Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”
Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:
“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”
Já João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:
“Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”
José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:
“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)
Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate), A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!
“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.
Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;
Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;
Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;
Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;
Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;
Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;
Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;
Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;
Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;
Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;
Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;
Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;
Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;
Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;
Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;
Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”
“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados.” – Vladimir Herzog (1937 – 1975)
Uma verdade, para muitos intragável, sobre a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964 – 1985), é a imensidão do sangue juvenil que os ditadores derramaram impunemente. “Eles mataram garotos”, anuncia a manchete da matéria de Cynara Menezes, a jornalista de cognome Socialista Morena. Fato que muitos dos defensores e apologistas da violência de Estado não gostam de mencionar (nem mesmo querem lembrar…). “Eles”, no caso do texto de Cynara, são os agentes de repressão a mando da ditadura militar brasileira, que deixaram um rastro de sangue e vísceras calculado em cerca de 434 vítimas fatais, oficialmente reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade. Sobretudo jovens, a maior parte deles com alto grau de escolarização.
Um levantamento por idade entre os mortos e desaparecidos descobriu: “56% deles eram jovens”, “tinham menos de 30 anos de idade”, sendo que “29%, ou quase um terço dos mortos e desaparecidos da ditadura, tinham menos de 25 anos. São esses meninos que os defensores do coronel Brilhante Ustra falam que pretendiam implantar a ‘ditadura do proletariado’ no País e por isso foram barbaramente torturados e executados.” (MENEZES, Cynara: 2016)
Se somarmos a esta abordagem por faixas etárias o fator “escolaridade”, também descobriremos outras verdades que os Bolsominions e outros defensores da ditadura dos milicos não gostam de reconhecer, muito menos de deixar propagar: “pelas estatísticas do projeto Brasil: Nunca Mais, 62,7% das pessoas atingidas pela repressão e envolvidas em processos políticos tinham curso universitário incompleto ou completo, enquanto na população economicamente ativa, segundo o Censo Demográfico de 1970, os diplomados e estudantes universitários perfaziam apenas 3,9%.” (ACSELRAD, H: 2015, p. 40.)
Qualquer país que estivesse interessado em aprender com as atrocidades pretéritas tendo por alvo a construção de uma resolução coletiva de nunca mais repetir os horrores de outrora teria que enfrentar, coletivamente, o desafio de punir tais crimes. Para depois instituir uma educação devotada à crítica de todas as condições que possibilitaram este horror: o extermínio em massa, em especial entre 1968 e 1973, de jovens brasileiros, a maioria deles estudantes altamente escolarizados, que decidiram se engajar em organizações de contestação e combate ao regime nascido do golpe de Estado de 1964.
Corte para o Brasil de 2019, (des)governado por uma figura cujas ações e posturas éticas não nos deixam solução senão diagnosticá-lo como um canalha sádico e subletrado, violador impune de todos os códigos de ética e direitos humanos conhecidos pela “humanidade civilizada”. O sujeito célebre por dizer que “é favorável à tortura”, que “a ditadura matou foi pouco”, que “tinha que ter matado 30 mil” e que tem como ídolos e heróis figuras como Ustra e o Duque de Caxias.
Aquele mesmo, responsável por ofender com uma cusparada cheia de catarro os familiares que buscam os ossos de seus familiares desaparecidos: em 2004, o deputado posou numa foto em que se lia “quem procura osso é cachorro”, referindo-se aos parentes enlutados, em busca dos restos mortais de seus entes queridos, ou seja, pessoas que o Estado assassinou na repressão à Guerrilha do Araguaia.
O deputado Jair Bolsonaro, em seu gabinete no Congresso Nacional, exibe um cartaz onde protesta contra a procura dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Data: 01/12/2004. Foto: Dida Sampaio / Agência Estado.
Neste momento histórico catastrófico, em que ao golpe de Estado de 2016 seguiu-se, em 2018, o cárcere imposto pelo aparato jurídico golpista à candidatura de Lula, que segundo todas as pesquisas se consagraria vitoriosa, tornou-se mais do que nunca necessário rememorar aquele período sombrio que durou bem mais que 21 anos. Os ecos da ditadura ainda ressoam entre nós. E tudo indica que ela ressurge, assanhada, capitaneada pela extrema-direita neo-fascista, o Bolsonarismo lambe-botas de Trump. Bem-vindos à distopia do real!
A Monstra insepulta da Ditadura está aqui novamente, produzindo cadáveres, espalhando o terror, amordaçando a diversidade das vozes, mandando que se calam e se imobilizem todos os protestos e marchas. Enquanto o presidente ordenou a “comemoração” do golpe de 1964 no início de seu mandato, em Março de 2019, o Exército cometia “equívocos” como fuzilar com 80 tiros um carro de família qu ia a um chá de bebê, assassinando “por engano” a duas pessoas – Evaldo Rosa e Luciano Monteiro – que o Chefe de Estado equiparou a “ninguéns”. Nesse cenário abundam faíscas e estopins capazes de reacender os debates sobre a luta armada contra a ditadura militar.
O intento de criminalização do comunismo não é nada de novo em nossa história, tampouco é novidade querer estigmatizar como “terroristas” os ativistas de movimentos sociais (como MST, MTST, Levante, APIB, Ninja etc.). No cinema, a estréia de Wagner Moura como diretor na cinebiografia Marighella, estrelada por Seu Jorge, desde sua estréia em Berlim já acirrou as controvérsias sobre a vida, a obra e o legado do revolucionário baiano.
Um dos melhores livros já escritos sobre a época da ditadura é “Sinais de Fumaça na Cidade: Uma Sociologia da Clandestinidade na Luta Contra a Ditadura no Brasil”, de Henri Acselrad (professor da UFRJ). Obra crucial pra compreender esta “experiência nevrálgica da histórica contemporânea brasileira” que foram as organizações clandestinas de combate ao regime ditatorial, ou seja, a “oposição extrainstitucional à ditadura”: “A análise se centra de forma original nos efeitos não intencionais produzidos pela clandestinidade na vida real dos bairros populares em que os ativistas se autoexilavam”, explica José Sérgio Lopes, professor de Antropologia Social na UFRJ.
Através de 50 entrevistas de longa duração com ex-militantes, Henri Acselrad e sua equipe de pesquisa produziram um documento histórico de imenso valor para o nosso presente.
Segundo a lavagem cerebral que a Ditadura praticava nas Escolas, sob o nome de Educação Moral e Cívica, ou na Mídia (com programas que, se fossem sinceros, se chamariam Vozes Em Prol de Um Cidadão Servil), o estudante devia apenas estudar, e nunca se meter em política. Soa familiar?
Parte dos indivíduos que em suas juventudes vivenciaram a radicalização do movimento estudantil acabaram por aderir à luta armada contra o regime nascido do golpe de 1964. Esta decisão acarretou para eles uma radical transformação existencial, um transtorno total de seus cotidianos.
Acselrad lê com o auxílio do filósofo Henri Lefebvre (autor de O Direito à Cidadee da Introdução ao Marxismo) este processo complexo de metamorfose ambulante (pra lembrar Raul Seixas) que faz com que o sujeito, agora lançado à clandestinidade, adentre outros espaços sociais, novas situações e contextos. Quase sempre, trata-se de um estudante que se radicaliza, proveniente mais das classes médias que do proletariado, e que se transmuta de cidadão engajado em vias institucionais de luta política em um militante clandestino de um movimento armado de combate ao regime, de revolucionamento do presente tido por indignante, revoltante, inaceitável.
Passando a vivenciar extraordinários cotidianos onde o risco de prisão e morte violenta está sempre presente, dada a perseguição por parte das forças de repressão do Estado, mas em que também nascem interações das mais variadas com os moradores dos bairros populares e proletários onde é costumeiro que o guerrilheiro se hospede.
O trabalho da memória realizado por Axelrad culmina numa reflexão sobre as “condições de possibilidade da política”, ou seja, o autor é o portador de questões sobre “onde a política se teria refugiado quando esta fora, pelo regime de exceção, inviabilizada; quando toda dissidência fora calada, dada a imposição, pelo medo, do conformismo e do silêncio… em que interstícios, em que frestas da vida social, a política se fazia então possível e sob que formas? Temos aqui como referência, por certo, não a política como a atividade consentida, tolerada e regulada pelos detentores da força armada do regime de exceção, mas aquela investida na articulação entre o poder transformador da palavra e a força da organização autônoma dos sujeitos sociais; quer dizer, propriamente aquela que se condensava no conjunto de discursos e práticas que foram constrangidos a sair do âmbito da visibilidade pública.” (p. 19)
A mordaça, a censura, o silenciamento, além dos “desaparecimentos”, torturas e massacres, eram estratégias radicais de despolitização da sociedade pois visavam aniquilar justamente aqueles cidadãos cujo índice de politização e engajamento era maior, mais intenso, chegando às vezes a constituir quase que um sacerdócio secular, uma atividade que dá sentido à existência e à qual se adere com total devotamento. A leitura atenta, cuidadosa e meditativa desta obra-prima de Henri Axelrad poderia nos curar de muitas de nossas patologias do social, sobretudo pela empatia com o que o autor lida com seus personagens, uma atitude ética que convida o leitor a nunca se apressar a tacar pedras sobre aqueles que a Ditadura queria nos convencer que não passavam de terroristas, indignos de viver, digno de ser exterminados pela violência supostamente legítima do aparato estatal de repressão à dissidência.
“A indignação ante o golpe de Estado – golpe cujo objetivo, em 1964, foi o de sufocar o crescente processo de expressão pública dos setores populares – nutriu-se, em grande parte, do modo como o poder arbitrário, ao mesmo tempo em que estreitava o espaço do debate público, promovia uma degradação do sentido das palavras: a quebra da legalidade democrática fora feita em nome da democracia; a censura foi justificada como requisito da proteção da liberdade; a produção cultural foi cerceada a pretexto da proteção dos valores; a Justiça era encenada em tribunais militares de exceção que pretendiam encarnar uma suposta legalidade; um simulacro de Congresso operava sob a ameaça permanente de cassações de mandato. A política antipolítica do regime fez com que as mobilizações de massa que foram se configurando nas grandes cidades a partir de 1966 fossem carregadas com o sentido de uma luta pela recuperação da política, mesmo quando materializaram-se, a partir de 1969, através de ações armadas.” (p. 198 – 199)
A Ditadura, em seus efeitos concretos, significa o fechamento da arena pública, o silenciamento da multiplicidade de vozes em diálogo e debate polêmicos na ágora. Busca “manufaturar um consenso” (para emprestar a expressão de Chomsky) através de um ideologia de unidade nacional que é, em sua essência, excludente, racista e violenta. Exterminadora da alteridade e sua diversidade, a Ditadura desejava reduzir o Brasil ao idêntico, fazer de todos os cidadãos umas ovelhas adestradas, babando diante da TV Globo, indiferentes à política, assim entregue de mãos beijadas às elites financeiras, sobretudo a dos EUA, diretamente responsável pelo financiamento e apoio ao Golpe de Estado. Como, com a imprensa, as artes e as universidade sob estrita censura, um discurso crítico poderia circular nesta sociedade que se pretendia fechada e de verdade única?
Ora, um dos interesses da obra de Acselrad está na investigação que faz das “condições em que se teria dado a busca pela construção silenciosa de alguma espécie de microarena pública onde a política transformadora, a partir de então situada na ação subterrânea, poderia encontrar-se com a circulação eventual de um discurso crítico, ainda que oculto, no cotidiano popular… É nesses contextos discursivos circunscritos onde se teria podido buscar o desenvolvimento conjunto de capacidade de reflexão e de criação de sentido crítico.
Pois em regimes autoritários, a circulação restrita da crítica política tende a dar-se apenas em enclaves espaçotemporais que operam como micropúblicos, contraespaços, esferas de autonomia ou de recuo social, interstícios da vida social onde situações de co-presença podem vir a propiciar atividades de resistência, mobilização, recrutamento e formação de redes de apoio à luta contra o arbítrio.
(…) Assim sendo, a luta clandestina ter–se-ia também materializado numa rede de lugares e trajetos – espaços de ação como favelas, trens e portas de fábrica, onde realizavam-se panfletagens e comícios relâmpagos; agências bancárias objeto de ações armadas; locais de reunião ou de refúgio, pontos de encontro, áreas de deslocamento sistemático e rotas de fuga.
Essa trama socioespacial evoca, a propósito, aquilo a que Michel Foucault chamou de heterotopias, lugares precisos e reais onde as utopias têm um tempo determinado, ao contrário daquela, mais correntemente evocada, situada apenas ‘na mente dos homens, no interstício de suas palavras, no lugar sem lugar de seus sonhos’ (Foucault, 1966: 1).
Essas utopias outras (heterotopias), diz ele, são aquelas que podemos situar no mapa, que podemos fixar e medir no calendário de todos os dias, manifestações de aspirações ou imagens do desejo que se orientam na direção da ruptura da ordem estabelecida e exercem uma ‘função subversiva’ (Mannheim, 1969: 36).
(…) Os militantes clandestinos… nas condições de restrição violenta à liberdade de expressão e ao exercício da política, procuravam reagir à opressão a que estavam submetidos… procuraram, em plena vigência do regime de arbítrio, num país então enquadrado por máquinas repressivas, construir, movidos por sua utopia, contraespaços sem os quais, nos termos de Foucault, na vida de qualquer país, ‘os sonhos acabam, a espionagem substitui a aventura e a feiúra das polícias substitui a beleza ensolarada dos corsários.’ (1966: 7)” (ACSELRAD, 2015, p. 25-26)
“50 anos após o golpe de 1964 e 30 anos após o fim da ditadura, voltou-se a discutir o que dela restou: a violência de Estado, a militarização das políticas; a impunidade dos torturadores; uma lei da Anistia pela qual os responsáveis pela ditadura perdoaram a si próprios e a seus esbirros; as evidências de que grandes interesses econômicos (…) lucraram com o golpe, além de terem se envolvido no apoio à sua realização, à continuidade do regime que dele decorreu, e, em certos casos, no próprio financiamento direto à repressão e à tortura. Mas também restou a degradação política – não só porque grande parte dos agentes da grande política, nos termos Gramscianos, foram, durante a ditadura, presos, mortos ou exilados, deixando um vazio geracional de reflexão crítica e de projetos utópicos; mas porque se mergulhou o sistema político em um realismo que nega a possibilidade do povo mobilizar sua inteligência coletiva para pensar sua própria condição, seu devir e os meios de construí-lo.
(…) Pois fato é que, ao longo do processo histórico que se seguiu ao fim da ditadura, notadamente a partir dos anos 1990, novas modalidades de restrição ao exercício da grande política foram se apresentando. A política foi deixando de designar o domínio da ação do poder legítimo de organizar a vida coletiva, sendo associada à função que consiste em organizar as condições de exercício de um poder que lhe é superior, o poder financeiro…. A política, ao longo dos processos desencadeados pelas reformas neoliberais, não parece designar mais a esfera de afirmação de uma soberania popular, mas uma arte de domesticar os sujeitos a serviço de forças financeiras.” (p. 200)
ACSELRAD, Henri. Sinais de Fumaça na Cidade.
A Ditadura militar brasileira, a exemplo de outras que se instalaram pela América Latina (no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Guatemala etc.), esteve sempre vinculada ao capitalismo selvagem, às forças financeiras que entronam o lucro como divindade superior à tudo, Mammon devorador de vida sacrificável.
O lucro é o deus idolatrado por este regime elitista e entreguista, subserviente à metrópole ao Norte, e seu modos operandi básico consiste naquilo que o sociólogo Jessé de Souza chamou de “a construção social da subcidadania”. A subcidadania dos excluídos, dos famélicos, dos sem terra, dos sem teto, dos rebeldes, todos eles tidos como “ninguéns” e como “extermináveis”.
Como aponta com razão Acselrad, a patologia social daquele período poderia ser descrita como “psicose da segurança” (Jornal do Brasil, 1971, p. 100):
“A ditadura é, via de regra, apoiada em um movimento permanente de destruição, em distintas escalas, de arenas públicas emergentes, seja através da censura à imprensa, da dissolução de organizações sociais, do enclausuramento de críticos e oponentes, da exposição exibicionista do poder arbitrário da máquina repressiva ou da internalização do medo em larga escala na população.
(…) A tortura era uma prática tradicional em centros de custódia no Brasil e (…) são inúmeras as matérias registrando repressão a práticas não armadas quando militantes eram flagrados em reuniões ou atos públicos considerados subversivos… passeatas, comícios, eram considerados como perigos para a segurança nacional…faltava o espaço público, exatamente aquele que estava sendo, naquele contexto histórico, sistematicamente destruído pelo regime de exceção. É por isso que, quando este espaço tornou-se o lugar da violência repressiva e do silenciamento do litígio, foi na cena clandestina onde refugiou-se o poder transformador da palavra e a dimensão literária da política.”
Em 458 a.C., Ésquilo encenou a trilogia Oréstia. A tragédia culmina com o julgamento de Orestes, que matou a própria mãe para vingar a morte do pai. A sua absolvição pelo júri de atenienses colocou fim ao olho por olho, dente por dente e converteu das Erínias, deusas da vingança, em Eumênides, como defensoras da democracia, um marco civilizatório na cultura ocidental.
O documentário Orestes apropria-se da história de Ésquilo e promove o seu encontro com a história do Brasil. E se Orestes fosse brasileiro, filho de uma militante política e de um agente da ditadura militar infiltrado? E se aos 6 anos ele tivesse visto sua mãe ser torturada e morta pelo pai? E se este mesmo Orestes, 37 anos depois, matasse o pai, um torturador anistiado, em 1979, durante o processo de redemocratização?
A partir dessas perguntas, o documentário “Orestes” usa um júri simulado e uma série de sessões de psicodrama para investigar como a ditadura militar deixou marcas profundas nas narrativas oficiais e na subjetividade dos brasileiros. Documentário e ficção compõem um Brasil de verdades simuladas.
No filme, o réu hipotético Orestes é levado a júri popular. Em sua defesa atua o ex-ministro da justiça José Carlos Dias, advogado de mais de 600 presos políticos durante a ditadura. Quem acusa é o promotor Maurício Ribeiro Lopes, exímio orador em tribunais criminais.
O coro desta tragédia documental à brasileira é composto por um grupo de pessoas vítimas da violência policial, vítimas da ditadura e da sociedade civil. Reunido em sessões de psicodrama o grupo faz aflorar, sem filtros, situações e falas que normalmente não são ditas publicamente. É através do coro que os ritos da justiça são postos frente a frente com as paixões mais profundas do brasileiro comum, é no psicodrama que o presente olha para os traumas do passado.
As feridas deixadas pelo nosso violento e muitas vezes velado ou dissimulado processo histórico permeiam o filme. As marcas da repressão nos anos 1970 encontram as marcas da violência policial de hoje. A verdade histórica é posta em xeque, as narrativas oficiais são desconstruídas, o fato e a versão são acareados, a justiça é posta em dúvida. No Brasil de 2015, talvez as Erínias, deusas da vingança, ainda estejam vivas e mais atuantes que nunca.
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Ao convencer as Erínias (as Fúrias) – Deusas da Vingança – a aceitar a absolvição de Orestes e integrá-las ao novo sistema de justiça, Athena – Deusa da Justiça – lhes diz: “Se venerais a sagrada Persuasão / Que faz minhas palavras parecerem mágicas / E cheias de doçura, concordai comigo / E sede para todo o sempre minhas hóspedes.” (ÉSQUILO, Eumênides, em 458 a.C.)
Crime, vingança e julgamento, da tragédia grega à realidade brasileira
Por Carlos Alberto Mattos
A revanche contra crimes de morte é uma pauta constante na sociedade brasileira, embora muitas vezes intimidada ou dissimulada pelos discursos da correção política. Esa pauta se manifesta hoje principalmente em relação aos confrontos entre policiais e criminosos (ou supostos criminosos) e no que diz respeito à punição pelos crimes da ditadura. “Memória para Uso Diário”, de Beth Formaggini, já havia feito essa conexão em 2007 numa chave de recuperação histórica. Orestes, de Rodrigo Siqueira (“Terra Deu, Terra Come”), monta um arcabouço sofisticado para retomar a questão em toda a sua complexidade e permanência no tempo.
Relacionando a tragédia Oréstia de Ésquilo com o caso do Cabo Anselmo, agente infiltrado que colaborou para a morte de vários militantes nos anos 1970, entre eles sua companheira Soledad Viedma, o filme estabelece uma discussão em vários níveis.
No nível das opiniões, vários interlocutores envolvidos com o assunto basicamente divergem de uma defensora de vítimas de violência que procura justificar os sentimentos de vingança com o discurso de salvaguarda da inocência. No nível das emoções, sessões de psicodrama (ou sociodrama) envolvem os mesmos personagens, com destaque para a filha de Soledad e suas terríveis dúvidas quanto a sua paternidade. No nível jurídico, enfim, um julgamento encenado por dois grandes advogados põe em debate a culpabilidade de um Orestes fictício – baseado no caso de Anselmo e Soledad – e por extensão o perdão aos torturadores facultado pela Lei da Anistia.
As imagens de São Paulo sobrevoada por um urubu e depois por um helicóptero policial emolduram esse soturno estudo das pulsões latentes na sociedade. Orestes desdobra suas camadas sóbria e pausadamente, enredando o espectador nas tramas de sua própria consciência. Trata-se, como nas grandes tragédias gregas, de dilemas de família, assuntos de pais e filhos, que assumem estatura política pelo teor de ética social neles embutido. O filme nos engaja em ritmo crescente para nos confrontar com um desfecho teatral intenso e perturbador, no qual parecem naufragar os melhores sentimentos diante do instinto de justiciamento. Não é um caminho fácil, nem muito menos um veredicto. Fora da tragédia grega, não existe Atena para votar pelo perdão.
Logo no primeiro capítulo de “K. – Relato de Uma Busca” (Cia das Letras, 2016, 176 pgs, compre já), Kucinski evoca o espectro de um certo “mal de Alzheimer nacional”. Escapando de ser apenas um romance autobiográfico, onde um sujeito elaboraria apenas seus traumas individuais, K. é um livro salutar por exumar os ossos de nosso passado coletivo. Um romance que se alça ao nível de retrato de uma época, mas que também visa ir além da descrição e agir como um antídoto contra o tal Alzheimer. A literatura como remédio. Nisto, seus efeitos e intenções parecem-me em sintonia com a Comissão Nacional da Verdade (2012 -2014), instituída durante a presidência de Dilma Rousseff, ou com iniciativas como o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um dos locais mais imprescindíveis de se conhecer em Santiago do Chile.
Neste diagnóstico médico-sociológico que o livro veicula, o Brasil estaria adoentado devido a uma disseminada tendência ao esquecimento de seu passado, em especial devido ao recalque e ao pacto de silêncio que recobre boa parte do que ocorreu de terrível e atroz nos anos da ditadura militar (1964 – 1985) no trato truculento do regime com os opositores políticos (sobretudo aqueles que aderiram à resistência armada). Ainda que já estejamos carecas de saber que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (frase atribuída a figuras tão díspares quanto Che Guevara, Edmund Burke e George Santayana), parecemos agir muito pouco, e muito mal, em prol de um autêntico trabalho de acerto-de-contas com o passado. A Lei da Anistia de 1979 sacramentou a impunidade dos perpetradores fardados de torturas e homicídios, tendo feito pouco pela tão propalada “reconciliação nacional”.
A esperança infrutífera pode ser uma tortura. E os torturadores que agiam nas ditaduras militares latino-americanas o sabiam bem. Adicionaram ao seu arsenal de maldades aquilo que veio a ser chamado, por eufemismo, de “desaparecimentos” de adversários políticos. Dar um chá-de-sumiço em alguém significa condenar os amigos e familiares do desaparecido ao tormento infindável de uma esperança angustiosa e quase sempre vã. É roubá-los do direito ao luto.
Todos aqueles que tinham vínculos afetivos com o morto sofrerão, às vezes por anos, em uma busca dolorosa pelo sumido, sem nunca poderem ter a satisfação mínima de seu desejo de justiça contra os perpetradores ditatoriais do sumiço. Sumiço que é sintoma de terrorismo de Estado: agentes públicos das forças de segurança praticando, contra cidadãos-ativistas, sequestros seguidos de tortura, assassinato e ocultação de cadáveres. É no epicentro de uma dessas tragédias que nos coloca o romance de Bernardo Kucinski, assim apresentado pela editora:
Ana Rosa Kucinski, assassinada e desaparecida pela ditadura militar brasileira em 1974, aos 32 anos de idade. Professora da USP, Ana Rosa era formada em Química, doutora em Filosofia e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN)
“Em 1974, a irmã de Bernardo Kucinski, Ana Rosa Kucinski (1942 – 1974), professora de Química na Universidade de São Paulo, é presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai dela, dono de uma loja no Bom Retiro e judeu imigrante que na juventude fora preso por suas atividades políticas, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos.
K. narra a história dessa busca. Lançado originalmente em 2011 pela editora Expressão Popular, em 2013 ganhou nova edição pela Cosac Naify, e finalmente, em 2016, chegou à Companhia das Letras. Ao longo desses anos, K. se firmou como um clássico contemporâneo da literatura brasileira.”
A importância história desta obra literária está muito além de uma investigação sobre o “caso Ana Rosa” e das peripécias do pai dela – Meier Kucinski – em busca de seu paradeiro. A empatia do leitor é a todo momento instigada pelo texto em que narram-se as tentativas de K. em desvelar a verdade sobre Ana Rosa, que quase sempre bate com a cabeça em uma espessa muralha de silêncio e desinformação, e através deste processo todo um continente de memória coletiva soterrada começa a vir a toda. Não só Ana Rosa, mas centenas de vítimas do regime ressurgem das ruínas e pedem-nos que lhe concedamos a acolhida de nossa atenção, nossa compaixão, nossa indignação.
A sensação de desnorteio em que nos lança o romance é kafkiana e a inicial K., além da óbvia referência a Kucinski, também evoca a influência de Kafka guiando a pena de Bernardo. Vítima tanto do antisemitismo reinante na Praga de seu época quanto do totalitarismo familiar encabeçado por seu pai, Franz Kafka é talvez o escritor que mais marque com sua influência a escritura de Kucinski em K. Descendentes de poloneses, muitos deles mortos no Holocausto, os Kucinski estão em posição que os capacita a realizar paralelos entre os procedimentos da ditadura militar no Brasil e a do III Reich alemão em seus genocídios na Polônia. É o que dá o tom em vários trechos do livro – como nas reflexões finais do capítulo “Sorvedouro de Pessoas”:
“Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas.” (p. 25 – P.S.: contestado por este trecho por alguém que trabalha no Museu do Holocausto, Kucinski sentiu-se na necessidade de escrever Os Visitantes, sequência de K., também publicado pela Cia das Letras).
O sumidouro de pessoas, sintoma de uma espécie de fascismo tupiniquim, era um dos modos forjados pela ditadura para lidar com as pessoas que aderiram à luta armada que a contestava. A repressão contra os guerrilheiros e militantes da esquerda teve por parte da repressão militar alguns episódios de genocídio (como no Araguaia), de pseudo-suicídios (como o de Vladimir Herzog), de assassinatos explícitos (como o de Carlos Marighella). Ana Rosa e seu marido Wilson Silva encarnam duas figuras que servem de ícone para centenas de outros brasileiros cujas vidas sumiram, tragadas pela máquina assassina instaurada a partir do Dia da Mentira de 1964.
Negando aos familiares os restos mortais do adversário político assassinado, a ditadura negava não só possibilidade de enterrar um ente amado com dignidade, lápides e epitáfios celebrando o falecido. A ditadura fazia algo pior: impunha a tortura psicológica a todos aqueles que conviveram com os assassinados. Além disso, o desaparecimento manifesta a prudência de facínoras que desejam permanecer impunes: sem o cadáver como prova inconteste do crime, dificilmente pode-se condenar os perpetradores. Ao impedir a despedida e o luto dos familiares pela vítima, como requinte de crueldade imposto pelos ditadores e seus funcionários, o regime militar também escondia suas atrocidades – não só aquela dos manda-chuvas, dos Fleurys, mas também a dos reles soldados e PMs obedientes, funcionários na maquinaria desumanizadora e que banaliza o mal.
Em seu trabalho Relampejos do Passado – Memória e Luto dos Familiares de Desaparecidos Políticos da Ditadura Civil-Militar Brasileira (Ed. Unifesp, 2017), Amanda Brandão Ribeiro relembra o Caso Kucinski em seu pungente capítulo “O Caminho dos Ossos”, destacando que
“o jornalista e escritor Bernardo Kucinski expressou insatisfação quanto à reparação conduzida pela USP em relação à irmã, Ana Rosa, professora de Química da universidade. Militantes da ALN, Ana Rosa e o marido Wilson Silva desapareceram em abril de 1974 no centro da cidade de São Paulo e nunca mais foram vistos. Segundo depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra, o casal foi levado para a Casa da Morte, onde sofreu diversos tipos de sevícias, inclusive sexuais, sendo posteriormente incinerados nos fornos da usina Cambahyba. Fazia anos que a família da Ana Rosa solicitava que a USP retificasse sua demissão por “abandono” de emprego, decidida pela Congregação do Instituto de Química um ano após o desaparecimento da professora. Somente em 1995, com a lei dos mortos e desaparecidos, o reitor anulou o documento. Entretanto, em audiência pública organizada pela Comissão da Verdade – SP com intuito de debater as condições da demissão de Ana Rosa e de pressionar o Instituto a pedir desculpas oficialmente pelo ato, Bernardo expôs suas críticas quanto à execução da reparação:
— O que me aborreceu muito aqui na USP foi que quando eu pedi a anulação da demissão da minhã irmã, a assessoria jurídica da Reitoria teve a ousadia de produzir um parecer, em linguagem jurídica, de quase 100 páginas, em que afinal concedia a anulação da demissão, mas justificava a posição anterior. Ou seja, não seja, não há autocrítica, não há reconhecimento da conivência. Não se avança em cima dos erros cometidos! Esse é o grande problema: a universidade não reconhece o grau de colaboração que seus agentes e muitos professores tiveram com o regime militar.
Na data em que se completaram 40 anos do desaparecimento de Ana Rosa, o Instituto de Química da USP pediu desculpas publicamente pela demissão da professora e inaugurou uma escultura em sua homenagem [veja reportagem do Estadão]. Contudo, o reconhecimento por parte da universidade de sua colaboração com os órgãos de repressão da ditadura não foi feito.” (RIBEIRO, Amanda Brandão: Sp, Unifesp, 2017, p. 132-133)
No país da impunidade para as elites rapinadoras, convivendo com o Estado Penal mais truculento para as chamadas “ralés”, a imensa maioria dos torturadores a serviço do regime militar jamais serão punidos: “todos eles morrerão de morte natural, rodeados de filhos, netos e amigos, homenageados seus nomes em placas de rua.” (KUCINSKI, K., p. 29 – ver também o capítulo “As ruas e os nomes”, p. 149 a 153) Sobre este tema, Vladimir Safatle escreveu contundes palavras em seu livro mais recente, Só Mais Um Esforço:
“Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as Forças Armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Por isso, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua ‘democracia’ como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor proto-fascista da classe média a clamar nas ruas por ‘intervenção militar’, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.” (SAFATLE, 2017. p. 65)
Por isso, como Safatle e Edson Teles vêm defendendo, a tarefa da memória é urgente para a nossa renovação política, é algo que devemos encarar sem tardar, sob o risco de na repetição de tragédias soçobrar e voltar a soçobrar. O desinteresse pela nossa história, inclusive em seus aspectos mais grotescos e horrendos, só pode gerar ao esvaziamento de nossa experiência cidadã. Sem a memória do passado e as lições que isso pode nos ensinar, somos engolfados na monstruosidade de um presente desenraizado, esvaziado de sentido, não alimentado pela sabedoria que a experiência e a sofrência de gerações pregressas nos comunica. Amnésicos de nossas tragédias coletivas, estaríamos por isso mesmo condenados a repeti-las.
É o que indicam os graves sintomas recentes: a fratura exposta no esqueleto da democracia que foi o golpe de 2016, que têm como uma de suas cenas emblemáticas o deputado Bolsonaz, por ocasião da votação do impeachment de Dilma, em Abril de 2016, fazendo o elogio do coronel Ultra, chefe do DOI-Codi entre 1970 e 1974 – o que lhe rendeu poucos dissabores além de uma cusparada na cara que lhe concedeu, em momento à la Angeli’s Bob Cuspe, o deputado Jean Wyllys (PSOL). Que o mesmo Bolsonazi esteja, ao raiar de 2018, em segunda posição nas intenções de voto para a presidência da República, é mais um triste lembrete do Alzheimer nacional de que fala Kucinski e que é nossa tarefa urgente medicar e operar.
O imediatismo reinante na sociedade de consumo capitalista talvez conspire, com poderio avassalador, contra a lentidão do trabalho de recordação. Isto não o faz menos necessário e salutar. Kucinski, recriando na ficção a tragédia de sua irmã Ana Rosa e da busca aflita de seu pai, Meir Kucinski (1904-1976), pelo paradeiro da assassinada, legou-nos o que Eric Nepomuceno descreveu como “uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento.”
Nepomuceno & Galeano, guerrilheiros da memória
Na Argentina, a ditadura tinha por costume sumir com os corpos “atirando-os de um avião ao mar bem longe da costa” (p. 58), sepultando anonimamente e sem pompas fúnebres os inimigos do regime. No Chile, após o golpe de 11 de Setembro de 1973 que instaurou o regime fascista-liberal Pinochetista, além das chacinas sumárias do Estádio Nacional, começaram a ser vistos em Santiago os cadáveres boiando nas águas, tornadas assim mais rubras que de costume, do rio Mapocho. Sobre a situação chilena durante a conturbada derrubada de Allende e instauração da ditadura, Alfredo Sirkis deixou-nos um belo livro, Roleta Chilena, que soma-se ao seu já clássico relato em primeira mão de algumas peripécias da guerrilha brasileira em Os Carbonários.
Sobre o proceder carniceiro dos algozes brasileiros, Kucinski nos fornece detalhes assustadores, como naquele capítulo brilhante, “A Terapia” (p. 113 a 124), de teor altamente hardcore, onde dá voz à faxineira Jesuína, a serviço de Fleury. Ela relembra seu serviço em um casarão em Petrópolis, rodeado por muros altos, em bairro de gente grã-fina. Jesuína relembra:
“Quando os carros chegavam, o portão abria, automático, os carros entravam com o preso e logo levavam ele para baixo, onde estavam as celas… Lá no andar de baixo, além das celas, também tinha uma parte fechada, onde interrogavam os presos, era coisa ruim os gritos, até hoje escuto os gritos, tem muito grito nos meus pesadelos. (…) Eu servia os presos, limpava as celas, tentava me fazer de boazinha. A cara deles era de apavorar, os olhos esbugalhados; tremiam, alguns ficavam falando sozinhos, outros pareciam que já estavam mortos, ficavam assim meio desmaiados…
Lá em baixo tinha uma garagem virara para os fundos, parecendo um depósito de ferramentas; levavam os presos para lá e umas horas depois saíam com uns sacos de lona bem amarrados, colocavam os sacos numa caminhonete estacionada de frente pro portão da rua, pronta para sair, e iam embora. Acho que levavam esses sacos para muito longe, porque essa caminhonete demorava sempre um dia inteiro para voltar. Aí eles lavavam tudo lá embaixo com uma mangueira, esfregavam, esparramavam cândida. Atiravam umas roupas e outras coisas no tambor e punham fogo.
Os presos eram levados para lá, sempre um só de cada vez, e nunca mais eu via eles. Lá em cima eu via pela janela eles serem levados para dentro da tal garagem, nunca vi nenhum deles sair. Nunca vi nenhum preso sair. Nunca… Uma vez eu fiquei sozinha quase a manhã inteira, os PMs mineiros saíram bem cedo de caminhonete dizendo que tinham acabado os sacos de lona, o lugar onde compravam era longe, iam demorar. O Fleury tinha voltado para São Paulo de madrugada. Eu sozinha tomando conta. Então desci até lá embaixo, fui ver. A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas cortadas. Sangue, muito sangue.” (KUCINSKI, p. 120-123)
Este capítulo notável do livro de Kucinski focaliza uma sessão de psicoterapia em que Jesuína, elaborando seus traumas, trazendo de volta à luz suas lembranças assombradas, traz à tona também fragmentos da tragédia coletiva que interessa ao autor de K. desenterrar. O pai de Ana Rosa, assim, fica mesmo solitário no palco do romance, que divide com outros narradores, em um livro polifônico, que evoca múltiplas perspectivas em seu modo de construção fragmentário e labiríntico.
Sobre o processo de escrita dos traumas – não apenas enquanto catarse, mas também como maneira de expor feridas que dizem respeito não só ao indivíduo ferido, mas também às tragédias vivenciadas pela comunidade que ele integra – a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, em seu prefácio ao livro de contos de Kucinski Você Vai Voltar Para Mim, faz pertinentes reflexões sobre este tema:
“Passado um tempo subjetivo em que o silêncio e o estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e as testemunhas se põe a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade. É preciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros. O pesadelo recorrente de Primo Levi, de que ao voltar para casa ninguém acreditaria no seu testemunho, não pode se realizar. As vítimas de todas as experiências de terror sentem a necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social.” (KEHL, p. 16)
A situação aflitiva descrita em K. também dá as caras no conto “Joana”, uma das 28 narrativas curtas que integra Você Vai Voltar Para Mim. A protagonista Joana é uma senhora que costuma vagar pelas cidade conversando com moradores de rua e que, como o narrador revela, carrega o fardo de uma perda similar à de K:
“Seu marido foi preso em 1969. Era metalúrgico e se chamava Raimundo. Católico praticante como ela. Vieram do Nordeste em busca de uma vida um pouco melhor em São Paulo. Já tinham então dois filhos. Aqui Raimundo se ligou a um grupo da Ação Popular que organizava operários nas fábricas.
Um dia, bem cedo, a polícia foi à casa deles e levou Raimundo. Sem mandado de prisão, sem nada. Soube-se depois que ele foi espancado de modo tão brutal que morreu no mesmo dia. Seus gritos eram ouvidos em outras celas. Para ocultar o homicídio, no caso doloso e qualificado, pois acompanhado do crime acessório de abuso de autoridade, a polícia cometeu outro crime, o de ocultamento de cadáver. Sumiram com o corpo de Raimundo.
Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma… Embora o próprio cardeal tenha assegurado a Joana que o marido foi espancado até não restar nele sopro de vida, ela não aceitou que ele tivesse morrido. Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura…” (KUCINSKI, 2014, Cosac Naif, p. 58-59)
O impacto emocional de K. provêm também da autenticidade com que Kucinski pinta o retrato das metamorfoses afetivas do pai, Meier, em sua epopéia em busca da verdade sobre Ana Rosa, desde os primeiros dias de seu sumiço até chegar à uma espécie de desalentada exaustão. Quando Ana Rosa desaparece, ele “tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição”; “depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade. Descobre a muralha sem descobrir a filha”; “quando as emanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber, para medir sua própria culpa.” (p. 83-85)
Um dos tormentos de K., depois do desaparecimento da filha, está em sentir-se culpado por estar demasiado submerso em seus estudos de íidiche e seus debates intelectuais, a ponto de ter prestado pouca atenção às atitudes da filha, sua escolha pela luta armada via ALN, seu relacionamento com Wilson (retratado de modo divertido no capítulo “Livros e Expropriação”, p. 49 a 52). K. sente o peso de uma culpa que não é estranha aos sobreviventes de pogroms, genocídios, holocaustos – a culpa por ter sobrevivido. Em um dos capítulos mais reflexivos e filosóficos da obra, Kucinski tecerá uma rica meditação que evoca as obras de Milan Kundera e Franz Kafka – dois mestres em retratar na literatura as densas vidas de tchecos em meio às tempestades históricas – além de um debate pertinente sobre o filme A Escolha de Sofia, de Alan J. Pakula (já dissecado em A Casa de Vidro neste artigo):
Meir Kucinski (1904-1976), o pai de Ana Rosa e Bernardo, inspiração para o personagem K. Foto via Ateliê.
“Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o mal da melancolia. Por isso, não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. Também aos amigos não gosta de mencionar suas perdas e, se são eles que as lembram, a reação é de desconforto. K. nunca revelou a seus filhos a perda de suas duas irmãs na Polônia, assim como sua mulher evitava falar aos filhos da perda da família inteira no Holocausto.
O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esse transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos.
No filme A Escolha de Sofia, uma polonesa é obrigada pelo ocupante nazista a escolher qual dos seus dois filhos ela prefere que sobreviva: o menino ou a menina? Se fosse judia não teria escolha, iriam os dois para o crematório; sendo polaca o guarda inventa um novo jogo, que a mãe faça a escolha, caso contrário as duas crianças serão mortas. A Escolha de Sofia tornou-se expressão de uma escolha impossível, na qual todas as opções são igualmente dolorosas.
Mas a pergunta a ser feita é: por que o soldado alemão decidiu submeter a mão ao tormento da escolha quando era mais simples matar logo as duas crianças e também a mãe, ou ele próprio decidir qual delas matar e qual poupar? Sadismo? Talvez. Mas um sadismo funcional, porque através desse mecanismo o criminoso transferiu à mãe a culpa pelo filho morto. Não foi ela quem escolheu? Esse sentimento de culpa vai se apossando da alma da mãe no decorrer dos anos até que já anciã, sobrevivente de guerra vivendo na América, Sofia se suicida, não suportando mais a carga de uma culpa que nunca foi dela.
A culpa. Sempre a culpa. A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a miserável indenização do governo, mesmo sem a ter pedido. No fundo a culpa de ter sobrevivido.
Milan Kundera diz que Kafka não se inspirou nos regimes totalitários, embora seja essa a interpretação usual, e sim na sua experiência familiar, no medo que tinha de ser julgado negativamente pelo seu pai. Em O Processo, Joseph K. examina seu passado até os ínfimos detalhes, em busca do erro escondido, da razão de estar sendo processado. No conto O Veredito, o pai acusa o filho e ordena-lhe que se afogue. O filho aceita a culpa fictícia e vai se atirar ao rio tão docilmente quanto mais tarde Joseph K. vai se deixar executar, acreditando que de fato errou, pois disso era acusado pelo sistema. Como Sofia, no fim se matou.
Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam. Milan Kundera chamou de ‘totalitarismo familiar’ o conjunto de mecanismos de culpabilização desvendados por Kafka. Nós poderíamos chamar o nosso de ‘totalitarismo institucional’.
Porque é óbvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada.
Por isso, também as indenizações às famílias dos desaparecidos – embora mesquinhas – foram outorgadas rapidamente, sem que eles tivessem que demandar, na verdade antecipando-se a uma demanda, para enterrar logo cada caso. Enterrar os casos sem enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investigação. Manobra sutil que tenta fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a história.
O ‘totalitarismo institucional’ exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois.” (BERNARDO KUCINSKI, p. 154-156)
A evocação da escolha impossível de Sofia (interpretada por Meryl Streep), no filme de Pakula, serve-nos também como alerta contra aqueles que, ainda hoje, tentam justificar as atrocidades da ditadura militar com a repetição do argumento vil: foram mortos pois eram guerrilheiros, ou seja, terroristas, ou seja, bandidos – e “bandido bom é bandido morto”.
Contra este acintoso argumento, que lança o estigma e a culpa sobre os assassinados, precisamos resgatar em minúcias as histórias de vida, e os exemplos de bravura e auto-sacrifício, de todos os que pereceram na luta contra o regime sanguinário e açougueiro instaurado pelo golpe de 1964. É preciso celebrar a memória de centenas de Anas Rosas e Herzogs. É preciso afrontar a muralha de silêncio que deseja-nos apartados da verdade sobre o que se passou com nosso povo. É preciso, agora e no futuro, afastar de nós este “cale-se” amargo, “de vinho tinto, de sangue”.
Kucinski legou-nos, através de sua terapia literária, de sua escrita impregnada de autenticidade, de sua busca pelo desvelamento do passado, um indispensável remédio contra o “mal de Alzheimer nacional”. Engulamos esta medicina em altas doses, antes que o tropel da ditadura volta a cavalgar sobre nós, fazendo de nós mera carne a ser estripada em seus açougues da desumanidade. Os esquecidiços, os amnésicos, os desenraizados, serão sempre os vetores da Banalidade do Mal desvendada por Arendt, os servis funcionários do “totalitarismo institucional” que ainda está longe de ter sido aposentado da História.
“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” – George Santayana (1863-1952) [FB]
DILMA ROUSSEFF VIVEU DIAS DE JOSEF K
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Eis uma das frases mais memoráveis da história da literatura, em que Franz Kafka, logo nos primeiros passos d’O Processo, começa a revelar os meandros de uma maquinaria jurídica e política grotesca, verdadeiro rolo compressor de esmagar cidadania.
Ilustração: Robert Crumb
— Não há dúvida – disse K. – de que por trás de todas as manifestações deste tribunal, no meu caso por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que mobiliza não só guardas corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com o seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrasco, não recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? (KAFKA, O Processo, Cia das Letras, p. 61)
Pergunto-me se Dilma Roussefff, em meio ao processo de impeachment, não se sentia vivenciando na pele alguns dias de Josef K, acossada por todos os lados por um imenso complô parlamentar-jurídico-midiático-empresarial. Como ela deve ter se sentido ao ter, apontados contra ela, os dedos acusadores de canalhas notórios e delinquentes engravatados do naipe de Cunha, Aécio, Jucá, Bolsonaro, Feliciano etc.? Como deve ter sido sentir contra ela a oposição militante (e frequentemente desleal) de megacorporações midiáticas, com imenso poder de calúnia e difamação, como a Globo e a Abril? Na sequência, tentaremos explorar os detalhes do kafkiano putsch que, no Brasil de 2016, derrubou a presidenta da República, re-eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos, dando iniciando a uma trevosa era de barbárie (que tem na PEC 241, uma das primeiras ofensivas do regime Temer, uma das primeiras ações visando instaurar uma era glacial para a saúde, a educação e a previdência públicas no país).
No sinistro dia 17 de Abril de 2016, em que estive nas ruas de Brasília filmando o documentário curta-metragem O Céu e o Condor, a impressionante maré de ativismo anti-golpista que tomou as ruas da capital federal contrastava com as tenebrosas transações urdidas dentro da Câmara dos Deputados. Nesta, uma espécie de Tribunal de Exceção, presidido por um bandido contumaz (Eduardo Cunha – PMDB), organizou-se em gangue para um complô golpista que já é uma das páginas mais vergonhosas e lamentáveis na história desta imatura e imperfeita democracia que estivemos tentando construir.
Invocando Deus, Pátria e Família, muitos deputados clamaram pelo impeachment de uma presidente sobre quem não pesava nenhuma denúncia de corrupção, nenhuma acusação de enriquecimento ilícito ou desvio de verbas públicas; diante da pífia acusação das “pedaladas fiscais” (praticadas por 18 governadores estaduais em exercício), os acusadores tudo fizeram para distorcer o Processo e condenar a presidenta eleita por razões como “o conjunto da obra”, a “crise econômica”, os “milhões de desempregados” – ou simplesmente sua pertença ao PT (partido que tem sido demonizado e defenestrado pelas forças golpistas num processo de alto teor fascista).
A prova de que Dilma não cometeu nenhuma irresponsabilidade criminosa que justificasse sua destituição do cargo quem deu foi o próprio Senado: sua derrubada não acarretou a perda de seus direitos políticos (que crime gravíssimo é este que permite que a “criminosa” seja candidata a qualquer cargo público no futuro próximo?). Além disso, aquilo que nunca havia sido crime pra nenhum governante, foi crime somente para poder degolar a presidenta… deixou de sê-lo dois dias depois da condenação de Dilma. “Justiça?”
Em uma Câmara que mais parecia um Sindicato de Ladrões, tamanho o número de reús na Justiça que ali “trabalha”, muitos deputados deram seu apoio à destituição de Dilma com uma hipocrisia que beira o inacreditável: falavam em Deus e no combate à corrupção, e no entanto eram coniventes com a satânica maquinaria de linchamento midiático e jurídico de uma presidenta que, nas palavras de Márcia Tiburi, tem sofrido um verdadeiro “estupro político”, mesmo que tenha como marca notória o fato de não ter sido denunciada em nenhum escândalo de corrupção (ao contrário de seus carrascos e inquisidores!).
Alguns chegavam a sugerir que o processo de impeachment era a vontade autêntica do povo brasileiro, expresso nas ruas, referindo-se às massas-de-manobra que, em ocasiões como o 15 de Março de 2015, foram conduzidas pelo aparato midiático e pelos master of puppets da Sociedade do Espetáculo a participarem de “manifestações”. É estranho considerar como “povo brasileiro” aqueles que paulistanos (eleitores de Aécio, de Alckmin e de Dória) que foram à Avenida Paulista, convocadas pela Rede Globo e pela Editora Abril (dentre outros ilustres integrantes do P.I.G.), seduzidas pelo filé mignon gratuitoofertado pela Fiesp, respondendo ao chamado de páginas do Facebook como MBL e Revoltados On Line (financiadas pelo ultraliberalismo e seus partidos), vestidos com camisetas da corruptíssima CBF, para participarem de “eventos cívicos” (por assim dizer…) onde a fascistóide tendência do anti-petismo idiótico e do analfabetismo político deram o tom. Os paralelos com eventos de 1964 – como a “Marcha da Família, com Deus, Pela Liberdade” – eram evidentes. (Leia também: Contestáveis Contestações)
Jornal “O Dia” de 03 de Abril de 1964 bradava: “Mais de um milhão de pessoas na Marcha da Família, com Deus, Pela Liberdade! Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo!”
Uma das mais esclarecedoras entrevistas concedidas por Dilma Rousseff, à Revista Caros Amigos #233, revela um pouco do Mapa do Golpe. O jurista Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment junto com Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, tornou explícito o seguinte: “não foi coincidência que Eduardo Cunha tenha decidido acolher o impeachment no momento em que deputados do Partido dos Trabalhadores decidiram votar favoravelmente à sua cassação no Conselho de Ética. Foi uma chantagem explícita.” (Veja a matéria em Pragmatismo Político:http://bit.ly/2djJr12)
Nesta entrevista à Caros Amigos, Dilma frisa a anomalia da coisa: “Na origem do processo, o autor do pedido de impeachment chama a aceitação do próprio impeachment de “chantagem explícita”? Aí, um belo dia, gravam o Romero Jucá falando que tem que tirar a Dilma para parar a sangria, que era chegar a investigação até eles…” (pg 19) Um criminoso notório como Cunha – corretamente chamado de “gangster” pelo deputado Glauber Braga (PSOL) – pôde dar início à maquinaria do golpe parlamentar por seu interesse pessoal em safar-se com impunidade dos inúmeros crimes que cometeu. Diz a Dilma: “não foi por falta de denúncia da Procuradoria Geral da República, não foi por falta de divulgação de que ele tinha contas secretas na Suíça. Enfim, não há quem possa, neste período, ignorar quem era Eduardo Cunha. Não é possível. Isso tudo foi pra mídia.”
Como foi possível que o gangster Cunha pudesse permanecer impune para presidir a sessão da Câmara em que o impeachment avançou para o Senado senão pela indecorosa atuação da mídia corporativa e do STF ao se tornarem cúmplices deste poderoso e prepotente bandido? Mesmo diante de tantas evidências de sua criminalidade e de todo o caos que causou este sabotador geral da república, Cunha pôde chefiar o golpe e dar a gargalhada final: ao ser cassado, riu para as câmeras e disse: “a querida já foi”. O gangster, afinal de contas, saiu vitorioso, pois o governo Temer “espelha os interesses do Cunha” e “Michel Temer é tido e havido como um integrante do grupo do Cunha”. (pg. 18)
Dilma esclarece que, no seu segundo mandato, se “esforçou muito para governar, mas foi governar contra a corrente, o tempo inteiro”. Por um lado, a presidenta eleita não tinha uma base parlamentar que a sustentasse: “eu fui eleita com 54,5 milhões de votos e o PT teve só 60 deputados. O FHC foi eleito e tinha 115.” Ela conta que no seu 2º mandato, em especial após a ascensão de Cunha à presidência da Câmara, foi fuzilada em todos os seus intentos pelas pautas-bomba:
“Quem é que inventou a pauta-bomba? Nós, diante da crise, podendo sair rápido da crise porque não tínhamos os fundamentos frágeis, não tinha banco quebrando, não tinha bolha, só tinha um problema de queda de arrecadação. E, portanto, podíamos sair da crise, tinha onde passar algumas medidas. O que é que ele [Cunha] faz? Não só não passa as medidas, como cria a pauta-bomba. Me explica porque que é, de janeiro até a véspera em que eu saí do governo, não funcionava nenhuma comissão da Câmara. Ele parou a Câmara, ninguém disse nada. Não nomearam Comissão de Constituição e Justiça, de Fiscalização e Controle, a Câmara parou… Funcionava a comissão do impeachment.” (pg 19)
Este foi um “julgamento político e não jurídico”, afirma Dilma, “é isso que dá margem à gente chamar de golpe. Porque a Constituição é clara: há que haver crime de responsabilidade. (…) Nomearam uma comissão de perícia no Senado, que avaliou os processo, e o que ela diz? Um, no caso do Plano Safra, não há autoria, ou seja, como eu não participei, não tem como me acusar. E no outro caso não tem dolo, eu não sabia, não fui informada que dois ou três decretos tinham problemas. Parou aí? Não, aí vem o Ministério Público Federal e arquiva o processo, pede o arquivamento. Por quê? Por falta de materialidade, de crime. Então, este processo se caracteriza como golpe por isso. (…) Ele não é um golpe de estado tradicional, militar. Ele é um golpe parlamentar, um processo dado por dentro das instituições e não contra as instituições…” (pg 19)
Dilma não é cega ao fato de que a rivalidade entre as facções políticas em conflito, algumas delas descambadas para o golpismo e o fascismo, tem a ver com disputas específicas: “o orçamento, de disputa o dinheiro do Estado, é isso que se disputa. O orçamento é o grande objeto da disputa política. No meu caso, o golpe tem aquela razão de pedir o impeachment e assegurar que, na disputa pelo orçamento, o pato sejam os trabalhadores e as classes médias e não o dono do pato. O dono do pato não quer pagar o pato. Quer que as classes médias e o povo paguem. Todas as nossas medidas para fazer face à crise tinham um objetivo de manutenção das políticas sociais.” (pg 19)
Charges: Vitor Teixeira
Consolidado o golpe, vem aí os ataques brutais às políticas de inclusão social e transferência de renda (como o Bolsa Família), contra a política de valorização do salário mínimo, contra programas como o Mais Médicos e contra políticas afirmativas de inclusão educacional (como o sistema de cotas), dentre muitos outros exemplo. A PEC 241, por exemplo, pretende congelar os gastos da União com saúde e educação por 20 anos (5 mandatos presidenciais), num cenário de crescimento populacional e em que os déficits de atendimento já são cruéis com os atuais recursos. O golpe é desumano: propõe sucatear a educação e não vê problemas em deixar que morram milhões de brasileiros por causa de um SUS fuzilado em prol dos planos privados de saúde. Mais que uma anomalia jurídica, uma vergonha midiática e uma injustiça ética, o Golpe de 2016 revela o colapso da empatia e da solidariedade por parte dos usurpadores do poder, sem pudores de praticarem políticas genocidas.
Antes de ser deposta, Dilma dizia: “Eu luto porque a representação popular é cada vez mais importante, considerando que eles não querem passar pelo crivo das urnas, porque eles sabem que, num processo desse, em que trata-se de reduzir direitos e dar perda para poder manter as margens de lucro deles intactas diante da crise, só tem um jeito, e não passa pelo voto popular. O meu impeachment é uma forma de eleição indireta. Esse processo deixa claro do que se trata: de impedir que o povo participe de certas decisões. E quem não tem nenhum compromisso com o povo, porque nunca recebeu um único voto, não tem o menor pudor.”
Sinto profunda indignação diante desta injustiça histórica que Dilma sofreu por parte de um Parlamento gangsterizado, que fede a enxofre e que montou uma farsa grotesca de justiciamento que têm conduzido o Brasil ao caos das polarizações violentas e da instabilidade social. Tudo em prol dos interesses empresariais-corporativos concentrados na chamada Bancada BBB – Bala, Boi e Bíblia (poderíamos aí adicionar outros Bs: de Banco, de Barbárie…):
“Os votos dos parlamentares revela que a rejeição à petista foi mais extrema na bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – e em outras que se identificam com setores empresariais. Do outro lado, votaram majoritariamente pela permanência de Dilma os grupos que atuam junto aos direitos humanos e a causas sindicais. Em ordem decrescente, votaram pelo impeachment as bancadas da bala (88,24%), empresarial (85,32%), evangélica (83,85%), ruralista (82,93%), da mineração (79,12%) e dos parentes (74,49%), formada por deputados com familiares na política.
Em números absolutos, o apoio dos parlamentares da bancada empresarial foi o mais expressivo, com o voto “sim” de 186 dos seus 218 integrantes. Em seguida, vem a dos parentes, que registrou o apoio de 181 dos 243 integrantes.(…) O parecer do deputado Jovair Arantes (PTB-GO) teve também 30 votos favoráveis da bancada da bala, de um total de 34 parlamentares financiados pelo setor de armas e munições ou ainda aqueles que defendem as propostas mais duras para a segurança pública. O grupo de deputados que apoia a mineração é outro pouco expressivo numericamente, com 24 integrantes, e rendeu 19 votos. Também nanica, a turma da bola, ligada à CBF e a clubes de futebol, dedicou 10 dos 14 votos favoravelmente ao impeachment.” – Agência Pública
Depois de ter degolado em gangue a vontade do povo expressa nas urnas, depois de ter cuspido e escarrado sobre a Constituição e a Ética para condenar uma presidenta que não cometeu crime nenhum, quem duvida que os golpistas vão dar prosseguimentos ao engavetamento de todos os processos de corrupção e lavagem de dinheiro, silenciando listões da Odebrecht ou de Furnas, para enfim comemorar a impunidade-de-sempre com muita pizza e champagne?
Luiza Erundina (PSOL 50), após a votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara em 17 de Abril de 2016, manifestou sua indignação diante da atitude indefensável da barbárie direitista em nosso país:
“O deputado Jair Bolsonaro extrapolou qualquer limite. Ele deu parabéns a Eduardo Cunha, disse que seus adversários perderam em 1964 e, por fim, elogiou os militares do golpe e dedicou o voto ao coronel “Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma”. Dilma Rousseff foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária. Aos 22 anos. Ela militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.
Essas sessões de torturas foram realizadas no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo, e também em uma prisão da cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ustra foi responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas nos porões do DOI-CODI no período em que chefiou a instituição. Ele também chefiava o DOI-CODI quando a presidente Dilma foi presa e torturada.
Muitos brasileiros lutaram contra a ditadura e deram sua vida pela democracia ainda jovem que temos hoje. Se hoje podemos discutir e questionar um governo do qual divergimos, também devemos isso a pessoas que enfrentaram a ditadura. Ver uma fala como esta ser aplaudida no plenário da Câmara em um processo de impeachment conduzido por corruptos é emblemático. Não dá pra ter dúvidas quanto ao risco que corremos hoje.” #Erundina, 18/04/2016 @ Facebook (8.000 curtidas, 2.700 compartilhamentos)
Diante disso, não posso calar o quanto considero indignante e lamentável este Golpe travestido de impeachment, que ofende a vontade expressa das urnas e em nome do qual já se pratica o Estado policial-jurídico mais Kafkiano. Um Processo que é capitaneado de modo ditatorial, anti-popular e proto-totalitário pela cleptocracia criminosa de nosso conchavo político-empresarial.
É deslavado golpismo burguês da pior laia, que não se envergonha, neste processo de flagrante injustiça e de indignações altamente seletivas, de torturar. Bolsonaro não está sozinho em sua apologia da tortura (“Eu fui presa nos anos 1970. De fato, eu conheci bem esse senhor a que ele se referiu. Foi um dos maiores torturadores do Brasil, contra ele recai não só a acusação de tortura, mas também de mortes”, afirmou Dilma em entrevista concedida hoje (19), sobre citação feita por deputado federal a coronel da ditadura. (FACEBOOK – em post com 34 mil curtidas e 10.600 compartilhamentos) – está acompanhado, por exemplo, pela Revista Veja, que ousou estampar a cabeça decepada do ex-presidente Lula numa de suas capas de infinito mau-gosto (puro jornazismo).
Notórios defensores do “impeachment já” evocam Deus para praticar a homenagem a torturadores, invocam o nome de Cristo enquanto dizem “sim” à degola da democracia… Os “cidadãos de bem” e “homens de família” votam em prol da barbárie da Bancada BBB e avançam a pauta assassina e ecocida do “liberalismo” do capitalismo selvagem, com a “nova era” Temer sugerindo uma “ponte para o futuro” que é pinguela para o passado…
Um regime golpista e ilegítimo vem se erguendo sobre as ruínas pisoteadas de um governo que tem sido permanentemente sabotado e acossado por uma oposição particularmente insana em seu anti-democratismo, em seu fascismo em montante… Essa oposição não pratica “intriga”, ela já tornou-se sabotadora e usurpadora, abertamente! Com muito linchamento público do outro, e carradas da mentalidade e do comportamento de gangue (UFC da política, vale-tudo do Patriarcado testosteronado!), a turma que chefiou do “golpeachment” é a mesma mofada e dinossáurica casta política elitista da Nova República, e que vai chutando Dilma pra escanteio como se o voto de 54 milhões fosse mero detalhe.
O golpismo em seu rumo vai vociferando um patriarcalismo feudal e grotesco. A nossa “luta pela democracia” sangra em praça pública neste atentado que sofre aos 27 anos de sua Constituição…
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Nada mais sensato e saudável para a mente de qualquer um de nós, brasileiros, do que sermos céticos e cheios-de-desconfianças diante da Rede Globo, aquela poderosa e prepotente mega-corporação cujo magnata-mor, Roberto Marinho, enquanto vivia era comparado ao “Cidadão Kane” (William Randolph Hearst, cujo retrato magistral Orson Welles empreendeu em seu clássico filme de estréia).
O império de mídia dos Marinhos, os multi-milionários plutocratas da indústria cultural brazileira, pode até justificar-se dizendo que é plenamente legítimo que uma família de oligarcas enriqueça e concentre capital, desde que faça com competência seu trabalho no ramo dos entretenimentos insosso e imbecilizantes, das novelinhas rocambolescas e sentimentalóides, do jornalismo de desinformação.
Porém, não vejo porque deveríamos desculpar com facilidade a Globo da sonegação de impostos que pratica impenitente, nem dos acordões lucrativos com a corrupta e criminosa CBF, muito menos deveríamos “deixar quieto” o fato de que tanto lucrou e se fortaleceu com os 21 anos de uma Ditadura que apoiou e em cujo golpe-de-Estado instaurador teve papel de tanto peso. Porém, dou meu braço a torcer e reconheço o mérito da seguinte reportagem, que foi ao ar em Novembro de 2010 no Jornal da Globo, sobre a biografia pessoal e política de Dilma Rousseff (recomendo!):
O jornalismo global mostra-se, nesta reportagem, menos sórdido que de costume, desvelando eventos cruciais da vida de Dilma: retrata a infância e adolescência dela, em Minas Gerais, onde Dilma estuda em escolas estaduais; mostra o início de sua militância juvenil, nos anos 1960, em órgãos como a POLOP (Política Operária); passa por seus amadurecimentos pessoais e políticos, “entre comícios e passeatas”, até o divisor de águas que foi o Golpe de 1964.
Como lembra o verbete da Wikipédia, “nascida em família de classe média alta, Dilma interessou-se pelo socialismo durante a juventude, logo após o Golpe Militar de 1964, e então ingressou na luta armada de esquerda: tornou-se membro do Comando de Libertação Nacional (COLINA) e posteriormente da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) – ambas organizações que defendiam a luta armada contra o regime militar. Passou quase três anos presa (1970–1972): primeiro pelos militares da Operação Bandeirante (OBAN), onde passou por sessões de tortura, e posteriormente pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).”
Foram 2 anos e 4 meses de prisão. Quando depois for eleita presidenta, ela integrará uma seleta lista de personalidades políticas – que inclui Nelson Mandela, na África do Sul, e José “Pepe” Mujica, no Uruguai – que foram vistos como “inimigos do Estado” durante a vigência de regimes autoritários-ditatoriais, pelos quais foram encarcerados e torturados. EM outro momento histórico, consagrando-se nas urnas como governantes democraticamente eleitos por sufrágio universal (ainda que hoje corroído pelo financiamento privado de campanhas, que dá no atual “vence a grana” que conhecemos e repudiamos!).
Julgo eu que o longo caminho de Dilma Rousseff, do pau-de-arara ao Palácio do Planalto, merece ser conhecido por cada um de nós, brasileiros, que hoje pretendem ter voz na ágora e opinar sobre os nossos destinos coletivos. Pois só assim encontraremos a sensatez e a lucidez para julgar se os gritos por “impeachment!”, que não têm cessado desde a re-eleição de Dilma, em 2014, são de fato justos e legítimos.
Dilma filiou-se ao PT (Partido dos Trabalhadores) apenas em 2001. Bem antes disso, tinha participado, junto com Carlos Araújo, dos esforços de Leonel Brizola para a recriação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Também ajudou a fundar, no Rio Grande do Sul, o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Em Porto Alegre, foi Secretária Municipal da Fazenda, entre 1985 e 1988. Posteriormente, entre 1999 e 2002, ainda na zona gaúcha, foi secretária estadual de Minas e Energia. Isto pavimentou seu caminho para se tornar, com a eleição de Lula em 2002, a nova Ministra das Minas e Energia. A partir de 2005, Dilma assumiria o cargo de Ministra-chefe da Casa Civil, substituindo José Dirceu (que renunciou na época em que estourou o “mensalão”).
Dilma Rousseff não foi somente a primeira mulher a ser eleita presidente do Brasil, foi também a primeira mulher a ser ministra da Casa Civil e das Minas e Energia – um triplo ineditismo, pois, em um país onde a política esteve marcada desde sempre por patriarcalismo, por machismo, por masculinismo.
Filha de um advogado búlgaro e uma professora brasileira, Dilma Rousseff decidiu, em 1968, que não podia ficar calada ou submissa diante dos descalabros da ditadura.
#Ebooks: RÉGIS DEBRAY, “Revolution In The Revolution?” (Grove Press, 1967, 129 pgs). Acesse o PDF / Faça o download do livro digital: http://bit.ly/2cVD9Ss (7 mb). FB.
“Para Apolo Heringer, que foi dirigente do COLINA (Comando de Libertação Nacional) em 1968 e havia sido professor de Dilma na escola secundária, a jovem fez opção pela luta armada depois que leu ‘REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO,’ de Régis Debray, filósofo e intelectual francês que na época havia se mudado para Cuba e ficara amigo de Fidel Castro. Segundo Heringer, “O livro incendiou todo mundo, inclusive a Dilma”. (Cf. Luiz Maklouf Carvalho. “As armas e os varões: a educação política e sentimental de Dilma Rousseff”. Revista Piauí (31), p. 22-31. Abril de 2009. Visitado em 19 de outubro de 2014.)
Vale a pena perguntar, para contraste, o que estavam fazendo Aécio Neves ou Eduardo Cunha – pretendentes ao poder supremo desta república! – na mesma época em que Rousseff ajudava a editar o jornal “O Piquete”, dava aulas de marxismo e debatia com os companheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) sobre os melhores rumos para a luta popular brasileira contra o regime ilegal dos militares.
O que testemunhamos em 2014, no combate acirrado entre Dilma e Aécio, foi também um acerto-de-contas entre figuras que estiveram de lados opostos desde a Ditadura. Aécio foi sempre da elite mimada que mama nos privilégios de família; faria seu renome político utilizando-se do nepotismo marketeiro do playboy que acha que pode mandar pois é “o neto do Tancredo!”.
Dilma, em contraste, foi uma desses jovens brasileiras que decidiu ir à luta contra um regime instalado pela violência, que derrubara Jango com participação do imperialismo dos EUA. Uma ditadura sanguinária e repressora que era sentida como injusta e inaceitável. Dilma participou ativamente de organizações revolucionárias, inclusive as que incluíam entre suas táticas a guerrilha armada, enquanto Aécio Neves cheirava cocaína, em notas de 100 dólares, protegido em seus privilégios pela força armada de um regime sanguinário.
Ela viveu na pele a agressividade do regime que contestou na militância: Dilma Rousseff foi presa pelo DOPS e torturada barbaramente por ser supostamente uma “perigosa inimiga pública” e por participar de sequestros e assaltos à banco atribuídos à VAR-Palmares.
“Usando vários codinomes, Dilma teria recebido epítetos superlativos dos relatórios da repressão, definindo-a como ‘um dos cérebros’ dos esquemas revolucionários”,como lemos na Wikipedia. “Um promotor que denunciou a organização chamou-a ‘Joana d’Arc da subversão’, a chefiar greves e assessorar assaltos a bancos, o que Dilma contesta, dizendo nada lembrar das tantas ações que lhe atribuem.”
A “Joana D’Arc da subversão” é, pois, uma invenção paranóica dos militares. Eis uma Dilma demonizada, que existia somente na imaginação de figuras como o general Carlos Alberto Brilhante Ulstra. A Dilma Rousseff real era bem diferente de sua caricatura fabricada pelos delírios de seus adversários fardados. Infelizmente, até hoje o que ocorre é que boa parte da informação histórica e biográfica de que dispomos, nos retratos de Dilma, ainda se baseiam em obras escritas pela Direita – como fica evidente no seguinte verbete da Info Escola, que traz como referência bibliográfica única… o livro de Ulstra!
“Ainda no ano de 1969, alguns integrantes líderes da VAR-Palmares, entre eles Dilma Rousseff, planejaram o sequestro do civil no governo militar identificado como símbolo do milagre econômico, Delfim Neto. A ação, contudo, foi abortada porque os membros da VAR-Palmares começaram a ser capturados pelos militares. (…) A VAR-Palmares padeceu na mão da repressão praticada pelo regime militar: dois de seus principais líderes, Carlos Alberto Soares de Freitas e Mariano Joaquim da Silva, foram presos e assassinados pelo DOI-Codi no Rio de Janeiro. Ainda no ano de 1969, ano de fundação da VAR-Palmares, um grupo interno de dissidentes abandona o movimento para reconstituir a Vanguarda Popular Revolucionária. Enquanto isso, outro grupo dava início à organização que ficaria conhecida como Grupo Unidade.” (INFO ESCOLA: http://www.infoescola.com/historia-do-brasil/var-palmares/)
Aqueles que querem pintar um retrato de Dilma como sangue-nos-olhos, perigosa terrorista Guevarista, cometem uma falsificação histórica. Dilma nunca foi exatamente um Lamarca ou um Marighella. Talvez por isso Lula, ao fim de seu segundo mandato, no momento de escolher alguém para apadrinhar com seu imenso capital de carisma e popularidade, conquistados em seus 8 anos na presidência, ao fim dos quais foi considerado por pesquisas de opinião como o melhor presidente da história do país, viu em Dilma alguém que seria capaz de encarnar a figura sedutora interpretada antes pelo “Lulinha-Paz-E-Amor”. E foi a Dilminha-Paz-E-Amor quem venceu nas urnas, não a Dilma torturada e guerrilheira!
A descrença na “solução armada”, porém, vêm de longe na vida de Dilma:
“Em um congresso em Teresópolis, entre agosto e setembro de 1969, teria havido grande divisão entre os ‘militaristas’, focados na luta armada, e os ‘basistas’, que defendiam um trabalho de massas. Dilma estava com o segundo grupo. Enquanto os primeiros se agruparam na VPR militarista, liderados por Lamarca, Dilma ficou no segundo grupo, a VAR-Palmares basista. (…) Após a divisão, Dilma foi enviada a São Paulo, onde esteve encarregada de manter em segurança as armas que couberam a seu grupo. Evitando mantê-las em apartamentos sem a segurança necessária, ela e a amiga Maria Celeste Martins (décadas mais tarde, sua assessora na Casa Civil) mudaram-se para uma pensão simples na zona leste urbana, escondendo o arsenal debaixo da cama.
Foi capturada pela Operação Bandeirante, no mesmo local onde cinco anos depois Vladimir Herzog perderia a vida. Foi torturada por 22 dias com palmatória, socos, pau de arara e choques elétricos. No meio militar, há quem veja o relato de Dilma com ironia e descrédito, especialmente quanto à possibilidade de alguém sobreviver a tanto tempo de tortura. Posteriormente, Dilma denunciou as torturas em processos judiciais e a Comissão Especial de Reparação da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro aprovou pedido de indenização por parte de Dilma e de outras 18 pessoas.” (Wikipédia)
Em minha pueril perspectiva de jornalista um tanto romântico, acredito que a função social e a razão-de-ser do jornalismo deve ser esta: pôr em circulação o máximo de verdade que for possível descobrir e desvelar sobre a nossa realidade social comum. E isto não é o que vejo a grande mídia praticar no Brasil: a Rede Globo, a Editora Abril, a Revista Veja, os jornalões como Folha De São Paulo e Estadão, parecem estar cegos à sua tarefa de “esclarecedores da opinião pública” e praticam a interesseira manipulação-de-massas, da mais descarada, praticando de modo recorrente a desinformação e pintando retratos caluniosos e demonizantes de adversários políticos. Dilma Rousseff (e Lula) merecem uma mídia muito melhor que esta nefasta horda de fascistóides, militaristas e golpistas que infelizmente têm voz demais nos órgãos midiáticos “de Ibope”.
Aqui, n’A Casa de Vidro, tentaremos seguir contribuindo, na medida do possível, para transcender a desinformação que por aqui é prática burguesa reiterada, banalizada e voluntária. Nenhuma democracia se faz sem informação de verdade – e disso estão nos privando os “peixes grandes” da imprensa capitalista-corporativa, que estão escondendo do Brasil a verdadeira dimensão histórica de figuras como Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – que alguns idiotas ainda insistem em tratar como se fossem algum tipo de “lixo social” que se deveria varrer para o lixo da História com a “vassourinha” violenta da truculência militar ou dos golpes de Estado perpetrados por parlamentares em gangue.
Os derrotados nas urnas, ressentidos por serem minoria nas eleições, magoados e vingativos com a derrota de Aécio, tendem a manifestar seu ódio à democracia através de deturpações históricas e delírios paranóicos. São ingredientes explosivos e conducentes à barbárie do fascismo. Ao invés da Dilma imaginada como demônio pelos seus adversários alucinados, conheçamos e entendamos a Dilma real, a Dilma histórica, a Dilma com quem alguns ainda não perderam a esperança de que faça algo de monta em prol da justiça social e dos serviços públicos de qualidade no Brasil.
Aos golpistas e fanáticos pelo “impeachment”, digo que Dilma parece-me alguém com quem podemos dialogar e a quem se pode demandar: essa não é uma pessoa totalmente surda à voz das ruas. O problema é que “as ruas” foram cooptadas pelos aparelhos midiáticos e corporativas – em 13 de Março de 2016 e em 15 de Março de 2015, o “clamor das ruas” nas “manifestações coxinha” do “impeachment já” o que vimos foram apenas “micaretas patrióticas”, bastante ridículas e de pífio valor contestatório. Pois no fundo são muitos os milhões de analfabetos políticos que se prestam a serem massas-de-manobra dos interesses e das ideologias das elites, sem perceber que são estas elites que estão pedindo a cabeça de Dilma numa bandeja. Forçam a barra para que acusações sem pé-nem-cabeça conduzam Lula à prisão, neutralizando uma candidatura potencialmente vitoriosa em 2018.
O PT que fez o Fome Zero e Bolsa Família, que fez mais de 4 milhões de casas com o Minha Casa Minha Vida, que alçou mais de 40 milhões de pessoas para longe da miséria, que avançou tanto no combate ao analfabetismo e à pobreza a ponto de sair do Mapa da Fome da ONU, que instaurou a justa e necessária Comissão da Verdade, que ampliou o acesso à educação aos mais desprivilegiados, poderia muito bem ser “compelido”, pelas demandas populares e pela pressão dos movimentos sociais, a fazer mais e melhor do que fez até aqui: ninguém aqui está pregando o quietismo ou a resignação e o PT está aí, sim, para ser contestado e reivindicado, criticado e defendido nos seus pontos falhos e nos seus acertos perduráveis e inovações possíveis. Criticá-la sim, mas de modo sensato, lúcido, digno, justo – e não nessa fúria fascista financiada pela FIESP e tendo como mestres-de-cerimônia os calhordas do delinCunha, do Bolsonazi, do Aécio Helicoqueiro, do Malafaia salafrário, do vamp Serra…
Não há dúvida de que há muito a melhorar em setores ainda desastrosamente sub-incentivados pelo Estado brasileiro; não há dúvida de que falta muito chão para que se concretize uma reforma agrária que des-concentre as terras e uma reforma política que des-plutocratize nossa república; temos a urgência da a instalação de uma matriz de energia baseada nos renováveis, e estamos distantíssimos disso; temos uma epopéia inteira até a conquista de um fomento à educação pública digno do slogan (até agora longe de cumprido) da “pátria educadora”; e o resquício sórdido de Ditadura Militar que é a nossa PM e nosso Sistema Penitenciário ainda nem começou a ser revolucionado, como urgentemente precisa.
Também não há dúvida de que muitas políticas petistas tem que ser contestadas – como o ecocídio desenvolvimentista praticado pelas usinas à la Belo Monte na Amazônia, como as alianças com a burguesia na figura de favorecimentos, há décadas exercido por PSDB, PMDB, PFL (atual DEM) e tantos outros moralistas sem moral, pregando contra a corrupção na hipocrisia dos corruptos vingadores, com fome de pizza, loucos para engavetar os processos de que são réus. Pegaram Dilma pra Cristo e querem degolá-la por que, depois da devassa, nada encontraram de criminoso senão “pedaladas fiscais” que são prática recorrente de qualquer gestor público.
A mídia-de-massas faz por merecer o título de P.I.G. (Partido da Imprensa Golpista) nesta crise política: ao invés de informar, manipula os afetos da massa em plena demagogia populista, que tantas vezes beira o fascismo teleguiado. O Big Brother de Orwell era uma espécie de Hitler na Era da TV, e não na do rádio, o pesadelo da manipulação massiva da opinião pública através de mentiras, falsas acusações, num ad eternum “Taca Pedra Na Geni, Taca Bosta na Geni! Ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um, maldita Geni!” E não se inventa um Brasil melhor com fúria descerebrada, colhida das bocas cheias de fel de bem-pagos demagogos midiáticos que estão a serviço de elites egocêntricas e interesseiras.
A democracia não é a guerra civil, mas tampouco é o reino da concórdia e da harmonia. A política pode ser tão mais, e ir tão além, da “continuação da guerra por outros meios”. A política pode ser – estuprado ideal! – a construção coletiva e comum da sociabilidade justa e ética. Discordemos, pois – já que democracia é diálogo entre discórdias, deliberação entre diferenças! Mas o façamos, para o nosso bem, o mais bem informados que pudermos, com o máximo de enraizamento histórico e de engajamento solidário no presente que pudermos. O mundo comum é o que está em jogo – e neste tabuleiro não joguemos a farsa tola do bode expiatório, da “degola” redentora da Dilma, como se algo de sublime pudesse advir de uma injustiça histórica tremenda, que vai pesar em sombrias páginas escritas por historiadores do futuro que hão de se assombrar com um tão Kafkiano Processo.
Ato Em Defesa da Presidenta Dilma Rousseff – Juristas Pela Legalidade e Em Defesa da Democracia, 22 de Março de 2016. Vídeo completo, 49 minutos. Discursaram antes da presidenta a professora de direito da UnB, Beatriz Vargas Ramos, e o ministro José Eduardo Cardozo (AGU):
Veja também:
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Em Junho de 2013, quando tem início a vertiginosa queda de popularidade de Dilma, ela manifestou em cadeia nacional a intenção de instaurar plebiscito e constituinte para realizar uma Reforma Política que remediasse a gravíssima crise de representação:
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Dilma conta como teve dente arrancado a socos por torturador [http://bit.ly/1Sh64Nh]
O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) detalhou como a tortura era praticada por agentes públicos durante o período militar. As informações contidas nos depoimentos dão uma noção mais clara dos requintes de crueldade sem poupar nem mesmo mulheres, adolescentes ou inocentes presos de forma clandestina e sem qualquer direito básico a defesa, algo injustificável mesmo por aqueles que pregam a volta dos militares como se vê em algumas manifestações ou se ouve de alguns parlamentares.
Naquela época, a presidente Dilma Rousseff era uma das líderes de uma organização chamada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Ela foi presa em janeiro de 1970, pela Operação Bandeirante. Assim como outros opositores do regime militar, Dilma foi torturada e até hoje alega sofrer com sequelas físicas e psicológicas.
No relato que fez à Comissão Estadual de indenização às Vítimas de Tortura de Minas Gerais, em 2001, Dilma conta como teve um dente arrancado a socos, sobre as sessões de tortura (algo que parecia ser uma praxe entre os presos interrogados), sobre ser amarrada em um pau de arara e sobre os choques.
“Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém sabe que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber”, era uma das ameaças ouvidas de um agente público no período em que esteve presa. “Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças (…) Você fica aqui pensando ‘daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura’”, contou Dilma.
Dilma foi levada para a Operação Bandeirante no começo de 1970, em Minas Gerais. “Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar: ‘Mata!’, ‘Tira a roupa’, ‘Terrorista’,’Filha da puta’, ‘Deve ter matado gente’. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o ‘esperar’. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro”, relata.
Oficialmente, a tortura sempre foi negada pelos militares. De acordo com o relatório da CNV, era uma prática instituída dentro do regime militar, inclusive com premiação de torturadores com a Medalha do Pacificador.
No caso de Dilma, o principal responsável pela tortura era o capitão Benoni de Arruda Albernaz. “Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Ele dava muito soco nas pessoas. Ele começava a te interrogar, se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”, conta. Albernaz era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Oban quando Dilma foi presa, em janeiro de 1970.
DENTE ARRANCADO A SOCOS
Um dos pontos mais gráficos nos trechos do depoimento de Dilma contidos no relatório fala sobre o episódio no qual teve um dente arrancado a socos, que lhe acarretou sequelas até os dias atuais. “Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco arrancando o dente”, conta Dilma.
Mas para estas pessoas, a principal memória dos dias em que foram submetidos a práticas desumanas e quase medievais de tortura, em pleno século 20, são as sequelas que perpetuam até hoje em suas vidas.
“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos, agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, mas a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.
Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida.
Quando eu tinha hemorragia – na primeira vez foi na Oban – pegaram um cara que disseram ser do Corpo de Bombeiros. Foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não me bater naquele dia. Em Minas Gerais, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso até o final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital de Clínicas.
As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, relatou Dilma.
Lendo relatos como esse, seja da presidente ou de qualquer outra pessoa que esteve custodiada pelos militares naquela época, fica claro que, independente da orientação política ou do que cada um acredita, uma sociedade civilizada não deveria compactuar ou esquecer da selvageria que foi praticada naquela época e que se perpetua até hoje, de forma arbitrária, entre as camadas mais pobres, talvez como resquícios daqueles tempos. (por Daniel Favero, no Terra Notícias, 2014)
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Ilustração: Carlos Latuff
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – Relatório completo.
Instalada em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade procurou cumprir, ao longo de dois anos e meio de atividade, a tarefa que lhe foi estipulada na Lei no 12.528, de 18 de novembro de 2011, que a instituiu. Empenhou-se, assim, em examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Com apoio de um diligente conjunto de consultores e assessores, e de colaboradores voluntários, nós, conselheiros da Comissão, por designação presidencial, dedicamo-nos à busca de um grande volume de documentos, tomamos centenas de depoimentos, realizamos audiências públicas por todo o território nacional, dialogamos intensamente com a sociedade, buscando fazer de nossa missão fator de mobilização da sociedade brasileira na defesa e na promoção dos direitos humanos.
Agora, também em cumprimento à lei, apresentamos, em três volumes, o relatório que contém a enumeração das atividades realizadas pela Comissão, a descrição dos fatos examinados e nossas conclusões e recomendações.
SITE OFICIAL: http://www.cnv.gov.br/
Integraram a CNV: José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Pedro Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso.
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CONFIRA TAMBÉM:
EM BUSCA DE IARA (2003),
um documentário de Flávio Frederico e Mária Pamplona
Sinopse: Através de uma investigação pessoal de sua sobrinha, Mariana Pamplona, o filme resgata a vida da guerrilheira Iara Iavelberg (1943-1971). Uma mulher culta e bela, que deixou para trás uma confortável vida familiar, optando por engajar-se na luta armada contra a ditadura militar.
Vivendo na clandestinidade, na esteira de uma rotina de sequestros e ações armadas, tornou-se a companheira do ex-capitão do exército Carlos Lamarca, compartilhando com ele o posto de um dos alvos mais cobiçados da repressão. O filme desmonta a versão oficial do regime, que atribui sua morte, em 1971 a um suicídio.
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!