Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Roma, julho de 2003: o Ministro da Cultura e artista popular Gilberto Gil manifesta-se diante de vários personalidades políticas européias: “a cultura não pode ser excludente, deve ser entendida como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem todos os atos criativos de um povo.”
Criticando todo tipo de imobilismo ou conservadorismo que quisesse manter a cultura em estado de rigor mortis ou de estátua, o genial artista tropicalista, no início de sua trajetória enquanto ministro do presidente Lula, afirmava que esta “constelação dinâmica” de “todos os atos criativos de um povo” deveria estar no foco do agente público que tem por função e ofício estimular a florescência de uma multidiversa criatividade popular.
Para melhor explicar quais as funções que concebe para o poder público na área cultural, Gil evocava a técnica de massagem de origem oriental, o do-in: “É preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país.” (GIL, O Chamado de Roma, pg 215)
Tal concepção – objeto de estudo pormenorizado na tese de Ariel Nunes: Por um “Do-In Antropológico”: Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Políticas Públicas Culturais (UFG, 2012) – reflete toda a amplidão da sabedoria de Gilberto Gil: ao invés de fechar-se em paradigmas ocidentais e eurocêntricos, ele abriu-se para sabedorias ancestrais vindas do Oriente, concebendo uma renovação da cultura brasileira a partir deste do-in antropológico, uma espécie de acupuntura cultural, em que cada um dos pontos-de-cultura no território nacional constituiriam uma teia solidária numa mega-organismo criativo, a ter suas atividades de colaboração produtiva na construção conjunta de uma realidade alternativa estimulada pelo MinC.
Ou seja, Gil quis, na prática, auxiliar a insurgência de nossa nação contra os epistemicídios, como diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O recurso à metáfora da massagem oriental do-in já explicita que Gil quer ir além do discurso hegemônico eurocêntrico, etnocêntrico ou norte-americanizado, em busca da valorização de epistemes e práticas que foram injustamente colocadas à margem – sobretudo as africanas e as orientais. Oriente-se, rapaz! E acorde para todos os Eldorados negros!
Em seu belíssimo livro A Poética e a Política do Corpo em Gilberto Gil (Perspectiva, 2012), a estudiosa Cássia Lopes sintetizou o marco histórico que representou a ascensão de Gil ao ministério:
“Em seu discurso de posse como Ministro da Cultura, Gil propõe um entendimento da noção de cultura que abala as hierarquias consolidadas pela eleição do saber erudito e acadêmico. Abre-se o campo político para ouvir o traçado de uma epistemologia crítica no modo de assimilar o processo cultural: exige-se o diálogo com outras formas de conhecimento, que venham pôr em colapso a perspectiva monolítica do conceito de cultura, ainda colonialista, mantido na valorização da prática letrada. A assunção de Gilberto Gil como ministro permite refletir sobre o exercício epistemológico dominante que silenciou tantas vozes e muitos ritmos, para desqualificar, ou mesmo negar, diferentes formas artísticas e culturais no Brasil e em várias partes do mapa mundial. (…) É indispensável interpretar a ascensão política do cantor popular com lentes atentas a mecanismos que venham validar a multiplicidade de diferentes saberes que compõem o tecido social brasileiro. Em seu discurso, podem-se entrever a exaustão do modelo epistemológico norte-eurocêntrico, cuja prática ratificou representações, sustentou a tradição crítica etnocêntrica, consolidou a ausência de países, de comunidades, de tantos saberes e de rostos nas tomadas de decisões políticas, sem o necessário compartilhamento do poder.” (LOPES, C; 2012, pg. 207 – 208)
Cássia Lopes aponta ainda que Gil busca colaborar para a emergência de uma “consciência bailarina”, em contraste com a consciência petrificada em conceitos rígidos e ortodoxias limitadoras do movimento. Esta consciência que dança, “tal como exercitada pelo ministro e artista, capta o mundo a partir da percepção de suas ondulações, da transformação que pode emergir nos encontros e nas fronteiras interculturais, sem fazer da corporeidade uma serva da razão. De acordo com os versos do cantor, se há um deus eterno, ele se traduz na dinâmica da “Mu-dança”, que reintegra a interioridade e a exterioridade nos movimentos entre o sujeito e o seu campo de atuação na sociedade. O corpo dançarino desenha o social e o político como um campo dinâmico e mutável, capaz de produzir outras partituras de sociabilidade.” (CÁSSIA LOPES, p. 188)
A Casa de Vidro, ao aventurar-se aos trabalhos como ponto de cultura no ano de 2019, apostou na necessidade crucial de manter viva e acesa a chama do do-in antropológico e da teia da Cultura Viva. Nós, agentes culturais que estudamos a fundo as políticas culturais propulsionadas pelo Governo Lula, sabemos que há ali um precioso legado a ser defendido e reativado, posto de novo em ação, em reXistência ativa diante da barbárie estupidificante do bolsonarismo.
O (des)governo Bozofascista, assim que ascendeu ao poder em 2019, decretou a extinção do Ministério da Cultura e tratou com imenso desdém todos os avanços ocasionados pelas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC. A seita Bolsonarista perpetrou, além da obscena destruição do MinC, e da submissão da secretaria de cultura ao Ministério da Família chefiado pela pastora obscurantista Damares Alves, teve ainda alguns episódios lamentáveis como o cosplay de Goebbels de Alvim e a apologia dos anos-de-chumbo da Ditadura no “sejam leves” de Regina Duarte (cantarolando a canção “Pra Frente Brasil”, destinada a alienar nosso povo enquanto a tortura e os assassinatos políticos seguidos de desaparecimento de cadáveres eram práticas correntes do Terrorismo de Estado inaugurado pelo Golpe de 1964 e aprofundado pelo AI-5 de Dezembro de 1968).
A publicação disponível gratuitamente – um livro gráfico colorido, repleta de lindas fotos e diagramada com primor – busca revelar em minúcias o que ocorreu em 2015, durante o XV Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, uma realização da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Naquela ocasião, ocorreu ali a reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, com representantes de todo o Brasil reunidos para pensar as potencialidades e os obstáculos no contexto do programa Cultura Viva.
O conceito chave e fio condutor do livro é a participação social, de modo que buscamos dar voz a muitos dos ponteiros, artistas, produtores culturais, jornalistas, ativistas, agentes comunitários, dentre outros, que participaram desta Polifonia Participativa dentro do “Encontrão”. No manifesto gerado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, nesta ocasião – a Carta de São Jorge – os trabalhadores da cultura escreveram:
“A Política Nacional Cultura Viva (Lei n. 13.018/2014) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Essa política é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada. Chamamos os governos federal, estaduais e municipais a assumirem seu compromisso com a política e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Cultura. Mais do que resistir, convocamos o movimento cultural brasileiro a exercer protagonismo na luta, organizando a sociedade nas redes e nas ruas por mais democracia e mais direitos, unificando esforços de mobilização.” – Carta de São Jorge
“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.” ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]
CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes
Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.
Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).
Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa)[3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker[4].
O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.
Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.
Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].
É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.
Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.
Pintura de Arnold Boecklin
CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA
Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.
Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.
Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?
Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.
Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.
É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.
Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota. A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]
Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]
História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.
CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS
Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.
Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.
Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].
Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”
Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Críton – o filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.
O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.
CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO
Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray[14].
No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].
Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:
“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?
A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]
Alves comenta:
“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]
Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.
“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]
Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]
Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:
“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.
Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.
“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.
O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]
CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA
Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil[21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.
O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.
No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]
A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas. Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.
Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:
“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]
O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]
Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica[25].
CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE
No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]
No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.
No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.
O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].
Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?
O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus. Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.
Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica.[28]
O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.
Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.
A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.
No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]
Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.
CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO
A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.
Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).
Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.
O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992
Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.
– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]
Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte).
Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.
Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.
Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.
Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]
REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS
[1] CAMUS, Albert.Núpcias / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.
[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.
“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”
[3] PESSOA, Fernando.Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:
NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.
[4] BECKER, Ernest.A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:
[10] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ed Record, 2004. [11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual. [12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia. [13] CAMUS, A. La Peste. Folio: 1999, Pg. 191. [14] ONFRAY, Michel.A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult. [15] ALVES, Marcelo. Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas. [16] CAMUS.Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80. [17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [20] RIBEIRO, Hélder.Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90. [21] BBC News Brasil.‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus. [22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [24] CAMUS, A. La Peste. Op cit. [25] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro. [26] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”
[28] CONCHE, Marcel.Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George.História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A.O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito porImmanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A.O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.
Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.
Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.
A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.
Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.
Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.
Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.
Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.
Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.
Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.
Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.
As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.
Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.
E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.
Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.
Keyart for Last Days.
Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell e Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood.
De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.
A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.
Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.
Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.
O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.
Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.
Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.
Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.
Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.
Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.
O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.
Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.
“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE
Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.
Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.
Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.
A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.
Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.
Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.
“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.
Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK
Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.
Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…
Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.
Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.
Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.
E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.
Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.
Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.
E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.
São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.
Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!
Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.
Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…
Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.
Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro Goiânia, 16 de Março de 2020
“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRICKE, David. Live Through This. In: Rolling Stone.
GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.
HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair.
Fico impressionado, de queixo caído, com os múltiplos dons musicais da Tash Sultana. Esta multi-instrumentista australiana, nascida em 1995 lá em Melbourne, vem se destacando no cenário cultural global como uma “banda-duma-mina-só” que esbanja inovação e feeling através dum som viajado, complexo, irrotulável. Sobretudo inspirador.
Virtuose da sinergia, Tash revigora como poucas artistas atuais os domínios do Rock Alternativo e da “cultura neo-hippie”. No processo, semeia fascínio em relação aos poderes da juventude humana quando pode deixar florescer sua criatividade e curiosidade. Com seu controle ímpar de instrumentos múltiplos e pedais de loop, ela chegou pra provar que é possível o surgimento de novos “guitar heroes” que não sejam apenas os que repisam nas pegadas de Clapton, Hendrix, Jeff Beck ou Eddie Van Halen.
Esta guitar heroine despontou com a viralização de seu vídeo caseiro da música “Jungle”, há 3 anos atrás (hoje ele possui cerca de 30.000.000 de visualizações no YouTube – assista abaixo). Com uma câmera estática filmando seu processo de “maga” dos sons, ela mostrou ao mundo que o cenário do indie-rock da Austrália ia muito além do Tame Impala. A performance de Tash, adicionando camadas e mais camadas de sons ao seu caldo de bruxa, voodoo child da novíssima generation, estarreceu muita gente com uma espécie de orquestra rock de uma mulher só:
Natasha (vulgo Tash) empilha sons em camadas superpostas sem precisar para isto do recurso de estúdio do overdub. Ela é capaz de criar, ao vivo, as “paredes de som” Phil Spectorianas que muitos pensavam só serem produzíveis em um contexto de estúdio e overdubbing. Ela é mestra na produção de um fluxo sônico onde os primeiros sons que ela produz na canção entram em estado de loop (repetição cíclica), repetindo-se como um eco do passado que segue presente, e os próximos sons adicionam-se a estes sons tocados no passado que seguem ressoando por proeza da tecnologia digital.
Conforme a canção progride, o que temos é uma espécie de câmara de ecos que poderia chafurdar na confusão mais caótica se não houvesse, no controle do processo, uma “regente” genial de si mesma como esta moça é. A revista Rolling Stone publicou uma crítica onde demonstrou toda sua admiração por um disco de estréia descrito como “deeply impressive”, onde sobressai a “guitar wizardry” da moça que é uma faz-tudo (cantora, compositora, multi-instrumentista, produtora, e por aí vai):
This Melbourne-based busker-gone-legit raises the “do it yourself” stakes with her debut, which is a top-to-bottom showcase of her varied virtuosity; she’s the lone musician credited on the album, as well as its producer and songwriter. Given Sultana’s playing-for-tips roots, it’s probably appropriate that Flow State whirls through styles — “Cigarettes” starts as loose-limbed R&B then speeds things up to a near-frantic pace, “Salvation” recalls the marriage of big beats and gossamer voices that dominated indie discos in the late Nineties, and the simmering “Seven” showcases Sultana’s violin skills over plush synth-pop and agitated chase-scene scores. Sultana can play 20 instruments, but her guitar wizardry is the clear star here; the yearning solo on “Pink Moon” yawps and shudders, while the gathering-storm riffage of “Blackbird” stretches out over nearly ten minutes, all thrilling. After years of being a festival and YouTube sensation, Sultana’s thrown down the gauntlet forcefully. (ROLLING STONE)
Parece-me que este é um procedimento estético que, além de dialogar com aquilo que o Radiohead fez de mais vanguardístico em sua carreira (a exploração cada vez mais arrojada de patterns rítmicos e ambiências que rompessem todas as caixinhas fechadas dos dogmas e paradigmas), aproxima Tash da “lógica” dos mantras budistas. Além disso, faz com que ela dialogue com a filosofia do Eterno Retorno Nietzschiana, como se seu imperativo categórico enquanto musicista fosse: “toque cada nota e cante cada frase como se você quisesse que aqueles compassos se repetissem eternamente no futuro da canção”.
Mas ninguém precisa intelectualizar demais a sua “stésis” (ou seja, seu aprendizado a partir da experiência sensorial) pra apreciar esta música: ela é capaz de fazer algo de benigno com nosso cérebro se simplesmente nos abrirmos a ela, sem pensamentos inúteis servindo de barreira para o impacto de seus encantos. Seus dois primeiros álbuns, Notion (2016) e Flow State (2018) – que A Casa de Vidro disponibiliza para dowload gratuito – penetram por nossos sentidos como uma avalanche sensorial complexa e inebriante, uma espécie de hippie-prog-rock do século 21.
“Synergy”, canção que abre o EP de estréia de Tash Sultana, Notion
A habilidade rítmica da moça faz com que ela seja mestra em nos conduzir ao transe místico. Como uma neo-hippie pilotando a tecnologia da atualidade com maestria poucas vezes vista, Tash Sultana abre novos horizontes para uma percepção mais fluida de mundo e para uma redescoberta da música como mística. Ouvir os álbuns é uma vivência que recomendo, mas antes de ir a eles seria interessante uma imersão nos vídeos, pois neles se explicitam melhor os procedimentos técnicos e performáticos que permitem que uma musicalidade de tamanha complexidade possa nascer, ao vivo, de uma única pessoa, extraordinariamente jovem, que toca todos os instrumentos que se ouvem em seus shows e discos – o que alguns ouvintes vão julgar inacreditável. Tash Sultana toca como se quisesse nos conduzir, pela via dos sons, a alguma espécie nova de iluminação búdica.
Pra se ter uma noção do que são Notion e Flow State, são necessárias repetidas imersões em seus complexos sons. As explorações de territórios novos no indie rock, como Velvet Underground, Talking Heads ou Pixies fizeram no passado, convivem na obra de Sultana com influências culturais orientais, vibes meio rasta, flertes com o dub e o trance, tudo impregnado de uma espiritualidade meio búdica. Uma neo-hippie no perfeito comando da tecnologia a seu dispor, ela é também capaz de explorações existenciais e mergulhos psicológicos que expressam sua subjetividade conturbada. Uma de minhas prediletas fala sobre tudo aquilo que nos oprime por dentro, nos confunde a subjetividade, nos esmaga invisivelmente – tudo que é “assassinato pra mente” (“murder to the mind”):
“I was only screaming out for help It was murder to the mind It was blood on my hands Fire in my soul…”
“Murder to the Mind” é uma das músicas que mais impressionam em Flow State, um dos álbuns de estréia mais ambiciosos do século 21. O videoclipe é primoroso e revela ao espectador toda a densidade da experiência sensorial envolvida em Tash Sultana. Ela, em operação, é um corpo pulsando intensamente com a música, com seu organismo inteiro movimentado pelo estado-de-fluxo que a música propicia quando se é capaz de cometer, com ela e através dela, “abraço místico”, tema de outra das lindas canções do disco, “Mystic”, que evoca Van Morrison e sua música que nos conduz a “velejar into the mystic” em obras-primas da história da música como Moondance e Astral Weeks:
“There’s a natural mystic in the air…”
Na guitarra de Tash, repercutem os ritmos do dub, do ska, do reggae, do R&B, enfim: da diversidade abraçada, celebrada, praticada. Ela vai criando riffs onde também se manifestam toda a maestria Sultânica para a arte do loop. E acima de tudo isso, evidências de sobra de que ela sabe rockear: sua atitude nos palcos e na vida é de alguém que sabe também ser confrontacional. Outro de seus méritos enquanto musicista é que, não importa quão experimental seu som se torne, ela é sempre groovy em seu processo de ir experimentando… Não se trata apenas duma geek privilegiada que está com tempo livre de sobra pra aprender uns gimmicks com pedais-de-guitarra e softwares de sequenciamento de beats. Em Tash Sultana, estes instrumentos estão a serviço da maestria expressiva e interpretativa:
Estamos em uma era, na música, onde se agigantam de novo as teens fenomenais, dando uma nova versão da angústia adolescente através de uma Billie Eilish, mas igualmente através da imensa sabedoria que Tash Sultana já manifestava aos 21 anos de vida. Isso se evidencia na TED Talk em que ela, em clima confessional (similar àquela linda sessão TED com Flaira Ferro), relembra de certos episódios de sua vida pregressa em que lidou com a “psicose”, a confusão mental, a insociabilidade, a incapacidade de funcionar corretamente em meio à sociedade careta. Toda aquela dor, ela diz, foi sendo trabalhada através do tocar música, até que ela tenha alcançado um pouco de “clareza” [clarity] sobre os afetos [passions].
Aí, parece-me, está se exprimindo algo que também marcou a trajetória de Kurt Cobain, aquele irônico e icônico ídolo juvenil suicidado aos 27 e que cravou versos inesquecíveis como aquele que agora acorre à memória: “teenage angst has paid off well” (de “Serve the Servants”, magistral faixa de abertura do “In Utero”). Talvez Sultana possa dizer que conheceu a teenage angst cobainiana, que esteve tentada a auto-destruir-se devido a suas suicidal tendencies, mas que conseguiu, ao contrário do líder do Nirvana, encontrar saúde e clareza através da catarse musicoterápica. O que a aproxima também de Laura Jane Grace, mulher-trans à frente de uma das mais importantes bandas punk do mundo, o Against Me, que também fala no processo de “buscar claridade” em meio ao caos, através de sua arte, em álbuns incríveis como Searching For a Former Clarity e Transgender Disphoria Blues.
Ela não buscou esta catarse através da expressão por vontade de se conformar aos padrões e paradigmas da sociedade careta, mas ao contrário foi “playing the pain away” em sessões de performance-de-rua [streetperforming] que ela foi burilando seu estilo e aprendendo a comandar a impressionante aparelhagem que ela opera. Multi-instrumentista capaz de tocar mais de 10 instrumentos diferentes, ela é prova da vivacidade extasiante da capacidade de aprender humana manifestando-se na flor da juventude. Skateira, pouco conformada aos padrões de gênero que propõe à mulher que seja dócil e comportada, sempre de trejeitos “femininos” (ou seja, delicados…), ela traz na pele tatuada os signos de uma ânsia por sentido, diante da morte, construída com arte.
Aquela TED Talk, neste contexto, ensina uma imensidão: uma mente humana, há 21 anos no mundo, é uma das coisas mais complexas e fascinantes do cosmos – e pobres dos velhos que, prepotentes e arrogantes, ousam desprezar a juventude e supõe que ela é sempre mais tola e estúpida do que a geração que está a mais tempo no mundo. Na verdade, pode ser que o apego às velharias conhecido pelo nome de conservadorismo seja uma esclerose senil e que as forças da renovação da existência encarnam-se na geração juvenil. Isto é tão óbvio e evidente mas precisa ser reafirmado diante de uma faceta que nos esfaqueia no fascismo da atualidade: os fascistas são quase sempre velhos, opressores da juventude, apegados ao dogma de que os mais velhos devem mandar, numa espécie de gerontocracia.
A música e a pessoa de Tash Sultana é pra dar um pontapé nesses arrogantes gerontocratas. A juventude pode muito e ainda vai poder mais: Rimbaud já tinha marcado para sempre a história da poesia francesa com 17 anos de idade, e eu afirmaria sem medo de errar que a música “pop” nos EUA poucas vezes foi marcada por uma obra prima artística tão primorosa quanto foi pelo lançamento de Tidal, disco de estréia gravado por uma Fiona Apple que havia criado aquilo após apenas 16 giros de seu corpo ao redor do Sol.
Na esteira dos Beatles e do mantra “Can’t Buy Me Love”, ela realizou “Can’t Buy Happiness” (Não Se Pode Comprar Felicidade), sugerindo que só se é feliz, nesta vida, quando utilizamos a criatividade para lidar com os sofrimentos inevitáveis que a vida comporta.
A salvação não precisa ser privilégio dos crentes, nem ser necessariamente post mortem: pra salvar-se em vida de uma morte travestida de existência, de uma meia-viva apagadinha e meia-boca, é preciso que a arte seja convocada para infundir beleza e sentido ao que de outro modo poderia chafurdar no nonsense e na insignificância confusa. Para além de ser uma wizard dos instrumentos musicais, de ser brilhante no controle dos aparatos tecnológicos, Tash Sultana é também alguém que vivencia a arte como espiritualidade – o que é laico, secular, acessível a qualquer ateu. A beleza é um deus terreno que não exige de nós crença na transcendência sobrenatural, nem sacrifícios ascéticos em louvor a esta. Salvação, aqui e agora, através da criação, pela arte, de um mundo mais belo e mais habitável, de uma vida mais fascinante e envolvente.
É claro que, de um viés crítico, há o que se dizer sobre esta hipérbole do protagonismo que é o método do-it-yourself de Sultana levado ao extremo de um do-it-alone (with no one else). Alguns podem ler excesso de individualismo nesta estratégia artística de alguém que quer fazer tudo, estar no controle de todos os elementos, levando a questão da expressão individual à elefantíase. Avessa à especialização de funções, Tash não quis chamar uns brothers ou sisters para tocarem baixo, batera, trompete com ela. Ela toca consigo. Será isso solipsismo? Mesmo numa artista que, em “Mystic”, nos fala de uma sabedoria que consiste em botar o ego pra dormir?
“I guess I laid my ego to rest.” (“Mystic”)
Ela corre o risco de se embrenhar numa jornada egóica, como muito guitar hero já fez, fazendo a ostentação de seus feats técnicos para platéias embasbacadas. Ela é prodigiosa e sabe disso, mas isto coloca o perigo de um ego que cresça como um balão que se enche de ar e se desprega do chão. De todo modo, como o clipe de “Cigarettes” indica, Tash é um exemplo vivo do que pode acontecer com alguém que tem sua iniciação musical bem cedo, que tem seus dons expressivos incentivados desde o berço, e que ademais consegue trilhar como estudante os caminhos do aprendizado auto-didata (ela se diz self-taught):
Em seu pertinente e provocante documentário The Century of the Self, Adam Curtis sugeriu que vivemos no “século do self” no último centênio. Tash Sultana é expressão isso, de uma self made woman que conseguiu tornar-se “sozinha” um fenômeno transnacional da música. Só que este self é nela questionado pelos tropismos que ela manifesta pelas vertentes da sabedoria oriental que colocam a felicidade justamente na transcendência do ego e numa mística da re-união. Búdica religião do re-ligare, que através da arte faz o eu transbordar de si e encontrar-se com outros na mística profana e maravilhosa da comunicação estética. Através de sua arte, como uma blueswoman tecnizada, ela segue a caminhada da vida playing the blues away, na descoberta de uma catarse musicoterápica.
01 – Ande (Feat. VH) (0:17)
02 – Areia Vermelha (8:59)
03 – De Rolê (12:15)
04 – Buquê de Plástico (16:18)
05 – Netflix (19:33)
06 – Esferográfica (23:02)
07 – Casa de Ferro (26:05)
08 – Vida Rara (29:28)
09 – Força Flor (30:52)
10 – Preto (Feat. VH) (37:27)
Gravado em 28 de Setembro de 2019, em Goiânia, no ponto de cultura A Casa de Vidro em 1ª Av. 974 (St. Leste Universitário). Técnico de som e gravação: Bern Silva. Produção cultural e audiovisual: Eduardo Carli de Moraes. Ilustração da capa (em transparência): Rafael Brito. Poster por Gustavo Lopes Assis.
O Ponto de Cultura A Casa de Vidro, localizado no Setor Universitário de Goiânia, promoveu sua inauguração oficial em Agosto de 2019. Realizamos, como evento inaugural, a 6ª edição do Confluências: Festival de Artes Integradas, que rolou em 31/08/19 em um dia de atividades que pôs as vertentes artísticas e as resistências políticas pra confluir. Assista abaixo o documentário curta-metragem que agrega um pouco da trajetória do “Conflu” nas suas 5 primeiras edições, e na sequência aprecie um pouco dos rastros e ecos deste sexto rolê:
CONFLUÊNCIAS #6
Houve a inauguração do mural na frente da casa com a obra “Guerrilha” de Diogo Rustoff (que também assina o cartaz do evento). A obra nasce dos bate-papos entre o produtor cultural (Edu Carli) e o grafiteiro Rustoff em que matutaram sobre a melhor representação gráfica da ideia de Artes Integradas em uma época como a nossa, em que vem triunfando o obscurantismo neofascista. No mural, quatro figuras, duas masculinas e duas femininas, empunham suas “armas” que atiram belezas e não balas: os livros, as câmeras, os violões, as tintas etc.
No grafite, atentem para um detalhe: o folk antifascista marca presença em uma das figuras do mural pois no Batalhão Cultural o artista Rustoff evocou o emblemático “This Machine Kills Fascists”, lema inscrito no violão do lendário Woody Guthrie, cantor e compositor que inspirou lendas da música politizada como Bob Dylan, Joe Strummer, Rage Against The Machine, dentre outros.
Houve também o lançamento do curta-metragem: “A Arte de (R)Existir” – Transexualidade em Goiânia, com projeção seguida de debate com as realizadoras: Daniela Alpa, Dani Bettini, Lays Vieira, seguido por bate-papo sobre o livro “Por Que Não Me Sinto Segura Dentro Da Minha Própria Casa? – A Chacina do Solar Bougainville”. Lançado em 2019, o livro foi apresentado por sua autora Maria Ramos e pelas ativistas do grupo Mães Pela Paz, além de participações do deputado Mauro Rubem e da representante do Comitê de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno, Angela Cristina Ferreira.
Para fechar a noite, tivemos shows com importantes figuras da música autoral alternativa do cenário goianiense: o quinteto Cabaré Lúdico (vulgo Cabi Ludus) e o cantor-compositor Rheuter (acompanhado por Fernanda e Pabli). Confira a cobertura:
FOTOGRAFIA – Por Ana Maria Maia || Perpettuart
NO ESTÚDIO CONFLUÊNCIAS… ENSAIO DOS CABI LUDUS:
VÍDEOS AO VIVO
Caliente show da banda Cabaré Lúdico (vulgo Cabi Ludus); neste vídeo, confira trechos da canção autoral “Galinha Papelada” e também da cover de “Bogotá” do Criolo. A banda é composta por Ênio (guitarra e voz), Akira (percussão e voz), Levi (baixo), Guilherme (trompete) e Rafael (guitarra). Filmagem e montagem por Eduardo Carli de Moraes. Goiânia, 31/08/2019.
“NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM é um postulado ético, de solidariedade mútua, proteção e cuidado, porém entre uma mão e outra existem diferenças que remetem à própria constituição da humanidade dos sujeitos e do enquadramento de suas vidas como vivíveis ou não. Que mãos estamos dispostos a segurar e não soltar? Ou ainda, quais mãos sequer enxergamos para segurar e não soltar? O chão que se pulveriza sob nossos pés nos traga desigualmente e de formas múltiplas. As vulnerabilidades e fragilidades das vidas ao nosso lado são, muitas vezes, imperceptíveis, se vistas estritamente sob a nossa perspectiva.
A ética expressa nesse enunciado tem ainda outra dimensão fundamental sobre a qual não posso deixar de falar. A proposição expressa é profundamente corporal. Não se trata de “Ninguém esquece ninguém” e nem mesmo de “Ninguém deixa de pensar na vida de ninguém”. Convida o corpo à ação e ao encontro. Convida à contaminação com o suor que o contato ininterrupto com outra mão produz. Seu acerto, penso eu, consiste justamente na mobilização corporal e não simplesmente racional.
É certo que se trata de uma metáfora construída, inicialmente, na conjunção de imagens-palavra e imagens-desenho que, se por um lado comunicam solidariedade, cuidado, corpo e ética, por outro parecem produzir um afeto não consolidado no plano do simbólico, posto que é linguagem poética… produz afetações múltiplas, subvertendo as molduras masculinistas das teorias da solidariedade, constituindo, talvez, uma ética do encontro, que se orienta pela perturbação das forças e poderes que fabricaram o mundo abissal que parecemos habitar nos últimos tempos.
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Uma travesti em Campinas tem seu coração arrancado. Sobre seu peito vazio o assassino deita a imagem de uma santa. (…) ‘Quién dijo que todo está perdido? / Yo vengo a ofrecer mi corazón“, este famoso trecho da composição de Fito Páez, eternizada na voz de Mercedes Sosa, foi a primeira lembrança que me veio à mente depois da notícia desta crime bárbaro. O coração de Quelly da Silva não foi oferecido a ninguém. Ofereçamos os nossos em nome da vida, para que não nos sejam arrancados. Falemos de esperança e afirmemos a vida.
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Conheci um coletivo de artivismo chamado A Revolta da Lâmpada. Para além dos nomes já conhecidos e inscritos nas tradições reivindicatórias do Ocidente (LGBT, queer, feminismo), eles falavam em ‘corpo livre’. Todos são corporificados. O corpo imigrante. O corpo gordo. O corpo deficiente. O corpo das mulheres. O corpo dos homens. Todos esses corpos são alvo do controle, frequentemente violento. Uma política que parta do corpo livre. Livre da pobreza. Livre da tortura. Livre da violência. Livre dos estigmas. O que pode uma política do corpo?”
“Por quantas vezes
meus olhos
por quantas vezes
foram a cólera,
por quantas
o brilho do amor?
Meus lábios
por quantas vezes
foram sussurros,
por quantas
palavras sem cor?
Meus braços
por quantas vezes
travesseiro macio,
por quantas vezes
pesadelo e torpor?
Meus pés
por quantas vezes
um afago de chão,
por quantas vezes
patadas de dor?
Minhas mãos
por quantas vezes
foram acenos,
por quantas vezes
foram adeus?
Mas
do amor
eu não solto a mão.
Não solto, não!
Ninguém solta a mão de ninguém.”
Música e letra: Lauro Henriques Jr e Ceumar Voz: Ceumar Sanfona: Lívia Mattos Ilustrações: Thereza Nardelli Direção geral e montagem: Rafael Bispo Direção de fotografia: Eduardo Makino
Desde 2013, ano em que conheci uma galera da universidade trabalhando com Cultura Popular, estive curiosa pra conhecer um pouco do nordeste brasileiro. Com o benefício do IDJovem foi possível estar em alguns lugares: na Bahia em 2018 e agora, iniciando o caótico 2019 na voadora, fui experienciar o maior carnaval de rua do mundo ou, como é chamado em sua casa: o verdadeiro Carnaval brasileiro de Recife/Olinda.
Saí de São Jorge – Alto Paraíso – Brasília dia 12, cheguei na capital de Pernambuco dia 14 de fevereiro e rumei pra Olinda, porque tinha guardado o telefone de um possível contato pra me hospedar por lá. E deu certo, uma casinha muito aconchegante de uma senhora e seu irmão na Rua do Sol, que dá acesso à Praça do Carmo no coração de Olinda, um dos principais focos do carnaval. Com um orçamento limitado pro rolê (média de 20 reais por dia), passei todas as semanas tratada como se fosse da família. Caminhos abertos pra chegar.
Na época de pré-carnaval, em que as troças de frevo, nações de maracatu, afoxés entre outros grupos de diversas manifestações artísticas ensaiam pelas ruas das cidades, as barraquinhas e vendedores ambulantes vão chegando a cada dia, marcando seus pontos e presenças nas prévias da grande folia. Essas foram as pessoas com quem mais interagi durante todo o tempo. Afinal, se eu queria conhecer essa festa, nada mais necessário que conversar com quem está à frente da produção dela. E nesse sentido, pra grande parte da população dali Carnaval é sinônimo de trabalho, não de curtição.
Até conhecer o Recife esse ano, havia determinado que a festa pra mim seria em retiros espirituais ou qualquer lugar bem longe das multidões. Outros carnavais que presenciei eram sempre no mesmo estilo: a cultura de ostentação e do desperdício, homens importunando mulheres por todos os lados, brigas… Vish, sem condições. Mas o que vi esse ano em Recife/Olinda mudou um pouco minha visão sobre nossa folia brasileira.
Pra além de toda estrutura da festa: palcos gigantes em vários cantos das cidades, bases de corpo de bombeiros em todo lugar e as lindas decorações das ruas, pude observar várias campanhas: contra o racismo e homofobia grafitadas em diversos pontos, contra o assédio e importunação às mulheres, principalmente. Além da prefeitura, várias empresas privadas contribuíram com materiais impressos e adesivos distribuídos no meio da multidão. Um clipe passava nos palcos em todos os intervalos de bandas:
Sentada no Marco Zero esperando pela próxima atração que viria, ao tocar essa música um homem do meu lado virou pra mim e disse: “É um absurdo ainda ter caras que tão nessa. Quando fui casado eu agredi minha ex-mulher algumas vezes. Hoje tenho vergonha de lembrar que fiz isso”.
No Recife antigo transitei por vários lugares. A Praça do Arsenal foi a que mais frequentei, porque era um palco de vasta representatividade feminina. Por ali passaram significativos nomes da música contemporânea como Dona Onete, Alessandra Leão, Karina Buhr e Isaar, além do desfile oficial do Movimento Feminista Baque Mulher, guiado pela Mestra Joana Cavalcante, a primeira e única mestra de uma nação de maracatu (Encanto do Pina) na história.
Admirei muito o sentimento de pertencimento daquele povo. As pessoas amam seus sotaques e suas tradições. Como foi bom escutar bandas que já curtia muito como Nação Zumbi, Academia da Berlinda, Eddie, Cordel do Fogo Encantado, Siba, Banda de Pau e Corda e juntar no coro com a multidão cantando a plenos pulmões.
Uma máxima que rolou em vários lugares esse ano não passou despercebida por ali: “ai ai ai, Bolsonaro é o carai” em todo e qualquer bloco que passasse pelas ruas abarrotadas de gente. Outra que contagiou foi: “quem ficar parado é eleitor do Bolsonaro”, olhava pro lado e todo mundo se mexendo de alguma forma… Quando a figura do presidente apareceu num dos Bonecos Gigantes de Olinda não deu outra: foi vaiado e acertado por latas de cerveja.
Das coisas mais emocionantes que vi na vida foi a abertura da festa no Recife. O palco do Marco Zero na quinta-feira é o momento em que afoxés e maracatus fazem suas celebrações pedindo as bênçãos dos Orixás, pra que o Carnaval seja de paz para todas. “O Carnaval do Recife é negro”, Doroty Marques me disse uma vez e pude confirmar isso. Pra além dos tambores e atabaques, os estandartes, figurinos e danças, as heranças da ancestralidade negra reverberam por aquelas praças de uma forma que é impossível não se arrepiar.
Tudo que vi: afoxés, frevos, cocos, bois, maracatus deixaram explícita a grande força dos movimentos de resistência pela Cultura Popular. Boa parte dessas manifestações são oriundas dos Ilês, localizados em regiões periféricas das cidades. Então, muito além do brilhantismo e magnificência das apresentações no Carnaval, esses movimentos representam a religiosidade e o trabalho de muitas pessoas. Podemos aprender um pouco mais sobre ancestralidade africana com Mateus Aleluia:
É muito importante pra pessoas que, como eu, foram privilegiadas por iniciar os estudos de Cultura Popular na universidade, que busquem a oportunidade de ver de perto os princípios que regem isso tudo. Tocar maracatu, por exemplo, é uma coisa que se alastrou pelo mundo depois do movimento Manguebeat. Diversos grupos de estudo desse ritmo estão espalhados pelo país e é fundamental que todos se preocupem em dialogar sobre a ampla legitimidade que essa manifestação popular representa na história do Brasil.
Muito embora 100% das pessoas tenham me alertado sobre os perigos de andar só na cidade grande, me atrevi a fazer isso: andei sozinha na maior parte do tempo. Foi uma oportunidade de exercitar a ligeireza, o carisma com pessoas aleatórias que jamais vi ou verei novamente, entre outras que se tornaram novas amizades e amores. Passei várias tardes em Olinda e noites no Recife, me locomovendo por metrô e voltando pra casa nos ônibus da madrugada que saía do Cais de Santa Rita. Foi preciso criar estratégias: sair apenas com documentos e pouco dinheiro numa bolsa imperceptível por debaixo da roupa, andar nos fluxos de gente, aproximar de grupos fingindo que estava com eles… me aproximei muito das minas e monas, me sentia mais confortável perto delas. Quando percebiam minha presença eu explicava meu rolê solitário, a galera compreendia e cuidava de mim. Fiquei maravilhada com o acolhimento daqueles corações nordestinos.
Quando chega a quarta-feira de cinzas as cidades se esvaziam, mas a festa está longe de acabar. Seguindo um fluxo alternativo do foco central do Carnaval, as apresentações dos bois descem a ladeira na Rua da Boa Hora em Olinda com suas reverências, seus estandartes e brincadeiras com fogo ou bloco de pifes com zabumbas e triângulos e metais e tambores… O desfile dos boizinhos é também um espetáculo encantador, de encher os olhos d’água quando passa pela força ancestral que transmite.
O Carnaval hoje pra mim tem outro significado. É o lugar de fala do nosso povo, um momento pra brincar, se divertir, mas também praticar atitudes políticas. Desde a fantasia que se escolhe até o momento de deitar na cama pra descansar desses intensos dias de fevereiro/março, carregamos responsabilidades conosco e com a nossa sociedade. Quero ver esse Carnaval, que ainda “só em Pernambuco é assim”, inspirar outros em nosso país e deixar explícito pro mundo a força da Cultura Popular Brasileira.
TAMYRES MACIELA é cantautora e multi-instrumentista. Formada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem pela UFOP. Desenvolve pesquisas nas áreas de estudos culturais, cultura popular e história da música brasileira. Colunista na Escuta que é bom e n’A Casa de Vidro.
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LEIA AS COLUNAS ANTERIORES DE TAMYRES MACIELA EM A CASA DE VIDRO:
“A liberdade se dá como conquista porque só existe como empenho de libertação”, escreve Luiz Carlos Maciel (1938 – 2017) em seu texto Ontologia da Liberdade (RJ: 2014, p. 268). Nenhuma liberdade cairá do céu, chovendo de graça no colo de quem nada fez por ela. Pois toda liberdade é conquistada por aqueles que estão empenhados no trampo infindável de libert-ação.
Eis uma das lições de Maciel, cognominado “Guru da Contracultura” no Brasil. Um cara que foi figura-chave na determinação dos destinos da cultura brasileira na segunda metade do séc. XX, em especial por seu envolvimento intenso com a Tropicália. Descrita como fruto da “necessidade de uma arte popular de ponta, de caráter internacionalista”, a “rebelião tropicalista” é compreendida por ele não apenas como “uma estética de vanguarda”, mas como um movimento que “ofereceu uma nova visão da chamada ‘realidade brasileira’, sem as limitações ideológicas tradicionais” (MACIEL, 2014, p. 165).
Para resistir aos encantos nefastos e paralisadores das ideologias reinantes, que nos querem adestrar para conformismos indignos e vidas fúteis-inúteis, é preciso aprender nas escolas de transgressão e subversão. Com hippiese punks, com beatniks e griots, com MCs e rastafaris, temos muito a aprender. Desde que queiramos cumprir a imanente missão que anima tantas vidas cujas criações culturais vão contra a corrente.
“Minha geração”, escreve Maciel, “foi marcada pela política. Achávamos que tínhamos a missão sagrada de libertar nosso país da dominação, nosso povo da exploração, nossas vidas da neurose e nosso planeta da catástrofe. E o meio adequado para atingir tais objetivos era a política. Pelo menos, foi isso o que Sartre nos ensinou.” (Geração em transe, memórias do tempo do tropicalismo,pg. 25 e 26)
Na aprendizagem com as vidas que saíram dos eixos, que deixaram-nos como legado o exemplo de suas singularidades inimitáveis, podemos nos libertar. Como só o fazem aqueles que, ao se moverem, sentem-se as correntes que os prendem – para lembrar um pensamento emblemático da Rosa Luxemburgo.
As contraculturas nos ensinam a sermos nós mesmos, para não decairmos ao status triste de indivíduos que se tornam ovelhas brancas nos alvos rebanhos das conformidades estúpidas. Nenhum mérito ou valor no ethos de quem somente faz mímese do que a sociedade impõe como modelo dominante. As contraculturas, como na música celebrizada por Doralyce e Bia Ferreira, nos ensinam a levantar a voz dizendo “foda-se o padrão!”
Maciel produziu uma obra magistral em que é capaz de interlocução intensa com tudo o que já existiu de mais libertário naquilo que o ser humano já produziu sob O Sol da Liberdade, título de seu belo livro publicado em 2014. Em intenso diálogo com o Existencialismo (Sartre, Camus, Kierkegaard, filtrados por seu mestre Gerd Borheim), Maciel foi também um discutidor e disseminador da Psicologia subversiva de W. Reich, H. Marcuse e Norman O. Brown. Além de ter mergulhado nas obras de visionários psicodélicos como Timothy Leary, Alan Watts e Carlos Castañeda. Tudo isso em íntima conexão com aquilo que o Brasil produziu de melhor no campo das culturas que vão contra a corrente.
Da Antropofagia oswaldiana à Tropicália, as Contraculturas brasileiras difundiram o convite para que fôssemos, todos e cada um, singulares e conectíveis,mas jamais uniformizados e em uníssono. Se quisermos ser avessos e contrários aos que nos querem rezando de joelhos, resignados às injustiças e apáticos suportadores de tiranias, devemos beber em largos goles as fortes e salutares poções contraculturais.
As diferentes contraculturas – que merecem ser pensadas sempre no plural, nunca no singular – são laboratórios de outras formas-de-existir, outros modos-de-ser. Se, nos EUA, costumamos conectar contracultura com “gurus” como Allen Ginsberg e Ken Kesey, no Brasil poucas figuras são mais emblemáticas desse modo-de-existir da contraculturalidade do que Luiz Carlos Maciel – um cara que pôde transformar um livro de memórias, como é Geração em Transe, em uma espécie de tratado estético-político para a cultura contrahegemônica em terra brasilis.
Neste livro magistral, focando sua atenção sobre 3 gênios, Maciel sobrevoa nossa contracultura nas asas de Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Correa e Caetano Veloso. E acaba pintando um excitante retrato das transas e transes de toda uma geração que acreditava de maneira entusiástica nas potências libertárias, emancipatórias e revolucionárias da arte:
Luiz Carlos Maciel (1938 – 2017)
“Uma das descobertas fundamentais de minha geração foi a de que a experiência pessoal, de cada um de nós, tem uma relação íntima, essencial, com a experiência coletiva, social. Trata-se, no mínimo, de uma relação de sincronicidade, como diria C. G. Jung, que fez com que a minha vida e a vida de todos, a vida comum, tivessem sido interdependentes. Numa visão mais radical, pode-se dizer que se trata, no fundo, de uma relação de pura identidade: a vida de todos e a de cada um são, na verdade, uma e a mesma coisa.
Se alguém pedisse para dizer a principal crença da juventude da minha geração, eu diria sem titubear: a atribuição à arte de uma função transformadora da sociedade. Acreditava-se realmente que a arte poderia modificar a maneira das pessoas viverem. Essa crença impulsionou a minha geração e levou-a para caminhos inusitados, surpreendentes, criadores.
Os jovens daquela época pensavam que o sentido da vida humana era transformar. O quê? De preferência, tudo, mas principalmente o que estava estabelecido pela nossa cultura ocidental e burguesa. O não ao establishment se refletia em posturas iconoclastas, em negativas irreverentes, em atitudes inovadoras – às quais atribuíamos um grande valor. A arte colocava a mudança na ordem do dia.” (MACIEL, Geração em Transe – memórias do tempo do tropicalismo, Ed. Nova Fronteira. pg. 15 e 73.)
Glauber Rocha, como fica evidente desde o título do livro, é um dos protagonistas de Geração em Transe, encarnação do gênio contracultural que seguia a risca a práxis sintetizada no lema: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.” Para Glauber, fazer filmes importa bem mais que somente assisti-los. Ainda que tenha sido também um crítico de cinema, Glauber era essencialmente um criador cinematográfico, um dos maiores inovadores na história da 7ª arte, um espírito indomável, jamais adestrável, declarado como inimigo público pela Ditadura Militar – tal como revelado pela reportagem da Socialista Morena Cynara Menezes:
Glauber – cuja juventude foi exposta com maestria por Nelson Motta em A Primavera do Dragão – propunha de modo explícito um cinema de guerrilha que tivesse como alvo supremo “combater a ditadura estética e econômica do cinema imperialista ocidental ou do cinema demagógico socialista.” (citado por Maciel, p. 49)
A recusa desses dois modelos – nem os filmes Yankees, nem os filmes Stalinistas – fez de Glauber o aventureiro que cria caminhos próprios e marca a história de nossa arte com 20 e poucos anos de idade ao lançar a tríade magnífica de filmes com que lançou seu metereórica carreira: Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe.
Maciel relembra seu amigo e colaborador como um cara de personalidade forte e irreverente, que sabia dar ordens com determinação aos outros atores e agentes culturais com quem interagiu. O livro é repleto de crônicas saborosas que envolvem figuras como Helena Ignez, musa glauberiana e Glamour Girl da Bahia, que enquanto noiva do cineasta contrabandeava material escrito por Glauber para a imprensa, já que ela era colunista social do Diário de Notícias de Salvador.
O florescimento cultural conexo às figuras de Glauber, Helena, Maciel, Abujamra etc. envolve um entusiasmo infatigável pela produção ou criação do novo – o que demanda não só talento mas coragem. Sabendo da imensa força cultural da Bahia de seu tempo, o jovem Glauber foi uma espécie de visionário da Tropicália antes desta nascer: segundo Maciel, “Glauber anteviu tudo com suas privilegiadas antenas de artista.” (p. 55)
Segundo Maciel, Glauber “botava todo mundo pra trabalhar” e “não podia suportar a complacência, a indulgência, a inação” (p. 91). Acreditava no cinema como forma de ação – e foi assim que ajudou a pôr em transe criativo toda uma geração. Uma das mais corajosas, ousadas e inventivas que já botou em efervescência a cultura brasileira.
Hoje já é bem conhecida a responsabilidade de Glauber na eclosão da revolução estética tropicalista, cujos cabeças beberam muito na experiência de Terra em Transe (1967). Segundo Maciel, 1967 foi de fato um “ano excepcional na história da cultura brasileira, só comparável a 1922, com a eclosão do Modernismo” (2014. p. 143).
Naquela translação do planeta ao redor do Sol de 1967, em plena Ditadura Militar, também eclodiram O Rei da Vela, peça do Teatro Oficina atualizando Oswald de Andrade, PanAmérica, romance experimental de José Agrippino de Paulo, e a canção “Tropicália” de Caetano Veloso, batizada em homenagem à exposição de Hélio Oiticica e que batizaria o movimento nascente.
Comentando um livro crucial, Maciel aponta: “Para os norte-americanos Ken Goffman e Dan Joy, em A Contracultura Através Dos Tempos (2007), a nossa Tropicália é uma contracultura. Como a contracultura norte-americana, o Tropicalismo enfrentou a censura política, tanto da direita quanto da esquerda, os preconceitos morais gerados pela repressão sexual, os cânones rígidos da estética tradicional, entre outros – em suma, o establishment, em seus traços essenciais -, a alienação, a reificação e a serialização.” (2014: p. 274)
Para que pudesse produzir inovação e criatividade em intensos jorros durante seu curto período de vida, antes de ser “abatida em pleno vôo pelo A.I. 5” (como diz Tárik de Souza), a Revolução Tropicalista apostou tudo na criação baseada na mestiçagem, no hibridismo, no sincretismo, no amálgama, processos distanciados de todos os purismos e puritanismos que sempre prejudicam o nosso empenho libertário e criativo.
“Jorge Mautner (baixe a discografia dele) enfatiza o caráter de amálgama para definir a própria natureza da cultura brasileira e de sua criação incessante. A relação entre o modernismo de 1922 e o tropicalismo de 1967, por exemplo, é reveladora. A Tropicália, nítido exemplo de amálgama superior expressa o próprio espírito dessa cultura, sua liberdade real. Caetano Veloso diz que os Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, de Oswald de Andrade, foram ‘uma redescoberta e uma fundação do Brasil’. E destaca, nos textos de Oswald, a antropofagia como uma metáfora da devoração de toda informação vinda de fora, a exemplo da deglutição do bispo Sardinha por nossos índios, e, portanto, do próprio fundamento da nossa nacionalidade.
Os manifestos de Oswald teorizam, pela primeira vez, o sincretismo brasileiro como a expressão mais plena da índole da cultura que estamos construindo. Ainda segundo Caetano, ‘a palavra-chave para entender o tropicalismo é o sincretismo’, ou seja, o amálgama de Mautner. Emancipado de coações naturais e históricas, independente em face de censuras, preconceitos e cânones, o sincretismo, não só o tropicalista, mas do brasileiro em geral, é liberdade real.
Mesmo o primeiro que se apresenta, o sincretismo religioso brasileiro só foi possível graças à nossa vocação originária para a liberdade real. A umbanda é uma invenção brasileira que funde orixás africanos e santos católicos; as seitas criadas para a ingestão da ayahuasca são outra invenção brasileira que tem raízes ideológicas no catecismo católico, mas transformadas por uma mitologia indígena. A união entre as duas correntes, no que alguns chamam de Umbandaime, em que giras de umbanda são realizadas tendo o daime como curiador, parece culminar o sincretismo religioso brasileiro.
O avanço do processo cultural brasileiro depende, direta e essencialmente, do sincretismo e, portanto, da liberdade real.” (MACIEL: 2014, p. 275 – 276)
Em 1967, a canção “Roda Viva”, de Chico Buarque, pousou no cenário cultural causando estrondo. Sem ser panfletária, esta música atravessou os tempos da ditadura, entrou na era democrática e transformou-se, junto com “Cálice” e “Apesar de Você”, num dos emblemas da época.
Com ela o jovem cantor-compositor conquistou o 3º lugar no III Festival da TV Record, consagrando-se ainda mais no cenário cultural no qual já havia faturado, com “A Banda”, reconhecimento prévio significativo no fervilhante front dos festivais.
Hoje é cada vez mais evidente que a canção ganharia este caráter emblemático, esta característica de canção que encapsula toda uma época, só após os episódios polêmicos e explosivos envolvendo a encenação da peça teatral homônima pelo Teatro Oficina, com Zé Celso Martinez Côrrea e sua trupe agindo de modo altamente irreverente e provocativo.
Endiabrados nas suas travessuras em louvor a Dionísio, em suas antropofagias à la Oswald de Andrade, em suas invenciones inspiradas por Artaud, Brecht ou Meyerhold, o pessoal do Oficina lançou Roda Viva para as trincheiras da vanguarda do desbunde.
Porém, Chico lá esteve com sua performance de bom moço, sem arroubos selvagens (como havia sido aquela de Sérgio Ricardo destruindo seu violão). A “Roda Viva” que foi transmitida pela TV ainda não havia se alçado a seu destino maior: os anseios de liberdade que esta canção continha em seu centro pulsante só foram amplamente libertadas no teatro, no terreiro dionisíaco do Oficina.
Coro da peça em 1968, com nomes como Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel.
“A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar!” Versos assim empolgavam a juventude libertária daqueles tempos de trevas e de chumbo. Diante da opressão institucionalizada desde o advento da Ditadura com o golpe de 1964, muitos jovens artistas e intelectuais debatiam intensamente os caminhos possíveis diante da tirania militarizada, e os dois principais caminhos constituíam aquela encruzilhada fundamental: guerrilha ou desbunde?
Os anseios de liberdade reprimidos, que vinham sendo sistematicamente pisoteados pelo regime opressor, tinham que se manifestar por vias menos explícitas, por vias mais sutis. Uma arte de que Chico Buarque era, na poesia musicada, incontestável mestre, driblando a tesoura dos censores com sua inteligência lírica ímpar.
Segundo Franklin Martins, a música tinha um subtexto poderoso que remetia a essa gente que queria ter voz ativa e em seu destino mandar estava sendo amordaçada pela tirania ditatorial: “a roda-viva, aquela que ‘carrega o destino pra lá’, poderia ser vista como um símbolo da máquina repressiva que asfixiava a sociedade.” (MARTINS, Franklin: Quem foi que inventou o Brasil – Volume 2 (1964 a 1985) – Ed. Nova Fronteira, 2005, pg. 95)
Ao coletar 50 curiosidade sobre a peça, Miguel Arcanjo Prado enfatizou com justiça que Roda Viva, a canção que originaria a peça, não existiria sem o impacto causado sobre Chico Buarque de sua experiência diante de O Rei da Vela, oswaldiana experiência antropofágico-dionisíaca que marcou a trajetória do Oficina nos anos 1960.
Em Roda Viva, a peça, Chico Buarque elege como protagonista
“um cantor popular chamado Benedito Silva, logo transformado em Ben Silver, que era obrigado a mudar constantemente de personalidade para sobreviver na selva dos espetáculos. A montagem inovadora do diretor Zé Celso, que já trazia em seu currículo a revolucionária encenação de O Rei da Vela de Oswald de Andrade, provocou muita polêmica.
Na noite de 27 de julho de 1967, o Teatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada, foi invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização terrorista de extrema-direita. Os agressores destruíram cenários e espancaram atores e técnicos.” (Martins, op cit, p. 95)
Roda Viva em montagem de 1968, dirigida por José Celso Martinez Corrêa
Uma espécie de jocosa e absurdista denúncia da sociedade do espétaculo, Roda Viva não era obra de alguém que estivesse de fora da engrenagem. Chico Buarque estava no processo de não se deixar moer pela maquinaria do show biz.
Roda Viva, vale lembrar, era uma criação teatral nascida das inquietações e provocações dum pop star brasileiro de apenas 24 anos, alçado subitamente ao posto de celebridade após seu hit “A Banda” – que catapultou o filho de Sérgio Buarque de Hollanda (autor de Raízes do Brasil) para os píncaros da fama.
Na figura de Ben Silver, Chico Buarque exercita, de modo esperto e sarcástico, seu pleno direito de crítica à máquina-de-moer-gente usualmente conhecida como showbusiness.
Roda Viva representa uma espécie de ethos punk que toma conta de Chico, com ele mandando às favas o bom-mocismo, como escreveu Bruno Hoffman:
“Garotas de classe média – e de cabelos impecáveis – lotaram o auditório do Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. Afinal, era a estréia da peça Roda Viva, escrita pelo genro ideal de seus pais, Chico Buarque. As meninas suspiravam ao imaginar o que o ‘cantor dos olhos de ardósia’ e símbolo do bom-mocismo havia criado. Quando as cortinas se abriram, entretanto, todas ficaram espantadas. A peça era extremamente provocativa, quase violenta.”
Sabemos que Chico acabou indo pro exílio em Roma quando o chumbo esquentou demais no período de vigência do AI-5 (1968 a 1978).
Mesmo de maneira cifrada, como em “Cálice”, suas críticas ao regime dos milicos rendiam-lhe dissabores e conflitos, inclusive com tentativas de sabotagem de seus shows.
O documentário Phono 73 revela um pouco de como eram altamente iconoclastas e perturbadoras as performances buarquianas sobre os palcos por volta de 1973. Revela também que, para além da tesoura e da mordaça impostas pelos censores, por vezes nos shows, misteriosamente, sumia o som do microfone de Chico:
Roda Viva é um ataque a todo o star system, mas sem aquela seriedade Frankfurtiana de Adorno e Horkheimer. Perdendo sua autenticidade e autonomia, Benedito Silva é transformado à força em mercadoria: Ben Silver, um peão no xadrez (only a pawn in their game, para lembrar do folkster Dylan) manuseado pelos empresários da mídia e da indústria fonográfica!
Em excelente artigo para a Revista Cult, Marcelo Sotello Felipe destacou os nexos entre a vivência de Chico Buarque, sob o risco de ser “mercantilizado” e vendido às massas como sabão em pó, e a reação criativa e subversiva que Chico realiza com a obra Roda Viva:
“O cantor se torna Ben Silver. Produzido, vestido, maquiado. Embalado. Tal qual uma marca de sabão em pó ou uma geladeira. A troco de 20% para o “anjo” (o empresário), a mercadoria é posta no mercado e a massa aprende a consumi-la. Mas um dia Ben Silver já não rende tanta grana. Desaparece para surgir Benedito Lampião, produzido, vestido e maquiado novamente, outra mercadoria. Que também um dia precisa desaparecer para que outro produto garanta o tamanho dos 20%. É a roda viva que carrega pra lá o destino de Ben Silver e Benedito Lampião.”
Roda Viva faz parte das efervescências daqueles anos seminais e prenhes de consequências, 1967 a 1969, quando explode no Brasil a renovação estético-cultural-política, altamente subversiva, do Tropicalismo. A novidade tinha a potência de um movimento que, ainda que profundamente inovador, estava bem enraizado no passado: a Antropofagia de Oswald de Andrade, que remetia ao caldeirão do Modernismo dos anos 1920, inspirava ativamente o trampo dos tropicalistas.
Mas era um Oswald que os tropicalistas não respeitavam como um ente sagrado, que não faziam de ídolo intocável: era um Oswald devorado e vomitado pelo Teatro Oficina, onde Zé Celso Martinez Côrrea e sua trupe encenavam O Rei da Vela em meio aos transtornos sócio-políticos daqueles anos danados, de chumbo-grosso e mordaças impostas a todas as canções de protesto contra o regime ilegítimo nascido da derrubada militar do governo João Goulart.
Neste contexto é que surgem algumas das mais emblemáticas canções de Caetano Veloso – que admitiu sentir-se profundamente transtornado pela experiência estética que teve com a ressurreição de Oswald através do Teatro Oficina.
Presente no disco-manifesto Tropicália ou Panis e Circensis (1968), “Enquanto Seu Lobo Não Vem” é um retrato daquele país que havia entrado em erupção após a morte de Edson Luís, com comícios-relâmpago e protestos estudantis, culminando com grandes manifestações cívicas como a Passeata dos Cem Mil, em Junho. Era uma época em que o movimento estudantil e os trabalhadores organizados puderam sentir muitos artistas e intelectuais aliando-se à luta contra a ditadura.
Que lobo seria este que está para vir, na canção de Caetano? Hoje, com nosso olhar retrospectivo, a canção pode soar profética, como se previsse a chegada do AI-5 e da fase mais brutal do terrorismo de estado:
“A canção misturava símbolos da guerrilha – florestas, veredas, cordilheiras – com o dia a dia das manifestações estudantis – passeatas, desfiles, ruas, avenidas, bombas, botas e bandeiras. O lobo, claro, era a repressão policial, com suas garras cada vez mais afiadas e ameaçadoras.
Em breve, advertia Caetano, seria necessário esconder-se debaixo da cama para não ser comido por ele. Para deixar claro de onde vinha o perigo, em boa parte da canção Gal Costa repetia em contraponto o estribilho “os clarins da banda militar”. (MARTINS, pg. 86)
Nos palcos do Brasil, em 1968, o regime dos milicos não só mandava proibir, mas fazia vista grossa ou apoio implícito a grupos paramilitares que utilizavam-se da força bruta para silenciar artistas. A canção Roda Viva, de Chico Buarque, composta em 1967,
“ganhou nova conotação política ao subir aos palcos em 1968 na peça homônima. O protagonista – um cantor popular chamado Benedito Silva, logo transformado em Ben Silver – era obrigado a mudar constantemente de personalidade para sobreviver na selva dos espetáculos.
A montagem inovadora de Zé Celso provocou muita polêmica. A peça estreou no início de 1968 no Rio. Meses depois chegou a São Paulo. Na noite de 17 de Julho, o Teatro Ruth Escobar, onde a peça era encenada, foi invadido pelo CCC, organização terrorista de extrema-direita. Os agressores destruíram cenários e espancaram atores e técnicos. Chico Buarque, mais tarde, levantou a hipótese de que o CCC, ao atacar Roda Viva, teria errado de alvo. Seu objetivo seria atingir o espetáculo Feira Paulista de Opinião, dirigido por Augusto Boal, apresentado em outra sala do mesmo teatro. Numa das cenas, um capacete militar era usado como penico, o que teria despertado a ira dos terroristas.
Se o CCC errou de alvo em São Paulo, insistiu no erro em Porto Alegre. No início de outubro, o grupo de extrema-direita atacou o Teatro Leopoldina, onde a peça estava sendo apresentada na capital do Rio Grande do Sul. Atores e atrizes foram agredidos e depois enfiados num ônibus, com ordens expressas para não voltar a pisar em terras gaúchas. O espetáculo, é claro, saiu imediatamente de cartaz.
A violência contra Roda Viva não era um fato isolado – e sim mais um episódio na escalada de violência protagonizada pelo CCC contra estudantes, artistas e intelectuais de oposição. Bombas foram jogadas no Teatro Opinião, na Associação Brasileira de Imprensa, no Correio da Manhã e na editora Civilização Brasileira.
Também em outubro, membros do CCC, infiltrados entre os estudantes de direita da Universidade Mackenzie, atacaram a tiros a Faculdade de Filosofia da USP, onde funcionava a União Estadual de Estudantes. Na chamada Batalha da (Rua) Maria Antônia, foi morto com um tiro na cabeça o secundarista José Guimarães, de 20 anos, que defendia a Filosofia.
Atuando em estreita dobradinha com os órgãos de repressão e multiplicando suas ações, o CCC ajudou a preparar o clima para a instauração da ditadura terrorista aberta que viria ao mundo com a edição do AI-5, em 13 de Dezembro de 1968. Mas o CCC não passava de uma linha auxiliar, um grupo de paus-mandados. Era no núcleo do regime militar, cada dia mais dominado pela linha-dura, que o coração da violência batia forte e marcava o ritmo da radicalização.
No segundo semestre, o país assistiu a uma escalada de arbitrariedades e provocações, que desembocaria no AI-5. Em agosto, a UnB foi invadida por tropas. Em outubro, a polícia prendeu cerca de 700 líderes estudantis no XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Em todo o país, os estudantes saíram às ruas pedindo a libertação de seus dirigentes. No Rio, uma manifestação em frente à Faculdade de Ciências Médicas foi dissolvida à bala. Na ação da polícia, o estudante de medicina Luiz Paulo Nunes morreu com um tiro na cabeça.” (MARTINS, p. 96)
Não há dúvida de que no turbilhão de 1968, artistas fizeram história com sua participação política e com suas canções engajadas (acima, Chico Buarque e Gilberto Gil marcam presença na Passeata dos 100 Mil… 50 anos depois, estariam novamente reunidos no showmício Lula Livre, nos Arcos da Lapa/RJ, que reuniu mais de 50 mil pessoas).
Muito antes do AI-5 ser promulgado em Dezembro, a brutalidade dos milicos já havia se tornado explícita – e o mês de Junho não nos deixa mentir. Na chamada Sexta-Feira Sangrenta, 28 estudantes e trabalhadores foram assassinados nos conflitos de rua entre manifestantes e policiais; centenas de pessoas ficaram feridas; pelo menos 15 viaturas foram incendiadas. Foi esse massacre perpetrado pelos militares que gerou a onda de comoção que culminaria na Passeata dos 100 Mil, quando a maré de participação cívica intimidou a repressão, que permitiu a manifestação sem dissolvê-la no porrete e na escopeta como era de praxe.
Eis que, passados 50 anos, em 2019, nesta época de fascistas estúpidos e empoderados, o assassinato da liberdade se faz novamente presente.
Em 1968, quando a ditadura militar instaurada com o golpe de 1964 preparava-se para entrar em seus anos de chumbo, a peça Roda Viva fez história pela fúria que despertou no regime dos generais e nas milícias que o escudava (como o CCC).
É portanto altamente significativo e explosivo que Zé Celso e sua trupe re-encenem a peça escrita por Chico Buarque de Hollanda nestes nossos tempos de tenebrosas transações que culminaram com a tomada do poder pelo Bozonazismo.
Obviamente, o desgoverno Bozoasnal é o alvo principal da sátira impiedosa dos artistas no Roda Viva 2019 que o Teatro Oficina encenou em seu antológico espaço no Bixiga/SP. Eles não poupam artilharia contra figuras-de-proa da corja de Bozo: de Olavo de Carvalho a Sergio Moro, aos ministros e ao chanceler, não faltam poéticos bofetes que o Oficina distribui com seu radicalismo e irreverência de praxe…
Entrar naquele estranho edifício, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, sempre torna explícita pra mim a sensação de não estar exatamente em um teatro, ou melhor, de não ter adentrado nada que se assemelhe a um teatro tradicional ou canônico: eis um espaço de desconforto, ou melhor, um lócus que visa incrementar nosso inconformismo. Um espaço de liberdade, cheio de convites à nossa libertação, coletivamente forjada no improviso de mênades e sátiros que juntos, dançando e tocando-se, tornam-se uma coisa só. “Todos juntos numa pessoa só”, como cantava a utopia d’Os Mutantes.
Zé Celso, antes da peça se iniciar “de verdade”, sendo o MC deste terreiro hightech, pede que o público se encoste, se toque, se mescle, se molhe com o suor uns dos outros, num rito de superação do eu separador. Quer que nos tornemos uma coisa só, uma centopéia de diversidade, envolvida num rito dionisíaco que celebra a renovação do mundo através da arte.
Benedito Silva, alçado ao status de pop star como Ben Silver, depois recauchutado como Lampião, serve como emblema do ídolo diante do qual as massas alienadas se prostram, subservientes, boquiabertas, demitindo-se de sua autonomia. A idolatria é uma face de uma moeda que do outro lado possui a face horrenda do poder pastoral. O pastorado, para reinar sobre nós impondo suas nefastas e desnecessárias opressões e mortificações, necessita, como de oxigênio, da idolatria. Quem idolatra é subserviente.
Fazer de Ben Silver, ou de Boçalnaro, figuras míticas e pessoas idolatráveis, é desvelado em Roda Viva em todo o seu ridículo. Quem não é mané nem otário sai do teatro sabendo: paga o maior mico todo e qualquer sujeito que trate esses boçais como mitos.
Não lambamos as botas de ídolos de barro, ou pior: as botas daqueles que querem pisotear a dignidade humana e que focalizam a sua própria idolatria na direção mais sórdida (Bolsonaro, idólatra, idolatra sabe quem? Ustra e o “exército de Caxias”!).
Neste início da desgovernança Bozoasnal, já começam a pipocar os Youtubbers que, motivados por um desejo de se portarem como homens e mulheres “de bem”, denunciam o Teatro Oficina como sendo, basicamente, um antro do demônio, onde a platéia é agredida e os atores praticam assédio sexual contra pessoas que estão ali querendo assistir uma peça de boa (exemplo).
A verdade, acessada por aqueles que estão de corpo e alma dentro do Teatro Oficina, deixando-se afetar e transformar pela experiência, consiste na descoberta: viver é tão melhor fora dos cárceres do conformismo! É assim que a trupe mobiliza todo o seu arsenal de sarcasmos e de corpos nus, todo o seu repertório de canções e batuques, para afrontar o mau-gosto petit bourgeois e partir para a porrada com seu teatro de desmistificação e de escárnio com os atuais usurpadores do poder.
O Oficina segue sendo nosso farol-guia cultural que aponta rumos melhores para que o Brasil prospere espiritualmente para fora do pântano e lodaçal do autoritarismo e da ditadura, por aqui tão recorrentes. Tragédias e farsas repetindo-se sem cessar, sendo o Bolsoasnismo apenas a mais recente máscara de um velho monstro.
O Oficina está antenadíssimo com o contemporâneo. Insere no cast de canções coisas como “Caravanas”, canção da safra recente de Chico, obra-prima da poética (uma letra que fica linda impressa num livro de poesia!).
O Oficina também faz de Roda Viva algo em sintonia com o antológico Desfile de Carnaval da Tuiuti no Rio de Janeiro em 2018. O drama sanguinolento e sofrido da escravidão e da diáspora africana marcam a criação cultural coletiva dessa trupe indomável.
À pergunta “existe uma cultura dionisíaca, subversiva, transgressora, hoje em atividade no Brasil?”, teríamos necessariamente que respondem que sim!
Sim, o Brasil ainda é o palco onde a utopia antropofágica oswaldiana se expressa em meio à tirania sinistra dos caretas e dos milicos.
Neste contexto, Zé Celso e a trupe do Teatro Oficina continuam na vanguarda do desbunde, na barricada do dionisíaco, na trincheira libertária, como um bando de cabras desgarradas dos rebanhos, maravilhosos hippies que são ovelhas nuas pintando-se de preto, ébrias sob a Lua e os bilhões de sóis, bacantes sempre pentelhando o reinado sombrio de Penteu.
Com “Roda Viva”, Zé Celso reconquista a proeza histórica já alcançada ano passado em “O Rei da Vela”: poder dirigir 50 anos depois uma nova versão para um espetáculo que o consagrou na história do teatro brasileiro e mundial. Qual outro diretor teve tamanho privilégio em vida? E, ao fazê-lo com vigor e o mesmo atrevimento artístico de sua juventude, Zé Celso prova que está mais vivo e forte do que nunca, pronto para a batalha em prol de sua arte livre da qual jamais abriu mão, custe o que custar. Assim, ele faz de “Roda Viva” um espetáculo altamente emocionante, performativo e, obviamente, obrigatório de se ver e de se aplaudir de pé. (ARCANJO)
Se fosse para escolher uma cena emblemática, eu lembraria daquela que, em Roda Viva 2019, opõem dois grupos de brasileiros que chegam às vias de fato, às beiras à guerra civil: o exército dos agroboys financiados pela Bancada da Bala e da Bíblia e do Boi, todos com seus rifles em punho e berrando “Bolsonaro é mito!”, diante dos aguerridos guerreiros herdeiros do Quilombo de Palmares e de Canudos, que hoje entoam em coro: “Quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro! Aqui está o povo sem medo… sem medo de lutar!”
Zé Celso e sua trupe não fogem do ringue. Ao invés de armas, levam à batalha uma tempestade de poesia, relâmpagos radicais de sarcasmo e uma baita disposição para a polêmica. Encaram o trago e assumem a responsa, tentando ensinar ao Brasil os caminhos dificultosos e selvagens que levam ao Reino da Liberdade: onde tudo é criação e recriação infindável fora do cárcere estreito e injusto em que querem nos encerrar tacanhos milicos e fanáticos caretas, idolatradores de torturadores e que cagam bolsas de colostomia sobre o legado de Marx e Gramsci, de Paulo Freire e Florestan Fernandes, de Voltaire e de Jesus, de Darwin e de D2, de Marielle e de Jean Wyllys.
Nestes tempos que nos condenam às trincheiras culturais, que nos convocam às batalhas ideológicas, o Teatro Oficina segue berrando suas luzes em tempos de obscurantismo. Dizendo-nos verdades cruéis que não podem ser silenciados. Abrindo nossos olhos à força. Quebrando nossas couraças e nossas porcupine skins a golpes de poesias e de canções. Berrando em nossos ouvidos, com vozes diversas e sintônicas, em lindo coro que comove até os ossos, para que ouçamos:
“A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva A mais linda roseira que há Mas eis que chega a roda viva E carrega a roseira pra lá…
Roda mundo, roda gigante Roda moinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração…”
Eduardo Carli de Moraes, São Paulo / Goiânia, Fevereiro de 2019.
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