em 2016 com a peça ROZÁ. Em seguida, entrou para a ColetivA Ocupação, dirigida por Martha Kiss Perrone e em 2017 se apresentou na MIT – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – com a performance “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar” e em 2018 integrou como atriz e dançarina a peça “Quando Quebra Queima” que é seu atual trabalho com a ColetivA Ocupação. Com a peça, chegou a viajar para a Inglaterra, onde se apresentou em Leeds e Manchester e também deu oficinas de teatro para alunos da The University of Manchester.” – TATURANA

É Emma Goldman e seu anarquismo festivo-combativo que o filme acaba por evocar fortemente – pois ele parece marcar o percurso não só de Marcela, a Senhorita “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar”, mas também de Koka e Nayara. Esta juventude quer estar dançando nas ruas rufando seus tambores em uma realidade social de corpos mais livres para se expressarem.

Na atualidade, os corpos que se mostram em seus processos de mutação identitária radical – como nos casos das transições de gênero dos transexuais – vivem sob a paranóia justificada que a cultura de ódio e extermínio reinante visa impor. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil não chega aos 40 anos de idade, o que significa que uma das categorias sociais que mais está condenada à morte precoce, por extermínio violento nas mãos de um agressor alterofóbico, é o das pessoas trans, párias entre as párias, matáveis entre as pessoas matáveis.

É contra isto que se insurgem estes estudantes, plenamente cientes de suas diferenças, reivindicando a construção coletiva de uma cultura outra: mais colaborativa do que competitiva; mais solidária do que individualista. E a ocupação é o aqui-e-agora onde a urgência da História obriga a transformar a Escola em Casa.

Espero Tua (Re)Volta ajuda-nos a compreender um fenômeno histórico inédito: no segundo semestre de 2016, em especial nos meses de Outubro e Novembro de 2016, o Brasil chegou a ter mais de 1.000 escolas e universidades públicas ocupadas pelos estudantes em protesto contra as medidas do governo nascido após a deposição de Dilma Rousseff. Especialistas apontam que não há nenhum precedente histórico para uma onda de ocupações desta magnitude em nenhum país do mundo.

Os estudantes secundaristas e universitários brasileiros protagonizaram a principal frente de resistência contra o carro-chefe do governo Temer, a Emenda Constitucional que instituiu o Teto de Gastos Públicos por 20 anos, aprovada pelo Congresso ao fim de 2016 mesmo com uma intensa onda de mobilizações contrárias a ele.

Naquela ocasião, A Casa de Vidro, enquanto centro de mídia independente, produziu uma tríade de documentários em Brasília: “A Babilônia Vai Cair”, “Levantem-se!” e “Ponte Para o Abismo”, que retratam os protestos estudantis na capital federal contra aquilo que se chamava de “PEC do Fim do Mundo”. Dando sequência a este trabalho documentarístico, produzimos em 2019 uma série de curtas-metragens documentais que retratam os levantes em defesa da rede federal de educação que ocorreram no primeiro ano do governo neofascista-neoliberal de Bolsonaro. Tais movimentos, que ficaram conhecidos como “Tsunamis da Educação”, dão sequência à onda de ocupações e protestos que marcaram o ciclo de lutas de 2015 em São Paulo e em 2016 em todo o Brasil (com destaque para as ocupações de mais de 800 escolas no Paraná).

O filme de Capai retrata com empatia e entusiasmo o ativismo destes jovens em prol de um ensino público de qualidade. Revela também a defesa apaixonada que estes jovens fazem de uma educação para o pensamento crítico, em que professores não sejam silenciados ou criminalizados com base em propostas autoritárias como aquelas do “Escola Sem Partido”. Além disso, revela que estas lutas por direitos coletivos incluíram debates interseccionais sobre o feminismo, os movimentos LGBTQ e as lutas antirracistas, pautas que estiveram vivas e atuantes dentro das ocupações e marcaram presença em todos os atos cívicos conexos.

O filme revela de que maneiras as escolas e universidades sob ocupação estudantil foram transformadas em laboratórios de outros mundos possíveis. Revela as ações de jovens em um esforço de contestação de um status quo visto como injusto e opressor, conectado a um esforço coletivo de prefiguração de alternativas societárias. Deste modo,um filme como este ajuda a alimentar nossa potência crítica e contestatória ao mesmo tempo que dá oxigênio novo às energias utópicas de construção daquilo que Paulo Freire chamava de “inéditos viáveis”.

Nos 93 minutos do filme, podemos ver as ocupações como “zonas autônomas temporárias”, como diz Hakim Bey, onde as estruturas das relações humanas foram radicalmente transformadas, no âmbito restrito daqueles microcosmos de ativismo estudantil, onde a cidadania ativa era exercida de modo radical, ainda que às vezes através de táticas improvisadas e espontâneas. Neste sentido, a importância de “Espero Tua (R)evolta” está também na ênfase que dá às novas gerações como protagonistas na pré-figuração de realidades alternativas em que as opressões de gênero, raça e classe estivessem superadas por modelos radicalmente democráticos, inclusivos e autonomistas de educação e de sociedade.

Na ocupa, a galera improvisa o rango, dividindo as tarefas de limpeza e segurança, fazendo os corres dos colchonetes e barracas, num autêntico mutirão em que cada um sai da segurança dos ninhos familiares, deixa a dependência que as figuras de pai-e-mãe querem a estabelecer nos sujeitos, aventuram-se numa fascinante jornada de maturação. As ocupas podem ter sido inspiradas por muitas fontes – o filme evoca o MTST e sua liderança mais conhecida, Guilherme Boulos, como uma das inspirações, mas também reconhece a importância do Movimento Estudantil Chileno e do documentário de Carlos Pronzato que o retrata, A Revolta dos Pinguins. Mas a verdade talvez esteja não tanto nas influências externas que impulsionaram os jovens às ocupações, mas algo de mais íntimo, do âmbito das forças subjetivas, uma vontade muito disseminada de testar nossas forças no vôo, em perigo, justamente para expandir estas forças que, na inatividade, estagnariam.

São jovens que sabem o valor de uma liberdade em exercício. Pois uma liberdade só sonhada não é nada senão obscena quimera inútil – e bendito aquele que estraçalha idealizações no altar da ação concreta e conjugada! Na Ocupa, descobrem-se cidadãos. Tomam para si a gestão do que deveria ser administrado pelo Estado, instauram mecanismos de governança autonomista quando os que governam manifestam seu intento de fechamento (enclosure) do território declinante do comum (commons). Enquanto famílias, igrejas e partidos conduzem sujeitos às patologias deformantes do individualismo sectário, as ocupas podem servir como Zonas Autônomas Temporárias que conduzem às práticas comunais de cidadãos colaborantes. No caldeirão do improviso de outros mundos possíveis, forjados no calor das lutas, animados por beijos bem molhados e rabas bem reboladas.

Eduardo Carli de Moraes – Setembro de 2019

Lágrimas pela democracia que despenca no abismo: Petra Costa e a crônica sensível e reflexiva do Golpe de Estado no Brasil

“Eu sou o próprio Josef K“, ironiza Dilma Rousseff, comparando-se ao personagem de Franz Kafka em O Processo. “Mas com a diferença de que pelo menos tenho um bom advogado”, complementa a ex-presidenta, em elogio a José Eduardo Cardozo. São cenas poderosas como esta que tecem os fios de Ariadne deste impactante documentário Democracia em Vertigemde Petra Costa (disponível no Netflix), essencial para que possamos decifrar a atualidade e traçar altos planos pra contra-atacar o atual predomínio do MinoTaurus.

O filme pode ser considerado como a terceira crônica cinematográfica que se debruça sobre o Golpe de Estado parlamentar-jurídico-midiático que culminou com destituição de Dilma Rousseff em 2016 e preparou o terreno para a fraude jurídica montada para o encarceramento de Lula em 2018. Antes dele, já haviam sido lançados (e já foram resenhados aqui n’A Casa de Vidro) as produções O Processo de Maria Augusta Ramos (de uma imersão exaustiva nas entranhas da Besta-Fera que é nosso Congresso e seus sinistros kafkianismos) e O Muro de Lula Buarque de Holanda (interessado sobretudo numa reflexão sobre a segregação ou apartheid que se explicita na polarização política que nos últimos anos vimos exacerbar-se). Os três filmes são importantíssimos para que possamos decifrar melhor as verdades, muitas delas tristes e intragáveis, sobre esta nação com fratura exposta.

Após realizar dois filmes repletos de poesia visual e delicadeza investigativa (Elena e O Olmo e a Gaivota), a talentosa jovem cineasta Petra quis se debruçar sobre nosso infortúnio coletivo, sobre a distopia real desta terra brasilis “com um longo passado pela frente”, pra relembrar a boutade do Millôr Fernandes. O modo como ela termina seu filme,  deixando no ar as questões relevantes e sem resposta, é um bom indicativo do tom da obra, também impregnada pelo violão afrosambante de Baden Powell e Vinícius de Moraes:

Cineasta Petra Costa

“Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos?”

A máscara da civilidade caiu totalmente com a eleição de Bolsonaro e sua necropolítica que parece ter um mandamento único: “matai-vos uns aos outros!”. O mito do “homem cordial”, mais do que nunca, revelou-se uma farsa edulcorada, um conto-de-fadas enganador. O Brasil é território de ultraviolência e ultrainjustiça, situação piorada agora que estamos sob o (des)governo de um ultradireitista obcecado com armas de fogo e seriamente adoecido por uma psicose falocêntrica altamente perversa. Como lidar com essa vertigem de ver as ratazanas dos porões da Ditadura re-vomitados no nosso presente e ocupando posições de altíssima responsabilidade?

O tema da vertigem, para além das evocações que pode ocasionar com clássicos do cinema que já o exploraram (notavelmente Vertigo – Um Corpo Que Caia obra-prima de Alfred Hitchcock), é também a maneira que Petra encontra para fugir dos dogmatismos e adentrar o campo em que é mestra: o do “filme-ensaio” repleto de insights subjetivos, percepções que iluminam com uma luz toda pessoal o âmbito da coletividade que compartilhamos. Petra mostra-se assim uma poetisa da imagem e um espírito livre e nada dogmático, sem temor de expor suas teses.

Teses, por exemplo, sobre Brasília, a “Cidade do Futuro”, o sonho de Juscelino, a fantasia da Modernidade, com toda a majestade arquitetônica de Niemeyer, que de utopia converteu-se em distopia: não poderia ter sido de outro modo, já que construíram a capital no Planalto Central, num vaziozão no meio de Goiás, bem longe do fuzuê e do escarcéu das massas populares que acossavam de muito perto o poder em Salvador ou no Rio de Janeiro, nossas duas primeiras capitais. No filme de Petra, a própria localização geográfica de Brasília, este colosso artificial erguido no “nada” goiano, impede a democracia plena e direta pois o poder se distancia dos representados.

Por estar “isolada” da população brasileira, dificilmente alcançável pela maioria dos habitantes da pátria, Brasília constitui-se como metrópole dos privilegiados, QG da Elite do Atraso. Assim caímos mais profundamente no pântano de uma corrupção endêmica e sistêmica em que a casta de políticos eleitos, encastelados na Brasília feita para os carros e não para as gentes, tece tenebrosas transações com os capitalistas, os banqueiros, os empresários. A Ditadura Militar, por exemplo, foi época de intensa corrupção, revelada por ex. pelo livro Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, de Pedro Henrique Pedreira Campos:

“A análise crítica identifica na ditadura civil-militar brasileira do período 1964-1988 a origem da inserção, contaminação e subordinação do tecido orgânico do Estado aos interesses do segmento dos empreiteiros. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Economia, Administração, Negócios, Turismo, Hotelaria e Lazer”. Em foco, o crescimento e consolidação das principais empresas do setor de construção pesada no Brasil, numa articulação que, segundo o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a modernização capitalista e a internacionalização das “gigantes do setor”. Ao demonstrar as injunções políticas, estratégias e práticas que permeiam as relações da iniciativa privada e poder público e sua legitimação por “intelectuais orgânicos”, a publicação constata e fornece elementos de compreensão acerca de “Estado, Poder e Classes Sociais no Brasil”, conforme  o prefácio, assinado pela historiadora Virgínia Fontes.

Tenho quase a mesma idade que Petra: nasci em 1984, vigésimo ano da Ditadura Militar, que estava então em seus estertores. O bebê que fui não pôde estar atento e alerta para as imensas massas que tomavam as ruas naquele ano, demandando em alto e bom som por “Diretas Já!”, só para sofrerem a derrota de ter sua reivindicação recusada pelo Congresso Nacional. Esta sensação de “ter a mesma idade que a Democracia” brasileira anima o projeto de Petra, dá a ele um teor de manifesto geracional que pretende expressar uma percepção compartilhada por muita gente que está hoje na faixa dos 35 anos de idade.

Ao recuperar imagens históricas de Lula quando um jovem sindicalista, de 33 anos de idade, pernambucano aguerrido imigrado para São Paulo, onde lideraria as históricas greves da indústria automobilística no ABC do fim dos anos 1970, Petra Costa acerta na mosca: seu filme ganha com interlocuções e ressonâncias com obras pregressas que marcaram o cinema brasileiro, em especial o magistral ABC da Greve de Leon Hirzsman e várias obras de Renato Tapajós. Além disso, dá à nossa percepção de Lula o devido grau de densidade histórica que ele merece, já que não se trata de pessoa anônima ou esquecível, mas alguém sobre quem escreverão os historiadores do futuro quando quiserem abordar as grandes personalidades globais da época que ora atravessamos.

O fato desde filme ser a produção de uma cineasta nascida nos anos 1980 só torna mais interessante outra de suas teses: a de a Democracia brasileira tem mais ou menos 3 décadas de vida, e talvez fosse uma ilusão que cada vez mais vai caindo em descrédito, para nós que temos 30 e poucos anos, acreditar que a tal democracia era robusta, madura, indestrutível. O filme de Petra faz chorar pois a democracia que ela retrata não é um colosso, uma fortaleza, um Hulk, mas sim a fragilidade encarnada – e nós os que temos a responsabilidade de fortalecê-la. Juntos. Destacando isso, a revista Marie Claire, que entrevistou a cineasta, fez um bom prefácio ao filme:

“A cineasta Petra Costa tem quase a mesma idade da democracia brasileira. A primeira nasceu em 1983 e a segunda voltou a respirar em 1984, com o fim da Ditadura Militar. Por isso, Petra explica, faz parte de uma geração que cresceu confiante nas instituições do país e com a certeza de que a democracia amadurecia e se fortalecia em um movimento paralelo ao de sua vida. (…) Ao longo de três anos, Petra entrevistou dezenas de políticos de todo o espectro ideológico. Constam no filme tanto um entusiasmado Jair Bolsonaro mostrando seu gabinete de deputado e os quadros que possuía dos generais do governo militar; como uma resiliente Dilma Rousseff pós-impeachment. Com acesso privilegiado aos bastidores do poder, Petra contou também com cenas registrada por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da presidência nos anos de governo Lula e que o acompanhou até sua prisão, inclusive quando deixou o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo rumo ao aeroporto de Congonhas para entregar-se à Polícia Federal.

Em entrevista à Marie Claire, Petra conta como foi o processo de criação e captação das imagens do filme e analisa o cenário político brasileiro atual.

Marie Claire – Quando nos falamos em 2016, sua intenção era filmar os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff. Como tomou a decisão de ampliar o filme e terminar com a eleição de Jair Bolsonaro?

Petra Costa – Minha sensação é de um dia ter ido filmar uma manifestação e no meio dela tropecei e caí no buraco de um coelho que me levou numa jornada de 1001 noites. O filme pra mim não nasceu do desejo de filmar o impeachment, mas da sensação vertiginosa que o chão da democracia brasileira estava se abrindo embaixo dos meus pés. O chão que, desde que eu nasci, era uma das poucas coisas que eu tomava como certeza. Que a democracia brasileira e eu tínhamos a mesma idade e que estávamos amadurecendo e nos fortalecendo juntas. Em 2016, ao ver pessoas pedindo pela volta da ditadura militar, outros pela volta monarquia, percebi que essa tal democracia era muito mais frágil do que eu imaginava. O filme surgiu do desejo de documentar esse processo de permanente crise política. E o processo claramente não se encerra no impeachment. Acredito que seu primeiro ciclo comece em 2013 e termine com a última eleição. Claramente no entanto a vertigem não CTG acabou e entra agora na sua segunda temporada.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA: https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2019/06/em-democracia-em-vertigem-petra-costa-questiona-os-limites-da-democracia-brasileira.html

Petra fez um filme comovedor, em que entretece sua biografia pessoal com a história nacional. Ao mesmo tempo que rememora a vida de seus pais, ativistas de esquerda que combateram a Ditadura, revela também alguns de seus laços familiares com Aécio Neves e com os fundadores da construtora Andrade Gutierrez. Partindo do passado distante, lembra-nos que essa terra foi batizada pelos colonizadores portugueses com o nome de uma planta cuja tintura vermelha foi a primeira commodity explorada pelos invasores – uma exploração que levou o pau-brasil às beiras da extinção.

O filme é magistral no retrato dos nexos e vínculos entre o golpeachment contra Dilma e a farsa jurídica montada por Sérgio Moro, em conluio com a mídia corporativa e os procuradores da Lava Jato (Dallagnol e companhia), para aprisionar Lula e evitar assim que o PT vencesse as eleições presidenciais pela 5ª vez consecutiva. O filme lança ao mundo as evidências concretas de que o processo contra Lula é parte do Golpe de Estado e ychega em momento extremamente oportuno, coincidindo com a Operação #VazaJato e com o alto impacto dos leaks recentemente disponibilizados a The Intercept por whistleblowers. 

Petra expõe, no filme, aquele ridículo Power Point de Dallagnol que, à semelhança de um processo medieval, tenta fazer de Lula uma espécie de Satanás, centro e líder do maior esquema de corrupção da história do mundo. O que contrasta com a inexistência de provas e com a argumentação pífia, beirando o ridículo, de um dos acusadores-inquisidores: não podendo provar a posse do imóvel no Guarujá, os procuradores inventaram a noção absurda de que a falta de escritura provaria o intento de ocultação de propriedade por parte de Lula.

Incapaz de comprovar qualquer vantagem ilícita que Lula pudesse ter auferido, como a atribuída reforma no triplex, condenaram o ex-presidente por “atos de ofício indeterminados”, uma bizarrice jurídica que envergonha todo o Judiciário nacional. É lawfare, e foi mal ocultada – tanto que já afloraram 1.700 páginas de evidência de que este julgamento fraudulento merece cair na nulidade – e Lula deve ser libertado e ter direito a novo julgamento, desta vez com um juiz mais justo do que o canalha Moro.

Lúcido quanto a este processo, o ex-presidente Lula revela, no filme, estar plenamente consciente de que o Golpe não estaria consumado apenas com a deposição de Dilma. Eles não queriam somente tirar a primeira mulher eleita presidenta, com o pretexto das manobras contábeis conhecidas como “pedaladas fiscais”: depois disso, a corja que desrespeitou o voto de 54 milhões de eleitores em 2014 não iria simplesmente permitir que Lula, líder disparado nas intenções de voto para 2018, voltasse ao poder.

“Não adianta tentar parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar eu sonharei pela cabeça de vocês!” – esta é uma das comoventes frases de Luiz Inácio Lula da Silva, discursando no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, alguns instantes antes de se tornar um preso político no conflagrado Brasil de 2018 (recentemente biografado por Mário Magalhães em seu Entre Lutas e Lágrimas). A crônica daqueles tensos instantes que precederam a prisão de Lula é certamente um dos pontos altos do filme e o primeiro registro histórico que chega ao cinema daquele evento em que vimos uma prisão impossível. 

Como escreve Maringoni, “a sensação de estupefação e entorpecimento de espectador no final da fita pouco a pouco se desvanece quando atentamos para o som ao redor e percebemos que o admirável mundo novo dos milicianos de toga, farda e terno começa a apresentar rombos no casco.”

Por concentrar-se na crônica, muito bem concatenada, do processo golpista que tirou o PT do poder, desrespeitando violentamente a vontade soberana do povo que se expressou nas urnas em 2014 e que voltaria a se expressar em 2018, caso tivesse havido um processo eleitoral legítimo (que não houve!), o filme não se dedica muito a investigar o que eu chamaria de psicose-de-massas que conduziu Bolsonaro ao poder.

Para explicar esta outra bizarrice histórica do Bolsonarismo – o fato de um deputado há quase 30 anos no poder, claramente parte de uma classe política parasitária, de pífia ou nula contribuição para o bem público, que enriqueceu sua própria família ao inserir 3 de seus filhos no jogo de alta lucratividade do Estado (visto como balcão de negócios da Burguesia), pudesse conquistar, na exclusão de Lula, 57 milhões de votos que o elegeram… -, Democracia em Vertigem não vai fundo. O filme não menciona nem a fraude das fake news pagas com caixa 2, nem as tenebrosas transações com os magnatas evangélicos. Ainda sobrou muito tema para outros documentários que explorem a Marcha de nossa democracia para o abismo, e as razões que explicam que seu algoz seja esta execrável figura que, no feriado de Corpus Christi de 2019, foi flagrado fazendo arminha na Marcha Para Jesus.

 

Avalio que os mercadores da fé, vendedores de ilusões alienantes, como Malafaia e Edir Macedo, dentre tantos outros pastores canalhas, foram diretamente responsáveis pela construção do “mito” Bolsonaro. Não se entende a “canonização” deste político medíocre, irresponsável e violento sem todo um processo de manipulação teocrática das consciências populares capturadas na teia do neopentecostalismo evangélico e sua Teologia da Prosperidade.

É verdade que a história do cristianismo está repleta de episódios lamentáveis, de cruzadas e inquisições, de bruxas e hereges reduzidos a cinzas, de cientistas silenciados e perseguidos, de violência assassina contra os transviados e dissidentes que discordaram dos dogmas, de censura e perseguição a ateus e agnósticos, de preconceito e discriminação contra minorias sexuais, de intolerâncias contra outras crenças, de papas acobertando escândalos de pedofilia e dando apoio para regimes cristofascistas – horrores de tal monta que não cabem num meme (mas estão lá nos livros de Saramago, Diderot, Nietzsche, Voltaire, Onfray etc.). Apesar desta história pregressa nada louvável, a instrumentalização da fé por parte da extrema-direita Rambonazista, em especial o conluio entre igrejas evangélicas neopentecostais e o sujeito que adora Tortura, Grupos de Extermínio, Milícias e Armas, é um dos episódios que mais me enche de nojo em todo o trôpego caminhar desta religião sobre a face da Terra.

Acredito que Jesus estaria hoje vomitando de repugnância diante daquilo que fazem em seu nome – o nazareno pode até ter sido um cara com ensinamentos éticos interessantes, mas o seu fã-clube está fazendo um péssimo serviço com sua reputação póstuma. Como pode ter gente que se diz cristã e idolatra este malévolo Capetão, este mito-fake explicitamente racista, este Machão Tóxico homofóbico e misógino, este estrupício ético e cognitivo, como se fosse um enviado de Deus? Deus, se existisse e fosse bom e justo como O pintam os seus crentes, jamais se utilizaria de tal instrumento ignóbil pra seus fins.

Tristes tempos de “cristofascismo” em que pseudo cristãos idolatram um Mi(c)to covardão, incapaz de encarar os debates nas eleições, com a idade mental de um bully de 12 anos que quer construir seu próprio senso de superioridade através da humilhação dos outros. O atoleiro em que caiu nossa democracia tem muito a ver com um tema que o filme de Petra deixa sem mencionar: o obscurantismo conexo à hegemonia desses teocratas evangélicos (a exemplo da Ministra Damares Alves e de escrotões como Marco Feliciano, Magno Malta etc.).

Um capetão na Marcha pra Jesus

Os eleitores do Coiso constituem, em amplas manadas, o rebanho desses teocratas corruptos, oportunistas e milionários, da laia de Malafaia ou de Edir Macedo. Jesus Cristo foi torturado e morto por aqueles que, na época, faziam apologia da tortura como vem fazendo entre nós o Capetão fã do Ustra. Jesus jamais compareceria a esta marcha feita em seu nome senão para cuspir na cara dos interesseiros organizadores desta mega manipulação demagógica e que fede a fanatismo religioso.

Foi Paulo Freire, grande mestre hoje demonizado pela extrema-direita Bozorâmbica e pelos pastores delirantes em seus templos-shopping, quem ensinou que a democracia necessita visceralmente de uma educação libertadora, que faça com que os oprimidos possam superar a consciência ingênua e mistificada, rumo à consciência crítica, condição necessária para sua plena atividade cívica. Sem educação pública, gratuita, laica, de qualidade, que forme para o senso crítico e para que sejamos sujeitos históricos, sempre voltaremos a sentir vertigem diante das beiras-de-abismos em que voltamos a estar prestes a despencar.

Pode-se explicar bem que um grupo político sabidamente canalha, como o clã Bolsonaro, faça uso em sua campanha eleitoral de táticas calhordas de difamação do adversário, de caixa 2, de burla à lei eleitoral, de sensacionalismo midiático – ou seja, que esses caras joguem sujo é esperado. Ingenuidade seria esperar fair play democrático de quem sempre odiou a democracia e que, uma vez no poder, tem feito tudo para miná-la e destrui-la ainda mais, rumo à autocracia dos idiotas.

Porém, a canalhice de um grupo político como o PSL (Partido Suco de Laranja) é mais compreensível do que a adesão massiva a este projeto de país elitista, machista, racista, homofóbico, ecocida e desumano. Só se compreende os mais de 57 milhões de votos no Capetão com uma análise da psicologia de massas que tente compreender como se deu a produção massificada de consciências em que se somam a ingenuidade, a credulidade, a alienação, o analfabetismo histórico-político e, last but not least, uma espécie de perversão sádica – o gozo com o sofrimento alheio. Bolsonaro explora os piores demônios de nossa Natureza e encontrou eco e guarida em grupos sociais como  os evangélicos, acostumados ao espírito de manada e à credulidade cega a líderes inquestionáveis apesar de seus comportamentos altamente obscenos, além é claro do pessoal do agronegócio, do agrotóxico e da hecatombe organizada contra indígenas e quilombolas.

Por melhor que seja o filme de Petra, que de fato é inteligente e sensível, comovedor e relevante para a atualidade e para a História, ele passa ao largo do tema da educação – e da falta dela. Se a pedagogia de Paulo Freire fosse de fato aplicada em larga escala neste país, teria gerado uma população muito mais capaz de crítica e autonomia, que jamais se deixaria engambelar por um macho tóxico escroto e incompetente como o palhaço fascista Rambozo. Sua eleição é por si só um sintoma do quão defasados estamos em matéria de uma educação para o senso crítico que fosse de fato massiva e democrática.

Todo o processo de Golpe de Estado que se desenrolou entre 2016 e 2019, e que prossegue enquanto escrevo estas linhas, está intimamente conectado com nosso fracasso em disseminar as práticas e ideais da Pedagogia do Oprimido no país: acabamos com imensas hordas de analfabetos políticos e de idiotas privatistas, presas fáceis para a demagogia pastoral e politiqueira dos que querem ser os velhos donos do poder. Se quisermos uma Democracia forte, ela precisará ser construída com muito trabalho e suor, e para isto é indispensável que ensinemos cidadania ativa e participação social efetiva àqueles oprimidos que estão acostumados demais a serem objetos de história, rebanhos de pastores, fantoches de políticos, espectadores de espetáculos e manipuláveis títeres dos podres poderes que hoje botaram nossa democracia num cadafalso. Retirá-la de lá é nossa responsabilidade histórica, e o trabalho será infindável.

Democracia em Vertigem é prova de que o cinema pode estar aliado àqueles que tem a coragem da verdade de que nos fala Foucault – e prova também de que o documentário, quando vem em hora oportuna e explora bem o célebre kairós dos gregos, pode tornar-se uma força histórica, speaking truth to Power e denunciando golpes e opressões que intentam nos lançar no abismo de uma nova Ditadura. É abraçados com filmes pungentes e comoventes como o de Petra que podemos haurir força e ânimo para seguir dizendo que ninguém solta a mão de ninguém e que “fascistas, machistas, racistas, não passarão!”

Eduardo Carli de Moraes
22 de julho de 2019

Leia mais: outras resenhas e reportagens sobre Democracia em Vertigem >>> Maringoni em Revista Fórum || Eduardo Escorel em Piauí || Gilberto Calil em Esquerda Online || José Geraldo Couto em IMS || El País Brasil || Brasil 247 || The New York Times || Draglicious || The Guardian (UK) || Esquerda Diário || Breno Altman em Folha de S. Paulo || Carlos Alberto Mattos || Juliano Medeiros no Blog da Boitempo.

Greve Geral mobiliza milhões de trabalhadores contra Reforma da Previdência e cortes na Educação – Veja o documentário “Tsunami da Balbúrdia #3″#14J

NINJA – Educação sucateada, aposentadoria em risco, meio ambiente ameaçado, cultura do ódio, mais de 13 milhões de desempregados, escândalos de corrupção, despreparo e vergonha internacional, é por esse motivo que o Brasil parou na #grevegeral do último 14J. O governo Bolsonaro não representa o Brasil. Confira a galeria de fotos da Mídia Ninja e parceiroshttp://bit.ly/2Xii4v1.

A Casa de Vidro lança novo documentário: “É Greve porque é Grave!”, 3ª parte da série documental “Tsunami na Balbúrdia”

Foram três fortes Tsunamis de Cidadania que, nestes últimos tempos, insuflaram ânimo a todos aqueles engajados na construção coletiva de um menos injusto e opressivo. O primeiro tsunami, em 15 de Maio, levantou altas ondas de indignação contra os 5 bilhões e 700 milhões de reais cortados da Rede Ferderal Educação, como anunciado pelo ministro Weintraub (MEC) em já antológica transmissão em que tentou acalmar o furacão a base de chocolatinhos e de percentagens enganosas.

Após tesourarem 30% das verbas discricionárias do Ministério da Educação, o Ministro e seu patrão Bozo tentaram nos convencer a ficarmos apáticos, de bunda sentada no sofá, babando diante de Globos, Ratinhos e outras ratazanas – dizendo que só protestariam os “idiotas úteis” alimentados pelos petralhas com mortadela. Mas fracassou a conclamação dos brucutus a que fôssemos obedientes e bom-comportados, aceitando bovinamente a brutal subtração de nosso direito coletivo à educação pública de qualidade. Fomos às ruas, num levante histórico, demandando: “Tira a Mão do meu IF!”, bradando: “Quero estudar pra ser inteligente / Porque de burro já basta o presidente!”, dentre outras erupções de rebeldia coordenada.

Em 30 de Maio o #TsunamiDaEducação voltou às ruas de mais de 200 cidades pelo Brasil, num segundo tsunami de democracia de alta intensidade, reforçando a mensagem contra o Governo de Bolsonaro: “Nenhum Direito a Menos!” Através do #15M e do #30M, o movimento estudantil, somado à mobilização de professores e servidores técnico-administrativos, mostraram-se capazes de levantar-se na hora certa, em resistência contra o Desmonte dos Bens Públicos, marcando época nestas memoráveis Jornadas de Maio de 2019.

E assim, com este Maio caliente ainda em nossos retrovisores, foi que nos encaminhamos para o 14 de Junho, quando um mar de gente voltou a fluir pelas ruas e praças do Brasil em novas Aulas de Cidadania Ativa: era a Greve Geral contra a Reforma da Previdência e contra os cortes de investimento na Educação.

Foram manifestações em que não faltaram também críticas ao atual Ministro da Justiça, o Sr. Sergio DesMoronando: “o juiz era o bandido”, lia-se em um cartaz; “de herói a vilão”, proclamava outro cartaz que trazia estampadas as Duas Caras do malvadão de “Batman – Cavaleiro das Trevas”). Camisetas e faixas reiteravam a demanda por Lula Livre, com a exigência articulada coletivamente por “justiça de verdade” para o ex-presidente Lula, preso político ainda encarcerado em uma solitária da PF em Curitiba, apesar das acachapantes evidências de que foi vítima de um Tribunal de Exceção.


 
Confira o álbum dos atos pelo Brasil: https://bit.ly/31Bfb7J.

Neste documentário produzido por A Casa de Vidro, acompanhe um pouco dos agitos que animaram o protesto nas ruas de Goiânia neste 14 de Junho. Vibre junto com os discursos de mulheres empoderadas que falam à rua (e ao filme): como Danny Cruz, da UJS – União da Juventude Socialista, além de presidenta da UEE GO, e Kátia Maria, que em 2018 foi a candidata ao Governo de Goiás pelo PT – Partido dos Trabalhadores. Flagre também um pouco da participação do Pedro Wilson, ex-prefeito de Goiânia, além de performances artísticas e batuqueiras por parte dos criativos cidadãos ativos que desfilaram pela urbe suas salutares rebeldias.

O curta-metragem é a 3ª parte da Trilogia Documental TSUNAMI DA BALBÚRDIA. Dê o play, aumente o volume, e boa viagem!

 

ASSISTA TAMBÉM:

  • TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta: https://wp.me/pNVMz-5mx
  • TSUNAMI DA BALBÚRDIA #1: Documentário sobre a mobilização em defesa da Educação pública em 15 de Maio de 2019: https://wp.me/pNVMz-5kq.

TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta || Documentário A Casa de Vidro

A Casa de Vidro lança a segunda parte do documentário “Tsunami da Balbúrdia”, retrato histórico a quente das manifestações em defesa da rede federal de educação (#30M)

“A praça é do povo
Como o céu é do condor.”
Castro Alves (1847 – 1871)

Um coro de vozes, incontáveis e altissonantes, levantou-se para espalhar pelas cidades os cantos e batuques da emancipação: era 30 de Maio de 2019 e éramos um segundo Tsunami de Gente, dando continuidade aos atos grandiosos do #15M que levaram mais de 2 milhões de cidadãos às ruas de mais de 200 cidades.

Mais uma vez, no #30M, as aulas foram nas ruas. Nestas aulas de cidadania coletiva, nestas multitudinárias manifestações, as bandeiras eram muitas e o colorido humano terrestre superava em muito as cores do arco-íris celeste (como ensina Eduardo Galeano).

Queríamos “mais livros e menos armas”, “+ Freire – Guedes”, “Liberdade para Lula“, “Fora Bolsonaro”. Com entusiasmo e coesão, os “blocos” da luta carnavalizada fluíram pelas praças e avenidas, gritando palavras-de-ordem rimadas e ritmadas, feitas para chacoalhar toda a apatia dos fatalistas e todo o conformismo dos privilegiados. Entre os refrões, ressoavam:

– Trabalhador, preste atenção: a nossa luta é pela educação!
– Trabalhador, preste atenção: o Bolsonaro só governa pra patrão!
– Não é mole não! Tem dinheiro pra milícia, mas não tem pra educação!
– A nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria!

Fotos acima: Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo no #30M

No documentário curta-metragem Tsunami da Balbúrdia, parte 2, tentamos captar um pouco destas efervescências cívicas que nos transformaram em gotas nesse mar de revolta. Pois, como Albert Camus ensinava, é na superação do individualismo típico do sujeito egoísta, fissurado em correr atrás de seu interesse privado, que podemos nos alçar para longe do pântano da absurdidade do mundo, rumo à esfera superior da revolta que nos solidariza: “eu me revolto, logo somos” (do livro L’Homme Revolté / O Homem Revoltado). 

TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2
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Um filme de Eduardo Carli de Moraes (câmera, montagem e direção), com apoio de Lays Vieira (câmera) e participação de Aymê VirgíniaKleuber GarcezBeatriz DurãesLucas CardosoHenrique SouzaLey SilvaNicolle PiresAndreoly N. MonçãoDanny Cruz. Com fotografias de Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida, dentre outros. Trilha sonora com canções de: Flaira Ferro, Francisco El Hombre, Adriel Vinícius e Ceumar.

A vida só se renova com revolta contra as injustiças e as opressões que nos imobilizam. Quando animada por um espírito de solidariedade, a revolta é a força material que impele um princípio ético em sua tentativa de devir carne. Na Praça Universitária, enquanto os estudantes da EMAC (Escola de Música e Artes Cênicas) / UFG faziam a sua performance subversiva, vivi na pele aquela verdade dos existencialistas mais lúcidos e que ganhou sua mais bela expressão em Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)

A “Tropa de Choque” da Educação, empunhando escudos de papelão transformados em reproduções de capas de livros, vai na vanguarda da marcha, levando seus estandartes que sinalizam a vontade e o ímpeto de defender a cultura, a inteligência, a criatividade, nas figuras de George Orwell, Hilda Hilst, Michel Foucault, Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Angela Davis, Paulo Freire, Augusto Boal, Cervantes, dentre outros.

Protestando também com muita arte, a galera da Faculdade de Artes Visuais deu expressão à palavra tsunami com uma grande onda que conectava os indivíduos ali presentes numa espécie de centopéia. O super-organismo da cidadania organizada e insurgente cantava canções irreverentes e ousadas como aquele adorável “ô Bolsonado, seu fascistinha, os estudantes vão botar você na linha!”

Em marchas repletas de beleza, em que ética e estética davam as mãos para fazer da cultura em movimento uma força de transformação social, estávamos unidos na diversidade. Questionávamos Weintraub, o Bobo dos Cortes, indignados com a tentativa de desmonte da rede federação de educação que está em curso. Assim como em Junho de 2013, não eram só 20 centavos, desta vez também podemos dizer: não são 3 chocolatinhos e meio.

Estar nas ruas fervilhantes de gente desperta e valente foi um bálsamo para as energias. É que nestes tempos de hegemonia da idiocracia neofascista e sua necropolítica, o pessimismo imobilizador poderia muito bem ter tomado conta, feito uma epidemia, matando no nascedouro qualquer capacidade de mobilização e resistência. Não foi o que aconteceu. Os Tsunamis da Educação foram gigantescos sopros de vida de um povo guerreiro e que não aceita o jugo do opressor, com protagonismo de uma “juventude que sonha sem pudor”, como canta a linda Flaira Ferro inspirada pelo tsunami recifense:

“na calada da noite
os estudantes fazem o futuro amanhecer
quem aprendeu a ler e escrever
sabe bem que analfabeto
jamais voltará a ser

mesmo que o destino
reserve um presidente adoecido
e sem amor
a juventude sonha sem pudor
flor da idade, muito hormônio
não se curva a opressor

pode apostar
a rebeldia do aluno é santa
não senta na apatia da injustiça
agita, inferniza e a rua avança
escola não tem medo de polícia

pode apostar
balbúrdia de aluno é o que educa
ensina ao governante que caduca
retroceder não é uma opção
respeito é pra quem dá educação.”

Aos historiadores do futuro que quiserem saber quais as causas da revolta destas gotas cidadãs que se uniram neste tsunami de gente, deixamos algumas pistas. Não se trata apenas de protestar contra os cortes nos investimentos públicos na rede federal de educação, mas de protestar um contexto mais amplo em que a educação já vive um “clima de Ditadura”, como argumentou Juan Arias em El País.

Através da idiocracia de extrema-direita encabeçada por Bolsonaro, Guedes, Damares, Moro etc., o que está em ascensão é uma Cruzada Obscurantista, uma lunática campanha para livrar o Brasil das várias faces de Satanás: na mente desses dementes, Satã é representado na face da Terra por Paulo Freire, Gramsci, o Marxismo Cultural, mas sobretudo o lulismo e o petismo. Gente de Deus? Damares, Edir Macedo, MC Reaça, Malafaia, Ustra… Há quem até mesmo diagnostique na loucura da “mitologização” de Jair Messias Bolsonaro um sintoma do cristofascismo à brasileira.

Estes fanáticos – tanto do Livre Mercado quanto de um Deus conexo à Teologia da Prosperidade – agora atacam numa espécie de Cruzada Anti-Iluminista, numa Aliança Terraplanista em prol do retorno da Inquisição, do fortalecimento da Klu Klux Klan, de “programas sociais” como o Arma Para Todos, o Escola Para Poucos e o Menos Médicos (especialidades Bolsonaristas).

A intentona de criminalização do pensamento crítico e dos docentes que facilitam o avanço da pedagogia crítica está a todo vapor, sendo que filósofos e sociólogos “esquerdistas” e “marxistas” são pintados como chifrudos comedores de criancinhas, “uma paranoia ideológica que enxerga ‘esquerdismo’ e ‘comunismo’ em tudo que cheire à defesa dos interesses populares pelo Estado, flertando com o fascismo e com o ‘darwinismo social’.” (FREITAS: 2018, p. 28)

Temos “movimentos destinados a cercear a liberdade docente como o Escola Sem Partido que, como bem destaca o prof. Luiz Carlos de Freitas, é financiado e apoiado por interesses empresariais e privatistas. Imensas maquinarias de desinformação e idiotização são postas em marcha – por exemplo pelo MBL, turbinado com os dollars dos Kocj Brothers – fortalecendo a viralização das fake news, do discurso de ódio e da noção de uma da “pós-verdade”.

Esse caos todo é destravado pela ação de uma “nova direita” repleta de “velhas ideias”, uma direita que fede a velharia por ser composta sobretudo por homens, brancos, ricos, pseudo-religiosos, ambiciosos e gananciosos até a patologia, e que idólatras de Mammon querem só saber da mercantilização de tudo. Quem tenta nos dominar hoje é uma Direita que une o neoliberalismo na economia e o conservadorismo tacanho na moral (ou “costumes”).

No âmbito educacional, além de desejar sucatear e precarizar as escolas públicas, para depois tentar justificar perante a sociedade a necessidade de privatização ou terceirização, esta Direita tende a idolatrar o Mercado com uma devoção cega com que também parece cair no abismo de idolatrias ainda mais estúpidas e nefastas. Para esses debilóides, Bolsonaro não é um calhorda apologista da tortura e da Guerra Civil, mas um “Mito” e um “Cidadão de Bem”, assim como MC Reaça é um “grande artista”, Olavo nosso “maior pensador” e Edir Macedo ou Silas Malafaia os próprios enviados do Senhor para conduzir-nos à salvação (desde que possamos pagar por ela).

Como escreve Freitas, em seu texto “Um Outro Horizonte Possível”, não podemos e não devemos nos submeter docilmente à lógica privatista e à tentativa de redução da escola ao modelo empresarial:

“A privatização da escola introduz formas de gestão empresariais e verticalizadas, ensina nossos jovens a praticar o individualismo e a competição, reforçando na sociedade formas de organização limitadas e injustas – sem falar da ampliação de processos culturais relativos à violência cultural e ao não reconhecimento das diferenças raciais e de gênero.

Por tudo isso, tal perspectiva é incompatível com a qualidade social que se espera de uma educação voltada para formar lutadores e construtores de uma sociedade mais justa, sob as bases da participação na vida coletiva – na escola e na sociedade – em estreita relação com sua comunidade, da qual a escola faz parte. A competição não é, nem do ponto de vista da convivência social, nem do ponto de vista educacional, um modelo que induza uma humanização crescente das relações sociais em uma ambiência democrática.

Se estamos compromissados com a democracia, todos os espaços da escola devem permitir a vivência da democracia; devem chamar os alunos para a participação em seu coletivo, permitindo o desenvolvimento de sua auto-organização e seu envolvimento com a construção coletiva, com espírito crítico. O conhecimento que se adquire nos processos escolares deve um instrumento de luta voltado para esses objetivos…

A escola pública, no presente momento histórico, é a única instituição educativa vocacionada a acolher a todos de forma democrática. As dificuldades que ela tem para cumprir essa tarefa devem nos mobilizar para uma luta que a leve a cumprir essa intenção com qualidade e não, pelo oposto, nos leve a apostar em sua destruição.”

LUIZ CARLOS FREITASA Reforma Empresarial da Educação – Nova Direita, Velhas Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018. Pg. 128.

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ASSISTA “TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2”:
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VEJA TAMBÉM O PRIMEIRO CURTA-METRAGEM:
TSUNAMI DA BALBÚRDIA – #15M

VEJA MAIS FOTOGRAFIAS || por Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida e Estudantes Ninja

BRISAS LIBERTÁRIAS: Diante do catastrófico fracasso do Proibicionismo, a urgência da Legalização (Assista ao Documentário)

BRISAS LIBERTÁRIAS

Foto de abertura: Marcha da Maconha São Paulo 2019, por Alice Vergueiro

“O Proibicionismo não funcionou nem quando Deus tentou”: esta sarcástica mensagem, empunhada por um manifestante na Marcha da Maconha Goiânia 2019, é uma síntese do espírito que animou a 9ª edição anual desta manifestação na capital de Goiás.

As ruas estiveram animadas pela  denúncia de um fiasco retumbante que encarcera, assassina e violenta direitos elementares. Mas também estiveram animadas pela atitude ousada e irreverente dos que pedem luz verde para esta planta de poder.

Afinal, a cannabis sativa há milênios é usufruída pela Humanidade, nas mais diversas culturas, seja como remédio, seja como expansor de consciência, seja em contextos ritualísticos ou estéticos – e apenas há algumas décadas sofre com uma insana e sanguinolenta proibição cuja colheita nefasta é o encarceramento em massa, o extermínio da juventude pobre e periférica, o enriquecimento do narcotráfico gangsterizado, a corrupção e truculência policial-carcerária etc.

Já passou da hora de pôr fim a este retumbante fracasso em prol de políticas mais sábias.


Organizador do evento, o Coletivo Antiproibicionista Mente Sativa expressa que, apesar da pesada repressão policial, a Marcha da Maconha esteve repleta de “resistência, garra e exemplo de participação política”: “Ela foi diversa de cores e gêneros, classes sociais e estilos, um ato de solidariedade e coragem com 5 mil pessoas de todos os lugares, quebradas, picos ou points de Goiânia e região”.

Em Brisas Libertárias, curta-metragem documental produzido por A Casa de Vidro com apoio da Mídia Ninja e do Mente Sativa, vocês podem ter acesso dos agitos de rua em prol da legalização e do fim da desastrosa Guerra às Drogas, além entrevistas e intervenções com:

* Goitacá Escafandrista (Mente Sativa / Pangeia Cultural)
* Sara Macêdo Kali (Advogada / Ativista do movimento Subverta)
* Fabrício Rosa (Advogado / Ativista dos Direitos Humanos e do Policiais Antifascismo)
* Marcello Soldan (Mente Sativa)
* Guilherme  (Coletivo Quilombo)

Assista ao curta nas seguintes plataformas:

YOUTUBE

VIMEO

FACEBOOK
https://www.facebook.com/blogacasadevidro/videos/2754352704637149

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GOSTINHO DE DITADURA

Em Brasília e em Goiânia, sentimos um gosto amargo de Estado de Exceção durante as recentes Marchas da Maconha. Na véspera do ato goianiense, a segunda grande manifestação em defesa da educação pública (#30M) chaqualhou a capital de Goiás com um novo Tsunami da Balbúrdia, num potente protesto contra os cortes impostos pelo MEC sob a batuta do Desmontador Weintraub.

No dia seguinte, 31 de Maio, Bolsonaro visitou Goiânia para participar da 46ª Assembleia Geral da Convenção Nacional das Assembleias de Deus, explicitando o caráter sectário, teocrático e neopentecostal de sua conduta política – também marcada pelo autoritarismo no trato com usuários de drogas, com decretos que facilitam a internação compulsórias nos antros evangélicos conhecidos como Comunidades Terapêuticas.

Na Praça Universitária, talvez para mostrar serviço pro Bolsopatrão, um descomunal aparato repressivo foi montado pelo Estado para tentar tocar o terror pra cima da Marcha – reconhecida pelo STF há anos como um ato cívico legítimo e pacífico, em defesa de uma pauta que interessa à toda sociedade.

Houve um desrespeito absurdo contra o trabalho do coletivo Mente Sativa Goiânia, que cotidianamente trampa pelo esclarecimento da opinião pública sobre os malefícios do proibicionismo e da guerra às drogas. Além da detenção provisória de um dos organizadores da marcha e líderes do coletivo, o Marcello Soldan, a polícia antes da passeata confiscou 28 camisetas, 600 adesivos, 3 grandes faixas, 100 cartolinas, além de tintas, pincéis e canetões.

Em violação do artigo 5 da Constituição, que garante o direito de reunião e manifestação, a repressão policial procurou impedir a concentração da marcha e desarticular suas ações. O carro de som foi impedido de sair, sob a alegação de estar sem extintor de incêndio; dezenas de pessoas tomaram enquadros e baculejos numa praça universitária sitiada por umas 40 viaturas policiais. Por toda a marcha, viaturas e motos do aparato repressor do Estado intimidaram os manifestantes, querendo impor (sem sucesso) o silenciamento aos maconheiros ali reunidos. Quando a sociedade civil se cala diante destes abusos, torna-se cúmplice dos algozes das liberdades civis.

LEIA: Nota pública do Coletivo Mente Sativa

Ficam as questões: e agora, quem arca com o prejuízo que o coletivo teve com a organização do ato após ter seus materiais confiscados? A polícia tem direito de se apossar de material gráfico de um movimento social, na explícita intenção de desarticular suas ações e diminuir o impacto da comunicação social com a população que se dá durante a passeata?

O Estado repressor pode ficar impune quando causa um rombo nas contas de um coletivo de ativistas através do confisco dos materiais destinados a interlocução de rua com a sociedade civil? Voltamos àqueles tempos em que a truculência policial podia moer vivos aqueles acusados de “apologia” da cannabis?

No site do Congresso em Foco, um relato similar sobre as ocorrências na Esplanada dos Ministérios:

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NO BRASIL DA ULTRAVIOLÊNCIA, GOVERNO BOLSONARO É SERVIÇAL DA MORTE

O Atlas da Violência 2019 do IPEA revelou que no Brasil apenas em 2017 foram registrados 65.602 homicídios – com “ascensão de mortes com perfil racial, com negros sendo 75% do total de mortos” (Ponte Jornalismo). Como noticia Bob Fernandes, “em 10 anos foram mais de 500 mil homicídios e 400 mil mortos no trânsito – e terraplanistas querem mais…”.

Assim fica difícil contestar a tese de que a Guerra às Drogas é um dispositivo para o controle social e o extermínio brutal da juventude periférica e pobre. Uma Guerra que não é contra substâncias, mas sim contra jovens em sua maioria pretos e pardos, massacrados por um Estado fissurado em um proibicionismo contraproducente e ineficiente. Um Estado brucutu, mergulhado num oceano de sangue humano injustamente derramado.

Mesmo diante de uma montanha de evidência sobre todos os horrores conexos à estratégia bélica de combate ao narcotráfico, certos governos seguem na insanidade de realizar o mesmo na esperança de resultados diversos. No Brasil, o governo Bolsonaro vem exercitando seu único dom – o autoritarismo truculento para impor neoliberalismo selvagem na economia e conservadorismo moralista-teocrático nos costumes – também nesta área.

Em um excelente episódio recente de Greg News, na HBO, Gregório Duvivier e seu time de roteiristas espertos (com destaque para Bruno Torturra), revelaram um pouco do real significado das Comunidades Terapêuticas em que o desgoverno Bolsonarista quer internar compulsoriamente os dependentes químicos:

Não é possível propor soluções para o catastrófico cenário de violência no Brasil que não passem pela superação da desastrosa Guerra às Drogas. Na contracorrente deste fato elementar, a estupidez relinchante da extrema-direita quer investir em “estradas sem lei e armas liberadas”, numa cruzada por um país “igual a Mad Max” (Leonardo Sakamoto):

“Premiar motoristas que cometem infrações de trânsito, dobrando a pontuação máxima permitida na carteira de habilitação, e defender a retirada de radares, transformando as estradas em pistas de corrida.

Facilitar o porte de armas e possibilitar a compra de milhares de cartuchos de munição por pessoa, colocando em risco milhares de vidas e ajudando na formação e legalização de milícias urbanas e rurais.

Dificultar a fiscalização ambiental e liberar agrotóxicos em série, fomentando o desmatamento, a pesca e a caça em área de preservação ambiental e a queda na qualidade da saúde pública.

Bloquear a concessão de novas bolsas de pesquisa, reduzindo a produção de ciência e tecnologia nacionais (e, consequentemente, a produtividade e a competividade), enquanto cresce o obscurantismo.

A um observador desatento, o governo Bolsonaro parece travar uma cruzada a fim de minar toda política construída, ao longo de décadas, com o objetivo de estabelecer regras para a vida em sociedade.

Afinal, pode-se interpretar seu comportamento como o de alguém que deseja substituir o respeito à lei – em que nós aceitamos abrir mão de parte de nossa liberdade em nome da coletividade – pela lei do mais forte, e o seu cada um por si e Deus acima de todos….

(…) O Brasil de Bolsonaro se parece – e muito – com o mundo pós-apocalíptico de Mad Max….” – Leonardo Sakamoto

Por isso, dezenas de milhares de cidadãos aderem à Marcha da Maconha, um movimento social imprescindível e que é capaz de mobilizar multidões pelo Brasil afora – como provam as impressionantes fotos de Alice Vergueiro no ato de São Paulo em 2019:

“A guerra às drogas fracassou em todos os seus objetivos declarados – sendo, por outro lado, muito bem-sucedida nos objetivos não declarados e nefastos de controle social, manutenção e aprofundamento de desigualdades e preconceitos” [1], argumenta o DAR – Coletivo Desentorpecendo A Razão. Este coletivo foi importantíssimo no processo histórico de criação da Marcha da Maconha São Paulo, que já consolidou-se como uma das mais importantes do mundo e que realizou uma massiva mobilização na capital paulista neste início de Junho de 2019.

No importante livro “Dichavando o Poder: Drogas e Autonomia” (publicado pela excelente Autonomia Literária), o DAR argumenta que “o proibicionismo não é só um conjunto de leis e convenções internacionais” (“seria mais fácil se fosse”); “ele é também uma lógica, uma cultura, que permeia as instituições, as nossas relações, as formas de pensar”:

“Se expressa quando o programa governamental para informação sobre drogas nas escolas públicas se resume a palestras dadas por policiais militares; quando um vizinho cagueta o outro que cultiva uma planta de maconha; quando o pai (apesar de tomar seu goró) bate no filho quando descobre alguma substância na gaveta e pensa em interná-lo; quando um usuário de drogas chega num serviço de saúde ou assistência e é tratado com preconceito; quando a imprensa retrata como heróica a ocupação militar das Forças Armadas nos morros cariocas; e assim vai.” [2]

As Guerras às Drogas é um fracasso do ponto de vista ético e humanitário, já que acarreta políticas de encarceramento em massa e de extermínio das populações pobres e periféricas. Mas, para as elites do dinheiro, para a plutocracia que pretende dominar a sociedade, a guerra às drogas é um instrumento eficaz para o controle social e a conservação do apartheid que nos racha entre a casta dos privilegiados e as grandes massas de oprimidos e espoliados.

Logo, um movimento social que pretenda transformar a sociedade no rumo de uma legislação mais sábia não pode deixar de atentar para a missão simultânea de modificar mentalidades. São ainda pouco reconhecidas e combatidas as expressões do preconceito conservador-proibicionista no que diz respeito à desumanização-do-outro tanto nas figuras dos usuários (de maneira atenuada) quanto nas figuras dos traficantes (de maneira mais explícita) de drogas ilícitas.

O preconceito reinante, a mentalidade hegemônica, chega a considerar que quando a polícia mata um traficante, está fazendo a coisa certa, ainda que vivamos em um país que não existe pena de morte, muito menos base constitucional para que um agente estatal da segurança pública imponha a pena de morte sem julgamento a um cidadão. No entanto, vocifera-se que “direitos humanos é para humanos direitos”, aplaude-se quando a truculência militarista assassina traficantes a quem nem se deu o direito de se tornarem réus, contra quem se guerreia como se tratassem de embaixadores de Satã na terra pelo fato de que vendem substâncias psicoativas de alta demanda mercadológica.

Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil: Intolerância e respeito às diferenças sexuais”, além de revelar em minúcias alguns dados sobre a LGBTQfobia no país, também revelou algo interessante: das pessoas consultadas em todo o país, 24% afirmam ter repulsa a usuários de drogas… perguntados sobre as pessoas que menos gostam de encontrar, os usuários de drogas foram campeões, com 35%, seguidos pelos ateus (26%) e pelos ex-presidiários (21%). [3]

Não se pode subestimar o peso destes preconceitos, destas repulsas irracionais mas socialmente construídas, na manutenção de uma guerra às drogas que é “injustificável e indefensável”, como afirma o DAR: “é preciso estudar e construir caminhos para acabar com ela e gerir as drogas proibidas de outras formas, mais eficientes, justas, livres, respeitosas… São as leis que estão muito loucas, (…) e é preciso desentorpecer essa razão militarista, autoritária e violenta que só serve aos interesses do dinheiro, da exploração e da dominação.” [4]

Um dos maiores méritos do livro publicado pelo DAR está na proposta de intersecção do proibicionismo com outras pautas (a feminista, a LGBTQ, a antiracista, a antimanicominal) e a noção de que devemos agir na base de uma política pré-figurativa. Ou seja: devemos agir hoje já como gostaríamos de agir no mundo que nossa ação visa transformar. Ser hoje a mudança que você quer ver massificada no mundo de amanhã.

Esta atitude a um só tempo interseccional e autonomista que motivou o Desentorpecendo a Razão nos primórdios da Marcha da Maconha em São Paulo parece-me ainda muito fértil e válida. Visto como movimento social de ações permanentes para o esclarecimento da opinião pública e que se manifesta especularmente sobretudo nas marchas da maconha, o Anti-Proibicionismo e sua luta pelo fim da Guerra às Drogas põe nas ruas um “dispositivo pré-figurativo e performativo de mudança”:

“São nossas ações presentes que moldam o futuro: é caminhando que se faz o caminho e, como diz a frase atribuída ao anarquista Mikhail Bakunin, só se pode alcançar a liberdade por meio da liberdade. Fazendo de nossos movimentos e ações espaços o mais livres, horizontais e abertos à diversidade e à criatividade possível, estamos pré-figurando o mundo novo, vivendo e apresentando uma performance do futuro, uma ‘amostra grátis’ dele no presente, como bem definiu o poeta baiano Antonio Risério ao comentar o desbunde contracultural dos anos 1960 e 1970 no Brasil.” [5]

Segundo o professor da USP Henrique Carneiro, grande conhecedor da gênese e do desenvolvimento histórico do proibicionismo, destaca com razão o aspecto ético e filosófico da questão:

“Escolher, o sentido do termo heresia, se torna um direito. Eleger sua religião, ler e escrever com liberdade de expressão, ter a liberdade de pensamento e do corpo como fundamentos da noção da autonomia humana e da autodeterminação do próprio destino são os temas que estão em questão no debate sobre o proibicionismo. O advento contemporâneo do proibicionismo é um movimento retrógrado em relação aos fundamentos renascentistas, reformistas e iluministas que estabeleceram essa noção moderna do direito à liberdade de consciência.

(…) Diversos argumentos, desde o da redução de danos em relação aos usos abusivos, até o da cessação dos males da violência e do aprisionamento em massa de camadas oprimidas, além das vantagens da normatização mercantil com arrecadação de tributos e controles sanitários de qualidade, dosificação e pureza dos produtos, são esgrimidos no debate público sobre a política de drogas a favor de sua legalização.

Há, no entanto, um aspecto central, do ponto de vista ético e filosófico, que permanece pouco presente e que me parece necessário ressaltar. É o argumento da autonomia e da liberdade de si. Uma autodeterminação psicossomática deve dizer respeito às fronteiras do corpo, da volição e da ingestão.

É preciso literalmente que nos desamarrem os pés, nos desimpeçam de poder decidir sobre nossos próprios corpos. Como cuidar, como curar, como comer, como beber, como se consolar, como se alegrar, como viver e como morrer deveria ser domínio de um espaço de decisão pessoal íntima e inviolável.” [6] (CARNEIRO, Henrique. p. 168 e 170).

marijuana, que começou a ser criminalizada nos EUA por razões racistas e xenófobas, em uma política de perseguição às populações mexicanas e hispânicas, protagoniza na Aldeia Global uma verdadeira Revolução na Medicina, com seus efeitos terapêuticos já amplamente reconhecidos pela Ciência e vários medicamentos já comercializados que contêm o THC. Torna-se, assim, cada vez mais obsceno e nefasto o modelo bélico de combate a esta planta psicoativa medicinal.

A juíza e diretora da LEAP Maria Lúcia Karam argumenta, com razão, que “a proibição das drogas acrescenta danos muito mais grave aos riscos e danos que podem ser causados pelas drogas  em si mesmas. O mais evidente e dramático desses danos é a violência, resultado lógico de uma política fundada na guerra. Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição”:

“A ‘guerra às drogas’ mata muito mais do que as drogas…. De um lado, policiais são autorizados, ensinados, adestrados e estimulados, formal ou informalmente, a praticar a violência contra os ‘inimigos’ personificados nos ‘traficantes’. O ‘inimigo’ é o ‘perigoso’, a ‘não pessoa’, o desprovido dos direitos reconhecidos apenas aos que se autointitulam ‘cidadãos de bem’. Como se espantar ou se indignar quando policiais cumprem o papel que lhes foi designado por esses ‘cidadãos de bem’?

Quem atua em uma guerra, quem é encarregado de ‘combater o inimigo’, deve eliminá-lo. Jogados no front dessa insana, nociva e sanguinária guerra, policiais matam, mas também têm seu sangue derramado. Do outro lado, os ditos ‘inimigos’ desempenham esse papel que lhes foi reservado. Também são ensinados, adestrados e estimulados a serem cruéis. Empunhando metralhadoras, fuzis, granadas e outros instrumentos mortíferos disponibilizados pela guerra incentivadora da corrida armamentista, matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde atuam.

As mortes de policiais, as mortes de ‘traficantes’, assim como as mortes de outras pessoas pegas no fogo cruzado, são faces de uma mesma moeda: a insana, nociva e sanguinária política de guerra às drogas… que não é propriamente uma guerra contra drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Mas não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da ‘guerra às drogas’ são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Os ‘inimigos’ nessa guerra são os pobres, os marginalizados, não-brancos, desprovidos de poder.” [7] (KARAM, p. 181)

Lutar pela legalização é estar do lado da vida em tempos em que o Proibicionismo já demonstrou que é o negócio dos que lucram com a morte.

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] COLETIVO DESENTORPECENDO A RAZÃO. Dichavando o Poder: Drogas e Autonomia.  Autonomia Literária, São Paulo/SP, 2016. p. 63.

[2] Op cit, p. 33.

[3] FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2008. Acesse relatório em PDF.

[4] Idem 1, p. 10.

[5] Idem 1, p.49-50.

[6] CARNEIRO, Henrique. “A gênese do proibicionismo moderno e o ponto de inflexão atual”. Apud item 1. Pgs 166 a 174.

[7] KARAM, Maria Lúcia. “Alternativas à Guerra às Drogas”. Apud item 1. Pgs 175 a 198.

 

OS 100 MELHORES CURTAS-METRAGENS DA HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO – Assista às obras selecionadas pela Abbracine

A ABBRACINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema realizou um levantamento sobre os 100 melhores curtas-metragens da história do cinema brasileiro, com obras que abrangem o período entre 1913 a 2018. A pesquisa servirá de base para livro “Curta Brasileiro – 100 Filmes Essenciais”, realizado em parceria com Canal Brasil e Editora Letramento (organizado por Gabriel Carneiro e Paulo Henrique Silva).

O filme gaúcho “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, foi eleito o melhor curta-metragem brasileiro de todos os tempos; esta obra foi a vencedora do Urso de Prata do 40º Festival de Berlim, em 1990.

Em segundo lugar na votação promovida pela Abraccine com críticos, professores e pesquisadores de todo o país, aparece “Di” (1977), de Glauber Rocha, ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, seguido por “Blábláblá” (1968), de Andrea Tonacci, “A Velha a Fiar” (1964), de Humberto Mauro, e “Couro de Gato” (1962), de Joaquim Pedro de Andrade.

Joaquim Pedro tem quatro filmes selecionados entre os 25 primeiros colocados – além de “Couro de Gato”, estão “Vereda Tropical” (15ª colocação), “O Poeta do Castelo” (21ª) e “Brasília, Contradições de uma Cidade Nova” (22ª).

O cineasta com mais produções na lista, no entanto, é Aloysio Raulino, que, como diretor, construiu um corpo de obra muito mais prolífico e marcante no curta-metragem. Cinco de seus filmes foram destacados: “O Porto de Santos”, “O Tigre e a Gazela”, “Jardim Nova Bahia”, “Lacrimosa”, este codirigido com Luna Alkalay, e “Teremos Infância”.

Também ganha destaque na votação a filmografia de Ivan Cardoso no formato, com quatro títulos: “À Meia-noite com Glauber”, “Nosferato no Brasil”, “HO” e “Moreira da Silva”. Da produção mais recente, chamam a atenção Kleber Mendonça Filho (“Vinil Verde”, “Recife Frio” e “Eletrodoméstica”) e André Novais Oliveira (“Fantasmas”, “Quintal” e “Pouco Mais de um Mês”), cada um com três filmes. – ABBRACINE

Para colaborar com o acesso do público a este rico tesouro cinematográfico, que faz parte da história da cultura audiovisual brasileira, A Casa de Vidro fez um mapeamento de todos os filmes disponíveis no Youtube e disponibilizou-os na playlist abaixo. Confira abaixo, a lista completa com os 100 melhores curtas-metragens eleitos pela Abraccine, seguidos por outros curtas-metragens recomendados:

Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado


Di (1977), de Glauber Rocha


Blábláblá (1968), de Andrea Tonacci


A velha a fiar (1964), de Humberto Mauro


Couro de gato (1962), de Joaquim Pedro de Andrade


Aruanda (1960), de Linduarte Noronha


SuperOutro (1989), de Edgard Navarro


Maioria Absoluta (1964), de Leon Hirszman


A entrevista (1966), de Helena Solberg


Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro


Alma no Olho (1973), de Zózimo Bulbul


Viramundo (1965), de Geraldo Sarno


Vinil verde (2004), de Kleber Mendonça Filho


Documentário (1966), de Rogério Sganzerla


Vereda tropical (1977), de Joaquim Pedro de Andrade


Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho


Nelson Cavaquinho (1969), de Leon Hirszman


Zezero (1974), de Ozualdo Candeias


Sangue corsário (1980), de Carlos Reichenbach


O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), de Jorge Furtado e José Pedro Goulart


O poeta do castelo (1959), de Joaquim Pedro de Andrade


Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade


Maranhão 66 (1966), de Glauber Rocha


O som ou tratado de harmonia (1984), de Arthur Omar


Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla


Mato eles? (1983), de Sérgio Bianchi


Guaxuma (2018), de Nara Normande


Meow! (1981), de Marcos Magalhães


Eletrodoméstica (2005), de Kleber Mendonça Filho


O rei do cagaço (1977), de Edgard Navarro


Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira


Socorro Nobre (1995), de Walter Salles


À meia noite com Glauber (1997), de Ivan Cardoso


Dias de greve (2009), de Adirley Queirós


A pedra da riqueza (1975), de Vladimir Carvalho


Memória do cangaço (1965), de Paulo Gil Soares


O duplo (2012), de Juliana Rojas


Quintal (2015), de André Novais Oliveira


Fala Brasília (1966), de Nelson Pereira dos Santos


O porto de Santos (1978), de Aloysio Raulino


Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira


Esta rua tão Augusta (1968), de Carlos Reichenbach


Muro (2008), de Tião


Manhã cinzenta (1969), de Olney São Paulo


O tigre e a gazela (1977), de Aloysio Raulino


Cinema inocente (1980), de Julio Bressane


…a rua chamada Triumpho 969/70 (1971), de Ozualdo Candeias


Carro de bois (1974), de Humberto Mauro


Olho por olho (1966), de Andrea Tonacci


Praça Walt Disney (2011), de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira


Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper


Juvenília (1994), de Paulo Sacramento


Os óculos do vovô (1913), de Francisco Santos


Dossiê Rê Bordosa (2008), de Cesar Cabral


Lampião, o rei do cangaço (1937), de Benjamin Abrahão


Animando (1983), de Marcos Magalhães


Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino


Partido alto (1982), de Leon Hirszman


Torre (2017), de Nádia Mangolini


Mauro, Humberto (1975), de David Neves


Ver ouvir (1966), de Antônio Carlos Fontoura


Congo (1972), de Arthur Omar


Caramujo-flor (1988), de Joel Pizzini


Lacrimosa (1970), de Aloysio Raulino e Luna Alkalay


Palíndromo (2001), de Philippe Barcinski


Um sol alaranjado (2002), de Eduardo Valente


Cantos de trabalho (1955), de Humberto Mauro


O guru e os guris (1973), de Jairo Ferreira


Nosferato no Brasil (1970), de Ivan Cardoso


Mulheres de cinema (1976), de Ana Maria Magalhães


Kbela (2015), de Yasmin Thayná


A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998), de Carlos Adriano


Libertários (1976), de Lauro Escorel


Meu compadre Zé Ketti (2001), de Nelson Pereira dos Santos


Seams (1993), de Karim Aïnouz


Céu sobre água (1978), de José Agrippino de Paula


Dov’è Meneghetti? (1989), de Beto Brant


Teremos infância (1974), de Aloysio Raulino


Texas Hotel (1999), de Cláudio Assis


Rituais e festas Bororo (1917), de Major Thomaz Reis


Integração Racial (1964), de Paulo Cezar Saraceni


HO (1979), de Ivan Cardoso


Kyrie ou o início do caos (1998), de Debora Waldman


Pouco mais de um mês (2013), de André Novais Oliveira


Cartão vermelho (1994), de Laís Bodanzky


Um dia na rampa (1960), de Luiz Paulino dos Santos


Moreira da Silva (1973), de Ivan Cardoso


Nada (2017), de Gabriel Martins


Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (1981), de Miguel Rio Branco


O ataque das araras (1975), de Jairo Ferreira


Enigma de um dia (1996), de Joel Pizzini


Amor! (1994), de José Roberto Torero


Menino da calça branca (1961), de Sérgio Ricardo


Estado itinerante (2016), de Ana Carolina Soares


Amor só de mãe (2002), de Dennison Ramalho


Carolina (2003), de Jeferson De


Contestação (1969), de João Silvério Trevisan


Guida (2014), de Rosana Urbes


Exemplo regenerador (1919), de José Medina


Frankstein punk (1986), de Cao Hamburger e Eliana Fonseca




OUTROS CURTAS QUE VALEM A PENA

UMA HISTÓRIA SEVERINA (2005) || Eliane Brum & Débora Diniz

HABEAS CORPUS (2005) || Débora Diniz

À MARGEM DO CORPO (2006) || Débora Diniz

QUEM SÃO ELAS? (2006) || Débora Diniz

SOLITÁRIO ANÔNIMO (2007) || Débora Diniz

A CASA DOS MORTOS (2009) || Débora Diniz

ZIKA (2016) || Débora Diniz

HOTEL LAIDE (2017) || Débora Diniz

CLANDESTINAS || Fadhia Salomão

O FLORESCER DA VOZ || Jaime Leigh Gianopoulos

 

 

“O Muro”, documentário de Lula Buarque Hollanda, revela um Brasil com fratura exposta

O MURO, documentário de Lula Buarque de Hollanda (2018, 1h 27min), produzido pelo Canal Curta, foca sua atenção sobre o “Muro do Impeachment”, erguido em Brasília durante o processo de deposição da presidenta Dilma Rousseff em 2016. O filme considera este muro como emblema de uma pátria com fratura exposta, em estado de acirramento da guerra de classes, em que o mito fundador da “cordialidade” brasileira jaz por terra.


Em entrevista à Revista Select, o cineasta disse: “Ver Brasília, a capital utópica, aquele lugar específico, imaginado para agregar, com um muro que dividia famílias, era a imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar. E não existe democracia sem diálogo” [1].

Lula Buarque de Hollanda.


Contando com a colaboração de grandes intelectuais – como a psicanalista Maria Rita Kehl, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a economista Laura Barbosa, o advogado Ronaldo Lemos, o historiador James Green, dentre outros – o filme parte do exemplo brasileiro para compreender um fenômeno global.

Por isso, estabelece analogias com outros Muros, tanto de nosso passado (como o de Berlim) quanto de nosso presente (como aquele que segrega Israel e Palestina, como aquele que se estende pela fronteira entre EUA e México, como aqueles que se multiplicam pelo mundo para conter refugiados e imigrantes ilegais…).

Em um artigo instigante chamado “A Era dos Muros”, Giselle Beiguelman escreve sobre aquela bizarrice segregatória que pintou no imenso gramado da Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional, na época em que foi votado o impeachment de Dilma (re-eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos):

Brasília – Manifestantes pró e contra o impeachment ocupam a Esplanada dos Ministérios durante o processo de votação na Câmara dos Deputados (Juca Varella/Agência Brasil)

“A barreira, erguida por presidiários, tinha a finalidade de separar os manifestantes, de esquerda e de direita, contra e a favor do impeachment, dividindo a Esplanada dos Ministérios ao meio. A partilha estava longe de marcar um momento de equilíbrio democrático. Ao contrário, assinalava uma fissura na vida política do País, que tinha sua metáfora na imagem do Eixo Monumental fraturado. O espaço projetado para o encontro era tristemente atualizado como o da total desagregação do consenso político.” [2]

Estive lá naquele dia histórico – 17 de Abril de 2016 – em que a maioria dos deputados votou “sim” ao prosseguimento do processo de impedimento da presidenta, ainda que as tais “pedaladas fiscais” e os tais “decretos de crédito suplementar” não tenham sido convincentemente comprovados como crimes de responsabilidade pelos quais a suprema mandatária merecia perder seu cargo. Ao contrário, ouvimos uma enxurrada de votos em prol da família, da Bíblia, de Deus, dos bons costumes, dos cidadãos de bem, sendo espetacularmente mobilizados ao microfone por hordas de deputados investigados por crimes de colarinho branco.

Não pude me abster de tomar posição em um dos lados da barricada, e estive lá entre os que gritavam “não vai ter golpe” e que vibravam a cada “não” ao impeachment que vinha das bancadas de partidos como PT, PSOL e PC do B. Sim, eu estava lá engrossando o caldo do Lado Vermelho da Força, e tratando como inimigos e proto-fascistas os “amarelinhos” lambe-botas de Moro que estavam do outro lado do Muro. Lembro-me de que foi um dia que começou na maior empolgação, com a belíssima e massiva mobilização cívica que tomou as ruas de Brasília, mas que terminou na maior tristeza, com a sensação de termos sido derrotados por uma corja de bandidos engravatados que estavam conseguindo estuprar a jovem e frágil democracia brasileira através de um mal-disfarçado golpe de estado. 

Naquele fatídico ano de 2016, em que viajei 3 vezes para a capital federal com uma câmera na mão e mil idéias e indignações fervilhando no coração e na mente, eu estava animado por uma noção de tête-à-tête com a história que exigia a presença crucial da figura do documentarista. Como testemunha ativa desta História presente, produzi então quatro curtas-metragens que constituem uma espécie de etnografia a quente das ruas brasilienses em tempos de golpe: O Céu e o Condor, A Babilônia Vai Cair, Levantem-se! e Ponte Para o Abismo.




Por ter me mobilizado para documentar estes tempos intensos e instáveis, tenho muito interesse por conhecer e estudar a obra de outros documentaristas que estavam fazendo o mesmo que eu – decerto com mais fomento, experiência e capacidade técnica do que eu tinha então a meu dispor. Tanto que já esmiucei O Processo de Maria Augusta Ramos em outro artigo.

Já o filme de Lula Buarque de Hollanda, que agora me ocupa, pareceu-me um filme instigante, provocativo, complexificador, mas não oferece nenhum consolo fácil, nenhuma solução para nossos antagonismos sociais cada vez mais irreconciliáveis.

Em uma crítica do filme chamada “Crônica da Polarização”, Carlos Alberto Mattos encarou um tema difícil: julgar se o documentário seria “imparcial” e se teria errado em somente nomear nos créditos as “pessoas importantes” que contribuíram com o filme, deixando no anonimato muitas das vozes que ouvimos durante a película:

“Ajustando o foco no muro, o filme de Lula Buarque de Holanda assume um certo caráter conceitual, em que as paixões de um lado e de outro se equivaleriam. Seria, portanto, um filme imparcial – essa “virtude” que tantos cobram de documentários políticos como “O Processo”.

Assim, pessoas favoráveis e contrárias ao afastamento da presidenta aparecem posando para a câmera, caladas e “fantasiadas” com seus adereços, em meio a manifestações. Enquanto isso, vozes desencarnadas em off declamam seus slogans e fazem a apologia de suas respectivas posições. Alguns comentários ultrapassam a superfície do óbvio ou do preconceito e soam mais analíticos ou supostamente ponderados, evidenciando tratar-se de gente culta e estudiosa do assunto. Estes serão apresentados e nomeados nos créditos finais, ao passo que os populares ficarão sem identificação. Uma divisão de classes culturais se coloca aí, separando os “de nome” dos anônimos.

O efeito é também de despersonalizar a discussão, fazendo com que tudo o que é dito permaneça numa nuvem indefinida de opiniões. Dessa maneira, O MURO adota um distanciamento cauteloso em relação ao clima reinante, como se almejasse uma mirada científica, neutra, desapaixonada. Mas eis que, em dado momento, como se não resistisse ao apelo da editorialização, Lula insere uma sequência de imóveis e propriedades postos à venda na época do golpe, como a querer confirmar os argumentos de quem acusava o governo Dilma de “afundar o país”. Além de estar completamente deslocado da lógica narrativa do filme, esse trecho tampouco se coaduna com o debate em pauta, uma vez que o impeachment não dependia da crise econômica, mas de supostas irregularidades fiscais.

Depois de oscilar entre os dois lados do muro, o filme se põe a tratar dos que ficam em cima do dito cujo. As figuras do “isentão” e do “apartidário” entram na roda, aqui também na base de “uma opinião para cada lado”, como se o roteiro fosse construído numa balança. Daí a impressão de um filme interessado em parecer, também ele, “isentão”.

O terço final de O MURO se converte numa espécie de ensaio sobre os dualismos da política a nível global. Entram em cena as barreiras montadas na campanha americana que elegeu Trump, o anti-exemplo histórico do Muro de Berlim e os dilemas que cercam o muro entre palestinos e israelenses na Cisjordânia. É quando surgem as melhores reflexões sobre as ambíguas funções dos muros, no Brasil como no mundo. Uma das vozes desencarnadas comenta o que ninguém pode negar: o muro de Brasília simplesmente concretizava o que sempre houve no país, adormecido, reprimido ou dissimulado no mito da conciliação e da cordialidade brasileiras. Um mito definitivamente soterrado sob muitos muros.” [3]

“O Muro” merece ser reconhecido como uma obra muito relevante do cinema de não-ficção no país, com sua proposta ensaística e intento complexificador – pois “todo reducionismo é paupérrimo”, como opina no filme Luiz Eduardo Soares.

O filme sabe erguer o muro ao status de emblema de uma bi-polarização ideológica que é nefasta. O Brasil é muito mais complicado e multicor do que a representação simplória e simplista que gostaria de nos reduzir, de um lado, a coxinhas com camiseta da CBF (precursores dos Bozominions); de outro, petralhas que gritam contra o golpe (precursores dos “defensores do presidiário de Curitiba” do movimento Lula Livre).

Comentando sobre o processo de “fanatização”, não muito afastado de torcidas organizadas de futebol, o filme aborda a crise política de 2016 concedendo esta carga simbólica ao muro divisório, estrutura física monumental que impede os cidadãos em discórdia de sair na porrada.

Alguns podem argumentar que era um dispositivo de segurança necessário para adiar a eclosão da guerra civil. Outros podem afirmar que o muro foi um cala-a-boca na democracia, que pressupõe o diálogo amplo e irrestrito como solução das conflituosidades sociais.

Fazendo a crítica das práticas de segregação / apartheid, o filme aponta para um horizonte utópico: investir na construção de um mundo onde caibam todas as pessoas, conviventes na diversidade. Um tema já tratado, ainda que em outra clave, por Lula Buarque de Hollanda em um de seus filmes anteriores mais importantes: “Pierre Verger: Mensageiro Entre Dois Mundos” (1998). [4]


Nada indica que estejamos de fato caminhando neste sentido com a eleição de Bolsonaro, que é a Lógica do Muro piorada até as raias da insanidade, apimentada com populismo fascista, que vem para impor a segregação militarizada em um país desgovernado por um plutocracia.

Longe de ser a panacéia, a eleição de Bolsonaro é a piora da peste. E, neste sentido, “O Muro” tem a vantagem de ser uma obra de cinema que soa profética e que tem muito a ensinar inclusive ao futuro.

Em amanhãs aos quais já estamos condenados, não temos mais como evitar sermos governados por uma extrema-direita subserviente aos EUA, desejosa de ser capacho de Trump e do Império Yankee, em aliança com o sionismo israelita apesar dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo Estado Israelense (sob Netanyahu e anteriormente Ariel Sharon).

status quo tende a proteger os antigos e erguer os novos Muros da Segregação que mantêm permanentemente separados, de um lado, a Elite do Atraso, e do outro um povo com seus direitos massacrados, seus empregos precarizados e suas existências radicalmente vulnerabilizadas. De um lado, uma plutocracia em seus blindados; do outro, a massa dos matáveis (mas que se recusam, em resistência, a serem mortos). O futuro será cheio de muros – e cheio também daqueles que os derrubam em prol de um mundo mais diverso e multipolar.

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro –www.acasadevidro.com

Filme assistido em 09 de Janeiro de 2019, baixado a partir do fórum da Making Off. Faça o download do filme completo em torrent: https://bit.ly/2C81txo.


REFERÊNCIAS

[1] – Revista Select >>> https://www.select.art.br/lula-buarque-de-hollanda-lanca-o-muro/

[2] – BEIGUELMAN, Giselle. >>>https://www.select.art.br/era-dos-muros/.

[3] – MATTOS, C. A. >>> https://carmattos.com/2018/06/11/cronica-da-polarizacao/

[4] – Biografia e filmografia de Lula Buarque de Hollanda em Wikipedia >>> https://pt.wikipedia.org/wiki/Lula_Buarque