Filosofia e Eco-Anarquia em Tempos de Pandemia (Webdebate: A Casa de Vidro e Monstro dos Mares)

No dia 08 de Maio de 2020, sexta-feira, A Casa de Vidro, em parceria com a Editora Monstro dos Mares e o Grupo de Estudos em Complexidade, realizaram o webdebate “Filosofia e Eco-Anarquia em Tempos de Pandemia” – com Janos Biro Marques Leite, Pedro Tabio, Renato Costa e Eduardo Carli de Moraes. Assista na íntegra (2h36min):


Introdução

Combinando a crítica anarquista ao Estado e ao Capital com uma perspectiva ecocêntrica vinda do veganismo, do primitivismo, da crítica à sociedade industrial ou da ecologia profunda, a filosofia eco-anarquista tem se mostrado uma fonte valiosa de reflexões e provocações para o contínuo desenvolvimento das teorias e práticas anarquistas, desafiando os paradigmas das escolas de pensamento mais tradicionais.

São consideradas como ligadas ao eco-anarquismo as seguintes tendências: o anarco-naturismo (inspirado por Thoreau, Tolstoi e Élisée Reclus), a ecologia social (que não se limita ao movimento iniciado por Bookchin), o anarcoprimitivismo (representado por John Zerzan e os autores da revista Green Anarchy) e o veganarquismo (movimento anarquista e vegano).

O anarcoprimitivismo e o veganarquismo se destacam em tempos de pandemia pela crítica que já faziam há muito tempo à sociedade de massas e à domesticação de animais como fatores da produção de pandemias e novas doenças. (Janos Biro)

CONHEÇA OS DEBATEDORES:

PEDRO TABIO é urbanista, bioconstrutor, agricultor, inpermacultor libertário, eco-anarquista e editor na Monstro dos Mares.

JANOS BIRO é formado em filosofia pela UFG e membro do coletivo eco-anarquista Contra a civilização (contraciv.noblogs.org). Criador do site Contrafatual (contrafatual.com).

RENATO COSTA é chef vegano e estudante de jornalismo na UFG.

EDUARDO CARLI é jornalista, filósofo, mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, professor do IFG, fundador d’A Casa de Vidro, onde atua como agitador cultural.

ASSISTA:

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PAUTA TEMÁTICA

I) E O LOCKDOWN, ANARQUISTAS? Se observarmos as crises econômicas e políticas, os alertas climáticos, e agora a crise epidemiológica, muito do que um suposto alarmismo radical anunciava vem se concretizando. Hoje os bolsonaristas acusam a pauta do isolamento de alarmismo. Entretanto subjaz o problema da condução das medidas de isolamento por parte do Estado, amparado pelas recomendações dos organismos internacionais de saúde. Na visão de vocês, a possibilidade de isolamento total, obrigatório, conhecido como lockdown, contraria o princípio libertário defendido pelo anarquismo? O fator de controle sanitário, e consequentemente, a necessidade compulsória de isolamento legitimado pela ciência, em “defesa de vida”, contrariam as liberdades individuais e os princípios da auto-gestão coletiva? Quero dizer, o lockdown atenta, por princípio, contra a organização autônoma das comunidades? Ou seria manipulável apenas em caso de qualquer tipo de autoritarismo se valer da pandemia como álibi da repressão, no oportunismo da condução da crise em favor do Estado e do Capital?


II) TECNOFOBIA vs TECNOFILIA

Os ativistas eco-anarquistas, no que diz respeito às táticas de enfrentamento das forças sociais que causam as catástrofes ecológicas, aceitam de bom grado o uso das tecnologias digitais e das mídias sociais como ferramentas de mobilização? Percebem pautas em comum com movimentos como o Software Livre e certas vertentes do circuito hacker? Ou vocês consideram que a anarquia verde aproxima-se mais do anarco-primitivismo, da recusa diante de um cenário cibernético dominado por empresas como Facebook, Google, Apple etc.? Digo isso pois uma publicação do Comitê Invisível, Foda-se o Google (faccaoficticia.noblog.org), coloca em foco a diferença entre movimentos caracterizados por tecnofilia ou por tecnofobia, arriscando também a seguinte caracterização:

“O grosso dos marxistas e pós-marxistas juntam à sua propensão atávica para a hegemonia um certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto uma boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, acantonando-se geralmente em posições hostis à ‘técnica’. Cada tendência dispõe até da sua caricatura: aos partidários negristas do ciborgue, da revolução eletrônica pela multidão conectada, respondem os anti-industriais que fizeram da crítica do progresso e do ‘desastre da civilização tecnicista’ um gênero literário bem rentável, feitas as contas, e uma ideologia de nicho onde nos mantemos quentes e aconchegados, à falta de entrever uma qualquer possibilidade revolucionária. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como a técnica existe.” (Cap. 4)

w.capaGOOGLE-web.cleanedFoda-se o Google [Baixar PDF]

Fragmento do livro Aos Nossos Amigos do Comitê Invisível que trata da expansão tecnológica e política sobre as formas de governo e controle social. “Uma empresa que mapeia todo o planeta, enviando equipes para fotografar cada rua de cada cidade não pode ter interesses apenas comerciais. Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo. ‘Don ́t be evil’”.

1. Não existem “Revoluções de Facebook” mas uma nova “Ciência de Governo”, a Cibernética. 2. Guerra a tudo que for Smart! 3. Miséria cibernética. 4. Técnicas contra tecnologia.


III) INTEGRAÇÃO COMUNITÁRIA EM TEMPOS DE CONSUMISMO PREDATÓRIO

Considerando mais especificamente o sujeito político contemporâneo, em relação com a coletividade massificada pelas formas de consumo predatórias, estimuladas em grande parte pela hegemonia neoliberal do culto ao mercado, quais seriam as dinâmicas entre o papel do indivíduo e sua integração comunitária para fixarmos uma agenda de transformações ambientais e sócio históricas, desejáveis no futuro próximo? Mais especificamente ainda, de acordo com os aspectos sociais da atual crise do Coronavírus, interpretados pelo crítica eco-anarquista ao capitalismo em geral, quais as estratégias eco-anarquistas que permitiriam a cada um e cada uma de nós influir numa conjuntura de luta contra as opressões coletivas e a degradação ambiental? Ou seja, minha pergunta vai no sentido de buscar saber como equacionar indivíduo e sociedade, do ponto de vista da filosofia anarquista, no contexto da crise ecológica e sanitária!


IV) A BADERNA ORGANIZADA?

A coleção de livros Baderna, originalmente publicada pela ed. Conrad, depois relançada pela Veneta, trouxe ao público brasileiro a oportunidade de conhecer mais sobre grupos anarquistas e similares, como Luther Blissett, organizados mundo afora, além de propiciar contato com pensadores como Hakim Bey e Raoul Vaneigem. Qual seria, para vocês, a importância de organizações coletivas de ativistas eco-anarquistas? Quais os exemplos destas que vocês poderiam citar? O que pensam sobre certas experiências no mundo atual, citadas por Camila Jourdan e Acácio Augusto, de regiões “liberadas” onde princípios anarquistas estão presentes na prática? Os autores se referem sobretudo “À experiência zapatista no México, cujos territórios autônomos se organizam de maneira federalista libertária, sem Estado e de modo comunal, e o confederalismo libertário de Rojava, no território de ocupação majoritariamente curdo que derrotou o Daesh (Estado Islâmico) e hoje está sob ameaça militar do Estado turco.” (pg. 9)


V) CARNISMO INFECCIOSO – UMA OUTRA ALIMENTAÇÃO ANARCOVEGANA É POSSÍVEL? Em relatório da OMS, Ben Embarek, especialista em segurança alimentar, atesta-se que o novo coronavírus veio do morcego, provavelmente mediado por um outro animal “criado para fornecer alimento”. Além disso, confirmou o que Manuais Epidemiológicos chineses já atestavam: a doença pode circular entre gatos, furões e cachorros. Estes fatos colocam em destaque o risco sanitário envolvido no consumo de carne e no morticínio de animais. O Vegan-arquismo vem denunciando há muito o abandono e a domesticação dos animais – uma sendo condicionante da outra. Pergunto: como vocês trata dessas urgências éticas e ecológicas, a exemplo da necessidade de se adotar uma dieta vegetariana, ou de se representar o veganismo como orientação ao consumo, e também como filosofia em si? Como vocês vêem o papel do veganismo na crise ecológica e na crise sanitária?


VI) A ABOLIÇÃO DO ESTADO: AINDA É O CENTRO DA PROPOSTA ANARCO?

Em Marx Selvagem, Jean Tible busca um “diálogo entre as concepções marxiana de abolição do Estado” com a noção de Pierre Clastres de uma “sociedade contra o Estado”. Sabemos que Marx polemizou com grandes anarquistas de sua época – Bakunin, Proudhon e Max Stirner – a respeito do processo de abolição do estado, visto como fim tanto pelo anarquismo quanto pelo comunismo. A diferença essencial estaria na reivindicação anarquista de extinção súbita do Estado em contraste com um processo mais gradual no âmbito do marxismo que prevê uma transição – a ditadura do proletariado servindo-se do Estado como “instituição transitória, da qual nos servimos na luta durante a revolução para reprimir à força os adversários” (ENGELS, citado por Tible, pg. 192). Para Lênin, o Estado burguês é sucedido pelo Estado proletário no pós-revolução de modo a “reprimir a resistência dos exploradores” (ou seja, combater a reação contra-revolucionária) mas também para “dirigir a grande massa da população na efetivação da economia socialista” (Lenin, 1918, citado por Tible, p. 194). Como compreendem os eco-anarquistas esta questão? É preciso abolir o Estado imediatamente ou gradualmente? De que modo a preocupação com as questões ambientais, ecológicas, de sustentabilidade, justifica práticas e movimentos que visam esmagar o Estado? E como ficam os Mercados e Corporações nesta luta, considerando-se que os Estados neoliberais atuais são basicamente lacaios das mega-empresas e seus financiadores, seus banqueiros, a classe rentista?


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A Esperança Equilibrista Despencou no Abismo na Noite do Brasil || In Memoriam: Aldir Blanc (1946 – 2020)

“Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco… louco!

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.”

João Bosco e Aldir Blanc
“O Bêbado e a Equilibrista”

HENFIL

Perdendo o equilíbrio ao tentar atravessar a corda bamba sobre o abismo, “a esperança equilibrista” de Aldir Blanc se precipitou, em queda livre, para “morrer na contramão atrapalhando o tráfego” (para citar outro célebre cancionista). Eliane Brum, em artigo para o El País, assim lamentou a perda:

“O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: ‘a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso Jair Bolsonaro que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ― sua carne, sua alma e seus contornos ― e a poesia já não nasce.”

João Bosco, no dia em que perdeu o parceiro de tantos botecos e canções, escreveu o seguinte relato comovido:

 “Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.”

José Miguel Wisnik, professor da FFLCH / USP e também ele cancionista, aproveitou a ocasião para nos conceder uma bela exploração da canção “De Frente Pro Crime”:

“Olhei o corpo no chão e fechei / minha janela de frente pro crime”. A letra de Aldir Blanc nesse samba com João Bosco tem a cadência de um miniconto. Parece que é simplesmente a narrativa impessoal, a crônica de uma cena de rua em torno de um cadáver estendido que tem “em vez de rosto a foto de um gol”. Populares passam, entre pragas perdidas e silêncio anônimo, o ambiente em volta se agita, o bar se enche (“malandro junto com trabalhador”). Na confusão, algum oportunista bêbado, de cima da mesa, se lança candidato a vereador, um comércio parasita floresce num frenesi de camelô, anel, cordão, perfume barato, baiana, pastel, churrasco de gato. Fim de noite, fim de festa, baixa ainda “um santo na porta-bandeira” enquanto o ajuntamento se dispersa. O morto continua lá, no ponto cego do transbordamento de vida que suscitou, e que se dissipa. Só então ficamos sabendo que tudo isso se passa aos olhos de alguém que vê de fora, de outro lugar, de trás de uma janela que agora se fecha, voyeur da vida e da morte, do crime sem rosto e sem nome, como nós. Assim como “Incompatibilidade de gênios”, da mesma dupla, “De frente pro crime” acontece no ritmo do pulo do gato, e é uma pérola da junção do sublime com o banal, sempre na veia do mundo popular carioca. É bonito vê-los, Aldir e João, malandros trabalhadores da canção, trocando uma ideia na porta do Café Capital. (Me pergunto quem terá feito essa foto linda.) (WISNIK, em sua página no Facebook)

Já o Enzo Banzo, da banda mineira Porcas Borboletas, publicou o seguinte artigo no Diário de Uberlândia:

Para celebrar a trajetória e a obra de Aldir Blanc, após concluir sua jornada pela estrada-só-de-ida da vida (como gosta de dizer o espírito livre Diego Mascate)A Casa de Vidro recupera, a seguir, um pungente texto de Aldir escrito para celebrar a criação da C.N.V. pelo governo da Dilma. Além disso, decidimos exercitar um pouco da boa e velha pirataria construtiva e disponibilizar, para download gratuito, em MP3 de qualidade, vários álbuns que permitem conhecer mais a fundo a obra deste grande poeta e compositor popular que foi Aldir Blanc. Baixe sem dó e aprecie sem moderação!

Texto de Aldir Blanc na época da criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff.

“Não sou historiador nem sociólogo. Não consultei nenhum livro para escrever o texto abaixo. Minha memória está se movendo como estilhaços do amado caleidoscópio que perdi, menino, em Vila Isabel.

Viva a Comissão da Verdade para que nunca mais coloquem uma grávida nua sobre um tijolo, atingida por jatos d’água, com ameaça: “Se cair vai ser pior”;

Para que senhoras que fazem seu honrado trabalho não sejam despedaçadas por cartas bombas;

Para que um covarde que bote a boca de um homem torturado no escapamento de uma viatura militar não passe por homem de bem onde mora;

Para que orangotangos que se tornaram políticos asquerosos não babem sua raiva na internet: “Nosso erro foi torturar demais e matar de menos”;

Para que presos em pânico não sofram ataques de jacarés açulados por antropóides;

Para que nunca mais teatros e livrarias sejam vandalizados e queimados;

Para que um estudante de psiquiatria não seja obrigado a passar por sentinelas de baioneta calada para ouvir um coronel médico dizer que “histeria é preguiça”;

Para que os brasileiros possam homenagear um autêntico herói nacional, João Cândido, com um monumento, sem que surjam energúmenos prometendo “voltar a explodir tudo se isso apontar para o Colégio Naval”;

Para que a nossa Força Aérea, que nos deu tanto orgulho na Itália, com seus valentes pilotos de caça, não atire pessoas, como se fossem sacos de lixo, no mar;

Para que um pai, ao se recusar a cumprir a ordem de manter o caixão lacrado, não se depare com o corpo destruído do filho, jogado lá dentro feito um animal;

Para que militares honrados não sintam “constrangimento” na busca de Justiça; para que cavalos ( aqueles de quatro patas, montados por outros) não pisoteiem um garoto com a camisa pegando fogo por estilhaço de bomba, na Lapa;

Para que torturadores não recebam como “prêmio” cargos em embaixada no exterior;

Para que uma estudante não desmaie num consultório médico ao falar sobre as queimaduras do pai, feitas com tocha de acetileno;

Para que esquartejadores não substituam Tiradentes por Silvério dos Reis;

Para que inúmeros Pilatos ainda trambicando naquela casa de tolerância do Planalto vejam que suas mãos continuam cheias de sangue e excremento;

Para que nunca mais na vida de uma jovem idealista – o queixo firme, olhos faiscantes de revolta, com a expressão da minha Suburbana no 3X4 que guardo na carteira – seja ceifada por encapuzados. Uma delas, quem sabe?, pode chegar a Presidência da Republica e enquadrar a récua de canalhas.”

Não podemos nos calar!”

Aldir Blanc

DISCOS PRA BAIXAR:

 

O DIABO VESTE VERDE-E-AMARELO || A Casa de Vidro

O Inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.” 
WILLIAM SHAKESPEARE, A Tempestade

Os “suicidadãos” e “patriotários” [1] que lambem as botas da familícia Bolsonaro são uma lástima tão nefasta para as populações que habitam este território chamado Brasil quanto a pandemia do coronavírus. São desastres que se somam.

Millôr Fernandes dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha. No Brasil, é o primeiro” [2]. Hoje em dia, muitos Bolsominions consideram-se patriotas mas seguem cegamente a um Coiso que faz continência para a bandeira dos U.S.A., parece uma cheerleader de Donald Trump e fala “e daí?” para 5.000 brasileiros mortos pela doença que ele poderia ter agido no sentido de combater, minimizando seus impactos. Preferiu, como de praxe, ser o disseminador de fake news, desinformação, ódio cego, fanatismo anti-científico: Bolsonaro, parceiraço da foice da Morte que hoje nos ceifa, impiedosa.

Qualquer chefe de Estado digno de seu cargo trataria de cuidar, com todas as suas forças, de evitar vidas perdidas. Só que não: ao invés do cuidado com a saúde do povo, Jair decidiu ser aliado do vírus e do extermínio. De suas mãos e de sua boca pinga um profuso sangue – e muitos de seus seguidores-zumbi bebem este sangue como se fosse vinho. E tornam-se ainda mais raivosos e sanguinários. Urram em prol de um “novo-AI5”, querem o fechamento do Congresso Nacional e do STF, como se o Grande Líder deles já não tivesse poderes o suficiente e precisasse se tornar um autocrata, um tsar, um ditador, com plenos poderes para mandar, desmandar e abusar.

Quando aglomeram-se em grandes rebanhos para gozar do prazer duvidoso de estar nas proximidades de seu “Mito”, estes suicidadãos não estão apenas colocando suas saúdes e vidas em risco – estão atentando contra todos nós ao se tornarem possíveis vetores de transmissão da covid19. A estupidez deles é um flagelo coletivo que só agrava os impactos já gravíssimos daquele “resfriadinho”, desdenhado pelo presifake, que já matou 250.000 vidas humanas. Ao sabotar as medidas de isolamento social, ao desdenhar da profilaxia coletiva que intenta salvar nosso sistema de saúde do colapso, Bolsonaro e seus minions agem como Bestas do Apocalipse.

Só nos EUA, a “gripezinha” já ocasionou mais óbitos do que o número total de soldados estadunidenses que tombaram sem vida durante os 20 anos de invasão imperial do Vietnã (como mostrou a reportagem do The Intercept Brasil) [3]. Ciente disso, seu Jair continua atuando como um atentado ambulante à saúde coletiva, pisoteando as recomendações da OMS, sendo criminosamente irresponsável feito um serial killler, tuo isso diante de instituições acovardadas e de uma população impedida de insurreição pela falta de condições sanitárias para ações de massa.

O empoderamento dos idiotas tornou-se no Brasil algo mais do que um farto manancial para os humoristas fazerem graça com nossa tragicomédia sem fim: a imbecilização viral, de que o Bolsonarismo é o mais grave dos sintomas, é hoje uma maré mortífera que espalha os poderes de Tânatos em um país que atravessa uma hecatombe anunciada.

Diante de uma pilha com mais de 10.000 cadáveres evitáveis, ainda havia no início de Maio de 2020 – pasmem, historiadores do futuro! – quem ainda se aglomerasse diante do pseudo-Messias. Não foram ensinados a desconfiar, com senso crítico vigilante, de energúmenos cheios de ganância e ambição que usam de demagogia barata para tratar seres humanos como gado-de-manobra: o Capetão adora citar a Bíblia, e tem quem engula esta instrumentalização do “sagrado” para fins demagógicos sem nem suspeitar que o Diabo, se existisse, saberia citar as Escrituras.

Diante do estarrecimento que esta patologia social do Bolsonarismo traz àqueles brasileiros que conservaram a lucidez, o senso crítico e o amor à liberdade, resta-nos recusar o inadmissível – e seguir na revolta que pudermos diante desta avalanche de absurdos.

No futuro, os historiadores honestos desta época, olhando para trás a partir de um prisma mais distanciado, quando o homem Jair não passar de ossos enterrados em um túmulo que precisará de soldados o defendendo para que não seja pixado, depredado e profanado, estes historiadores talvez escrevam sobre nosso presente-tornado-passado como uma época passageira de transe lunático que felizmente passou e foi superada. Como diz Frei Betto, tenhamos este fiapo de otimismo e “deixemos o pessimismo para dias melhores”.

Bolsonaro, em alguns anos estará morto e decomposto – e será difícil encontrar algum Minion que o defenda quando os tribunais penais o classificarem como um criminoso do naipe de Pinochet ou Himmler.

Mas que nunca nos esqueçamos! Em meio à pandemia, o Brasil ainda era a terra do apartheid, o último refúgio do escravismo, a última nação a abolir oficialmente o tráfico de seres humanos, o país dos mais de 60.000 homicídios anuais, o líder global na violência homofóbica, o local onde mais são assassinados ativistas ambientais e dos direitos humanos, o distópico lócus de um aprisionamento em massa e de uma Guerra às Drogas conexos à persistência do racismo estrutural e do terrorismo de Estado. Etc. etc. etc. pois não quero saturar o leitor com nossa montanha de horrores. E diante de tudo isso haviam muitos dentre nós, brasileiros, que se sentiam representados e empoderados pelo Seu Jair, com todo aquele anacrônico e abominável racismo, machismo e elitismo vomitado constantemente por sua boca-de-esgoto, faminta por hecatombes, fanática por ditadura, adoradora sádica da tortura.

Ele pode ser rico e famoso, mas Bolsonaro é um ser humano profundamente fracassado, incapaz de aprendizado, estagnado numa cultura do ódio, fóssil vivo de uma mentalidade retrógrada e assassina. Apesar dos poderes que usurpou, representa o fracasso da humanidade, o triunfo de nossas piores perversidades, o egoísmo mais mesquinho e mais vil, a incapacidade de amar a diversidade e de respeitar o humano em todas as suas formas. Ele representa o ser humano decaído a um estado cada vez mais bestial, apesar das máscaras que veste de cidadão-de-bem e homem-de-família, pois monstruosamente prega a seus seguidores-ovelha o extermínio de indígenas, quilombolas, petistas, ribeirinhos, comunistas, afrobrasileiros, idosos… O negócio do Bolsonarismo é o extermínio lucrativo. Eles são o capitalismo exacerbado, em estado de necrose.

O problema não está somente no indivíduo Jair Bolsonaro, um ser humano nojento e desprezível, campeão do desrespeito, nota zero em ética, que em 30 anos de vida como político nunca fez nada que prestasse em prol do bem comum. O problema está nas ovelhas raivosas que seguem este pseudo-Messias, que o consideram um “cidadão-de-bem” mesmo quando ele ensina crianças de colo a fazerem arminhas. Diante disso, o silêncio seria cumplicidade com a barbárie. Precisamos falar como se isto fizesse diferença, como se nossas palavras pudessem acordar nossos concidadãos infectados pelo Bolsonavírus, como se fosse possível a disseminação da luz da lucidez a partir do fogo aceso de milhares de críticas que se fazem unânimes na recusa, ainda que polifônicas nas propostas de alternativas e horizontes.

#ForaBolsonaro

REFERÊNCIAS

[1] Neologismos criados pelo poeta e tradutor José Paulo Paes, presentes em poema do livro “Poesia Completa” (Cia das Letras). Saiba mais: https://wp.me/pNVMz-4P.

[2] Millôr Fernandes citado por Xico Sá no artigo da Folha De São Paulo, “O patriotismo como refúgio dos canalhas”.

https://xicosa.blogfolha.uol.com.br/…/o-pat…/comment-page-1/

[3] The Intercept – Em poucos meses, o coronavírus já matou mais americanos que os 20 anos da Guerra do Vietnã. https://theintercept.com/…/28/coronavirus-eua-mortes-vietna/

Acompanhe A Casa de Vidrowww.acasadevidro.com

LEIA TAMBÉM:

“Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus” (LIVE @ A Casa de Vidro, 02/05/2020, 15h)

A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) realizou no Sábado (02/05/2020), às 15h, o webdebate “Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus”. Nossas convidadas foram Beatriz de Paula Souza e Francine Rebelo. Mediação: Eduardo Carli de Moraes. Assista à live no canal do Youtube d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura ou pelo site www.acasadevidro.com. Conheça as debatedoras:

FRANCINE REBELO é Cientista Social e Antropóloga, atualmente doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora, militante por uma educação gratuita e de qualidade, feminista e mãe do Raul.

BEATRIZ DE PAULA SOUZA é Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, onde coordena o Serviço de Orientação à Queixa Escolar, do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE. Organizadora das coletâneas “Orientação à Queixa Escolar, Medicalização de Crianças e Adolescentes” e autora do livro “Histórias de Educação”, além de artigos e capítulos de livros de Psicologia na interface com a Educação. Uma das fundadoras do GIQE (Grupo Interintitucional Queixa Escolarhttps://www.queixaescolargiqe.com/) e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, associada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE.

EDUARDO CARLI DE MORAES é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.

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Assista no Canal do Youtube d’A Casa de Vidro:
https://www.youtube.com/channel/UCrs5xa4CQkJob9A78rnq6rA

1º BLOCO

Veja gravação na íntegra sem edições:

ACESSE ROTEIRO NORTEADOR DO DEBATE

Obs: A ilustração utilizada na criação do poster é de autoria de Agata Nowicka / publicada originalmente em BuzzFeed News.


PAUTA TEMÁTICA – ROTEIRO

1) Quais seriam os principais efeitos do confinamento sobre a psiquê humana? E, em específico, o que significa para as crianças estarem confinadas no espaço doméstico, sem escola nem parquinho? Livros como “Desemparedamento da Infância” e sites como criançaenatureza.org apontam a importância, para o desenvolvimento são das crianças, dos espaços abertos, das brincadeiras na natureza, da exploração do território mais amplo etc. Em suma: na perspectiva da psicologia e da antropologia, quão importantes são o movimento e a ação no aprendizado vital infantil? Que autores vcs conhecem que refletiram sobre isso? (Winnicott? Pediatras da S.B.P.?) 

2) Sofrer é inerente à vida e oportunidade de aprendizado. Porem vivemos um período onde o adoecimento psíquico e tende a aumentar a busca por amparo e tratamento, com a ascensão de condições de transtorno de ansiedade, depressão, tendências suicidas, melancolia vinculada à falta de sentido da vida etc. Ao mesmo tempo, vivemos em uma época altamente farmacológica – desnudada por autores como Paul Beatriz Preciado (Testo Junkie) ou Robert Whitaker (Anatomia de Uma Epidemia).

Diante do sofrimento psíquico, tendemos a apelar para os remédios psicotrópicos. O que vcs pensam disso? É aceitável, no contexto, o uso massivo e o incremento na comercialização de soníferos, ansiolíticos, antidepressivos? Ou vcs ainda preferem e recomendar psicoterapias como a Psicanálise (cura pela fala), Logoterapia (proposta por Viktor Frankl), Gestalt, Cognitiva-Comportamental, Corporal (Wilhelm Reichiana), meditação e yoga etc.?

3) Outra complicação que o isolamento social imposto pela pandemia traz, como apontam muitos pesquisadores e já foi relatado em várias reportagens, é a dificuldade nas convivências familiares – os índices de violência doméstica, sobretudo feminicídios, estupros, episódios de homofobia, filhos maltratados por agressões de parentes. A jornalista Eliane Brum recentemente pesquisou e escreveu sobre suicídios juvenis em alta na cidade mais violenta do país, Altamira (Pará). Francine, como estudiosa da obra de pensadoras como Silvia Federici, o que você pensa sobre a condição feminina, o trabalho não remunerado, a opressão de gênero e a masculinidade tóxica neste contexto? Precisamos de feminismo, interseccionalidade e descolonização em tempos pandêmicos?

4) O contexto pandêmico implicou a suspensão das atividades escolares: isto faz com que os pais valorizem mais o trabalho de educadores que cuidam, instruem e favorecem o desenvolvimento psíquico e cognitivo de seus filhos? Como vocês prevêem que será a volta às aulas? Beatriz leu em vídeo prévio um texto interessante que reivindica para as crianças o direito a “uma semana de anarquia”, em que pudessem correr, pular, dançar, cantar, rolar na grama, sem que os educadores impunham “conteúdos” para “correr atrás do prejuízo”. O que vcs recomendariam aos educadores para que possam lidar com as crianças que estão saindo do período de isolamento? Que traumas e confusões crianças e adolescentes podem trazer para o contexto de volta às aulas que não existiam antes da interrupção pandêmica das atividades escolares?

5) Em belo seriado televisivo recente, “Kidding” (estrelado por Jim Carrey), surge uma questão pertinente: o protagonista é um âncora de TV que tem uma alta audiência com seu programa infantil de marionetes (puppet time), porém sofre um trauma familiar severo: seu filho criança morre em um acidente de trânsito. Boa parte da série lida com os traumas desta família dilacerada pela perda, mas também pelo dilema: como é possível conversar sinceramente com as crianças sobre aspectos da condição humana como a morte, a doença, o luto, a perda de alguém amado que não retornará? Como os mais velhos podem dialogar com as crianças e jovens no sentido de dizer a verdade sobre isto, e o quanto devem omitir ou “dourar a pílula” com a intenção de proteger o outro do sofrimento excessivo?

6) Por fim, gostaria de saber como vocês reagem a uma frase de um místico indiano chamado Krishnamurti: ele diz que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente.” Também no mesmo espírito: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, diz Nise da Silveira. Neste sentido, como diz Ailton Krenak, não devemos desejar um “retorno à normalidade”, pois ela era o problema, estar conformado àquilo era um modo de estar neurótico. Diante disso, vocês acham que precisamos aprender sobre saúde mental com outros povos e outras culturas, com indígenas, quilombolas, ribeirinhos? Com os orientais, os budistas, os taoístas, os yoguis? É verdade que nossa sanidade psíquica e nossas convivências familiares serão melhores quanto mais formos inconformados diante da sociedade atual, quanto mais estivermos mais mal-adaptados a esta sociedade adoecida?  


 

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Confissões de um vírus pós-moderno – Por Gisele Toassa em A Casa de Vidro

Confissões de um vírus pós-moderno

 Gisele Toassa

 

Meu nome é SARS-CoV-2, sobrenome coronavírus. Eu e meus parentes ganhamos essa alcunha por nos parecermos com lindas coroas, dotadas de majestosas pontas em estilo medieval. Não é para me gabar, mas, sob a luz do microscópio, somos garbosos como reis.

Nasci na Ásia, mas fui desterrado há pouco tempo. Vivia feliz e tranquilo com minha família, mesmo sendo meio diferentão, dentro de uma linda morceguinha amarela, nossa Jei-jei.

Ah, vocês não sabem? Em chinês, isso significa “irmã”, é um apelido que damos às nossas melhores amigas. Eu adorava voar com ela depois de passar longas horas encolhido, trombando com outros membros de nossa aglomeração, dentro da nossa caverninha comunitária, em algum ignoto lugarzinho da magistral Ásia.

Quando a noite caía, eu já me agitava todo, antecipando o amplo céu estrelado que, juntos, contemplaríamos com voos rasantes, piruetas e outras morcegagens. De ponta-cabeça, eu amava ver as luzes celestiais; ou, olhando para baixo, mirá-las refletindo-se nos lagos, ao pé da linda montanha em que morávamos. Nosso bando se aboletava nas árvores até recolher-se calmamente, quando caía o último orvalho da madrugada.

Generosa, Jei-jei volta e meia me cedia algumas de suas células, nas quais eu me reproduzia sem excessos, e tudo continuava como no tempo de nossos ancestrais. 

Mas destruíram nossa floresta. Sofri tipo um stress pós-traumático, não me recordo muito daqueles dias. O coração de Jei-jei batia descompassado, impulsionando-me a fluir em uma velocidade muito maior que o normal…  Diz-se que capturaram minha Jei-jei e me levaram para um laboratório militar em Fort Detrick, Maryland, Estados Unidos. Diz-se que nos levaram para um mercado de frutos do mar em Wuhan. Era um lugar medonho, repleto de animais, tanto vivos como mortos, dominado por violentos bípedes. 

Lá pelas tantas, fiquei aliviado ao descobrir que estava vivo, embora dentro de criaturas enormes. Um daqueles horríveis bípedes sem asas. O pânico tomou conta de mim. Cadê minha casinha? O que fizeram com Jei-jei?? Consigo sobreviver nesse corpo gigante? 

Não tive escolha. Acabei, em minhas peregrinações, ouvindo muitos homens de negócios a dizer que crise é sinônimo de oportunidade. Vale tudo na luta pela sobrevivência. Ué, então, por que não tentar algo novo? Embora a ideia seja meio louca, pensei: se eu me multiplicar por mil, dois mil, um milhão, eu consigo reencontrar Jei-jei e minha família. O mundo aqui fora não pode ser tão grande assim. E depois, a procriação é o verdadeiro sentido da vida, não é mesmo? Todos os textos sagrados dos humanos dizem isso, é o que fui aprendendo ao ocupar meus diferentes hospedeiros. Como são a espécie que domina a terra, deve ser verdade.

Viajei na primeira classe e na econômica; em porões de navios e trens-bala; ouvi centenas de línguas e me multipliquei em milhares de corpos, mas – pobre de mim! – ainda não encontrei minha Jei-jei. Essa coisa de me reproduzir já ameaça perder todo sentido. Uma verdadeira compulsão! Um prazer barato, onde a quantidade prevalece sobre a qualidade. Sou como sultão em um harém, com um fraco por essas células de pneumócitos tipo II, tão lindas e tentadoras. Tão repletas de frescor! No meio da poluição urbana na qual passei a circular, me fazem lembrar a pureza da atmosfera de Hubei. Vou te contar, nem nossa caverna era tão pobre de oxigênio como muitas cidades por onde tenho vagado! Minha tara por essas células me tornou um só ser em muitas milhares de pessoas!

Deslizar para dentro dessas pneumócitas e me reproduzir sem parar para pensar é um antídoto à minha vidinha sem-sentido. Nas andanças pelo corpo humano, conheci muitos outros vírus, alguns tranquilos e adaptados – como o da herpes – e outros barra-pesada, estilo Tropa de Elite, como o HIV. Este me disse: “Uau, meu chapa, você tá de parabéns! Uma pandemia em apenas dois meses? Demorei anos para conseguir isso! Que tal fazermos um crossing over ali no cantinho do baço? Formaríamos uma bela força-tarefa! Com o seu modo de transmissão e nossas letalidades associadas, destruiremos a espécie humana, e o futuro de todas as outras estará garantido! Vamos assegurar nosso mútuo interesse, que, afinal, é a fonte da felicidade e do bem social!”.

Essa proposta me fez pensar. Valeria a pena arriscar uma solução final para salvar a espécie de minha amada Jei-jei? Pensei muito, mas recusei. Não quero sacrificar minha popularidade fazendo joint venture com aquele sujeitinho. AIDS é tão anos oitenta! Daqui a pouco descobrem a cura e ele se acaba! Ademais, não vamos exagerar, não sou um genocida, nem quero servir de trampolim para algum oportunista da era dos mullets! Um cara que, além de tudo, contribuiu para tornar os prazeres mais inseguros e aumentar a homofobia mundo afora. Gosto de liberdade, de fragmentação, de novidade. Regulações e projetos coletivos não são para mim. Sou um indivíduo coletivo, mas ainda assim, indivíduo. No máximo, um agente do caos, como o Coringa.

O HIV, despeitado, passou a me atirar desaforos. Ridicularizou minha taxa de mortalidade, lembrando ter chegado aos 100% de óbitos em sua juventude. Vaticinou que meu sucesso será curto, que estamos em uma era de popularidade líquida. E que, daqui a pouco, serei esquecido nas prateleiras das livrarias médicas. Enquanto ele, mesmo quarentão e castrado pelos coquetéis de remédios, sobrevive sem arranhões a todas as vacinas que se metem com ele.

Talvez ele tenha razão. Não vou durar muito. Cada vez mais, encontro sabão, máscaras, álcool gel ou umas monstruosas moléculas de medicamentos, que me fazem desmaiar e até morrer.  Já percebi que os humanos pós-modernos não gostam da velha fórmula do survival of the fittest. Preferem survival of the richest, e não tenho objeção, pois os ricos são menos gente; ainda sobra muita humanidade para eu infectar. Chamam esse nosso sistema de capitalismo

Eu teria gostado de viver mais tempo na pré-história, hospedando-me nas ancestrais de Jei-jei, piruetando todas as noites pelos céus de Hubei, sem jamais ter sabido dessa tal de espécie humana, suas virtudes e seus vícios. Também estou ficando vidrado na guerra contra os que querem me matar: mais um vício humano com o qual fui infectado.

Posso não amar os Homo sapiens, mas não sou mau. Sou só um sem-teto em busca de sua verdadeira casa. Um provinciano nostálgico. Sei que às vezes me empolgo – especialmente com as células alveolares mais frágeis, onde não aparecem tantos daqueles horríveis macrófagos, uns brutamontes radicais que sempre me dão umas surras de doer. Nós nos engalfinhamos em lutas brutais, nas quais morremos em inflamações purulentas e malcheirosas que não ajudam ninguém, pois, às vezes, também mato meus novos hospedeiros. Fica chato, mas ainda estamos nos adaptando um ao outro. Talvez seja o jeito, se eu não encontrar mesmo minha Jei-jei. Cresci tanto, que agora talvez não dê para voltar para minha comunidade. Meu atual corpo tem um quê de monstruoso.

Sim, meus caros, o prazer pode passar das medidas! Pra falar a verdade, tenho uma relação de amor e ódio com os Homo sapiens. Eles são tantos! E vivem aglomerados, é tão fácil pular de corpo em corpo! Infectá-los é moleza, chego a sentir um tédio aqui na boca das minhas coroas por ser tão fácil entrar; vencer o sistema imune é que são elas. 

Fato: há dissabores em ser um sujeito antissistema.

Embora eu tenha ganhado os corpos e os flashes de bilhões dos representantes dessa espécie que dominou a Terra, ela me intriga. Tem rompantes de sadismo horrível, tipo os desses caras de branco, que me fatiam em zilhões de pedaços para, depois, olharem meus restos mortais com lentes especiais. Outros, mostram-se excepcionalmente preocupados com o bem-estar das demais criaturas vivas. Ocupei os corpos de muitos velhinhos pobres e completamente sós, que passavam seus dias a fazerem festas a seus gatos ou a alimentar os pombos. Por que eles não poderiam hospedar mais uma pequena espécie?, perguntei-me, humilde. Não tenho habilidades para ajudá-los em nada, para buscar uma simbiose com meus hospedeiros, mas se evoluir um pouco posso tentar ficar quietinho, sem causar dano. 

Foi então que conheci a extraordinária dona Gisela, e, sentados à beira dos canais de uma maravilhosa cidade da Europa, ouvi-a conversar sobre grandes óperas e boa comida. Seu corpo era cheio de endorfinas e sua mente, de pensamentos alegres e generosos. Dona Gisela era lugar em que dava gosto viver. 

Gostaria muito de que dona Gisela tivesse se tornado minha nova Jei-jei. E tentei de verdade me controlar, mas já não consigo! Nossa convivência durou pouco: dona Gisela tinha diabetes, e fomos juntos para o túmulo. 

Para resumir, é dura e sem sentido a vida de um vírus sem raízes. Um grupo de ajuda mútua seria muito bom. Mas só se for com outros coronas, não com humanos, porque, senão, cedo ao prazer barato e vou tomando o caminho mais fácil… O pior dos vícios que eu desenvolvi junto dessa civilização decadente que me desterrou da minha verdadeira casa para me usar no ancestral jogo da morte.


Gisele Toassa, doutora em Psicologia pela USP, professora da UFG, autora dos livros “Emoções e Vivências em Vigotski” (Ed. Papirus, 2011) e “Gaiolas Sob Medida” (contos, lançamento em breve pela Editora da UFG, 2020).

Obs: a autora não é especialista em vírus. Esta é uma obra de ficção vagamente inspirada em fatos reais.