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A pandemia deixa lições claras: “o novo coronavírus se alastrou pelo mundo graças à ação destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza”, como afirmou o pesquisador Allan Carlos Pscheidt ao Brasil de Fato[1]. Um grande aprendizado da ecologia pode ser absorvido pelos indivíduos que vivem e refletem durante a quarentena do COVID-19. Somos apenas mais uma espécie no planeta Terra. Nossa soberba e irrefletida sanha de dominar os mais distantes quinhões da Terra com um modelo homogeneizado de relação ser humano-natureza colheu mais uma pandemia.
Imagine que delícia para um vírus aprender a se alimentar e aprender a viver no e do corpo humano. Pra quê se contentar de viver de/em morcegos, pangolins, cobras? O sonho de um vírus com pretensões “reais” é ser coroado como o desbravador de corpos humanos.
O reino microscópico ficou em alvoroço com mais essa conquista da evolução. A dinâmica da evolução microscópica é acelerada, a variabilidade genética boia no meio biótico. Crie a condição de um vírus conviver entre seus parentes que eles trocarão informações. Surgirá o suprassumo da seleção natural.
Um vírus com potencial pandêmico é aquele que balanceia transmissibilidade com letalidade. Se pesa demais na letalidade, seu hospedeiro padece rápido demais para se propagar. Se é pouco transmissível dá tempo para ser isolado e erradicado (saiba mais na Netflix: Explicando… Coronavírus[2]).
Para completar a performance desse novo jogador da evolução biológica, além de transmissível por vias aéreas, ele permanece de poucas horas no alumínio até 5 dias no plástico, e é possivelmente transmissível por via fecal-oral[3]. SARS-COV-2 disputa o páreo com Influenza e joga com ferramental qualificado.
Esse vírus é também sorrateiro, pode ficar até 14 dias para manifestar sintomas mais agudos, ou pode simplesmente não manifestar, usando pessoas como pontes para chegar em redes e perfis específicos, como exposto por Átila Iamarino [4]:
Na perspectiva de um parasita, a super população humana dá “água na boca”. É a mesma lógica das “pragas” que atacam uma monocultura. Monoculturas de soja dão água na boca da mosca-branca [5]. Se tivéssemos uma alfabetização ecológica [6] não ficaríamos assustados com a COVID-19.
O que assusta de fato é achar que o único caminho é fazer ambientes estéreis, itens descartáveis [7], manter as metrópoles superpopulosas e poluídas, sem saneamento, até que se encontre uma vacina para que possamos voltar à normalidade. O problema é a antiga normalidade!
Agora o Sars-CoV-2, covid-19 ou coronavírus – nomes dados ao vírus responsável pela pandemia em curso – parece apontar uma nova data para a mudança do século. Isso porque, segundo numerosos analistas, estaríamos diante de um evento que mudará a dinâmica do mundo contemporâneo. O nascimento do novo século – mais simbólico que cronológico – pressupõe mudanças culturais, sociais, econômicas e tecnológicas que reorganizarão os modos de vida e, sobretudo, as políticas de controle das populações (o que Michel Foucault chamou de biopolítica), bem como as políticas de controle das mentes (que Byung-Chul Han chama de psicopolítica), e que visam à otimização da produtividade por meio da autoexploração: cada indivíduo torna-se sua própria empresa, cujo sucesso ou fracasso só depende de si. [9]
A sociedade global precisou de duas décadas do novo século para cair na real da crise ecológica?
O retorno à antiga normalidade significa postergar a solução das causas das crises ecológico-sanitárias. A saúde humana é um estado complexo condicionado pelos determinantes sociais da saúde, que inclui uma relação dialética entre saúde humana e saúde ambiental. Ninguém se mantém muito tempo saudável em um ambiente doente.
Quando seu corpo demonstra padecer com sintomas de uma doença, o sábio altera hábitos, práticas e alimentações para auxiliar o sistema imunológico para superar a doença. Quando uma reação alérgica desponta, o sábio limpa o ambiente e se afasta do elemento alérgico.
As mudanças climáticas sozinhas não conseguiram despertar as massas para uma mudança de paradigmas de produção e consumo global. Perdemos a comunicação com as estações, com a dinâmica das águas, com os signos sutis do clima. Será que uma pandemia conseguirá?
Dizem que o peso de todas as formigas do mundo ultrapassa a massa de todos os seres humanos[10]. Porque a crise ecológica não foi desencadeada pelas formigas? Porque elas estão fazendo sua função ecológica. Nós, seres humanos, estamos fazendo nossa função? Estamos em contato com os sinais da natureza? Estamos buscando aprender essa linda enciclopédia ou estamos exterminando-a da forma como exterminamos culturas inteiras?
[3] Uma pequena porcentagem de indivíduos com coronavirus teve SARS-COV 2 identificados em seus tratos gastrointestinais: https://www.rivm.nl/node/153991?fbclid
“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.” ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]
CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes
Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.
Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).
Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa)[3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker[4].
O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.
Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.
Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].
É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.
Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.
Pintura de Arnold Boecklin
CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA
Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.
Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.
Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?
Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.
Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.
É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.
Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota. A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]
Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]
História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.
CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS
Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.
Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.
Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].
Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”
Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Críton – o filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.
O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.
CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO
Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray[14].
No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].
Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:
“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?
A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]
Alves comenta:
“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]
Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.
“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]
Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]
Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:
“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.
Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.
“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.
O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]
CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA
Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil[21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.
O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.
No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]
A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas. Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.
Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:
“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]
O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]
Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica[25].
CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE
No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]
No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.
No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.
O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].
Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?
O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus. Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.
Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica.[28]
O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.
Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.
A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.
No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]
Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.
CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO
A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.
Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).
Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.
O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992
Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.
– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]
Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte).
Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.
Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.
Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.
Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]
REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS
[1] CAMUS, Albert.Núpcias / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.
[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.
“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”
[3] PESSOA, Fernando.Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:
NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.
[4] BECKER, Ernest.A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:
[10] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ed Record, 2004. [11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual. [12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia. [13] CAMUS, A. La Peste. Folio: 1999, Pg. 191. [14] ONFRAY, Michel.A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult. [15] ALVES, Marcelo. Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas. [16] CAMUS.Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80. [17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [20] RIBEIRO, Hélder.Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90. [21] BBC News Brasil.‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus. [22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [24] CAMUS, A. La Peste. Op cit. [25] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro. [26] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”
[28] CONCHE, Marcel.Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George.História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A.O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito porImmanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A.O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.
Combinando a crítica anarquista ao Estado e ao Capital com uma perspectiva ecocêntrica vinda do veganismo, do primitivismo, da crítica à sociedade industrial ou da ecologia profunda, a filosofia eco-anarquista tem se mostrado uma fonte valiosa de reflexões e provocações para o contínuo desenvolvimento das teorias e práticas anarquistas, desafiando os paradigmas das escolas de pensamento mais tradicionais.
São consideradas como ligadas ao eco-anarquismo as seguintes tendências: o anarco-naturismo (inspirado por Thoreau, Tolstoi e Élisée Reclus), a ecologia social (que não se limita ao movimento iniciado por Bookchin), o anarcoprimitivismo (representado por John Zerzan e os autores da revista Green Anarchy) e o veganarquismo (movimento anarquista e vegano).
O anarcoprimitivismo e o veganarquismo se destacam em tempos de pandemia pela crítica que já faziam há muito tempo à sociedade de massas e à domesticação de animais como fatores da produção de pandemias e novas doenças. (Janos Biro)
CONHEÇA OS DEBATEDORES:
PEDRO TABIO é urbanista, bioconstrutor, agricultor, inpermacultor libertário, eco-anarquista e editor na Monstro dos Mares.
JANOS BIRO é formado em filosofia pela UFG e membro do coletivo eco-anarquista Contra a civilização (contraciv.noblogs.org). Criador do site Contrafatual (contrafatual.com).
RENATO COSTA é chef vegano e estudante de jornalismo na UFG.
EDUARDO CARLI é jornalista, filósofo, mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, professor do IFG, fundador d’A Casa de Vidro, onde atua como agitador cultural.
I) E O LOCKDOWN, ANARQUISTAS?Se observarmos as crises econômicas e políticas, os alertas climáticos, e agora a crise epidemiológica, muito do que um suposto alarmismo radical anunciava vem se concretizando. Hoje os bolsonaristas acusam a pauta do isolamento de alarmismo. Entretanto subjaz o problema da condução das medidas de isolamento por parte do Estado, amparado pelas recomendações dos organismos internacionais de saúde. Na visão de vocês, a possibilidade de isolamento total, obrigatório, conhecido como lockdown, contraria o princípio libertário defendido pelo anarquismo? O fator de controle sanitário, e consequentemente, a necessidade compulsória de isolamento legitimado pela ciência, em “defesa de vida”, contrariam as liberdades individuais e os princípios da auto-gestão coletiva? Quero dizer, o lockdown atenta, por princípio, contra a organização autônoma das comunidades? Ou seria manipulável apenas em caso de qualquer tipo de autoritarismo se valer da pandemia como álibi da repressão, no oportunismo da condução da crise em favor do Estado e do Capital?
II) TECNOFOBIA vs TECNOFILIA
Os ativistas eco-anarquistas, no que diz respeito às táticas de enfrentamento das forças sociais que causam as catástrofes ecológicas, aceitam de bom grado o uso das tecnologias digitais e das mídias sociais como ferramentas de mobilização? Percebem pautas em comum com movimentos como o Software Livre e certas vertentes do circuito hacker? Ou vocês consideram que a anarquia verde aproxima-se mais do anarco-primitivismo, da recusa diante de um cenário cibernético dominado por empresas como Facebook, Google, Apple etc.? Digo isso pois uma publicação do Comitê Invisível,Foda-se o Google (faccaoficticia.noblog.org), coloca em foco a diferença entre movimentos caracterizados por tecnofilia ou por tecnofobia, arriscando também a seguinte caracterização:
“O grosso dos marxistas e pós-marxistas juntam à sua propensão atávica para a hegemonia um certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto uma boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, acantonando-se geralmente em posições hostis à ‘técnica’. Cada tendência dispõe até da sua caricatura: aos partidários negristas do ciborgue, da revolução eletrônica pela multidão conectada, respondem os anti-industriais que fizeram da crítica do progresso e do ‘desastre da civilização tecnicista’ um gênero literário bem rentável, feitas as contas, e uma ideologia de nicho onde nos mantemos quentes e aconchegados, à falta de entrever uma qualquer possibilidade revolucionária. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como a técnica existe.” (Cap. 4)
Fragmento do livro Aos Nossos Amigos do Comitê Invisível que trata da expansão tecnológica e política sobre as formas de governo e controle social. “Uma empresa que mapeia todo o planeta, enviando equipes para fotografar cada rua de cada cidade não pode ter interesses apenas comerciais. Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo. ‘Don ́t be evil’”.
1. Não existem “Revoluções de Facebook” mas uma nova “Ciência de Governo”, a Cibernética. 2. Guerra a tudo que for Smart! 3. Miséria cibernética. 4. Técnicas contra tecnologia.
III) INTEGRAÇÃO COMUNITÁRIA EM TEMPOS DE CONSUMISMO PREDATÓRIO
Considerando mais especificamente o sujeito político contemporâneo, em relação com a coletividade massificada pelas formas de consumo predatórias, estimuladas em grande parte pela hegemonia neoliberal do culto ao mercado, quais seriam as dinâmicas entre o papel do indivíduo e sua integração comunitária para fixarmos uma agenda de transformações ambientais e sócio históricas, desejáveis no futuro próximo? Mais especificamente ainda, de acordo com os aspectos sociais da atual crise do Coronavírus, interpretados pelo crítica eco-anarquista ao capitalismo em geral, quais as estratégias eco-anarquistas que permitiriam a cada um e cada uma de nós influir numa conjuntura de luta contra as opressões coletivas e a degradação ambiental? Ou seja, minha pergunta vai no sentido de buscar saber como equacionar indivíduo e sociedade, do ponto de vista da filosofia anarquista, no contexto da crise ecológica e sanitária!
IV) A BADERNA ORGANIZADA?
A coleção de livros Baderna, originalmente publicada pela ed. Conrad, depois relançada pela Veneta, trouxe ao público brasileiro a oportunidade de conhecer mais sobre grupos anarquistas e similares, como Luther Blissett, organizados mundo afora, além de propiciar contato com pensadores como Hakim Bey e Raoul Vaneigem. Qual seria, para vocês, a importância de organizações coletivas de ativistas eco-anarquistas? Quais os exemplos destas que vocês poderiam citar? O que pensam sobre certas experiências no mundo atual, citadas por Camila Jourdan e Acácio Augusto, de regiões “liberadas” onde princípios anarquistas estão presentes na prática? Os autores se referem sobretudo “À experiência zapatista no México, cujos territórios autônomos se organizam de maneira federalista libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederalismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritariamente curdo que derrotou o Daesh (Estado Islâmico) e hoje está sob ameaça militar do Estado turco.” (pg. 9)
V) CARNISMO INFECCIOSO – UMA OUTRA ALIMENTAÇÃO ANARCOVEGANA É POSSÍVEL? Em relatório da OMS, Ben Embarek, especialista em segurança alimentar, atesta-se que o novo coronavírus veio do morcego, provavelmente mediado por um outro animal “criado para fornecer alimento”. Além disso, confirmou o que Manuais Epidemiológicos chineses já atestavam: a doença pode circular entre gatos, furões e cachorros. Estes fatos colocam em destaque o risco sanitário envolvido no consumo de carne e no morticínio de animais. O Vegan-arquismo vem denunciando há muito o abandono e a domesticação dos animais – uma sendo condicionante da outra. Pergunto: como vocês trata dessas urgências éticas e ecológicas, a exemplo da necessidade de se adotar uma dieta vegetariana, ou de se representar o veganismo como orientação ao consumo, e também como filosofia em si? Como vocês vêem o papel do veganismo na crise ecológica e na crise sanitária?
VI)A ABOLIÇÃO DO ESTADO: AINDA É O CENTRO DA PROPOSTA ANARCO?
Em Marx Selvagem, Jean Tible busca um “diálogo entre as concepções marxiana de abolição do Estado” com a noção de Pierre Clastres de uma “sociedade contra o Estado”. Sabemos que Marx polemizou com grandes anarquistas de sua época – Bakunin, Proudhon e Max Stirner – a respeito do processo de abolição do estado, visto como fim tanto pelo anarquismo quanto pelo comunismo. A diferença essencial estaria na reivindicação anarquista de extinção súbita do Estado em contraste com um processo mais gradual no âmbito do marxismo que prevê uma transição – a ditadura do proletariado servindo-se do Estado como “instituição transitória, da qual nos servimos na luta durante a revolução para reprimir à força os adversários” (ENGELS, citado por Tible, pg. 192). Para Lênin, o Estado burguês é sucedido pelo Estado proletário no pós-revolução de modo a “reprimir a resistência dos exploradores” (ou seja, combater a reação contra-revolucionária) mas também para “dirigir a grande massa da população na efetivação da economia socialista” (Lenin, 1918, citado por Tible, p. 194). Como compreendem os eco-anarquistas esta questão? É preciso abolir o Estado imediatamente ou gradualmente? De que modo a preocupação com as questões ambientais, ecológicas, de sustentabilidade, justifica práticas e movimentos que visam esmagar o Estado? E como ficam os Mercados e Corporações nesta luta, considerando-se que os Estados neoliberais atuais são basicamente lacaios das mega-empresas e seus financiadores, seus banqueiros, a classe rentista?
“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”
Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:
“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”
Já João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:
“Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”
José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:
“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)
Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate), A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!
“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.
Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;
Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;
Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;
Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;
Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;
Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;
Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;
Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;
Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;
Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;
Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;
Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;
Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;
Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;
Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;
Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”
“O Inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.” WILLIAM SHAKESPEARE, A Tempestade
Os “suicidadãos” e “patriotários” [1] que lambem as botas da familícia Bolsonaro são uma lástima tão nefasta para as populações que habitam este território chamado Brasil quanto a pandemia do coronavírus. São desastres que se somam.
Millôr Fernandes dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha. No Brasil, é o primeiro” [2]. Hoje em dia, muitos Bolsominions consideram-se patriotas mas seguem cegamente a um Coiso que faz continência para a bandeira dos U.S.A., parece uma cheerleader de Donald Trump e fala “e daí?” para 5.000 brasileiros mortos pela doença que ele poderia ter agido no sentido de combater, minimizando seus impactos. Preferiu, como de praxe, ser o disseminador de fake news, desinformação, ódio cego, fanatismo anti-científico: Bolsonaro, parceiraço da foice da Morte que hoje nos ceifa, impiedosa.
Qualquer chefe de Estado digno de seu cargo trataria de cuidar, com todas as suas forças, de evitar vidas perdidas. Só que não: ao invés do cuidado com a saúde do povo, Jair decidiu ser aliado do vírus e do extermínio. De suas mãos e de sua boca pinga um profuso sangue – e muitos de seus seguidores-zumbi bebem este sangue como se fosse vinho. E tornam-se ainda mais raivosos e sanguinários. Urram em prol de um “novo-AI5”, querem o fechamento do Congresso Nacional e do STF, como se o Grande Líder deles já não tivesse poderes o suficiente e precisasse se tornar um autocrata, um tsar, um ditador, com plenos poderes para mandar, desmandar e abusar.
Quando aglomeram-se em grandes rebanhos para gozar do prazer duvidoso de estar nas proximidades de seu “Mito”, estes suicidadãos não estão apenas colocando suas saúdes e vidas em risco – estão atentando contra todos nós ao se tornarem possíveis vetores de transmissão da covid19. A estupidez deles é um flagelo coletivo que só agrava os impactos já gravíssimos daquele “resfriadinho”, desdenhado pelo presifake, que já matou 250.000 vidas humanas. Ao sabotar as medidas de isolamento social, ao desdenhar da profilaxia coletiva que intenta salvar nosso sistema de saúde do colapso, Bolsonaro e seus minions agem como Bestas do Apocalipse.
Só nos EUA, a “gripezinha” já ocasionou mais óbitos do que o número total de soldados estadunidenses que tombaram sem vida durante os 20 anos de invasão imperial do Vietnã (como mostrou a reportagem do The Intercept Brasil) [3]. Ciente disso, seu Jair continua atuando como um atentado ambulante à saúde coletiva, pisoteando as recomendações da OMS, sendo criminosamente irresponsável feito um serial killler, tuo isso diante de instituições acovardadas e de uma população impedida de insurreição pela falta de condições sanitárias para ações de massa.
O empoderamento dos idiotas tornou-se no Brasil algo mais do que um farto manancial para os humoristas fazerem graça com nossa tragicomédia sem fim: a imbecilização viral, de que o Bolsonarismo é o mais grave dos sintomas, é hoje uma maré mortífera que espalha os poderes de Tânatos em um país que atravessa uma hecatombe anunciada.
Diante de uma pilha com mais de 10.000 cadáveres evitáveis, ainda havia no início de Maio de 2020 – pasmem, historiadores do futuro! – quem ainda se aglomerasse diante do pseudo-Messias. Não foram ensinados a desconfiar, com senso crítico vigilante, de energúmenos cheios de ganância e ambição que usam de demagogia barata para tratar seres humanos como gado-de-manobra: o Capetão adora citar a Bíblia, e tem quem engula esta instrumentalização do “sagrado” para fins demagógicos sem nem suspeitar que o Diabo, se existisse, saberia citar as Escrituras.
Diante do estarrecimento que esta patologia social do Bolsonarismo traz àqueles brasileiros que conservaram a lucidez, o senso crítico e o amor à liberdade, resta-nos recusar o inadmissível – e seguir na revolta que pudermos diante desta avalanche de absurdos.
No futuro, os historiadores honestos desta época, olhando para trás a partir de um prisma mais distanciado, quando o homem Jair não passar de ossos enterrados em um túmulo que precisará de soldados o defendendo para que não seja pixado, depredado e profanado, estes historiadores talvez escrevam sobre nosso presente-tornado-passado como uma época passageira de transe lunático que felizmente passou e foi superada. Como diz Frei Betto, tenhamos este fiapo de otimismo e “deixemos o pessimismo para dias melhores”.
Bolsonaro, em alguns anos estará morto e decomposto – e será difícil encontrar algum Minion que o defenda quando os tribunais penais o classificarem como um criminoso do naipe de Pinochet ou Himmler.
Mas que nunca nos esqueçamos! Em meio à pandemia, o Brasil ainda era a terra do apartheid, o último refúgio do escravismo, a última nação a abolir oficialmente o tráfico de seres humanos, o país dos mais de 60.000 homicídios anuais, o líder global na violência homofóbica, o local onde mais são assassinados ativistas ambientais e dos direitos humanos, o distópico lócus de um aprisionamento em massa e de uma Guerra às Drogas conexos à persistência do racismo estrutural e do terrorismo de Estado. Etc. etc. etc. pois não quero saturar o leitor com nossa montanha de horrores. E diante de tudo isso haviam muitos dentre nós, brasileiros, que se sentiam representados e empoderados pelo Seu Jair, com todo aquele anacrônico e abominável racismo, machismo e elitismo vomitado constantemente por sua boca-de-esgoto, faminta por hecatombes, fanática por ditadura, adoradora sádica da tortura.
Ele pode ser rico e famoso, mas Bolsonaro é um ser humano profundamente fracassado, incapaz de aprendizado, estagnado numa cultura do ódio, fóssil vivo de uma mentalidade retrógrada e assassina. Apesar dos poderes que usurpou, representa o fracasso da humanidade, o triunfo de nossas piores perversidades, o egoísmo mais mesquinho e mais vil, a incapacidade de amar a diversidade e de respeitar o humano em todas as suas formas. Ele representa o ser humano decaído a um estado cada vez mais bestial, apesar das máscaras que veste de cidadão-de-bem e homem-de-família, pois monstruosamente prega a seus seguidores-ovelha o extermínio de indígenas, quilombolas, petistas, ribeirinhos, comunistas, afrobrasileiros, idosos… O negócio do Bolsonarismo é o extermínio lucrativo. Eles são o capitalismo exacerbado, em estado de necrose.
O problema não está somente no indivíduo Jair Bolsonaro, um ser humano nojento e desprezível, campeão do desrespeito, nota zero em ética, que em 30 anos de vida como político nunca fez nada que prestasse em prol do bem comum. O problema está nas ovelhas raivosas que seguem este pseudo-Messias, que o consideram um “cidadão-de-bem” mesmo quando ele ensina crianças de colo a fazerem arminhas. Diante disso, o silêncio seria cumplicidade com a barbárie. Precisamos falar como se isto fizesse diferença, como se nossas palavras pudessem acordar nossos concidadãos infectados pelo Bolsonavírus, como se fosse possível a disseminação da luz da lucidez a partir do fogo aceso de milhares de críticas que se fazem unânimes na recusa, ainda que polifônicas nas propostas de alternativas e horizontes.
[1] Neologismos criados pelo poeta e tradutor José Paulo Paes, presentes em poema do livro “Poesia Completa” (Cia das Letras). Saiba mais: https://wp.me/pNVMz-4P.
[2] Millôr Fernandes citado por Xico Sá no artigo da Folha De São Paulo, “O patriotismo como refúgio dos canalhas”.
A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) realizou no Sábado (02/05/2020), às 15h, o webdebate “Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus”. Nossas convidadas foram Beatriz de Paula Souza e Francine Rebelo. Mediação: Eduardo Carli de Moraes. Assista à live no canal do Youtube d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura ou pelo site www.acasadevidro.com. Conheça as debatedoras:
FRANCINE REBELO é Cientista Social e Antropóloga, atualmente doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora, militante por uma educação gratuita e de qualidade, feminista e mãe do Raul.
BEATRIZ DE PAULA SOUZA é Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, onde coordena o Serviço de Orientação à Queixa Escolar, do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE. Organizadora das coletâneas “Orientação à Queixa Escolar, Medicalização de Crianças e Adolescentes” e autora do livro “Histórias de Educação”, além de artigos e capítulos de livros de Psicologia na interface com a Educação. Uma das fundadoras do GIQE (Grupo Interintitucional Queixa Escolar: https://www.queixaescolargiqe.com/) e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, associada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE.
EDUARDO CARLI DE MORAES é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.
1) Quais seriam os principais efeitos do confinamento sobre a psiquê humana? E, em específico, o que significa para as crianças estarem confinadas no espaço doméstico, sem escola nem parquinho? Livros como “Desemparedamento da Infância” e sites como criançaenatureza.org apontam a importância, para o desenvolvimento são das crianças, dos espaços abertos, das brincadeiras na natureza, da exploração do território mais amplo etc. Em suma: na perspectiva da psicologia e da antropologia, quão importantes são o movimento e a ação no aprendizado vital infantil? Que autores vcs conhecem que refletiram sobre isso? (Winnicott? Pediatras da S.B.P.?)
2) Sofrer é inerente à vida e oportunidade de aprendizado. Porem vivemos um período onde o adoecimento psíquico e tende a aumentar a busca por amparo e tratamento, com a ascensão de condições de transtorno de ansiedade, depressão, tendências suicidas, melancolia vinculada à falta de sentido da vida etc. Ao mesmo tempo, vivemos em uma época altamente farmacológica – desnudada por autores como Paul Beatriz Preciado (Testo Junkie) ou RobertWhitaker (Anatomia de Uma Epidemia).
Diante do sofrimento psíquico, tendemos a apelar para os remédios psicotrópicos. O que vcs pensam disso? É aceitável, no contexto, o uso massivo e o incremento na comercialização de soníferos, ansiolíticos, antidepressivos? Ou vcs ainda preferem e recomendar psicoterapias como a Psicanálise (cura pela fala), Logoterapia (proposta por Viktor Frankl), Gestalt, Cognitiva-Comportamental, Corporal (Wilhelm Reichiana), meditação e yoga etc.?
3) Outra complicação que o isolamento social imposto pela pandemia traz, como apontam muitos pesquisadores e já foi relatado em várias reportagens, é a dificuldade nas convivências familiares – os índices de violência doméstica, sobretudo feminicídios, estupros, episódios de homofobia, filhos maltratados por agressões de parentes. A jornalista Eliane Brum recentemente pesquisou e escreveu sobre suicídios juvenis em alta na cidade mais violenta do país, Altamira (Pará). Francine, como estudiosa da obra de pensadoras como Silvia Federici, o que você pensa sobre a condição feminina, o trabalho não remunerado, a opressão de gênero e a masculinidade tóxica neste contexto? Precisamos de feminismo, interseccionalidade e descolonização em tempos pandêmicos?
4) O contexto pandêmico implicou a suspensão das atividades escolares: isto faz com que os pais valorizem mais o trabalho de educadores que cuidam, instruem e favorecem o desenvolvimento psíquico e cognitivo de seus filhos? Como vocês prevêem que será a volta às aulas? Beatriz leu em vídeo prévio um texto interessante que reivindica para as crianças o direito a “uma semana de anarquia”, em que pudessem correr, pular, dançar, cantar, rolar na grama, sem que os educadores impunham “conteúdos” para “correr atrás do prejuízo”. O que vcs recomendariam aos educadores para que possam lidar com as crianças que estão saindo do período de isolamento? Que traumas e confusões crianças e adolescentes podem trazer para o contexto de volta às aulas que não existiam antes da interrupção pandêmica das atividades escolares?
5) Em belo seriado televisivo recente, “Kidding” (estrelado por Jim Carrey), surge uma questão pertinente: o protagonista é um âncora de TV que tem uma alta audiência com seu programa infantil de marionetes (puppet time), porém sofre um trauma familiar severo: seu filho criança morre em um acidente de trânsito. Boa parte da série lida com os traumas desta família dilacerada pela perda, mas também pelo dilema: como é possível conversar sinceramente com as crianças sobre aspectos da condição humana como a morte, a doença, o luto, a perda de alguém amado que não retornará? Como os mais velhos podem dialogar com as crianças e jovens no sentido de dizer a verdade sobre isto, e o quanto devem omitir ou “dourar a pílula” com a intenção de proteger o outro do sofrimento excessivo?
6) Por fim, gostaria de saber como vocês reagem a uma frase de um místico indiano chamado Krishnamurti: ele diz que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente.” Também no mesmo espírito: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, diz Nise da Silveira. Neste sentido, como diz Ailton Krenak, não devemos desejar um “retorno à normalidade”, pois ela era o problema, estar conformado àquilo era um modo de estar neurótico. Diante disso, vocês acham que precisamos aprender sobre saúde mental com outros povos e outras culturas, com indígenas, quilombolas, ribeirinhos? Com os orientais, os budistas, os taoístas, os yoguis? É verdade que nossa sanidade psíquica e nossas convivências familiares serão melhores quanto mais formos inconformados diante da sociedade atual, quanto mais estivermos mais mal-adaptados a esta sociedade adoecida?
Primeiro, choca a indiferença pelas milhares de pessoas que estão de luto, chorando pelos familiares e amigos perdidos, e que o presifake não sabe nem mesmo consolar com um gesto de gentileza e de compaixão protocolares: não tem “meus pêsames, lamento muito por sua perda”, não tem “que o tempo possa ajudar a curar a terrível ferida de perder um ente amado”, não! Seu Jair cospe na cara dos enlutados e das lágrimas convulsivas que agora derrubam com este “e daí?”, expressão que usamos para o que é ínfimo e insignificante.
Ademais, o que poderia ser uma admissão de impotência e vulnerabilidade, “não posso fazer milagre”, contrasta com a extrema arrogância de quem tem agido como se pudesse tudo e como se nada pudesse para-lo: os gregos chamavam isso de hybris, a desmedida, e sabiam que os exageros e overdoses comportamentais sempre recebiam da Nêmesis cósmica sua trágica vingança. O Coiso não pode fazer milagre, é fato, mas arriga-se o direito de sabotar todas as medidas de isolamento social, desrespeitar diretrizes da OMS e ir apertar as mãos de seus apoiadores que urram por um novo AI-5.
Já sabemos que não é milagreiro, mas arroga-se o direito de voltar dos EUA numa comitiva com mais de 20 pessoas infectadas pelo coronavírus e decreta sigilo e esconder o resultado de seu próprio exame, enquanto continua tossindo como um condenado nas aglomerações que causa.
Nenhum milagre ele já realizou em toda sua medíocre vidinha, mas arrogou-se o direito de demitir o Ministro da Saúde em meio à pandemia pois preferia alguém que fosse mais seu capacho, manifestando seu ímpeto de estar rodeado por pessoas que sejam mais subservientes a seus ímpetos de ditador e autocrata.
Jairzinho que não é milagreiro arroga-se o direito de promover deliberadamente uma política de subnotificações de casos e óbitos da doença, ocultando a verdade sobre o número de cadáveres que a pandemia está causando no país. E também acha que pode enfiar a fórceps na PF um amiguinho da família que vá garantir impunidade aos Bolsonaros pelos crimes cometidos, seja as fake news, as fraudes eleitorais, a participação na execução de Marielle Franco, o racismo, a destruição ambiental, o destroçamento dos direitos trabalhistas etc.
Ninguém legitimamente tem o direito, já que o Estado é laico e Deus nem existe, de exigir que um governante faça milhages, mas ninguém entre os cidadãos deve suportar calado quando este governante manifesta uma abominável indiferença pelo sofrimento humano e se mostra como um psicopata empedernido que, diante de vidas perdidas e valas abertas, diz “e daí?”
Não conte com nossa amnésia, Seu Jair. Não conte com nossa covardia ou nossa cegueira voluntária. Aqui não! Todos os horrores e atrocidades que você produz, todas as frases cruéis que profere, estão sendo registradas e irão contigo para os únicos lugares onde mereces estar: na lata de lixo da História, afastado de todo e qualquer cargo público, no banco dos réus em Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.
Porque, seu Jair, ninguém te pede milagres, só que sejas humano, e nisso você tem fracassado miseravelmente, sendo um jato contínuo de desumanidades atrozes.e arrogâncias prepotentes. A gente olha para a vida de Jair e sente vergonha de um ser humano ser capaz de descer tão baixo a ponto de queimar as pontes de empatia que o poderiam conectar aos outros humanos, tornando-se esta caricatura de Calígula, este “projetinho de Hitler tropical” (Mário Magalhães), este frio e desumano sociopata. Ele pode ser rico e poderoso, mas eu nunca gostaria de estar na pele de Jair: como deve ser horrível viver dentro de um sujeito tão cruel, tão arroz, tão sectário e tão ignorante!
Ele vê a cataclismica tragédia que sua inépcia e irresponsabilidade ajudaram a causar e só sabe dar de ombros, incapaz de assumir responsabilidade, inepto para refletir mais a fundo sobre a condição humana, gélido como um monstro, observando corpos sem vida e vidas afogadas em lágrimas, e com sua boca-de-esgoto proferindo: “e daí? E daí? E daí?”
E daí que jamais aceitaremos que você nos representa e sempre nos recusaremos a esquecer os horrores que você perpetra. Não conte com nosso silêncio nem com nossa subserviência. Aqui não! Aqui não somos da turma dos que enxergam o sofrimento coletivo pelo prisma elitista e mesquinho dos “e daí?” palacianos.
Você pergunta “e daí?” com sua costumeira idiotia. E daí que você não presta nem dura. E haverá festa popular imensa quando você (e isso não tarda) não estiver mais aqui, tiranizando e desgraçando um povo sempre sedento de uma liberdade e de uma justiça e de uma verdade que você e os seus teimam em negar-nos.
Carli, A Casa de Vidro.
Goiânia, 29/04/2020
LANTERNINHA DA TESTAGEM: OUTRA VERGONHA NACIONAL
A inépcia e a irresponsabilidade do desgoverno fascista de Bolsonaro não se mostram apenas na minimização da gravidade da pandemia (segundo o führer dos imbecis, só um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta”), na subnotificação de casos e óbitos (semelhante à tática do avestruz que esconde a cabeça debaixo da terra, aderindo à crença de que o que não se vê e não se reconhece não existe), mas também no fracasso deliberado em testar a população: dos 15 países mais afetados pela covid-19, estamos disparados na vergonhosa posição de lanterninha da testagem.
E assim avançamos na semi-cegueira, sem termos a real dimensão do contágio, indo no rumo da catástrofe e da barbárie. No comando do “leme” desta nau dos insensatos está um facínora mortífero que está mais preocupado em garantir a impunidade para os crimes de corrupção e violência de sua familícia do que em cuidar da saúde coletiva. Tragédia anunciada – e esta porra de nossa indignação moral internética está se mostrando ineficaz para extrair do poder o cancro Bolsonarista.
Eis um dos maiores dilemas da nossa geração e da atual encruzilhada histórica: como se derruba um governo de extrema-direita, de práticas genocidas, que atenta contra as vidas de seu povo, quando não há condições sanitárias para manifestações de massa, ocupações de praças e prédios públicos, assembléias de rua? Vocês realmente acham que algum tirano, feito nosso “projetinho de Hitler tropical”, já caiu por força de cidadãos que estavam confinados dentro de suas casas? Vamos derrubar Bolsonaro pelo Twitter? Ou a maré insurrecional – aquilo a que estamos impedidos pela pandemia e seus perigos – ainda é a única força concreta capaz de derrubar um governo por ação do povo ao qual ele deveria servir?
ESCONDENDO OS CORPOS
O facínora fascista que ascendeu ao poder presidencial através da fraude eleitoral de 2018 “se acha capaz de esconder os corpos”, como disse Safatle em entrevista à Pública. Como esperar algo diferente deste Coiso, de caráter profundamente perverso e sádico, que é fã de carteirinha de Ustras e Médicis? Este sujeito não tem estatura ética nem para ser síndico de condomínio (aliás, no Vivendas da Barra tinham guarida junto à familícia os executores do homicídio contra Marielle Franco). Alçado à posição suprema do Executivo Federal no Brasil pós-democrático que emergiu do Golpe de 2016, o Capetão não é explicitamente um adorador da ditadura militar, aquela que ocultou tantos cadáveres de opositores políticos massacrados pela repressão? Não trata como seus “ídolos” ditadores latino-americanos, alguns já condenados por crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais, como Pinochet e Stroessner?
Vocês se lembram do que o deputado de extrema-direita, na época apenas uma aberração extremista no Congresso, membro do “baixo clero” de parlamentares aderidos os velhos tempos dos “anos-de-chumbo”, falou sobre os familiares que buscavam os restos mortais de seus parentes assassinados pela Ditadura quando esta massacrou a Guerrilha do Araguaia? “Quem procura osso é cachorro”.
Isto é Bolsonaro – e quem quer que tenha feito parte das hordas odientas, irracionalizadas por um antipetismo feroz, que apertou 17 nas urnas, tinham plenas condições de saber o que estavam fazendo. A irresponsabilidade de milhões nas urnas, somada à covardia das instituições, a exemplo do TSE que passou pano pra chapa fascista-militarista ao invés de punir por cassação seus inúmeros crimes eleitorais, trouxeram-nos a esta crise humanitária gravíssima.
Estou convicto de que a tragédia coletiva em que estamos imersos expressa, em um concentrado macabro, todo o horror em que o Brasil se atirou de cabeça quando permitiu o triunfo da Aliança Golpista que depôs Dilma Rousseff em 2016 – instalando, na sequência, a hecatombe nos investimentos públicos em Saúde e Educação representada por aquela “PEC do Fim do Mundo” ou “PEC da Morte” que aprovou-se no fim daquele ano. Muito “cidadão-de-bem” aplaudiu quando a Tropa de Choque da PM nos massacrou debaixo da repressão, em Novembro e Dezembro de 2016, em Brasília, quando protestávamos contra os descalabros impostos pelo desgoverno Temer e o Congresso golpista. Estávamos lá defendendo o SUS, a Educação Pública, os serviços públicos essenciais ao bem comum, e não éramos poucos – como testemunham os documentários “A Babilônia Vai Cair” e “Ponte Para o Abismo”, que realizei na época. Mas o cidadão-de-bem ficou com a bunda no sofá, diante da Globo, feliz pela polícia estar descendo o cacete em “vândalos” e vagabundos. Agora aguenta a pandemia de Covid-19 depois de mais de R$20 bilhões terem sido excluídos do SUS e o Mais Médicos ter sido desmontado!
Precisamos urgentemente de cidadãos com senso histórico e capacidade crítica que não sigam cegamente pseudo-mitos do necro-capitalismo. Caso contrário, esta tragédia se repetirá com as pandemias e catástrofes climáticas de que nosso futuro está repleto.
Um neomalthusianismo de ocasião se espraia [2] entre pessoas enclausuradas pelos governos liberais dos centros capitalistas, ainda que sob estado de sítio permanente elas mantém a todo custo opiniões racializadas relativas ao controle de populações migrantes. Vindos aos montes dos países emergentes, eles poderiam ser detidos através do asséptico “acesso à imunização em países pobres”. Países e regiões, estes, recentemente destituídos de suas soberanias e poder real de autodeterminação e, obviamente, de fiscalização, mais suscetíveis a “erros médicos” de grande proporção. Eles poderão render bons exemplos, aclamados por grandes corporações, que prometem vacina humanitária, rápida e vitalícia como propõe Gavi Alliance (Microsoft), em colaboração com a identidade digital globalista, a ID2020 [3], mas sem garantir deliberação democrática ou eventual responsabilização corporativa.
Tudo elaborado, imagine-se, a partir dos países centrais do capitalismo financeiro, em rápida mutação ao capitalismo de vigilância [5], que a todos submetem. Em meio a isso, a postura das autoridades governantes de extrema-direita, como o executivo brasileiro, é, tanto mais, um escárnio de vulto histórico, pela dimensão de suas consequências desastrosas e deliberadamente assassinas. Se anuncia um projeto repressivo de biopoder [6] através de um “deixar morrer à margem”, típica do liberalismo econômico e do autoritarismo polítco, com alto teor sarcástico, em que medidas diversionistas dão o tom do novo !Abajo la Inteligencia, Viva La Muerte! [7], revivido através da condução nefasta de uma crise inevitável.
Entretanto, se é preciso trabalhar com números atualizados para se dimensionar a Covid-19 como um fenômeno epidemiológico e não apenas como uma doença, isto não significa esquecer da necessidade de continuamente se realizar um trabalho de registro, processamento e interpretação de dados no longo prazo. Uma forma mais ampla e segura de se chegar a um número de mortos em decorrência da doença é garantir os registros totais e, descontados a média de mortes anuais, futuramente contrastar o número de 2020 com os dos anos anteriores e subsequentes [13].
Para tanto, seria necessário rigor censitário, critério científico para os obituários, além de segurança institucional, mobilização popular e respeito à Constituição, tantas das coisas em falta no horizonte do Brasil em tempos de corona vírus. Aliás, a quantas andam o Censo 2020? [14] Adiado para 2021! E as Eleições¿ Já saberemos! Mais urgente é sabermos qual será o futuro das políticas de estado, em seu conjunto, diante da ascensão do cesarismo bolsonarista. Uma vaga incerteza a se perpetuar sobre onde deve parar o declínio da confiança nas instituições e sobre as possibilidades de transparência das mesmas.
Enquanto nos EUA, o Senado aprova um repasse de 480 bilhões de dólares a programas econômicos de assistência [15] a pequenas e médias empresas, de socorro aos hospitais e de incentivo à produção de testes de covid-19, no Brasil, por motivos de cadastro, a crise do auxílio emergencial pode deixar 5 milhões de pessoas sem sacar os 600 reais estabelecidos, justamente, como emergenciais, pelo Congresso. Ao mesmo tempo em que Trump sinaliza se afundar no particularismo estadunidense e para a emissão de Green Card, denotando avanço da política anti migrante, apoia a xenofobia ao falar em reparação da China[16], responsabilizada pela pandemia.
Em números absolutos, os países mais afetados na América Latina são Brasil e México; em números relativos, Equador e Panamá, com três vezes mais casos que o Brasil [19], em relação proporcional ao número de habitantes. Em São Paulo, Dória lançou o chamado “planejamento de reabertura gradual” [20] nesta quarta-feira 22/04. A quarentena estado mais atingido do Brasil, iniciada em 24 de março, completará um mês nos próximos dias. O estado registra 1.037 mortes e 14 mil casos de covid-19.
Até o momento, a quarentena no Brasil contou com uma política não-restritiva [23], que apenas recomenda que se fique em casa. Apesar do baixo controle da circulação de pessoas no país e mais de 50% da população de São Paulo se movimentando diariamente [24], alguns municípios, isolados e autonomizados pelo parecer do STF que garante suas competências e responsabilidades no combate da efetivo da pandemia, policializaram a saúde pública e arbitrariamente reprimiram seus habitantes [25], sem nenhum nível de mediação jurídica ou coordenação sanitária. Caberia ao executivo federal garantir condições de suporte econômico, estabilidade política e viabilizar uma estratégia comum de controle do surto, e assim facilitar o tratamento aos infectados.
Em reunião não agenda com Nelson Teich, transcorrida na última segunda-feira [26], Bolsonaro teria levantado dados sobre a pandemia e disse que vai se posicionar sobre o isolamento social. Qualquer que seja a postura anunciada por um executivo ilegítimo, herdeiro de um golpe parlamentar que afastou uma presidenta legitimamente eleita, a leniência diante da pandemia e a notória participação do presidente em atos que atentam contra a constituição [27] – e por isso configuram graves crimes de responsabilidade – estão se configurando em uma verdadeira catástrofe política e humanitária. As perspectivas são as de uma crise entre negacionistas de toda ordem sob o mando da sobre-exposição dos trabalhadores, a mando dos patrões e a desobediência civil, eventualmente apoiada por entes federados insubordinados à condução irresponsável da crise de saúde por parte do executivo nacional.
Os governadores mais lúcidos deverão se negar a flexibilizar a quarentena antes do fim de maio, e ainda terão o dever de fecharem as fronteiras a circulação de pessoas vindas de estados alinhados à lógica da morte e ao imperativo da retomada da economia, antes da retomada da vida. Prejudicados pelo trânsito de pessoas infectadas vindas de regiões sem restrições de circulação, os prefeitos e suas bases poderão insuflar a indignação radical contra as medidas de exposição das populações mais vulneráveis e a favor do enfrentamento decisivo pelo #ForaBolsonaro, como ato pedagógico, contra os que atentam a contra a democracia, e pelo enterro do verdadeiro problema, o neofascismo brasileiro e sua estratégia de matar ou deixar morrer.
Nesta segunda-feira, 20 de abril, A Casa de Vidro e o Grupo de Estudos em Complexidade promoveram o debate “Xadrez do Coronavírus: Geopolíticas da Pandemia“. Com David Maciel (Doutor em História, Professor da UFG, saiba mais abaixo), Eduardo Carli de Moraes (Jornalista, Mestre em Filosofia, Professor do IFG) e Renato Costa(Jornalista e Ativista). A proposta é analisar coletivamente os impactos da Covid-19 nas diferentes sociedades nacionais, levando em conta interesses políticos-estratégicos dos principais países atingidos em suas diferentes respostas diante da crise epidemiológica causada pelo novo Coronavírus: as diferentes versões para a origem da pandemia, os níveis de eficácia na contenção dos surtos e os possíveis cenários socioeconômicos daí resultantes. Acompanhe as nossas transmissões! Dê aquela força pra mídia independente e contra-hegemônica!
A cruel pedagogia do vírus, ensaio do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, novo volume da coleção Pandemia Capital, disponível exclusivamente em e-book, é uma didática argumentação sobre os desdobramentos da pandemia do coronavírus à luz da situação econômica e política dos últimos anos.
Na obra, o autor reflete sobre as súbitas mudanças de hábitos impostas em todo o planeta, como o tempo dispensado aos filhos, a diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. Segundo ele: “Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas”.
Boaventura faz uma importante menção aos grupos mais afetados pela crise ao redor do mundo e credita ao capitalismo enquanto modelo social nossa inabilidade de fazer frente a ela: “Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar uma sociedade em que a humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita”.
Pandemia Capital é uma série especial de obras curtas, objetivas e com preços acessíveis que aborda a crise atual do novo coronavírus e suas implicações na sociedade, na psicologia e na economia.
Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais impactantes. Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de “volta à normalidade”, uma “normalidade” em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela qual o mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no modo como vivemos. “Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.”
“A publicação A Luta é Pela Vida reúne textos escritos por anarquistas em diferentes partes do planeta. Este é um esforço inicial de difusão das análises feitas no calor da situação em que nos encontramos por conta do surgimento e propagação do novo coronavírus, causador da Covid-19. São escritos produzidos em meio ao ronco surdo de uma batalha que travamos pela vida de cada um e não, como Estado vem fazendo, em torno da ideia de vida como ativador de dispositivos de segurança.
Sabemos que os textos não dão conta das especificidades de cada território, mas nosso objetivo ao editá-los é promover as análises que vêm sendo feitas nas últimas semanas para estimular novas publicações, comentário e trocas e sob uma perspectiva anarquista. São notas, sugestões, referências para uma luta em curso que podem inspirar ou auxiliar na busca de saídas.
Ao contrário do que os Estados tentam nos fazer crer, não é por meio do isolamento que vamos conseguir nos cuidar e resistir ao que nos é colocado. E com isso não estamos negando a necessidade de reforçar cuidados temporários na relação entre os corpos para evitar o adoecimento e a transmissão do vírus, e sim que isso não significa assimilarmos a quarentena, a atomização, o silêncio, a interceptação das trocas entre nós. É hora de inventar na luta sem descuidar da orientação ética que baliza nossas ações: a expansão da liberdade e da autogestão.
Tomar o isolamento como a principal maneira para combater a propagação do vírus explicita muito sobre qual situação enfrentamos e quais dispositivos securitários são ativados com os estados de emergência, de urgência, de sítio etc. Somado ao “(auto) cuidado” e a “prevenção”, os Estados tentam romper os laços solidários entre as pessoas, fomentando o medo para instaurar o pânico e o entendimento de que só é possível manter as vidas humanas por meio de uma solução única: uma individualização a ponto de ver em cada pessoa ao redor, um outro, um perigo, um potencial transmissor de uma pandemia.
A utopia governamental de controle total e irrestrito de nossas subjetividades ganha campo por meio de uma retórica de combate ao inimigo comum (i. e. de toda “espécie humana”) e que ao mesmo tempo pode estar habitando, de forma invisível, o corpo de cada indivíduo. Isso produz uma forma de regulação das mortes que é, a um só tempo, o mais genérica possível e extremamente individualizada. Assim atualiza-se e expande-se as funções assassinas do Estado, o seu racismo próprio. Tudo isso guiado pela precisão dos controles algorítmicos. A crise dá novos contornos aos controles biopolíticos e amplifica sua forma assassina, o racismo de Estado.
Desse modo, a responsabilidade passa a ser de cada um e de todos, o dano é pulverizado entre todas as pessoas e simultaneamente socializado. Contudo, no capitalismo, o gozo, o prazer, os benefícios, a bonança, são privados. E quando emergem catástrofes naturais, vírus, quando o uso da terra pelo sistema capitalista se mostra insustentável, insuportável, aparece o discurso de “precisamos cuidar do futuro de todos”, é preciso “socializar a responsabilidade”.
Por isso, entendemos ser necessário a difusão dos textos a seguir, pois trazem relatos de experiências de apoio mútuo, solidariedade e informações sobre autocuidado para nos ajudar a pensar, a partir do contexto de cada localidade, em práticas possíveis para responder à urgência da situação na qual o planeta se encontra.
Abraços solidários, saúde e anarquia!”
Anarquistas
no território dominado
pelo Estado brasileiro
OUTRAS LEITURAS BOAS PARA A QUARENTENA:
ALBERT CAMUS – “A PESTE”
BOCACCIO – “DECAMERON”
GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ – “O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA”
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!