O CINEMA COMO ARMA CRÍTICA: Raoul Peck reaviva os legados de Karl Marx e James Baldwin através de filmes cruciais para a decifração do mundo contemporâneo

O CINEMA COMO ARMA CRÍTICARaoul Peck reaviva os legados de Karl Marx e James Baldwin através de filmes cruciais para a decifração do mundo contemporâneo

Despossuídos do mundo, uni-vos! Vocês nada têm a perder senão as algemas da miséria! Tais poderiam ser bons emblemas para descrever o ímpeto que animava O Jovem Karl Marx, alvo de uma competente cinebiografia realizado pelo artista e ativista haitiano Raoul Peck.

Raoul Peck já atuou como Ministro da Cultura do seu país. Realizou recentemente alguns documentários muito relevantes, como I Am Not Your Negro, sobre a vida e obra de James Baldwin, indicado ao Oscar.

Produziu também um pungente retrato documental da situação do Haiti após o terremoto de 2010 em Assistance Mortelle (Assistência Fatal), filme que denuncia os interesses escusos por trás da ajuda humanitária internacional aos haitianos após a imensa catástrofe sísmica que reduziu grande parte da ilha a escombros.

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Em O Jovem Karl Marx, Raoul Peck inclui detalhes da vida emotiva e amorosa de Karl Marx e sua esposa, Jenny Westphalen, com quem viveu por 32 anos. É um curioso casal composto por uma aristocrata prussiana de família poderosa e aquele que estava destinado a ser reconhecido pela posteridade como um dos maiores pensadores revolucionários de todos os tempos (sobre esta relação, há também livro de Françoise Giroude, Jenny Marx ou A Mulher do Diabo (Ed. Record, 1996, 238 pgs).

Contradições análogas são vivenciadas por Friedrich Engels, filho de um rico industrial de Manchester, que se apaixona pela operária Mary Burns, ex-funcionária de Engels Pai e que, em uma cena do filme, é retratada em pleno ímpeto contestatório contra os abusos patronais e as más condições de trabalho. Eis um episódio que evoca lembranças do excelente filme de Martin Ritt, Norma Rae (1979), em que Sally Field interpreta uma audaz trabalhadora que lidera um movimento sindical e confronta a tirania patronal com inesquecível esplendor.

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O Jovem Karl Marx, apesar de não negligenciar as fofocas sentimentais e enroscos amorosos de seus protagonistas, também se interessa pela História e suas lutas entre classes, seus complôs, seu entrechoque de partidos e movimentos, sua querela imortal entre revolucionários e reacionários.

O filme pode gerar acalorados debates sobre a função do intelectual engajado e que se faz liderança vanguardista de um movimento de massas. Raoul Peck interessa-se há tempos pelo retrato dos grandes homens que arregaçam as mangas para trabalhar em prol da Transformação Histórica, os seres humanos mais entusiasmados pela ação  coletiva transformadora, como foi Patrice Lumumba, líder do movimento independentista do Congo, alvo de uma cinebiografia filmada por Peck em 2000.

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Passado entre Paris, Londres e Bruxelas, O Jovem Marx narra um pouco das efervescências da década de 1840. No começo desta, o jovem Marx escrevia reportagens relevantes – sempre ameaçadas de censura e amordaçamento – em jornais como a “Gazeta Renana” e os “Anais Franco-Prussianos”.

O filme inicia em estado de tensão máxima, com a população pobre da Renânia, em uma floresta onde coletavam madeira, sendo subitamente atacada por uma gangue de fardados. É com os despossuídos apanhando horrivelmente nas mãos da polícia prussiana que o filme decide dar início à saga de seu personagem principal.

Sobre as cenas do massacre perpetrado pelos policiais, Peck evoca trechos da reportagem de Marx, de 1842, sobre a lei sobre o roubo da lenha, um trabalho que a Boitempo Editorial acaba de publicar no Brasil sob o título Os Despossuídos (2017, 150 pgs, compre em Livraria A Casa de Vidro).

Despossuídos
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Neste livro, além da reportagem de Marx na íntegra, o público brasileiro tem acesso ao artigo introdutório de Daniel Bensaïd: “Os despossuídos: Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres” (páginas 11 a 73). Juntos, constituem uma preciosa fonte de informações sobre o período de formação daquele que era, na época, um jovem de 24 anos, recém-formado em filosofia na Universidade de Jena, onde havia defendido uma tese sobre A Diferença Entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro (saiba mais).

No caso específico do roubo da madeira, o que interessava ao jovem jornalista e crítico político Marx não era criminalizar o povão, tacar pedras sobre a ralé de bandidos (nada mais distante dele do que o “bandido bom é bandido morto!” que ouve-se hoje em dia na boca de tantos caras-pálidas que flertam com o fascismo e o autoritarismo militar. Marx quer compreender quais os processos de pauperização que explicam o desespero de toda uma classe social, obrigada por suas circunstâncias materiais a violar a lei que proteje a propriedade privada, mas clamando um direito superior, um direito à vida, à sobrevivência. Este embate, este conflito sangrento entre o direito à propriedade e o direito à vida está no foco do jovem Marx quando este se debruça sobre o roubo da madeira e suas implicações sócio-políticas.

“A apropriação de madeira alheia”, um delito classificável como “furto”, é assim problematizada por Marx: “Para apropriar-se de madeira verde é preciso separá-la com violência de sua ligação orgânica. Assim como isso representa um atentado evidente contra a árvore, representa um atentado evidente contra o proprietário da árvore. No caso da madeira caída no chão, em contraposição, nada é tirado da propriedade. Tira-se da propriedade o que já foi tirado dela. O ladrão de madeira profere uma sentença autocrática contra a propriedade. O coletor de madeira seca apenas executa uma sentença já proferida pela própria natureza da propriedade, pois o que se possui é a árvore, mas a árvore já não possui aqueles galhos. Desse modo, ajuntar madeira seca do chão e roubar madeira são coisas essencialmente diferentes.” (MARX, apud Bensaïd, pg. 18)

A noção de “proprietário da árvore”, que Marx utiliza sem ironia, descrevendo uma situação concreta no contexto jurídico da época, aponta para a transformação da Natureza em mercadoria, a mercantilização geral da Phýsis – ainda que Marx não aprofunde na questão da hecatombe sócio-ambiental daí decorrente e hoje tão denunciada, globalmente, pelas incipientes correntes ecossocialistas. O capitalismo não só transforma o mundo natural em commodity, ele no processo produz uma montanha insustentável de trash – lixo, poluição e crises cíclicas devastadoras. Sob as relações de produção capitalistas, as árvores são mercadorias, as florestas têm um preço, e o direito sagrado à propriedade privada inclui o direito de alguns de possuírem árvores e florestas, e de mandarem os soldados e os policiais trucidarem todos aqueles que roubarem madeira de seu “legítimo dono”.

Marx, ainda bem próximo de Proudhon, denuncia a propriedade privada de capital e meios de produção como perversidade íniqua, destinada a sofrer com os movimentos contestatórios e revolucionários dos despossuídos. Não há explícitas injustiças sociais que se manifestam nos direitos à propriedade privada quando imensas frações da população da sociedade padecem com a falta do necessário? O banquete de luxos e supérfluos dos ricos não é um acinte diante da multicor e multifacetada penúria dos espoliados? Uma sociedade assim tão desigual quanto a capitalista não acaba sendo a coveira de si mesma, cavando sua própria cova ao oprimir a massa proletária e camponesa com um jugo que muitas vezes beira o insuportável?

Os artigos sobre o furto da madeira são, portanto, de acordo com Bensaïd, “a primeira incursão de Marx nas controvérsias, que naquele momento chegavam ao auge, sobre a definição e os limites do direito de propriedade. Se O que É a Propriedade?, livro de Proudhon de 1940, é uma das contribuições polêmicas mais famosas, Histoire du droit de propriété foncière en Occident, de Édouard Laboulaye, foi coroado pela Academia Francesa em 1838.”

No filme de Raoul Peck, vemos a camaradagem que nasce entre Marx e Engels – este último, que já havia publicado a obra A Situação da Classe Operária na Inglaterra que tanto impressionou o jovem Marx. O filme mostra os debates intensos que envolvem os epígonos do marxismo com figuras políticas cruciais da época, como o anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), famoso pela tese a propriedade é um roubo, autor criticado pela dupla Marx e Engels na obra “Miséria da Filosofia”.

Acossado pela censura, pelo exílio e pela repressão, o jovem Marx é obrigado a ser uma figura um tanto nômade, mas que não deixa a um só instante de estudar com esmero as obras com as quais terá tão fecundo debate polêmico: os grandes economistas ingleses (Ricardo, Adam Smith, Bentham etc.) e os grandes filósofos da época (como Ludwig Feuerbach, como Max Stirner, como os “hegelianos de esquerda”).

Sem excesso de intelectualismo, a obra de Raoul Peck abre janelas para que o público possa compreender as circunstâncias históricas e o contexto biográfico em que nasceram a Liga dos Justos, depois rebatizada como Liga Comunista. Revela um Marx combativo, amante de um debate fervoroso (como ocorre em seu conflito com Weitling), mas também uma figura que às vezes soa como bon vivant, apesar dos perrengues financeiros que passe.

Já Engels, descrito mais como um dândi, uma ovelha negra de sua família de industriais, um riquinho desgarrado de sua classe de origem, é relegado pelo filme a um certo segundo plano, mas tem sua posição de “mecenas” de Marx frisada, ainda que sua própria vida e obra não seja o foco do filme.

Muito além do interesse que possui para os estudiosos do Marxismo nas múltiplas áreas em que ele marcou a jornada intelectual e emancipatória da humanidade – Filosofia, Economia, História, Direito, Ciência Política etc. -, O Jovem Marx de Raoul Peck serve também como uma espécie de Prolegômenos Para As Revoluções de 1848.

Assistindo-o, podemos ver emergir no palco da História aquele “espectro que assombra a Europa” e que todos os poderes tradicionais, em uma Santa Aliança, unem-se para conjurar: o Comunismo. Estamos diante de Marx e Engels enquanto pensadores-agentes que se colocam no palco da História não apenas como intérpretes do mundo, mas como seus transformadores.

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Aos 100 anos da Revolução Bolchevique, é mais do que oportuna a chegada deste belo filme aos cinemas, reavivando nossa compreensão sobre uma das primeiras encarnações do Comunismo histórico, nos turbulentos anos de 1848, marco-zero também deste documento histórico crucial, dotado ainda de intenso poder de contágio e de imorredoura atualidade, que é o Manifesto Comunista, considerado por muitos como o segundo livro mais lido da História da Humanidade, só perdendo para a Bíblia.

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Mas, como Marx brinca em uma tirinha de Charb, publicada em Marx: Manual de Instruções de Bensaïd, ao menos o Velho Karl poderia virar-se para Jesus de Nazaré, com sua contumaz ironia, e dizer: “Tá, mas meu livro fui eu que escrevi!”

Uma sessão dupla com as duas obras mais recentes de Raoul Peck – O Jovem Marx e Não Sou Seu Negro – certamente revelará um dos cineastas mais relevantes hoje em atividade, capaz de contribuições imensas à formação de nosso senso crítico e de nossa capacidade de mobilização coletiva para a transformação social.

Reavivando os legados de Karl Marx e James Baldwin, Raoul Peck está recolocando no foco de nossas atenções, na ágora global, duas figuras cruciais para a decifração do mundo contemporâneo e para as urgentes transformações sociais que não podem vir senão das insurreições dos despossuídos contra as milenares opressões e espoliações de que prosseguem alvos. O Jovem Marx vem para fazer companhia a Suffragette (de Sarah Gavron) e Ágora (de Alejandro Amenábar) e  como uma das mais interessantes incursões cinematográficas recentes no fecundo terreno da biografia histórica de grandes transformadores sociais e mentes críticas.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Outubro de 2017

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VEJA TAMBÉM:

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“I AM NOT YOUR NEGRO”

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“ASSISTANCE MORTELLE”

Um filme de Raoul Peck sobre o Haiti após o terremoto de 2010. Sinopse IMDB: “Haitian born filmmaker Raoul Peck takes us on a 2-year journey inside the challenging, contradictory and colossal rebuilding efforts in post-earthquake Haiti.” Saiba mais em Arte.tv.



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O FANTASMA DE MARX AINDA ASSOMBRA O MUNDO

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por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

O túmulo de Karl Marx (1818-1883) em Londres, no Cemitério de St. James, enuncia na lápide uma das mais célebres das Teses Sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, trata-se, entretanto, de transformá-lo.”

Marx não ficou só na palavra, arregaçou as mangas para praticar o que pregava: uma filosofia que não apenas se esforça por compreender o mundo, mas é animada pela vontade de transformá-lo para melhor.

“Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo”, anunciavam Marx e Engels no início do Manifesto Comunista de 1848. Mas a Santa Aliança contra o comunismo – que, após a Segunda Guerra Mundial, passou a ser empunhada pelos EUA contra a União Soviética (além de Cuba, Vietnã etc.) – não foi capaz de exorcizar para sempre este fantasma. O comunismo ainda ronda, como incansável ave agourenta, voando por sobre o capitalismo em ruínas, mas resiliente em sua agonia, dizendo que as contradições e injustiças que a sociedade capitalista gera acabam por parir os coveiros do atual status quo. 

Talvez o primeiro aprendizado que se faz indo à fonte e lendo a obra de Marx seja um incremento de nossas energias práticas que está vinculado com o incremento de nossa capacidade de explicar o mundo com uma teoria unitária e coerente. O marxismo, que tanto ajuda a compreender o mundo, não é formicida para nossa vontade transformada, muito pelo contrário, serve como estimulante para a ação coletiva, para a transformação do mundo só se faz através de forças humanas em concerto – a revolução também necessita, para triunfar e ser eficaz na construção de um mundo melhor, da solidariedade e coerências dos revolucionários, que nisso precisam ser como músicos de uma orquestra: têm instrumentos de diferentes timbres, vozes de diversas alturas, mas cantam em coro e buscam a harmonia na diferença.

Esta união de teoria e práxis, de filosofia e ação, é um dos legados imorredouros do grande pesquisador e pensador cujo espectro ainda hoje assombra o mundo dominado pelo Capital.  Quem desejar ter uma experiência de apenas 2 horas – ao invés das 20.000 horas requeridas para a leitura do livro de Marx – pode acessar uma síntese cinematográfica estupendamente cáustica no filme Capital de Costa-Gravas.

Porém, fazer o diagnóstico de uma sociedade desvairada, em convulsão por excesso de antagonismos, ainda não é fornecer o remédio. Marx quis também ser o médico de um sistema social doente.

A complexidade da sociedade capitalista foi explorada em todas as suas nuances por um Marx animado pelo ímpeto rebelde de encontrar o calcanhar de Aquiles para apressar a queda de uma civilização condenada.

Através do engajamento com o Partido Comunista e a Internacional, Marx pôde confrontar na prática o poderoso Titã – a Sociedade do Capital – uma hidra de mil cabeças que ele soube desvendar e decifrar como ninguém, sem estacionar jamais na análise crítica. Em Marx, a crítica une-se com a conclamação para uma transformação revolucionária da sociedade.

 Em um livro crucial, Espectros de Marx, Jacques Derrida foi um dos responsáveis, na filosofia do século 20, por explicar porque sempre será um erro deixar de ler e debater o velho – mas rejuvenescente! – Marx. “O que eu tentei pode também ser inscrito sob o rótulo da ‘crítica ao idealismo'”, disse Derrida. “Não é preciso, pois, dizer que nada, no materialismo dialético, ao menos na medida em que ele opera esta crítica, suscita de minha parte a mínima reticência…”



Em pleno século XXI, o espectro que ronda o mundo é o do próprio Marx, reavivado e tornado mais acessível às novas gerações por várias obras recentes: no cinema, O Jovem Marx, de Raoul Peck (click para baixar o torrent ou click para acessar no MEGA); na literatura infanto-juvenil, O Fantasma de Karl Marxescrito por Ronan de Calan e ilustrado por Donatien Mary, que integra a série Pequeno Filósofo (Ed. Martins Fontes); no âmbito da fortuna crítica e dos comentários introdutórios, Marx: Manual de Instruções, de Daniel Bensaïd, lançado pela Ed. Boitempo, traz contribuições inestimáveis.

Pouquíssimo lido entre nós, a obra de doutoramento em filosofia do jovem Marx merece nossa atenção. É o mito de Prometeu que Marx evoca para começar sua jornada filosófica de exploração dos materialismos de Demócrito e Epicuro em sua Tese de 1841 (consultei a edição em espanhol: Ed. Ayuso, Madrid). Marx evoca o Titã rebelado que, de acordo com o mito grego, teria roubado o fogo, antigo privilégio dos deuses, após ter tomado o Olimpo de assalto. Enxergando-o como símbolo da inteligência crítica, audaz e libertária, Marx vê em Prometeu uma espécie de guia em sua jornada filosófica de assalto aos céus e seus cofres repletos de privilégios injustos e capitais entesourados por gente que tem as mãos sujas do sangue e do suor alheios.

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Sabemos que Prometeu, titã de ousadia demasiada, desrespeita os decretos das autoridades superiores e é punido por um Zeus furibundo, que o condena a uma tortura, repleta de requintes de crueldade: acorrentado a um rochedo, tem seu fígado devorado por um abutre. Todos os dias o órgão renasce para ser novamente devorado.

Albert Camus também evoca este mito, no capítulo “Os Filhos de Caim” de O Homem Revoltado ( LHomme Révolté): “As primeiras teogonias nos mostram Prometeu acorrentado a uma coluna, nos confins do mundo, mártir eterno, excluído para sempre de um perdão que ele se recusa a solicitar.” (CAMUS: 2003, p. 43)

PROMETEU ACORRENTADO - Pintura de Rubens

PROMETEU ACORRENTADO – Pintura de Rubens

prometeoMestres da pintura como Rubens nos legaram imagens eloquentes do Prometeu Acorrentado. Este é o nome, aliás, de uma das peças – a única que chegou intacta até nós – que compunha a trilogia do dramaturgo grego Ésquilo, um dos grandes gênios na história da arte trágica (Cf. VERNANT, Mito e Tragédia na Grécia Antiga).

É na fonte desta tragédia grega esquiliana que Marx vai beber os versos que ilustram o prefácio à sua tese de Doutorado, defendida em Berlim, 1841: uma das frases lapidares de Prometeu – “odeio a todos os deuses!” – é mobilizada por Marx em outro contexto, tornando-se “a profissão de fé da filosofia”.

Em outras palavras: toda filosofia digna deste nome seria prometéica, ou seja, estaria em estado de franca insurreição de “seu próprio juízo contra todas as deidades celestiais e terrestres que não reconhecem a autoconsciência humana como divindade suprema” (MARX: 1841, p. 11).

Prometeu levantou-se em rebeldia contra a tirana da “área V.I.P.” que era o Olimpo, cujas deidades monopolizavam recursos e detinham privilégios – não só o fogo, mas também o néctar e a ambrosia, comida dos teo-fodões. A filosofia também deveria, sustenta Marx, dizer ao mundo  – ao mundo, isto é, aquilo que compete aos filósofos não apenas interpretar, mas também transformar! – as mesmas palavras que Prometeu dirigiu ao alado Hermes, aquele que nos mitos serve como mensageiro e serviçal dos deuses, sendo dotado de asas atadas aos tornozelos:

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Prometeu a Hermes:

“Saibas que eu não mudaria
Minha mísera sorte por tua servidão
Prefiro seguir à rocha acorrentado
Do que ser o fiel criado de Zeus.”
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Marx, entusiástico e ardoso aficcionado dos poetas e romancistas (sabe-se de sua paixão por Heine, Balzac, Shakespeare etc.), também enxerga seu trabalho como a épica insurreição titânica contra uma secular servidão imposta pelo andar de cima sobre todos os que padecem com múltiplas opressões no andar de baixo. Recusar-se a ser o fiel criado de Zeus é um gesto análogo à rejeição da tirania do Capital. Camus concorda em conceder ao mito de Prometeu um lugar de destaque na história da revolta:

“Ésquilo torna ainda maior a estatura do herói, cria-o lúcido (‘nenhuma desgraça que eu não tenha previsto recairá sobre mim’), faz com que ele grite bem alto o seu ódio a todos os deuses e, mergulhando-o em um ‘tempestuoso mar de desespero fatal’, oferece-lhe finalmente aos raios e ao trovão: ‘Ah, vejam que injustiça que suporto!’ Não se pode dizer que os antigos desconhecessem a revolta metafísica. Bem antes de Satã, eles haviam erigido uma dolorosa e nobre imagem do Rebelde e nos legaram o maior mito da inteligência revoltada.” (CAMUS, op cit, p. 44).

Dito isso, talvez compreenda-se melhor as razões de Marx para, abusando da hipérbole e não sem uma pitada de ironia, proclamar: “no calendário filosófico Prometeu ocupa o lugar mais distinto entre os santos e mártires”. Prometeu, na perspectiva marxiana, seria uma espécie de símbolo supremo de um levante da autonomia contra a servidão. Estandarte de uma insurreição da inteligência crítica e emancipadora contra as velhas tiranias estúpidas e abusivas.

Dentre os filósofos, Epicuro teria sido uma espécie de herói prometéico, de Prometeu em carne e osso. E a frase que o jovem Marx seleciona para corroborar esta analogia é a seguinte: “Não é ímpio aquele que deprecia os deuses do vulgo, mas sim quem adere à idéia que a multidão forma dos deuses.” (EPICURO, Carta a Meneceu)

A adesão acrítica à opinião corrente sobre os deuses é vista por Epicuro como um grande malefício, que arruína a possibilidade humana de alcançar a ataraxia ou serenidade-de-espírito, já que nos deixa apavorados, ansiosos, cheios de temores e terrores.

A noção mítica, propagada pela obra de Homero e de Hesíodo, de que haveria um Hades (Mundo dos Mortos), para onde iriam nossas almas imateriais depois da morte, era vista pelos epicuristas não só como uma falsidade, ou seja, como uma fantasia insubstancial. Era também uma mentira perniciosa para a felicidade humana. É como se Epicuro estivesse dizendo que acreditar no Hades, no Outro-Mundo do Além-Túmulo, pôr fés em Céus e Infernos, traz péssimos efeitos psicológicos, aniquilando a possibilidade do júbilo terrestre dos mortais.

Na Carta a Heródoto, conservada graças aos esforços de Diógenes Laércio e sua Vida Dos Filósofos Ilustres, Epicuro diz claramente que considera como uma das piores perturbações que pode afligir o ser humano o “temor de algum tormento eterno” (DIÓGENES LAÉRCIO, p. 543). Diagnostica, como uma espécie de proto-psiquiatra dos males do espírito, as causas da perturbação e do temor, recomendando remédios para o triste estado do homem que crê na possibilidade de um tenebroso destino post mortem. 

Trata-se de um temor irreal, um medo de algo que nunca se vivenciará na carne. A crença em um deus cruel e punitivio, capaz de condenar sua criatura às fogueiras infernais e ao sofrimento sem fim, não passa de delírio da mente alienada, vítima da ideologia religiosa dominante, refém de uma espécie de fantasmagoria que fere continuamente a Psiquê e prejudica a vida daquele que a nutre com sua credulidade.

Epicuro nunca se auto-entitulou materialista – isto é mais um rótulo que depois é colado nele. Mas era sim um explícito seguidor da doutrina de Demócrito de Abdera, pensador que inaugura a tradição que explica a Natureza ou Realidade (Phýsis) através das interações dos átomos no vazio. A palavra átomo, que significa indivisível, designaria para Demócrito e Epicuro uma espécie de “chave” para a decifração do mistério do Ser.

Em sua tese de doutorado, o jovem filósofo Karl Marx quer compreender quais são não só as afinidades, mas sobretudo as diferenças entre as concepções-de-mundo de Demócrito e de Epicuro: eles têm, segundo Marx, tanto práxis científicas quanto estilos-de-vida discrepantes.

“Demócrito”, de Hendrik ter Brugghen

O estilo-de-vida de Demócrito, julgados a partir do que nos informa Diógenes Laércio, foi a de alguém devotado a “correr o mundo” para recolher experiências; Demócrito é um sábio nômade, sempre on the road, um intrépido viajante, que não praticava “turismo” no sentido que hoje conhecemos, mas sim que viajava em busca do conhecimento. 

A concepção de sophia em Demócrito está vinculada com um nomadismo que ele vivenciou na pele ao circular pelo Egito, Pérsia, Índia, Etiópia, em visita a outras visões-de-mundo, audaz cosmopolita mergulhando na alteridade e na diversidade cultural. Demócrito é a volúpia do saber em plena florescência, alguém que devota-se a uma erudição eclética, buscando conhecimentos e técnicas nas áreas da física, da ética, das matemáticas, das artes, numa inovadora postura de pesquisa e observação empírica que deixaria marcantes legados.

São inimagináveis, sem Demócrito como desbravador clássico de novos caminhos, tanto a física Newtoniana quanto o empirismo de Locke. Demócrito viveu em permanente busca pelo conhecimento e por isso viajava, como uma abelha que quer visitar o máximo possível de flores diversas para melhor fabricar seu mel.

Em contraste, Epicuro é o sábio sedentário, contente em seu Jardim de Amigos, naquela sociedade alternativa, instalada nos subúrbios atenienses, onde sophia philia não eram meros termos abstratos, vão palavrório, mas sim práticas vividas. No Jardim de Epicuro vivia-se para a amizade e a sabedoria, em comum e em diálogo perene, numa espécie de proto-comunidade-hippie que continua a ter algo a nos dizer nesta época que vivemos, tão emurchecida de utopias, tão murcha de outros mundos possíveis em processo de realização.

Epicuro não é um roadrunner como Demócrito, o cosmopolita; Epicuro é grego por inteiro, alguém que se jactava de ser auto-didata, em contraste com a gratidão democritiana aos mestres que mais lhe ensinaram (dentre eles os gimnosofistas indianos). Epicuro procurava contentar-se em estar onde estava, em serenizar-se com júbilo na companhia de amigos, e não dava rédea ao ímpeto de Demócrito que era “correr mundo” e ver a diversidade das gentes.

Os dois, é claro, nunca se encontraram pessoalmente, apenas realizaram uma das mais estarrecedoras alquimias que a Natureza realiza: uniram-se através das gerações de cadáveres que os separam, atados pela fidelidade comum a uma doutrina, o chamado “atomismo”, explicação de mundo que não aceita nenhum criador transcendente, exterior à Natureza, como causa ex nihilo. 

São os átomos – corpos indivisíveis, minúsculos, invisíveis a olho nu, que congregam-se e formam conglomerados (moléculas) – que alçam-se agora à candidatos a explicar por completo a Phýsis. Os átomos é que vão fornecer as chaves para a decifração da Natureza. Por sua pequenez, os átomos não podem ser vistos e isto acarreta um sério problema: Demócrito, que afinal não vivia na era dos microscópios, não possuía nenhuma prova empírica da existência dos átomos (Demócrito não podia, diante de seus detratores, mostrar uma fotografia dos átomos para provar aos descrentes que eles existiam).

Os átomos, que descritos como um fenômeno objetivo, real, concreto, independente da consciência humana, constituem o tecido mesmo do real, constituem a própria matéria de nossos corpos viventes, porém não apareciam no mundo subjetivo como tal, não tinha de fato uma “presença empírica” no mundo fenomenal do sujeito, já eram minúsculos demais para ser vistos a olhos nus. Átomos invisíveis formavam conglomerados visíveis, mas o segredo destes últimos jamais seria descoberto fazendo apelo aos céus – a explicação, já dizia Demócrito, está no fundo do abismo.

O jovem Marx revelará esta verdade dos abismos em sua tese de doutorado em que pretende pôr diante de seu microscópio crítico estas duas encarnações da doutrina materialista. “Existe um velho preconceito segundo o qual se identificam, ou seja, são idênticas as físicas de Demócrito e Epicuro; as divergências se fizeram tão ocultas que só se revelam diante do microscópio.” (MARX: op cit, p. 16-17)

Microscopista do materialismo antigo, sondando os Mistérios do Ser que visavam decifrar os intrépidos Demócrito e Epicuro, o jovem Marx escrevia sua tese de doutorado em filosofia, mas foi incapaz de fazê-lo em qualquer torre de marfim, já que foi atropelado pela História. O sangue que as classes dominantes fazem derramar na Silésia, massacrando trabalhadores que protestavam contra suas péssimas condições de vida e trabalho, pode ter sido um choque traumático para o jovem Karl Marx, mas o despertou para a necessidade urgente de conectar a filosofia à vida real, à transformação concreta das condições econômicas, políticas e culturais de uma sociedade demenciada e flagrantemente injusta.

 Um dos maiores méritos do livrinho ilustrado O Fantasma de Karl Marx está em sua evocação do contexto sócio-histórico que rodeia a confecção da obra de Marx sobre os filósofos materialistas antigos. Podemos dizer que o sangue derramado na sociedade esguicha para as páginas de Marx, de modo que o epicurismo e o atomismo reaparecem no séc. XIX em uma contextura nova, aliciados para a luta épica da Humanidade contra a Opressão. Com texto de Ronan de Calan e desenhos de Donatian Mary, a obra traz Karl Marx como um fantasma que levanta da tumba e que, em primeira pessoa, escondido detrás de um lençol, assim se apresenta para contar a saga dos despossuídos da Silésia:

 

“Um espectro assombra a Europa…

Guten Tag! Bom dia! Não tenha medo, é apenas um lençol. Meu nome é Karl Marx. Minha juventude já vai longe, daqui a pouco festejarei meus 200 anos! Mas não acredite que estou morto só por vagar assim como um fantasma! Um lençol me basta para enganar aqueles que me perseguiam antigamente, pois todas as nações da Europa haviam se aliado numa santa caçada na qual eu era a lebre!

Isto fez com que eu batesse em retirada, assim como a lebre abandona a toca farejada pelos cães, indo de Berlim para Paris, de Paris para Bruxelas, de Bruxelas para Londres, sempre escapando de meus perseguidores… Essa história começa poucos anos antes do meu nascimento, numa região com o bonito nome de Silésia, na Alemanha, meu país natal. Na Silésia, viviam famílias de modestos camponeses que tinham acabado de escapar da opressão de senhores gananciosos e indolentes. Eles cultivavam livremente suas glebas e vendiam seu trigo na cidade.

Um dia foram à cidade vender trigo, e o comerciante lhes disse: O trigo de vocês está caro demais! Os camponeses da Vestfália que usam as novas máquinas agrícolas me vendem o mesmo trigo mais barato. De agora em diante, será com eles que negociarei, não com vocês! Não me olhem desse jeito: a culpa não é minha, são as regras do Mercado!

Os camponeses da Silésia voltaram decepcionados para casa e, com o passar dos meses, foram obrigados a comer todo o seu estoque de trigo. No ano seguinte, sem dinheiro para comprar sementes para o replantio, viram-se forçados a vender suas casas. Quando o empresário chegou para comprar suas casas, declarou: Suas casas custam os olhos da cara! Os camponeses da Pomerânia, que também abandonar suas plantações, estão vendendo mais barato. E não encontram comprador! Aceitem essas moedinhas pelas casas e vão procurar trabalho na cidade! E não me olhem desse jeito, não tenho nada a ver com isso, é a lei do Mercado!

Então os camponeses de Silésia foram para a cidade, pois tudo termina na cidade. Não tendo mais quase nada, não levaram quase nada: roupa de cama, alguns móveis e os velhos teares que, com linho ou algodão, eles usavam para confeccionar roupas ou lençóis. Na cidade, acabaram virando tecelões… Mas um belo dia o comerciante de tecidos a quem eles vendiam suas peças lhes disse: Suas peças estão caríssimas! As fábricas têxteis de Frankfurt me vendem mais barato! De agora em diante, é com elas que irei negociar. Quanto a vocês, arranjem um emprego na fábrica. E não me olhem desse jeito: não tenho nada a ver com seus problemas, é a dura realidade do Mercado!

Desesperados, os tecelões da Silésia dirigiram-se à fábrica de tecidos. Chegando lá, depararam com uma multidão diante dos portões: eram camponeses como eles, que haviam sido obrigados a abandonar suas terras, pequenos artesãos arruinados pelas fábricas, jovens que tinham dilapidado num piscar de olhos sua magra fortuna, e até pequenos comerciantes que não haviam compreendido as regras do Mercado. Vinham todos engrossar as fileiras dessa classe laboriosa que chamamos de proletariado: aquelas pessoas não tinham mais nada para vender, e assim sobreviver, a não ser sua força de trabalho, a força de seus braços.

Um contramestre encarregado da contratação postava-se à frente deles, em cima de um estrado. Com uma voz estrondosa e firme, declarou: Vocês são muito numerosos, não precisamos de tantos braços. Portanto, só contrataremos os que trabalharem por um preço baixo. De agora em diante,  é só com ele que negociaremos, e com mais ninguém. Façam suas propostas e não me olhem desse jeito: a culpa não é minha, é assim que o Mercado funciona!

Um primeiro operário, já idoso, ofereceu um preço irrisório por suas mirradas forças. Chegou então um rapaz mais forte, porém faminto, que propôs um valor ainda mais baixo, ridiculamente baixo. Um terceiro, finalmente, apontou para os filhos e disse que os ofereceria de graça como mão de obra se o contratassem. O emprego era de quem trabalhasse mais para ganhar menos!

Foi então que os tecelões se encheram. Encheram-se daquele Mercado que eles não conheciam, mas que, como um mágico invocando poderes infernais, roubara-lhes as plantações, a casa, o trabalho e agora queria roubar seu corpo e suas forças. Como não sabiam a quem dirigir sua raiva, atacaram primeiro o estrado onde se encontrava o contramestre, que, amedrontado, fugiu. Depois invadiram a tecelagem, quebrando as máquinas utilizadas para fabricar tecidos a preços mais baixos, tornando-os inúteis. Em sua ira, atearam fogo nos estoques de tecidos. Enquanto o fogo se alastrava, os tecelões revoltados perceberam, cercando a fábrica, soldados com fuzis apontados em sua direção. (…)

Os soldados cercaram a fábrica para defender o Mercado e a propriedade privada. Ao tomarem conhecimento do fato, os tecelões investiram violentamente contra o soldados, julgando travar finalmente uma luta aberta contra o Mercado e seus agentes invisíveis, uma classe de exploradores agora representada e encarnada pelo exército. Pois assim avança a luta de classes: nunca sabemos exatamente contra quem lutar para vencer, e volta e meia nos enganamos de inimigo.

Mas o que podiam fazer tecelões famintos contra soldados armados com ordens para atirar e, como se não bastasse, em nome do Mercado?

Karl Marx

Eu, Karl Marx, jovem estudante de filosofia recém-chegado à cidade, encontrava-me nas imediações da fábrica aquela manhã e vi os tecelões tombarem sob as balas dos soldados. Após havê-los expropriado, exilado, arruinado e explorado, o Mercado acabava por ceifar sua vida. Assim, diante daquele triste espetáculo, estabeleci para mim mesmo um imperativo categórico, segundo a expressão do filósofo Kant, ou seja, fiz o seguinte juramento solene: trabalhar a vida inteira para derrubar tudo o que faz do homem uma criatura humilhada, subjugada, abandonada, desprezada.

Jurei acima de tudo encontrar o Mercado, esse mágico infernal, e, para o bem de todos, eliminá-lo de uma vez por todas. A fim de nunca mais esquecer meu juramento, apoderei-me de um pano caído no chão durante aquela luta desigual: um lençol dos tecelões da Silésia! Foi para me lembrar deles que o trouxe comigo…” (CALAN/MARY, pgs. 8 a 26)

 

Estas duas imagens ilustram bem a importância de Marx na História: Prometeu em levante contra o Olimpo, ele carrega como manto um lençol manchado com o sangue dos trabalhadores massacrados da Silésia.

Honrando o mito de Prometeu, ele pôs sua inteligência crítica e sua incansável curiosidade de pesquisador eclético e intrépido a serviço da titânica reviravolta revolucionária do mundo. Quis contribuir para trazer o Olimpo da opressão céu abaixo, fazendo despencar no chão as velhas tiranias e os malditos regimes de opressão. Como um fantasma que recusa-se a ficar preso na tumba, alma penada que deixa o caixão e põe-se no campo de batalha histórico, Marx ainda anda por aí entre nós, espectro nunca exorcizável, enrolado no lençol todo manchado do sangue derramado por todos os injustiçados da Terra.

O jovem filósofo que, nas asas de Demócrito e Epicuro, propõe as bases de uma revolução filosófica, o materialismo histórico-dialético, é desde cedo atropelado pela História; é testemunha de fatos que jamais poderiam manter indiferente um coração empático, uma mente em sinergia com a de seus semelhantes.

Em Marx, o intelectual indignado é indistinguível do pesquisador científico das bases materiais que explicam nossas desgraças sociais e a brutalidade tão difícil de erradicar da luta entre as classes. Pensamento vivo, aberto ao diálogo, audaz na crítica, sem temor da controvérsia, o marxismo é confundido pelos idiotas desinformados, ou pelos seus bem-pagos detratores profissionais (agentes de desinformação e alienação), como uma espécie de manual de doutrinação. 

Nada mais distante do real intento de Marx, demolidor das doutrinações das classes dominantes, podres de ricas por tanto encherem a pança com injustos privilégios. Descrente de qualquer neutralidade, nem por isso Marx devotou-se menos à honestidade intelectual e à intrépida audácia através das quais propôs caminhos para que deixássemos destroçadas pelos chãos as algemas que nos prendem à Sociedade de Opressão.

É da pena de Heinrich Heine um dos poemas que Marx e Engels mais gostavam e seus versos são também um emblema para a aventura Prometéica de rebeldia criativa e proposição de novos rumos empreendida pelo marxismo, método dialético a orientar possíveis vitórias d‘O Homem Revoltado Camusiano contra as infindáveis fontes de sofrimento e escravidão que nos oprimem com suas tiranias.

Em tradução de André Vallias, em Hein Hein? – Poeta dos Contrários, eis os versos emblemáticos que Marx e Engels adoraram e propagaram:

“Não há lágrimas em seus olhares!
Rangem dentes diante dos teares:
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Deus a quem oramos,
Quando a fome e o frio nos maltratam;
Suplicamos de joelhos sua graça,
Ele tripudia e ri da nossa cara –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Rei, rei dos ricaços,
Da miséria faz tão pouco caso;
Nos roubou até o último centavo
Para nos lançar nos braços do carrasco –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição à Pátria desamada,
Onde o escárnio e a humilhação se alastram;
Onde a flor que flore é logo estraçalhada;
Onde a podridão seus vermes amealha –
Nós tecemos e tramamos!

Voa a lançadeira no tear,
Noite e dia, trabalhamos sem parar –
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição,
Nós tecemos e tramamos!

HEINE. Os tecelões da Silésia.

BIBLIOGRAFIA

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Record, 2003.
DIÓGENES LAÉRCIO, Vida Dos Filósofos Ilustres. Alianza: Madrid, 2011.
ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado. RJ: Zahar. In: Coleção “Tragédia Grega” – Vol. VI.
HEINE, Heinrich. Heine Hein?, editado por André Vallias. Perspectiva: 2011, P. 289.
MARX, Karl. A Diferença Entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro. PDF (link em breve).
MARX; ENGELS. Manifesto Comunista (1848).
ROMAN CALAN & DONATIEN MARY. O Fantasma de Karl Marx. Martins Fontes: 2012, coleção Pequeno Filósofo.

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BRASIL EM CHAMAS – por The Intercept Brasil, Mídia Ninja, El País, GGN, Justificando, Brasil de Fato, Ribs, Mauro Iasi, A Casa de Vidro – #ForaTemer #DiretasJá

GOVERNO QUE PEDIA UNIFICAÇÃO NACIONAL É RESPONSÁVEL AGORA POR UM PAÍS EM CHAMAS

“Brasília ficou literalmente em chamas após mais de 35 mil manifestantes se reunirem contra o governo e as reformas Trabalhista e da Previdência. Até onde se sabe, um grupo com cerca de 50 pessoas, após confusão com a polícia, promoveu quebra-quebra, incendiou os ministérios da Agricultura, da Fazenda e da Cultura e depredou outros dois prédios, segundo o UOL. Todos os prédios da Esplanada foram evacuados, e as imagens de documentos em chamas e de vidraças, persianas, paradas de ônibus, placas de trânsito, orelhões, banheiros químicos arrebentados no entorno de Brasília se espalharam como num rastilho.

Michel Temer decretou ação de garantia de lei e da ordem e, como se confirmasse o delírio de saudosos da ditadura que se multiplicaram em outras manifestações recentes pelo país, tropas federais cercaram o Palácio do Planalto e o Itamaraty.

A ação acontece no pior momento do governo Temer, que nos últimos dias parecia finalmente unificar a nação no sentido da rejeição.

Quem até ontem era chamado de revanchista por gritar “Fora, Temer” e acusar o chamado golpe parlamentar ganhava a companhia de parte da opinião pública que fatalmente acompanhou revoltada a escalada do noticiário contra um governo cercado por delinquentes de todo tipo.

Acuado e prestes a cair de maduro, Temer fatalmente usará as cenas como argumento político da ordem (a que ajudou a degringolar) contra o caos – este supostamente provocado por partidários interessados em sua queda. Sabe que, em boa parte da opinião pública, apenas o medo da “baderna”, citada há pouco pelo seu ministro da Defesa, Raul Jungmann, é maior do que a sua rejeição.

Em seu pronunciamento, o ministro justificou a convocação das tropas federais dizendo que a marcha, “prevista como pacífica, degringolou para a violência, desrespeito, ameaça às pessoas”. Segundo ele, “o presidente da República faz questão de ressaltar que é inaceitável a baderna e o descontrole. E que ele não permitirá que atos como esse venham a turbar um processo que se desenvolve de forma democrática e com respeito às instituições”.

Sem força política, Temer ganhou uma brecha para fazer o que governantes impopulares fazem nas horas de desespero: apelar para o medo. Não faltará quem veja nessa brecha a chance de alimentar o seu próprio Reichtag. O mais provável, porém, é que as cenas do incêndio e da pancadaria em Brasília sirvam como epígrafe de um governo que prometeu pacificar o país e o devolveu em chamas.”

Matheus Pichonelli em The Intercept Brasil

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“A grave crise política na qual o Brasil está mergulhado transformou Brasília num campo de batalha entre policiais e manifestantes que pedem a saída do presidente Michel Temer (PMDB) do poder e a sua substituição por meio de eleições diretas. Ao menos 49 pessoas se feriram nos confrontos ocorridos durante um dos maiores protestos que a cidade registrou desde o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Dezenas de milhares de manifestantes caminharam pelas ruas gritando “Fora, Temer”. Diante da violência que também resultou na depredação de ao menos sete ministérios, o presidente determinou que 1.500 homens das Forças Armadas passassem a fazer o policiamento de prédios públicos até o próximo dia 31 de maio. Ainda que os militares já tenham atuado em crises estaduais e durante os Jogos Olímpicos, é a primeira vez, na democracia, que a capital federal será policiada por militares. Antes, isso ocorrera apenas durante a ditadura militar (1964-1985).” – EL PAÍS Brasil

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Mídia Ninja – “Como esperado, a truculência policial foi a resposta dada pelo poder público aos milhares de jovens, homens e mulheres, trabalhadores de todos os cantos do país que vieram dizer a Temer que seu governo golpista chegou ao fim e que o Brasil exige eleições diretas para a Presidência da República.

Aproximadamente 200 mil pessoas de todas as regiões do país foram repudiar a tentativa de destruição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o fim da aposentadoria representados pelas reformas trabalhista e previdenciária, que se encontram em tramitação acelerada no Congresso Nacional.

A luta por eleições diretas para a escolha de uma nova chefia do executivo ocupou lugar central na pauta do ato, especialmente após as novas e graves denúncias envolvendo Michel Temer e aliados.”

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Charge por Ribs

“O prefeito da maior cidade do país caminha em meio aos escombros. Tinha acabado de mandar demolir um prédio na crackolândia, com moradores dentro.

Do outro lado do Brasil, dez corpos se amontoam, em meio a mais um massacre de trabalhadores rurais no Pará. A polícia paraense teria promovido a matança. O uso da força, sem disfarces, sempre foi a linguagem da elite brasileira: escravocrata, ardilosa, antipopular.

Trabalhadores em marcha contra as “reformas” de Temer são atacados brutalmente pela polícia em Brasília. Bombas, porrada, tiros.

Prédios ministeriais incendiados. Brasília arde. A direita de facebook diz que há “vândalos” nas ruas…

Derrubar direitos trabalhistas e mudar a Previdência, impondo um programa econômico derrotado nas urnas: esse o verdadeiro vandalismo que ameaça o país desde que um golpe derrubou a presidenta eleita.

A Globo e os bancos querem uma semi-democracia sem povo. O mercado já decidiu: as urnas não valem, o que valem são as decisões nas mesas das corretoras e dos operadores das bolsas.

Queimaram votos, vandalizaram a democracia, colocaram meganhas pra lançar bombas contra com o povo. E o vandalismo é de quem?

A barbárie se completa com o decreto de Temer: um estado de sítio molambo, disfarçado, covarde, típico de um velhaco que pode levar o Brasil ao abismo.

O Exército está nas ruas em nome da lei e da ordem.

A Lava-Jato e a Polícia Federal podem tudo.

Enquanto isso, tucanos pisam nos pobres da crackolândia e os mortos se amontoam no Pará (também, sob governo do PSDB).

A Democracia agoniza. Parecemos às vésperas de um momento decisivo. Ou as garantias civis retornam. Ou o Brasil escravocrata, de sempre, vai impor a ordem, a morte e o terror.

Em 1 ano de golpe, caminhamos de 64 a 68. Já é possível ver o abismo que a Globo, os bancos e os tucanos cavaram com seus pés. Uma parte dos golpistas já foi tragada pelo abismo. Mas ameaçam lançar o país inteiro no buraco.

Sete dias de Exército nas ruas de Brasília, segundo o decreto criminoso de Temer. Sete dias em que o lado de cá pode virar o jogo, ou assistir ao enterro definitivo da Democracia.” – Brasil de Fato

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“As manifestações de ontem, contra o governo Temer e as “reformas” por ele patrocinadas, foram marcadas pela brutalidade da repressão policial. Em Brasília, onde ocorreu o principal ato, a multidão estimada em mais de 100 mil pessoas foi impedida de ocupar a esplanada dos ministérios. A ação policial teve como intuito evidente obstruir a realização do protesto, em violação direta do princípio da liberdade de manifestação pública. O saldo de dezenas de feridos, alguns com gravidade, é consequência direta desta decisão e da falta de comedimento da força policial na contenção dos cidadãos reunidos para protestar.

Em meio ao confronto, o ocupante da presidência da República apelou para a intervenção do exército, baixando um decreto de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), por solicitação – ou não – do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A medida é defendida como “constitucional”. De fato, a forte pressão militar sobre a Assembleia Nacional Constituinte fez com que, em seu artigo 142, a Carta incluísse, entre as atribuições das Forças Armadas, a garantia da lei e da ordem. Foi possível moderar o texto com a salvaguarda de que a presença militar só ocorreria por iniciativa de algum dos poderes constitucionais, mas a redação permaneceu infeliz. Afinal, se “lei” e “ordem” são apresentadas como entidades separadas, fica claro que há outra ordem a ser garantida além da ordem legal. E que ordem seria essa? Quem a definiria, quem identificaria uma “desordem” que não se confunde com a ilegalidade mas, ainda assim, precisa ser debelada?

Temer apelou para a GLO em descompasso com a legislação que a regula (a Lei Complementar nº 97/99 e o Decreto nº 3.897/2001, ambos do período Fernando Henrique Cardoso), tanto por não ter obtido a anuência prévia do Governo do Distrito Federal quanto por não haver esgotado o recurso às forças convencionais da segurança pública. Mas o principal é o significado político da medida. No calor de uma das manifestações mais importantes contra seu governo ilegítimo, Temer determinou a convocação do exército, em documento assinado também por um linha-dura da tropa de choque golpista (Raul Jungmann, ministro da Defesa) e um militar saudoso da ditadura ocupando cargo civil (Sergio Etchegoyen, ministro do Gabinete de Segurança Institucional), impondo um verdadeiro estado de sítio na capital da República por nada menos do que sete dias.

O recado é claro: o regime que emergiu do golpe não hesitará em usar a força contra os cidadãos que nunca o elegeram. É um movimento de graves consequências, mas que não chega a ser inesperado. Carente de legitimidade popular, incapaz de sustentar a si mesmo ou suas propostas no debate público, o governo já vinha numa escalada repressiva, invadindo e espionando movimentos sociais, batendo em manifestantes, intimidando funcionários públicos, tentando silenciar vozes dissonantes em jornais, blogs, escolas e universidades.

​A repressão é a outra face do retrocesso nos direitos. O programa do governo Temer não tem como ser implantado na democracia. Não resiste à expressão da vontade popular pelo voto – e por isso os golpistas temem tanto as eleições diretas – e também claudica se a cidadania se expressa nas ruas. É exatamente por isso que o momento é de resistir, recusar a intimidação e de ocupar as ruas, de Norte a Sul, lutando pelos direitos e pela democracia.” – por Luis Felipe Miguel em Jornal GGN

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Michel Temer tirou o ditadorzinho do armário e escancara cada vez mais sua face de tirano. O ilegítimo e inelegível golpista, há um ano travestido de presidento, caracterizou os protestos de hoje (24 de Maio) em Brasília como “baderna”. Decretou Estado de Exceção: já está publicado no Diário Oficial da União a autorização para que as forças armadas defendam as ruas da capital federal por uma semana, em defesa da “lei e da ordem”.

O “golpe sem tanques” está cada vez mais degringolando em golpe com tanques, tropas e bombas tóxicas de calar cidadania. A barbárie institucional é completa, o caos político é dos mais intensos deste a re-democratização (aquele pseudo-enterro da ditadura que deu-se de forma tão lenta, gradual e de baixa intensidade que até agora não conseguiu acontecer a contento… vide o dia de hoje!).

A popularidade deste (des)governo ameaça cair para abaixo de zero. A bandeira das Diretas Já está sendo tratada como assunto para ser calado pela truculência militar. O abismo golpista vai se desvelando como um buraco sem fundo – os crápulas conseguem sempre ampliar o seu grau de baixeza, de jogo sujo, de apego ganancioso a um poder que conquistaram pela fraude.

O usurpador agora apega-se ao seu posto com tudo o que tem – soldados e tanques, agentes contemporâneos da Arendtiana “banalidade do mal”. Triste que tantos soldados se prestem a obedecer um governo tão imprestável, que merecia das tropas apenas o abandono, a desobediência civil, a recusa em defendê-lo.

Talvez Temer chama a ajuda dos militares pois teme que, ao renunciar, possa sair direto da Presidência para o Presídio. Comprar o silêncio do gangster Eduardo Cunha, na prisão, é afinal um crime gravíssimo de obstrução da Justiça, infinitas vezes mais grave que qualquer “pedalada fiscal”…

A pressa foi tamanha para decretar esta truculência institucionalizada e este Estado de Exceção gerido por golpistas com medo da prisão que a data do documento saiu “24 de Dezembro de 2017”. Longe de manifestar a “força” e o “poderio” do regime Temer, a medida explicita que estes são os últimos estertores de Michel e sua gangue, cuja legitimidade atingiu graus tão minúsculos que só lhe resta o apelo à força bruta para defender o indefensável.

Seguimos em frente, Brasil, rumo ao fundo de um abismo sem fundo…

A Casa de Vidro

ATUALIZAÇÃO – 25-05 – Revogado o decreto; Temer, que volta atrás mais que bumerangue, parece ter usado seu poder de intimidação, bradando descontrolado que iria embrutecer ainda mais a repressão; agora volta atrás do chilique e finge-se de defensor do patrimônio público – ainda que a PEC do Fim do Mundo, do Estado Mínimo, da Precarização Máxima, tenha sido aprovada sob sua tutela…

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Temer cometeu crime de responsabilidade ao acionar Exército contra protesto, apontam juristas – “Medida autoritária, inconstitucional e ilegal. Uma afronta às liberdades públicas, claro crime de responsabilidade”. Assim definiu a coordenadora do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas Eloísa Machado sobre o decreto de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) acionado por Michel Temer para repressão do protesto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. – Justificando

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“O usurpador balança e se vê na ponta da prancha do navio pirata que pensava comandar. Cobra lealdade de seus colegas saqueadores e usurpadores e tem dificuldade em manter ao seu lado até mesmo o papagaio que vivia pousado em seu ombro. A luta intestina entre os segmentos que levaram a cabo a interrupção do mandato presidencial eleito em 2014 chega ao ponto de fritura e ameaça a estabilidade necessária para implementar as reformas contra os trabalhadores.

(…) Diante da decisão momentânea do usurpador não renunciar, outro problema se coloca. Um processo de impedimento se alastraria por um tempo considerável (a presidente eleita em 2014 teve o seu processo de impedimento aberto na Câmara dos Deputados em 2 de dezembro de 2015, foi afastada em 12 de maio de 2016 e cassada só em 31 de agosto de 2016). Uma eleição indireta ou direta teria que se dar com um intervalo de tempo que poderia variar de 90 dias até algo próximo de 150 dias. Nos parece muito tempo para um vácuo de poder na temperatura de crise política atual.

Tudo indica que se gesta uma alternativa que responda a essa variante, o tempo. No entanto, ao lado disso se apresenta o fato que a alternativa que resolva esse vetor inviabilize outro vetor essencial: a legitimidade necessária para enfrentar a instabilidade. Neste ponto, as coisas se complicam, porque todas as alternativas são problemáticas para os setores dominantes em disputa.

O presidente da Câmara, que assumiria para convocar as eleições, está envolvido na mesma denúncia que atingiu o usurpador. E pior: o Congresso que elegeria o presidente interino, em sua maioria, também está chafurdado na mesma lama que emporcalha os dois primeiros. Afastar um presidente por um crime de corrupção passiva (entre outros) e dar aos políticos envolvidos no mesmo crime o direito de nomear um sucessor é, para dizer o mínimo, complicado.

O teor da denúncia atinge 1829 candidatos e 28 partidos – dos 32 partidos registrados no TSE em 2014, somente quatro não estão envolvidos: o PCB, PSOL, PSTU e PCO. Isso significa que, dos 28 partidos com representação no Congresso, 27 estão envolvidos. Em um pais sério, as eleições de 2014 deveriam ser anuladas e os atos tomados pelos governantes e parlamentares desde então considerados nulos. Como, então, atribuir a esse Congresso o direito de indicar um sucessor para o usurpador?

Ainda que não questione a legitimidade de quem clama pela antecipação das eleições, existe um problema de fundo ignorado. Todas as distorções presentes no pleito passado estão inalteradas e, em certo sentido, agravadas pela mini reforma política imposta. Desde o financiamento privado de campanha, passando pelo poder dos meios de comunicação e a ingerência dos grandes interesses econômicos, até as máquinas partidárias e o uso do poder público (municipal, estadual e federal).

Do ponto de vista das classes dominantes, a antecipação abriria um cenário de agravamento da instabilidade – ainda que, no médio prazo, esse poderia ser o caminho para legitimar as medidas que agora se impõem com as ditas reformas. Para as classes dominantes e seus aparelhos (entre eles a Rede Globo), o central é garantir as reformas, nem que para isso seja preciso rifar o usurpador que eles tanto apoiaram.

Desta maneira, não me parece que as classes dominantes estejam, pelo menos agora, em um beco sem saída. Há pelo menos duas saídas para o atual beco…

O paradoxo, para a esquerda, consiste no seguinte problema. Os trabalhadores só têm um único caminho: a resistência contra as reformas. E o campo para isso, como se demonstrou no dia 28 de abril, é a Greve Geral e a luta nas ruas. Entretanto, ainda que valorosa e necessária, a ação de resistência pode contribuir com duas estratégias que em última instância são contrárias aos interesses dos trabalhadores: de um lado, favorecer a insolvência do governo usurpador (o que é muito bom) e propiciar a saída por cima promovida pela ordem (o que é muito ruim); por outro, criar as condições para, antecipando ou não as eleições, viabilizar a alternativa de Lula, que aponta para a tentativa de remendar o pacto social que um dia promoveu (o que não é nada bom).

Nossa alternativa deve ser criar as condições para barrar as reformas, seja por qual meio venham a se impor. Nosso dever é afirmar que a presente crise não clama por mais democracia representativa, mas indica seu mais evidente limite, o que exige urgentemente uma nova forma política. Existe uma terceira alternativa que se inscreve na medida em que a crise política se converte em crise do Estado. Mas quem a apresentou, interessantemente, a colocava como um perigo terrível a ser evitado. Sim, é aquela apresentada por Montesquieu em 1748: cada um querer ser igual ao que escolheu e comandá-lo; deliberar em lugar do Senado, executar em lugar dos governos e despojar todos os juízes. Enfim, governar a si mesmo. Chamamos isso de Poder Popular. O Barão pira… existem outros que se inquietam.” – Mauro Iasi no Blog da Boitempo

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“Melhor e Mais Justo”- Pra Onde Vai o Brasil?
Rede TVT recebe Vladimir Safatle

JORNAL TVT – 24/5/17

DOCUMENTÁRIO INDEPENDENTE – A CASA DE VIDRO:
NÃO TEMOS TEMPO A TEMER
Filmagem e narração: Renato Costa; Montagem: Eduardo Carli.