A contracultura e suas urgentes responsabilidades – Sobre a turnê cancelada dos Dead Kennedys e o grito punk de um poster

“Don’t hate the media, become the media.” JELLO BIAFRA

Uma cultura ajoelhada diante do altar do conformismo é uma cultura com rigor mortis. E é disso que sofre a cultura hegemônica sob o império do capetalismo neoliberal que hoje em dia anda flertando desavergonhadamente com o fascismo: é uma cultura engessada na forma-mercadoria, quando a bagaça sempre esteve conectada, para o artista revolucionário, com o ato explodir a gaiola da mercadoria e instaurar no mundo a experiência sensorial inédita que é vocação da arte autêntica propiciar.

A Cultura Viva é balbúrdia anticonformista, e não – nunca! – cumplicidade com os tiranos. Diante das injustiças, os artistas são os berram, não os que se calam. Em nossos tempos de neofascismo e de democracias golpeadas pras cucuias, a Contracultura tem sua responsa e sua urgência. Até porque o Coiso que hoje tem por função ser presidente da república é tão “culto” que não fala uma palavra em homenagem a Chico Buarque pelo prêmio Camões, não dá seus pêsames após a morte de Beth Carvalho, mas presta suas homenagens ao MC Reaça depois que este espancou sua amante grávida e depois se suicidou…

O Brasil de 2019, sob a batuta insana do Bolsonarismo, raiou já com a extinção do MinC perpetrada pelos que, no palanque, faziam o gesto das armas de fogo, instrumentos da morte. A arte, que é o sim da vida à criatividade que é intrínseca a tudo que prospera e evolui, é o contrário do armamentismo destrutivo que pregam aqueles que poderiam repetir como o célebre dito nazista: “quando ouço a palavra Cultura, puxo meu revólver”. Quando Bolsonaro ouve a palavra Paulo Freire, puxa seu lança-chamas. E o Museu Nacional ardeu mesmo em chamas até as cinzas no país do pós-Golpe, desgovernado pela barbaridade desses “cidadãos-de-bem” que aniquilam a cultura no altar de Mammon, ou seja, da mercantilização geral de tudo e da imposição da política de terra-arrasada para a educação e a cultura…

Contra tal barbarismo, somos os que levantam uma contravoz, dissonante em relação à monocórdica voz dominante: quando nos falam em revólver, sacamos nossa cultura. Somos os que se armam de livros e se livram de armas. Os que se armam de grafites e beats, de teatro e de poemas, de cinema e de canções, para resistir à canalhização geral da vida. Assim coletivamente e sem muito programa vamos parindo a contracultura da atualidade, cultura-do-contra que é essencial para a cultura viva. Como Gilberto Gil e Juca Ferreira sonharam e começaram a concretizar, antes de tal utopia ser (também ela!) golpeada. Tantos golpes, e ainda assim nos levantamos (and still we rise!). A contracultura enquanto organismo indomável e insurgente é prova viva de que o devir histórico é Movimento irrefreável e serão levados pela correnteza os que desejam imobilizá-lo.

Em seu cartaz para a turnê dos Dead Kennedys no Brasil, Cristiano Suarez criou a A Grande Carapuça, obra endiabrada em que evoca clássicos da banda hardcore californiana como “Kill The Poor” e “Nazi Punks Fuck Off”. O artista parodia o Cidadão-de-Bem, vulgo Coxinha ou Bolsominion, que está todo aderido ao projeto-de-país miliciano-torturador hoje em voga:

O polêmico cartaz realizado por Cristiano Suarez já se tornou uma das imagens mais emblemáticas do Brasil de 2019 (quer comprar um poster, em tamanho A2 e por apenas 30 pilas? Siga o link >>> https://bit.ly/2Ji6fgL). Emblema de um país desgovernado pela extrema-direita Bolsonarista que tomou o Estado de assalto para impor uma fusão caótica e imbecilizante de neoliberalismo selvagem e neofascismo.

Emblema também de um território contaminado pela disseminação massiva de odientas ideologias que foram inoculadas nesse pessoal que relincha slogans como: “bandido bom é bandido morto!”, “o Lula tá preso, babaca!” e “nossa bandeira jamais será vermelha”. Originalmente criado para a turnê-que-não-rolou dos Dead Kennedys – na formação atual, que não inclui o vocalista original Jello Biafra (líder do Guantanamo School of Medicine) -, o poster foi renegado pela banda de hardcore californiana (a despeito de um entusiasmo inicial do qual eles depois arregaram).

Os Kennedys Mortos cancelaram sua vinda ao Brasil devido a todas as tretas vinculadas à disseminação viral desta provocativa peça de propaganda antifa saída da pena de Suarez. Uma arte rapidamente reapropriada, via hacking cibernético, por outras bandas – a exemplo dos Ratos de Porão, dos Garotos Podres e do francisco, el hombre. Sobre o episódio, Biafra assim se manifestou:

Sim, nós estamos preocupados com o Brasil. Porque nós nos importamos com o Brasil. E porque nós nos preocupamos com o mundo. Nós tememos pela situação dos brasileiros, tememos pela Amazônia. Tememos pelas tribos indígenas que poderão ser massacradas. Nós não queremos que mais nenhum inocente morra como aconteceu com a Marielle Franco. Sim, a notícia de seu assassinato chegou até os noticiários americanos. E, meus caros amigos, nós admiramos e respeitamos muito cada um que tenha a coragem de se posicionar contra o Bolsonaro e seus apoiadores fascistas metidos a valentões. – JELLO BIAFRA, Leia na íntegra em Tenho Mais Discos Que Amigos

 

Com o cancelamento da tour, choveram críticas contra os Dead Kennedys (sem Jello, os fake kennedys…) por terem “amarelado” – e não faltaram antigos entusiastas da banda, responsável por discos clássicos como “Fresh Fruit for Rotting Vegetables”, que os xingaram, cuspindo e dizendo que não se fazem mais punks como ultimamente…

A produtora EV7 Live teve que arcar com os custos astronômicos vinculados ao cancelamento da turnê e, para isso, está vendendo camisetas e pôsteres A2 com a arte de Suarez, numa curiosa estratégia mercadológica de transformar em commodity aquilo que o poder hegemônico desejaria censurar e silenciar.

A viralização do poster não foi à toa: ele encapsula toda a insanidade coletiva que conduziu ao triunfo provisório do que existe de mais sórdido e péssimo entre nós: a cultura do ódio e do irracionalismo, da segregação e da desunião, da intolerância e do chauvinismo cego, da subserviência acéfala ao Tio Sam e seus tanque$ e dollar$ – todo o “caldo” mórbido que serviu de substrato para o assalto-ao-poder que empoderou a Necropolítica mais brutal.

Não é preciso ser um ás da semiótica para ler, no centro do quadro, a presença da Família Tradicional Brasileira, pequeno-burguesa e que sonha em enriquecer mais, conservadora nos costumes e liberal na economia, idólatra das armas de fogo e das soluções truculentas para os problemas sociais. A Família, muitas vezes bestificada por religiões instituídas e por lógicas evanjegues, que reúne-se diante da TV para sua dose diária de alienação com sitcoms e filmes de ultraviolência made in Hollywood.

A Família Tradicional Brasileira que, aos milhões de exemplares, é o sustentáculo do Estado de Exceção que hoje nos desgoverna propondo o desmonte dos bens públicos e dos direitos sociais duramente conquistados. A Família Tradicional Brasileira que, durante a fraude do golpeachment, teleguiada pela rede Globo e demais integrantes do P.I.G., bateu panelas e encheu as ruas do país para “protestar contra a corrupção”, sem notar no absurdo que era fazer isso vestindo camisetas da CBF, votando em Aécio Neves e apoiando um golpe parlamentar liderado pelo gangster Eduardo Cunha.

Ecoando a ironia de “Kill The Poor”, porrada hardcore em que Jello Biafra exibia toda sua endiabrada e cáustica crítica social repleta de um cinismo indomável, o cartaz fala da Família Bozólatra como adoradora do cheiro de pobres mortos na manhã que fede à gasolina e óleo diesel. Tudo pega fogo no país em que os incêndios na favela são comemorados de dentro das BMWs e dos apartamentos de luxo onde se juntam, na Varanda Gourmet, os eleitores do Homem-de-Bem (aquele mesmo, que idolatra torturadores e defende grupos de extermínio… aquele mesmo, que até agora não sabemos que relações tinha com seu vizinho, assassino de Marielle Franco, miliciano dos mais de cem fuzis domésticos…).

O cartaz é brilhante por mostrar em uma cápsula imagética todo o tragicômico de nossa desastrosa situação. Em situações normais de temperatura e pressão, uma figura como o Coiso não passaria de fato de uma piada de mau gosto, de um Bozo da política, não muito diferente de um Tiririca anazistado. Em um país que estivesse são da cabeça e são do coração, uma figura como Jair Bolsonaro seria apenas uma espécie de Novo Enéas e não teria conquistado nem 5% dos votos para a eleição presidencial, tamanho o grau de sadismo, crueldade e desconsideração com os parâmetros mais básicos de ética e civilidade que ele manifestou nestes 28 anos de vida pública. Aliás completamente pífia e nula em matéria de quaisquer benefícios prestados à população.

Em suma, qualquer mente lúcida sabe que esse cara nunca fez merda nenhuma em prol de ninguém a não ser a favor de seu enriquecimento familiar e do favorecimento de conglomerados empresarias de que é o títere e o bem-remunerado cafetão.

Este poster incendiário, retrato hiperbólico da Bozolatria (mas que também remete ao Coxinismo), serve também como um retrato caricatural da Base Eleitoral que foi usada como trampolim por aquela minúscula fração da elite brasileira tão bem cognominada por Jessé de Souza como “Do Atraso”.

A Elite do Atraso composta por homens brancos e ricos, herdeiros dos senhores de escravos e capitães-do-mato, que se notabilizam por misoginia, racismo, LGBTfobia, supremacismo, armamentismo, para não falar na apologia da tortura e dos grupos de extermínio, tudo isso portando a máscara do “cristão” e do “cidadão-de-bem”.

Aos que se sentiram incomodados e ofendidos com a arte, talvez seja pois a carapuça serviu. Aos que gritaram por censura e mordaça, talvez seja pois vocês tem saudades do AI-5 e do totalitarismo repressor que foi o fruto amargo, em 1968 (início dos Anos de Chumbo), do golpe desferido contra o governo Jango em 1964.

Aos que acham que isto não é arte, mas propaganda política, eu diria que as noções de arte de vocês estão muito quadradinhas: a arte está aí também pra incomodar, pra instigar o debate, pra provocar reações emocionais, pra sacudir as apatias, pra cutucar as onças com varas curtas.

Aos que desejariam acender fogueiras para queimar este pôster junto com seu autor, vocês são a Nova Inquisição e integram a vergonhosa Cruzada por um Brasil Medieval – e contra vocês, só nos resta desejar que os artistas do Brasil resistente e insurgente prossigam sendo, e cada vez mais, deliciosamente endiabrados.

Fellipe Fonseca foi outro artista que, nada sutil e seguindo na senda de Vitor Teixeira, botou a boca no trombone, ou melhor, meteu as tintas no papel pra gritar #EleNão, porra (e seus minions muito menos!):

São claros os sinais de que a Cultura se insurge, apesar do decreto de extinção do MinC. Como organismo social de vida que transcende o âmbito institucionalizado, a cultura (selvagem) é indomável, resiste à domesticação. O mesmo fogo que incendeia as favelas no poster de Cristiano Suarez – um fogo-no-morro que vem somado às cataratas de sangue que fluem por debaixo dos tanques no asfalto – é convocado para outras funções pelo Francisco El Hombre, a banda neotropicalista latinoamericana que cometeu dois álbuns de extrema caliência e incandescência: Soltasbruxa Rasgacabeza.

O ato de botar fogo na monotonia, expressa pela banda, é sinal desta vivacidade da ContraCultura, organismo indomável e insurgente, prova viva de que o devir histórico é Movimento inescapável e serão arrastados pela correnteza aqueles que tiverem pretensões de estagnação. Algumas obras de arte do Brasil contemporâneo parecem-me expressá-lo com uma admirável beleza queer de intenso fascínio:


Queimando os velhos mapas pra vida renovar, Ju Strassacapa teve a genialidade criativa suprema ao parir “Triste Louca ou Má” – uma tão bela poesia, e que encontrou sua perfeita expressão musical nesta canção destinada ao cânone da MPB do Futuro. O Francisco El Hombre é um coletivo utópico, neohippie, purpurinado, pós-binário, que demonstra a vitalidade desta cultura que estou chamando de selvagem e indomável.

Num país que observa também brutais retrocessos nas políticas de drogas, com o incremento das internações compulsórias em “Comunidades Terapêuticas” de forte marca teocrática-sectária, o “Parafuso Solto” francisco-el-hombreano, somado ao jornalismo-subversivo do Gregório Duvivier, são salutares doses de cultura insurgente:


Pra terminar, queria lembrar de algo aparentemente estúpido, mas que tem seu interesse: o termo Bozo, que alguns usam para apelidar Bolsonaro, remete a um famoso palhaço televisivo brasileiro, mas também na língua inglesa existe o termo Bozo e este possui toda uma carga semântica dentro do movimento punk. Os Dead Kennedys, por exemplo, têm uma canção chamada “Rambozo, The Clown”, fusão de Rambo com Bozo, perfeitamente atual para a descrição de muitos brucutus Bolsonaristas.

Tanto que, em fins de 2018, com a ascensão do Capetão, o Rambozo fã do Ustra, “California Übber Allez” foi reavivada pela vigorosa versão, transposta pro Brasil em incendiário videoclipe em p&b pelo Projeto Rambozo:



Retrocedendo ainda mais na História da Contracultura, encontramos pulsando no epicentro do Movimento Punk a entidade inglesa The Clash; numa adorável entrevista concedida a Steve Walsh e publicada em Sniffin’ Blue em Setembro de 1976, Joe Strummer, Mick Jones e companhia já se manifestavam explicitamente como Anti-Bozos:

– Some people change and some people stay as they are, bozos,  and they don’t try to change themselves in any way. (…) I think people have got to find out where their direction lies and channel their violence into music or something creative.  (…) The alternative is for people to vent their frustrations through music, or be a painter or a poet or whatever you wanna be. Vent your frustrations, otherwise it’s just like clocking in and clocking out. (Mick Jones, In: Let Fury Have The Hour, p. 26)

Eles que foram um dia conhecidos como A Única Banda Que Importam ensinam lições que nada perderam de seu valor à contracultura da atualidade: em uma das mais icônicas faixas de London Calling, de 1979, “Clampdown”, Joe Strummer pede que a gente dê uma chance à fúria:

“Let fury have the hour
Anger can be power
D’you know that you can use it?”

 

O que a sociedade distópica, militarista, teocrática e estratificada de “The Handmaid’s Tale” ensina sobre o presente e o futuro da humanidade

I – O NASCIMENTO COMO IRRUPÇÃO DO NOVO

“Nascer é muito comprido”, escreveu o poeta Murilo Mendes (1901 – 1975). O que ele quis dizer com isso? Que nascer é um processo, mais que um momento? Que é um interminável amadurecimento e um vir-à-vida sem fim, e nunca um acontecimento que se pode dar por acabado?

Talvez nascer seja começar a carreira de “eterno aprendiz”, de que nos fala a belíssima canção de Gonzaguinha? Não se cumpre em pouco tempo a missão comprida de nascer, é verdade! Mas será que nascer dura toda uma vida? Assim como nunca se aprende por completo a arte de viver, nascer é um troço que a gente nunca termina de fazer. Os despertos saberão do que falo, pois estão alertas à eterna novidade do mundo.

“E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…”

FERNANDO PESSOA
Heterônimo: ALBERTO CAEIRO
Poema: O meu olhar é nítido como um girassol

A filosofia, acredito, pode ajudar os seres humanos, assim como o fazem grandes poetas, a caminhar com sabedoria-de-Heráclito pelo futuro adentro. A filosofia convida-nos a sermos sábios em nossa caminhada em que vamos ao encontro do futuro, inclusive daqueles eus que seremos. Cada um de nós não é, mas sim está sendo: indivíduos em fluxo, psiquês móveis, metamorfoses ambulantes.

Quem sabe que tudo flui (panta rei) vai pro porvir com a abertura de espírito daqueles que esperam o inesperado. Abertos à potência de transformação que pulsa no cosmos, os sábios caminham rumo àquele outros que serão, àqueles em quem se transformarão quando o rio do tempo tiver fluído adiante mais um pouco, arrastando-nos consigo.

Nascer, para Hannah Arendt, é adentrar no mundo comum e nele chegar como irrupção do novo: aquilo que nasce é o inédito. Diante de cada recém-nascido, pode-se dizer: nunca antes existiu um ente idêntico, a existência humana aqui se manifesta novamente em um exemplar de singularidade, por mais que suas semelhanças com os outros seres humanos sejam também significativas. Ninguém nasce igual a alguém que já tenha nascido, ainda que o nascimento nos seja comum a todos como porta-de-entrada que compartilhamos de maneira explicitada pela pintura “A Origem do Mundo” de Coubert.

“A ORIGEM DO MUNDO”, de Gustave Courbet

Acho bela e verídica a idéia que a filósofa formula, inspirada por Santo Agostinho e sua noção de initium: Hannah Arendt queria fazer de nós pessoas com antenas para o novo, com mentes atentas ao fato de que o nascimento é um fenômeno do mundo que tem a ver com a renovação necessária. 

Estudando os fenômenos históricos escabrosos e brutais do século 20 em Origens do Totalitarismo, em especial comparando o III Reich alemão e o período Stalinista da União Soviética, Hannah Arendt ensinou-nos que se tratam de tiranias políticas sem precedentes, atrocidades inéditas, rupturas brutais com a tradição, situações-limite.

Nada disso impedia que, para ela, o nascimento continuasse sendo uma espécie de Princípio Esperança (para lembrar da monumental obra de Ernst Bloch), ou seja, o nascimento, fator de inovação, colocaria à educação e à política suas maiores responsabilidades, mas também suas mais imensas promessas, permanentemente a inspirar os trabalhos da vontade humana em seu trato com um porvir (inédito) a construir:

“Observa Hannah Arendt que, para santo Agostinho, a vontade é a faculdade integradora das outras aptidões mentais do homem, na sua relação com o mundo das aparências, e é por meio dela que os seres humanos se abrem para o futuro. Na análise agostiniana da temporalidade, além do começo absoluto que assinala a criação do céu e da terra – o principium -, existe para cada homem um começo relativo – o nascimento, o initium – que significa que os homens nascem como noviços num mundo que os precede no tempo. Neste mundo, existe a liberdade da espontaneidade, que se volta para o futuro através da vontade humana.

O initium de Agostinho – pensador sobre o qual Arendt se debruçou desde a sua tese de doutoramento – é uma das raízes da categoria de natalidade, que ela erige como uma das categorias centrais da política em A Condição Humana, nela vendo a explicação sobre a possibilidade de criar coisas novas. Precisamente porque são novas elas não são necessárias, mas contingentes. E é justamente a contingência da política, que frustra a previsão determinante, o que Arent, na sua obra, destaca pela ênfase que atribui à liberdade. Esta se encontra ao alcance de cada homem individual, permitindo-lhe agir de forma nova e dar início a novos projetos…” (CELSO LAFER, A Reconstrução dos Direitos Humanos, Cia das Letras, p. 403)

Esta visão “otimista” sobre o nascimento precisa ser problematizada, pois a novidade não é necessariamente um benefício: há horrores e tormentos inéditos, que nem por isso são amáveis. Podem-se inventar novos modos de torturar e de matar, antes desconhecidos, e podem nascer no porvir seres humanos dotados de capacidades sádico-perversas que ainda não estão mapeadas.

Além disso, para além do indíviduo que nasce, temos que lidar com o nascimento como problema global e coletivo da Humanidade como um Todo, e percebe-se que hoje as distopias biopolíticas dividem-se quanto ao diagnóstico sombrio. Há as distopias que frisam o perigo da Humanidade em seu caminho de explosão demográfica, enquanto outras distopias imaginam a demografia minguando até perto do zero em virtude de uma infertilidade em massa. 

Cada vez são mais fortes, na cultura do século 21, as manifestações de uma virada distópica em relação ao tema do nascimento. Nestas obras, como o curta-metragem World of Tomorrow escancara, nascer pode ser uma desventura desagradável e sofrida, já que estamos falando da possibilidade concreta do nascimento de consciências pós-humanas, como aquelas que estão encarnadas em andróides (vide os dois filmes Blade Runner, dirigidos por Ridley Scott e Dennis Villeneuve) ou em clones.

O risco da governança totalitária – como aquela expressa em Minority Report (história de Philip K. Dick filmada por S. Spielberg) ou V for Vendetta (obra visionária) de Alan Moore – é hoje também retratada com o tema quente do futuro do nascimento. Que tipo de gestão da natalidade será imposta pelos Big Brothers, pelos Partidos Nazis do futuro? Afinal de contas, como estarão nascendo as gentes em 2.100, em 2.500, em 3,960 depois de Cristo?



II) UM IMENSO CENÁRIO DE DEMENTES

Tempos atrás, quando escrevi Nascer é Uma Encrencacomparando o romance Enclausurado (Nutshell) de Ian McEwan com as teorias psicanalíticas de Otto Rank em O Trauma do Nascimento,  eu buscava refletir sobre o acontecimento existencial que é vir-ao-mundo, e suas ressonâncias no sujeito vivente em seu processo de maturação. As reflexões ali compartilhadas vinham impregnadas de um certo sarcasmo melancólico, à la Machado de Assis ou Cioran, e também de uma angústia Shakespeareana, vinculada ao estado afetivo veiculado por frases como: “Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes” etc.

Desde então, cada vez mais percebi que o problema do nascimento precisa ser abordado não apenas na perspectiva de um existencialismo que foque suas atenções no indivíduo, mas essencialmente como um problema político, uma questão coletiva, uma encrenca comum. Nisso acompanho Hannah Arendt, grande pensadora dos temas da natalidade, pois ela diz que é através do “portal” do nascimento que adentramos o mundo comum, e será através do “portal” da morte que deixaremos para trás o mesmo mundo comum. Mundo comum que pode pois ser descrito como o palco para a sucessão das gerações de viventes humanos.

Além disso, Arendt destaca que o nascimento é a irrupção do novo, pois traz ao mundo algo de inédito, o que faz da Condição Humana algo de permanentemente cambiante. Do ser humano, com sua capacidade de agir e de fazer advir o que nunca houve antes, devemos esperar o inesperado, já que não cessam de nascer pessoas como nunca houveram antes. É aí que radica a importância crucial da educação, aquilo que na condição humana dá resposta à constante chegada de novos seres humanos ao mundo comum onde precisam ser integrados.

A explosão demográfica sem precedentes dos últimos séculos, na perspectiva de Aldous Huxley, coloca sérios problemas para a Humanidade e obriga-nos a levar a sério a necessidade urgente de praticar o controle da natalidade. No seu livro de ensaios Brave New World Revisited, publicado em 1958, Huxley destacava que “no primeiro Natal a população do planeta era de cerca de 250 milhões” e que “16 séculos depois o número de humanos havia escalado para um pouco mais de 500 milhões”; “em 1931, quando eu estava escrevendo Admirável Mundo Novo, o número estava perto de 2 bilhões.” A ascensão impressiona:

“At the rate of increase prevailing between the birth of Christ and the death of Queen Elizabeth I it took 16 centuries for the population of the earth to double. At the present rate it will double in less than half a century. And this fantastically rapid doubling of our numbers will be taking place on a planet whose most desirable and productive areas are already densely populated, whose soils are being eroded by the frantic efforts of bad farmers to raise more food, and whose easily available mineral capital is being squandered with the reckless extravagance of a drunken sailor getting rid of his accumulated pay.” (p. 9)

Algumas das melhores obras da arte e do pensamento vem nos colocando a seguinte questão: “qual é o futuro do nascimento?” É um tema que podemos formular em termos demográficos: a Humanidade, que ultrapassou os 7 bilhões de exemplares vivos, está com tendências a continuar expandindo-se no futuro próximo, sendo que estimativas supõe que seremos mais de 9 bilhões algumas décadas no futuro.  Isso desperta nas vertentes ditas Catastrofistas um senso de perigo, de alarme, pois é de se suspeitar que haja um excesso de gente no mundo, em especial pois os recursos naturais que poderiam sustentar tantas vidas estão em crescente estado de desequilíbrio (aquecimento global, oceanos tóxicos, mutações genéticas e transgênicos etc.).

A explosão demográfica se dá no contexto do Antropoceno, das mudanças climáticas, da radical reconfiguração que a Humanidade como força geológica e biofísica impôs à Terra. O que nos torna os contemporâneos daquilo que Isabelle Stengers chama de “a irrupção de Gaia”. Em seu No Tempo das Catástrofes, Stengers diz que o inventor da Teoria Gaia, James Lovelock, chegou a estimar que o número de seres humanos no planeta será reduzido a cerca de 500 milhões devido às transformações sócio-ambientais catastróficas conexas ao desequilíbrio antropogênico dos ecosistemas globais hoje em curso, e que no futuro tende a se agravar.

Neste contexto, surgem obras-de-arte que tematizam o futuro do nascimento com um olhar sombrio e distópico, pintando um retrato de uma Humanidade que vai beirando a extinção. É o caso tanto de Children of Men – Filhos da Esperança, do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, quanto de Snowpiercer – Expresso do Amanhã, do sul-coreano Joon-ho Bong. Em ambos, a Humanidade que um dia pôde se multiplicar de maneira estonteante, está reduzida a uma quantidade assustadoramente pequena. E os últimos exemplares do homo sapiens que separam a espécie da extinção tendo que agir em circunstâncias transtornadas.

O que restou da Humanidade, em Snowpiercer, é tão pouca gente que cabe todo mundo dentro de um trem – e dentro dele, todas as velhas taras e equívocos da velha Humanidade estão reproduzidas em microcosmo, a começar pelo apartheid social imposto pela força bruta, já que o trem é dividido em diferentes “castas”, a dos operários-escravos sendo responsável por uma espécie de Levante Spartaquista do Fim do Mundo contra as classes dominantes repletas de privilégios.



III. O CONTO DA AIA: DISTOPIA DA DITADURA MILITAR TEOCRÁTICA EM ERA DE BIOPOLÍTICA TOTALITÁRIA

Uma das séries mais impactantes e pertinentes dos últimos tempos também lida com a temática do futuro do nascimento: The Handmaid’s Tale, uma produção da Hulu, baseada no romance da escritora canadense Margaret Atwood (Editora Rocco, 2017, 388 pgs), foi a obra televisiva mais premiada do ano de 2017, vencendo 5 Emmys. Além de celebrada como Melhor Série Dramática, levou também os prêmios de Melhor Atriz para Elisabeth Moss e de Melhor Roteiro para Bruce Miller (além disso, as atrizes que fazem as personagens da Ofglen e da Tia Lídia também ganharam prêmios por melhor atriz coadjuvante e melhor atriz convidada).

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A obra de Atwood já havia sido adaptada ao cinema em 1990, ganhando o sugestivo título em português “A Decadência de Uma Espécie”, em um filme dirigido por Volker Schlöndorff (vencedor da Palm d’or Cannes por “O Tambor”) e roteirizado por Harold Pinter (1930 – 2008) (vencedor do Prêmio Nobel de Literatura). A Casa de Vidro facilita a vida de quem quer conhecer este filme e libera o torrent para download gratuito: http://bit.ly/2tkSbI5 (1h 44mn, 1.6 gb, legendas em português, via Fórum Making Off).

Sinopse via Filmow: “A República de Gileade é um estado totalitário que tenta usar a Bíblia para fundamentar seus atos. Kate (Natasha Richardson) foi presa por tentar atravessar a fronteira, seu marido foi morto e ela nunca mais viu a filha. Neste país qualquer mulher que comete um delito – homossexualidade está entre eles -, se é estéril vai para as colônias penais, mas se é fértil se torna uma “serva”. Como só 1% das mulheres são férteis, estas “servas” são obrigadas a terem relações sexuais com quem o governo determina e é bom ficarem grávidas, pois o defeito nunca é do homem. Esta esterilização em massa é consequência do ar ficar cheio de produtos químicos radioativos e as águas das chuvas terem sido contaminadas com moléculas tóxicas. Após ser cruelmente treinada por “Tia” Lydia (Victoria Tennant), ela é designada para ser a serva do comandante (Robert Duvall), o supremo chefe militar. Ao mesmo tempo um movimento de resistência começa a desafiar o regime.” – Veja também Wikipedia – Faça o download do filme na íntegra

Considero totalmente merecida a consagração de The Handmaid’s Tale: sem dúvida, esta é uma das melhores séries dramáticas lançadas recentemente e tem muito a nos ensinar. Oferece um alerta pertinente sobre uma barbárie teocrática e obscurantista que, longe de ser mera fantasia sci-fi, está bem próxima da lamentável realidade de nosso próprio tempo-espaço. A tirania puritana instalada em Gilead pelos usurpadores do poder revela uma prefiguração visionária de um planeta caotizado, uma autêntica Devastolândia. Este é o nome que Paulo Leminski deu à sua tradução do poema “The Waste Land” de T.S. Eliot, poeta que escreveu o verso lapidar, em “The Hollow Men”:

“This is the way the world ends. Not with a bang but a whimper.”

Em uma vibe distópica, The Handmaid’s Tale pinta o retrato de uma Terra futura que foi devastada por catástrofes naturais, mutações genéticas, belicismo sangrento, fanatismo religioso, dentre outros males, o que causou uma infertilidade galopante que ameaça extinguir a espécie não pela via dinossáurica – o meteoro que nos atinge vindo do exterior – mas pela via do que eu chamaria de “o fim do nascimento”. Beco-sem-saída onde a espécie torna-se incapaz de reproduzir-se como efeito de suas próprias manipulações do ambiente natural e de nossos próprios corpos.

Não sei se alguém já se aventurou a especular sobre um fator muito interessante na decifração da obra: Atwood parece ter criado uma distopia futurista indo buscar elementos no passado da colonização dos EUA pelos ingleses puritanos. Nas palavras da própria Atwood, “a República de Gilead é construída sobre a base das raízes puritanas do século XVII que sempre estiveram por baixo da América moderna que pensávamos conhecer.”

Uma chave de decifração para a obra está em compará-la com uma das obras-primas maiores da literatura em língua inglesa: “A Letra Escarlate” de Nathaniel Hawthorne. O próprio escarlate dos uniformes das aias é provavelmente uma referência à letra escarlate usada para estigmatizar a protagonista do romance de Hawthorne. Os horrores do passado – como bruxas sendo queimadas em Salem, tema da notável peça de Arthur Miller, “The Crucible” – servem para que Atwood fabrique a teia-de-aranha tão bem urdida de seu romance-pesadelo, lá onde a pálida luz da Razão já chafurdou totalmente nas violentas dissonâncias entre seitas de fanáticos misóginos.

Atwood imagina uma nova face da Banalidade do Mal, aquilo de que nos fala Hannah Arendt: trata-se do estupro institucionalizado, praticado cotidianamente pelos Comandantes e suas Esposas estéreis, em Cerimônias onde a Bíblia é lida e o nome de Deus invocado, em um rito de perpetração de atos que lançam a dignidade feminina no fundo-do-poço da Escravidão Sexual.

“Jacob Encountering Rachel with her Father’s Herds” by Joseph von Führich

O Comandante, fodendo Offred e invocando os precedentes bíblicos que supostamente o autorizam a isso (a história de Raquel, estéril, que dá permissão a seu marido Jacob para ter filhos com a criada, em Gênesis, 30:1-3), é um símbolo de quão porco pode ser um líder teológico-político na justificação de seus atos de ortodoxismo sectário.

Pendendo dos muros, os cadáveres dos resistentes e dissidentes ficam pendurados pelo pescoço em Gilead, servindo como espantalhos enforcados cuja intenção é assustar os que pudessem se sentir tentados a desobedecer. A Bíblia é a todo momento invocada pelas autoridades para convocar todos à obediência, à subserviência, ao silêncio: “bem-aventurados são os mansos e os calados, pois deles é o reino dos céus…”

Dentre os episódios mais impressionantes, lembro, por exemplo, da visita de Offred ao médico. O médico a examina e confirma que Offred é este recurso raro e precioso: uma mulher fértil. Diz a ela: “A maioria desses velhos não consegue mais ter uma ereção e ejacular. Ou então são estéreis.” Quase “engasgando de espanto”, Offred – narradora em primeira pessoa do livro – pensa: “ele disse uma palavra proibida, estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são estéreis, essa é a lei.” (p. 75)

Esta tendência de lançar toda a culpa sobre a mulher – que tem precedentes mitológicos múltiplos: Eva, na tradição cristão, Pandora, na grega… – também se manifesta na cena em que Janice, durante o Testemunho, conta que “foi currada por uma gangue aos 14 anos e fez um aborto”. Diante dessa confissão, que deveria erguer indignação contra a Cultura do Estupro e suas práticas grotescas, que deveria nos convencer da plena justificabilidade do aborto em casos de agressão sexual, é em Gilead tratada como crime da mulher.

A Tia Lydia, uma espécie de freira fardada que é uma das autoridades que encabeça o status quo teocrático-obscurantista, exige que todas as mulheres apedrejem Janice e digam em uníssono: “a culpa foi dela, a culpa foi dela!” O ensinamento que o regime oferece em seus “institutos educativos” consiste em culpar a vítima para inocentar Deus (é de fato um Eva reloaded…): “Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse? Para lhe ensinar uma lição…” (p. 88)

Muito haveria a dizer sobre o poder de resistência que vai sendo urdido pelas aias e que, na série, tem comoventes momentos de explosão: há a revolta quase niilista, auto-sacrificial, daquelas que simplesmente cansaram-se de sua condição de escravas e que preferem a solução violenta para acabar com tudo, como na cena em que uma das aias assume a direção de um carro e pratica um atropelamento dos soldados. Gilead é um lugar onde também pratica-se o suicídio em alta escala e onde as mulheres não podem ser deixadas no mesmo ambiente com uma gilete.

Mas uma mais comovente das cenas é aquela onde a Desobediência Civil de Offred mostra-se com todo o seu potencial de contágio quando ela, com a coragem que vem de sua empatia, recusa-se a tacar pedras na companheira que o Sistema manda trucidar. Diante das fogueiras de uma Nova Inquisição, ela se recusa a fornecer fogo. Aquelas pedras caindo ao chão, os punhos que deixam de estar retesados e ganham em maciez, as mulheres que dizem não, a irrupção da Desobediência Civil e da coragem de resistir à opressão, tudo isso, no ambiente sufocante de The Handmaid’s Tale, é um sopro de ar puro e renovador.

Offred, líder da desobediência civil, a que se recusa a tacar pedras, contagiando as outras aias com seu gesto, serve como o vento vivificante que traz a boa nova: sob a opressão, jamais adormece o ímpeto de revolução, de contestação, de renovação.

Elisabeth Moss interpreta Offred / June na série “The Handmaid’s Tale”

Quanto mais assistimos e lemos The Handmaid’s Tale, mais evidente se torna que se trata de uma Ditadura Militar, que justifica suas brutalidades com pretextos religiosos, ainda que seja sentida por suas vítimas como um mecanismo diabólico e horrendo. O que Atwood realizou tem certa semelhança com aqueles tratados anti-eclesiásticos típicos do Iluminismo do séc. 18, em combate com o trevoso Antigo Regime, de que o romance A Religiosa de Denis Diderot é um dos mais significativos livros.

Mas também é possível realizar uma analogia interessante entre a Ditadura Militar latino-americana, em especial aquela da Argentina pós-1976, e o plot da teocracia totalitária futurista de The Handmaid’s Tale – conexão estabelecida na reportagem de por Ligia Helena em MdeMulher:

“Offred é identificada como uma mulher fértil – uma raridade nesse futuro em que poluição, radiação e venenos fizeram com que muitos homens e mulheres perdessem a capacidade de ter filhos. Por isso, ela tem algum valor dentro da República de Gilead, o novo país que se formou no lugar dos Estados Unidos. Se torna uma Aia – mulher cuja função é prover filhos para as esposas dos Comandantes do país.

Absurdo? Pois saiba que aqui do nosso lado, na Argentina, em 1976, durante a ditadura militar, cerca de 500 crianças e bebês “desapareceram” – na verdade foram sequestrados e colocados para adoção. Muitas das crianças foram encontradas depois de anos vivendo em famílias de militares. Até hoje, em 2017, as mães de bebês e crianças desaparecidos se reúnem para protestar na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, às quintas-feiras…”

O movimento social argentino Madres de La Plaza de Mayo emergiu como denúncia do terrorismo de Estado e das múltiplas atrocidades perpetradas durante a ditadura militar argentina, capitaneada por figuras como o general Videla, um regime político que causou a desaparição (ou seja, o assassinato seguido do ocultamento dos cadáveres) de cerca de 30.000 cidadãos argentinos. A TV Pública da Argentina já devotou uma série histórica que, em 8 episódios, conta a história dando voz às próprias mulheres que protagonizaram esta significativa e resiliente resistência feminista latino-americana.

“Con profunda emoción y con la fuerza que las caracteriza, las Madres hablan del golpe de Estado, las desapariciones, las denuncias, las primeras marchas, la guerra de Malvinas, la vuelta de la democracia y la reivindicación de la lucha de sus hijos y de los derechos humanos durante la última década.” – TV PÚBLICA ARGENTINA [CLICK PARA ASSISTIR SÉRIES]

Alexis Bledel interpreta Ofglen em “The Handmaid’s Tale”

Ao raiar de sua 2ª temporada, The Handmaid’s Tale nos promete esclarecer melhor porque se deu a ruptura entre os regimes políticos, ou seja, vai narrar como o Estado Teocrático de Gilead alçou-se ao poder após uma espécie de Golpe de Estado justificado como maneira de combater o terrorismo. Relatando em mais detalhes como era a vida da protagonista antes do Golpe e do início de sua servidão como aia, a nova temporada nos revela June Osbourne, loura de cabelos esvoaçantes, depois reduzida à aia trêmula (mas insubmissa e insurgente) cognominada Offred.

Os mecanismos de tortura psíquica e fisiológica utilizados pela Ditadura Teocrática-Militar de Gilead explicitam-se logo na primeira cena da 2ª temporada, em que toda a perversidade da Tia Lydia se manifesta com uma espécie de brilho diabólico. Ao teatralizar a execução em massa das aias desobedientes, ao colocá-las todas na forca, com a corda no pescoço, para no último segundo comutar a pena, Tia Lydia explora o medo extremo para mobilizar a fé num Deus sádico e opressivo. Assistindo aquela cena, pesadíssima e altamente melodramática, em que o espectador é levado às beiras de testemunhar uma chacina de feminicídio, lembrei-me do destino de Dostoiévski, que quando jovem, encarcerado na Sibéria, também foi posto diante do pelotão de fuzilamento.

Após sentir um gostinho do que Dostoiévski passou na Sibéria, Offred/June buscará por todas as maneiras se insurgir contra o sistema, e agora tem em seu ventre a mais preciosa das cargas neste mundo de infertilidade na ascendente. Grávida, Offred não pode mais ser brutalmente judiada pelo sistema. Seus pequenos atos de desobediência ao nomos opressor encarnado em Lydia se mostram ineficazes – quando ela se recusa a comer, é coagida a isso pela ameaça de aprisionamento e outras torturas.

Mas Offred já aprendeu muitas lições: o poder do desobediente individual, na luta contra a opressão organizada, é quase nulo, mas o poder dos desobedientes coligados é muito maior. Uma teia de resistência insurgente e desobediência organizada tece sua teia ao redor de Offred, com a participação ativa de seu amante Nick, até que ela se veja enfim liberta das garras dos Guardiões de Gilead.

Em um momento Van Gogh, ela mete a tesoura na orelha e, em meio ao sangue que jorra em cataratas, extrai de seu corpo o microchip que servia para vigiá-la. Ela rompe com os dispositivos biopolíticos do Estado Teocrático. A roupa escarlate da aia e este odioso microchip queimam nas chamas. The Handmaid’s Tale, afinal, não é apenas o retrato do domínio totalitário em um funcionamento que esmaga os indivíduos e torna a servidão inescapável, mas sim o pungente retrato social da liberdade que batalha para abrir seus espaços nos muros sufocantes da opressão totalitária-puritana.

Tudo isso torna a escritora canadense Margaret Atwood merecedora do apelido The Prophet of Dystopia que lhe concedeu a revista The New Yorker: “Her fiction has imagined societies riddled with misogyny, oppression, and environmental havoc. These visions now feel all too real.” Se as visões sobre o futuro que Atwood escreveu em 1985, em O Conto da Aia, hoje nos parecem assustadoramente possíveis, é pois vivemos em pleno processo de concretização de uma distopia biopolítica onde o domínio totalitário ameaça-nos novamente.

No último capítulo do livro, relata-se que, em 2195, em um simpósio acadêmico sobre Estudos Gileadeano debatia-se com ardor sobre a identidade da narradora do manuscrito hoje conhecido como O Conto da Aia. Conta-se que aquela mulher que recebe do regime o nome de Offred, e que antes havia se chamado June Osbourne,

“fazia parte da primeira leva de mulheres recrutadas para propósitos reprodutivos e fora destinada àqueles que não só requeriam esses serviços bem como podiam reivindicá-los por meio de sua posição na elite.  O regime criou uma reserva imediata dessas mulheres ao declarar adúlteros todos os segundos casamentos e ligações extraconjugais, prendendo as parceiras do sexo feminino, e, com o fundamento de que elas eram moralmente inaptas, confiscando os filhos e filhas que já tivessem, que foram adotados por casais sem filhos dos escalões superiores que eram ávidos por progênie, quaisquer que fossem os meios empregados… Desse modo, homens ocupando altas posições no regime puderam escolher a dedo entre as mulheres que tinham demonstrado ser aptas reprodutivamente ao terem concebido e dado à luz uma ou mais crianças saudáveis, uma característica desejável numa era de índices de natalidade caucasianos em queda livre, um fenômeno observável não só em Gilead, mas também na maioria das sociedades caucasianas do norte na época.” (ATWOOD, p. 357)

O destino de Offred / June nada tem de individual, ela é parte de um “exército” de aias, escravas de um sistema teocrático-totalitário que se mantêm no poder através da ditadura militar. Já os motivos para o declínio da fertilidade caucasiana, é preciso lembrar que Atwood não poupa detalhes em sua descrição de um mundo devastado por epidemias de sífilis e de AIDS, além de repleto de “bebês natimortos e com deformidades genéticas”:

“essa tendência tem sido relacionada aos vários acidentes em usinas nucleares, panes e ocorrências de sabotagem que caracterizaram o período, bem como os vazamentos de estoques de armas químicas e biológicas e de locais de depósito de lixo tóxico, dos quais muitos milhares existiam, tanto legais quanto ilegais – em alguns casos esses materiais eram simplesmente lançados no sistema de esgotos -, e ao uso descontrolado de inseticidas químicos, herbicidas e outras substâncias líquidas pulverizadas.” (ATWOOD, p. 358)

São trechos assim que fazem de Margaret Atwood uma artista do primeiro time dos inventores de distopias, lado a lado com Huxley, Orwell, Zamiátin, Bradbury, K. Dick, dentre outros sagazes artistas sci-fi. Eles nos convidam a pensar que o nascimento, como Arendt já previra, jamais será o mesmo.

Os mais pessimistas colocam até mesmo no horizonte a possibilidade “apocalíptica”, já que é idêntica à extinção da Humanidade, de um fim do nascimento (como argumentamos acima ao comentar os filmes Children of Men Snowpiercer). Mesmo os mais otimistas sabem bem que nascer, no futuro, não será o que é nascer hoje. Isso nos coloca nos ombros, como Hans Jonas bem argumentou, o peso de uma nova responsabilidade, em que nosso dever ético supremo passa a ser a questão: “que mundo estamos legando àqueles que vão nascer?”

O Conto da Aia, explorando esta mesma senda, revela o brilhantismo de Atwood que, no meio dos anos 1980, escreveu algo que talvez terá muito a nos dizer pelo século 21 afora. Os amanhãs cantantes e radiantes dos utopistas não nos parecem mais tão plausíveis. As fantasias de happy end parecem-nos cada vez mais com róseas mentiras. O porvir em direção ao qual nós nos aventuramos provavelmente será repleto de fúria, violência, injustiça, e é neste turbilhão que o nascimento – instância de renovação da condição humana – irá se desenrolar em contextos sem precedentes. Ignorar os alertas e alarmes que fazem soar os artistas distópicos da ficção científica não seria prudente, e muito provavelmente é sábio ouvi-los e ficarmos atentos. Pois o Futuro, é possível, não será doce – e o que pedirá de nós, como diria Guimarães Rosa, é sobretudo coragem.

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro
Goiânia, Maio de 2018

 

LEIA TAMBÉM EM A CASA DE VIDRO: 

O ATLÂNTICO NEGRO: JUIZ DA MODERNIDADE (Reflexões descolonizadoras com Paul Gilroy, Charles Darwin, T. Todorov, Susan Buck-Morss, Toni Morrison etc.)

O ATLÂNTICO NEGRO, JUIZ DA MODERNIDADE

por Eduardo Carli de Moraes

Charles Darwin, muito antes de revolucionar a ciência com sua teoria da evolução, escandalizado pastores e teólogos com a publicação de seu magnum opus A Origem Das Espécies, viajou o mundo a bordo do Beagle, estudando a miríade de manifestações da Vida. No Brasil, Darwin também acabou por testemunhar os feitos e desfeitos deste primata particularmente perigoso, o homo sapiens, e diante das atrocidades cotidianas da escravidão no Rio de Janeiro o sábio naturalista deixou o seguinte relato, eivado de suspiros e lamentos:

Darwin

“Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era uma velha senhora que tinha umas tarraxas com que esmagava os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era, todos os dias e a todo momento, insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz dedesencorajar até o mais inferior dos animais. Vi como um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um pouco turva… E essas são coisas feitas por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos, que acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! O sangue ferve em nossas veias e nosso coração bate mais forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, fomos e somos culpados desse enorme crime.” CHARLES DARWIN em A Viagem do Beagle. Via Brado Informativo.

Com o mesmo tom de blues que Darwin emprega diante da escravatura, poderíamos suspirar: Ah, pobre e massacrado Oceano! Quantas atrocidades já cometeram os humanos sobre as tuas ondas! Hélas! Segundo o instrutivo e estarrecedor infográfico da Slate, por cerca de 315 anos o Atlântico foi atravessado por nada menos que 20,528 viagens marítimas diretamente vinculadas ao tráfico de escravos.

O que me leva à suspeita de que a “banalidade do mal”, como fenômeno histórico, existia muito antes deste conceito ser forjado por Hannah Arendt, que o formulou após testemunhar o o julgamento de Eichmann em Jerusalém, um dos emblemas das avalanches de males que marcaram o século XX. Muito antes das fábricas-da-morte instaladas pelos nazistas, Europa afora, para extermínio dos judeus, o mal banalizado da escravatura, crucial para o desenvolvimento do capitalismo europeu, consistiu na malvadeza banal, tornada habitual, da legalidade e cotidianidade – que hoje nos parece obscena e desumana!- dos mercadores de carne humana.

Do século XVI ao XIX, o slave trade (que tanto capital nos bolsos dos europeus logrou pôr!), impôs a escravatura aos humanos da África em uma escala e extensão impressionantes:  mais de 10 milhões de seres humanos escravizados chegaram às Américas, após terem sido sequestrados e acorrentados na África, extraídos à fórceps e com violência de suas terras nativas.  De todos os “forçados” que foram trazidos ao “Novo Mundo”, apenas 4% destes foram parar no Norte do Continente; a imensa maioria aportou na América Central e do Sul. O Brasil e o Caribe foram os territórios de maior influxo: foram cerca de 1,3 milhões de pessoas carregadas à América Central Espanhola; em contraste, chegaram 4 milhões ao Caribe (às colônias inglesas, francesas, holandesas e dinamarquesas), além de 4,8 milhões ao Brasil.

From the trade’s beginning in the 16th century to its conclusion in the 19th, slave merchants brought the vast majority of enslaved Africans to two places: the Caribbean and Brazil. Of the more than 10 million enslaved Africans to eventually reach the Western Hemisphere, just 388,747—less than 4 percent of the total—came to North America. This was dwarfed by the 1.3 million brought to Spanish Central America, the 4 million brought to British, French, Dutch, and Danish holdings in the Caribbean, and the 4.8 million brought to Brazil. SLATE

É preciso, portanto, repensar e re-escrever o relato histórico oficial, que fala em uma “descoberta da América” em que a “civilização” européia teria feito o favor de trazer aos pagãos-sem-lei as maravilhas e benefícios da “modernidade”. Como já argumentei em outro artigo, em seu clássico estudo A Conquista da América o Tzetan Todorov destaca claramente a dimensão da catástrofe genocida diretamente vinculada às aventuras imperialistas e escravocratas dos europeus:

 “Em 1500, a população do globo era de aproximadamente 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões… restam 10 milhões. Se nos restringirmos somente ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (TZVETAN TODOROV, A Conquista da América, Ed. Martins Fontes, p. 191-1)

la-economia-de-la-antiguedad-moses-finley-383111-MLA20493794209_112015-FÉ bem verdade que não foram os europeus da época das grandes navegações que inventaram a escravidão enquanto instituição: ela é um legado da antiguidade, uma acompanhante recorrente mesmo daquelas civilizações que tendemos a julgar como as mais “avançadas”. A obra de Moses Finley revela de modo esclarecedor as condições econômicas, sociais e morais que permitiram o surgimento, o desenvolvimento e o declínio das sociedades escravistas da antiguidade (confiram, por exemplo, o livro Escravidão Antiga e Ideologia Modernada Ed. Graal, 1991).

O Império Romano, por exemplo, praticava abertamente a escravidão. Na época em que Jesus de Nazaré vem ao mundo, este líder hebreu surge no contexto das insurreições de escravos similares ao levante chefiado por Spartacus (tão brilhantemente narrado no filme de Stanley Kubrick).  A figura histórica do nazareno, que depois acabará seus dias, aos 33 anos de idade, pregado numa cruz, é emblemática para frisar o seguinte: a “paixão de Cristo” foi em tudo similar às martirizantes crucificações perpetradas por Roma contra os escravos revoltosos e insubmissos. Tanto que, na Genealogia da Moral, Nietzsche analisará o cristianismo primitivo como expressão de uma “revolta dos escravos na moral”.

Um trecho notável de Friedrich Engels, no Anti-Dühring, clama pela necessidade de compreensão da infâmia escravocrata, se quisermos compreender adequadamente as maiores realizações culturais e espirituais tanto da antiguidade greco-romana quanto da Europa moderna:

Friedrich Engels, 1858

Friedrich Engels, 1858

“Foi a escravidão que tornou possível, pela primeira vez, a divisão do trabalho entre agricultura e indústria em grande escala… Sem a escravidão não haveria Estado, arte ou ciência gregas; sem a escravidão, não haveria Império Romano. Sem o helenismo e o Império Romano como bases, tampouco haveria a Europa moderna… É simples atacar a escravidão em termos gerais e despejar um ódio altamente moral em tais infâmias… Mas isto em nada nos revela como surgiram tais instituições, por que existiram e que papel tiveram na história.” (ENGELS. In: Marx/Engels, Werke, 20, Berlim: 1962, p. 168)

Tendo o Atlântico Negro em mente, é fácil compreender o que Walter Benjamin quis dizer com seu diagnóstico lapidar e crucial: “Todo monumento da civilização é também um documento da barbárie.” O dualismo maniqueísta civilização barbárie cai por terra e revela-se insustentável diante das barbaridades perpetradas pelos “civilizados”. A noção de uma barbárie-civilizada tem como exemplo explícito o caso da escravatura cotidianizada que os europeus praticaram por séculos. As civilizações que se celebram como as mais “elevadas” praticam infames e cruéis barbáries de modo recorrente, e isto também se manifesta em tempos mais recentes: a Alemanha altamente “culta” dará inúmeras provas disso durante o III Reich, e também os “desenvolvidíssimos” EUA, das bombas-H despejadas sobre Hiroshima e Nagasaki às chuvas de napalm sobre o Vietnã (para não mencionar os genocídios recentes no Iraque e no Afeganistão…).

Além disso, vale frisar que até mesmo aqueles reputados como os mais sábios dentre os homens, os mais inteligentes dos seres que já viveram, puderam realizar, naturalmente com muita “civilidade” e retórica apurada, a apologia da escravatura. O etnocentrismo de Hegel já foi amplamente reconhecido como traço notório do autor da Fenomenologia do Espírito (livro que contêm a famosa reflexão sobre a “dialética do senhor e do escravo”, de reverberações e críticas incalculáveis, de Kojève a Marx). Em um texto muito revelador, a historiadora Susan Bock-Morss realiza a proeza de refletir sobre a vida e obra de Hegel tendo como foco a Revolução no Haiti (analisada em minúcias no clássico da historiografia Os Jacobinos Negros, de C.R.L. James):

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LEIA: HEGEL E HAITI, DE SUSAN BUCK-MORSS. Resumo: O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna. O artigo explora o uso da metáfora da escravidão no iluminismo filosófico europeu, e sugere que a “dialética do senhor e do escravo” hegeliana tem raízes mais na história contemporânea – particularmente, nas notícias que chegavam à Europa da Revolução Haitiana de 1791 – do que na tradição herdada pelo filósofo alemão.

“No século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, conotando tudo o que havia de mau nas relações de poder. A liberdade, sua antítese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor político supremo e universal. Mas essa metáfora política começou a deitar raízes justamente no momento em que a prática econômica da escravidão – a sistemática e altamente sofisticada escravização capitalista de não europeus como mão de obra nas colônias – se expandia quantitativamente e se intensificava qualitativamente, ao ponto de, em meados do século XVIII, ter chegado a sustentar o sistema econômico do Ocidente como um todo, facilitando, paradoxalmente, a expansão global dos próprios ideais do Iluminismo que tão frontalmente a contradiziam.

Essa discrepância gritante entre pensamento e prática marcou o período de transformação do capitalismo global de sua forma mercantil para sua modalidade proto-industrial. Seria de se esperar que nenhum pensador racional e “esclarecido” deixaria de percebê-la. Contudo, não era esse o caso.

A exploração de milhões de trabalhadores escravos coloniais era aceita com naturalidade pelos próprios pensadores que proclamavam a liberdade como o estado natural do homem e seu direito inalienável. Mesmo numa época em que proclamações teóricas de liberdade se convertiam em ação revolucionária na esfera política, era possível manter nas sombras a economia colonial escravista que funcionava nos bastidores.

Se esse paradoxo não parecia incomodar a consciência lógica dos contemporâneos, talvez seja mais surpreendente que alguns autores, ainda hoje, se disponham a construir histórias do Ocidente na forma de narrativas coerentes do avanço da liberdade humana….” – SUSAN BUCK-MORSS

Já entre os filósofos gregos clássicos, encontramos escravocratas entre os maiores popstars do pensamento: Aristóteles, o discípulo de Platão e mentor do imperador Alexandre, fará a defesa explícita da escravidão em sua obra Política:

ARistoteles“Alguns seres, ao nascer, se veem destinados a obedecer; outros, a mandar. (…) O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. (…) Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens no qual o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer. (…) A utilidade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos: ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades cotidianas. (…) O escravo é completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem, mas fraca; a do filho é incompleta…” ARISTÓTELES. Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. Ed. Saraiva de Bolso, Livro I, Capítulo 2 e 4, pgs. 26, 27 e 42.

Ideologia semelhante já era propagada em A República, onde Sócrates prega uma pólis ideal onde imperaria a escravidão, além de uma rígida censura, com o reinado elitista do “filósofo-rei” e a divisão do trabalho com base nas “aptidões naturais” (alguns, vocês sabem, nascem para a escravidão, outros para a filosofia e o poderio civil… é mais ou menos o sustentava o sujeito que Atenas mandou matar com a cicuta). Mesmo os mais consagrados dos pensadores podem afirmar valores aristocráticos e racistas (Heidegger foi membro de carteirinha do Partido Nazi…). E na Europa jamais faltaram filósofos que dão justificativas sórdidas para o apartheid social e para a manutenção do que Nietzsche chamava de “pathos da distância” (a obra de Nietzsche, aliás, também está repleta de um ethos do aristocratismo, que será fustigado sem dó pelo filósofo marxista Lúkacs em O Assalto à Razão)

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Zumbi dos Palmares, pintura de Antônio Parreiras

Porém, jamais foi sem resistência que o supremacismo militarizado dos escravocratas impôs a mercantilização brutal aos escravizados. A “Revolução dos Escravos” no Haiti é um emblema de que ideais de justiça, liberdade, igualdade e fraternidade, pregados da boca-pra-fora em uma Europa que seguia imperialista e escravocrata, pode triunfar através da insurreição popular revolucionária. No Brasil, por exemplo, também multiplicaram-se os quilombos e os heróis da liderança emancipatória, como Zumbi dos Palmares. Nas águas do Atlântico Negro, atravessado pela diáspora africana, eclodiram também muitas lutas encarniçadas entre capitalistas acorrentadores e escravizados em motim, como ocorreu no navio Amistad em 1839 (cuja crônica cinematográfica foi realizada em 1997 por Steven Spielberg).

Amistad

"Levante no Amistad", de Hale Woodruff.

“Levante no Amistad”, de Hale Woodruff.

The Mutiny on the Amistad – In 1839 on the West Coast of Africa, 53 Africans were kidnapped from Mende country (modern Sierra Leone) and sold into Spanish slave trade.  The men, women and children were shackled and loaded aboard a ship where they endured physical abuse, sickness, and death during a horrific journey to Havana, Cuba. Led by Senbeh Pieh (Cinque’), the Africans revolted, took control of the ship, which was eventually seized by an American naval vessel.  The Africans were jailed and charged with piracy and murder. – STEINHARDT/NYU

Um dos pintores ingleses mais importantes do século XIX, Turner (1775-1851), retrata em um célebre quadro a seguinte situação: um “navio negreiro lançando mortos e moribundos ao mar enquanto uma tempestade se aproxima”. A extraordinária e icônica imagem foi inspirada em eventos reais ocorridos com o navio Zong, que fez a travessia entre a África e a Jamaica em 1783, quando 132 pessoas, que eram s africanos escravizados e acometidos por uma epidemia, foram lançados à morte certa nas águas repletas de tubarões. A obra “foi exposta na Royal Academy para coincidir com a convenção mundial antiescravista realizada em Londres, em 1840” (Paul Gilroy, Atlântico Negro, Ed. 34, p. 55).

Obra do pintor inglês, J.M.W. Turner, "O Navio Negreiro" (The Slave Ship), de 1840

Obra do pintor inglês, J.M.W. Turner, “O Navio Negreiro” (The Slave Ship), de 1840. Compartilhar.

A imagem é um emblema das tragédias vinculadas ao tráfico de escravos perpetrado pelos europeus em suas práticas de terror racial e supremacismo branco, mas “deve-se enfatizar que os navios eram os meios vivos pelos quais se uniam os pontos naquele mundo atlântico, os elementos móveis que representavam os espaços de mudança entre os lugares fixos que eles conectavam” (Gilroy, p. 60). No Atlântico, milhares de dramas, hoje apenas parcialmente conservados pela história, transcorreram em meio aos avanços impiedosos da industrialização e da modernização capitaneados pela Europa.

Para Paul Gilroy, o Atlântico Negro remete a uma “estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional”. O livro de Gilroy pretende focar no conceito de diáspora, sempre remetendo às rotas marítimas, intercruzadas e múltiplas, realizadas através do Oceano que conecta a África, a Europa e a América. O navio teria sido, como escreve Peter Linebaugh, “o mais importante canal de comunicação pan-africana antes do aparecimento do disco long-play.” (LINEBAUGH, “Atlantic Mountains”, p. 119, apud Gilroy, p. 54)

“Este livro é, essencialmente, um ensaio sobre a inevitável hibridez e mistura de ideias”, escreve Paul Gilroy no prefácio ao Atlântico Negro, obra em que faz um “apelo sincero contra a clausura da categorias com as quais conduzimos nossas vidas políticas” e que oferece um “vasto acervo de lições quanto à instabilidade e à mutação de identidades que estão sempre inacabadas, sempre sendo refeitas.” (p. 30) No prefácio à edição brasileira, ele torna explícito o seu desejo de contribuir para “consolidar e renovar nossas críticas da própria ideia de raça e esperançosamente prever sua morte como princípio de cálculo moral e político.” (p. 24) A utopia de Gilroy inclui a morte do racismo, a abertura alegre para a mestiçagem e a crioulização, de modo a demolir todos os absolutismos étnicos, purismos raciais e nacionalismos particularistas que tantos desastres já causaram pela História afora.

Um dos antrópologos mais conceituados da atualidade que estuda a reconstrução da identidade africana, fugindo um pouco dessa relação umbilical com a África Na foto: Paul Gilroy Foto: Walter de Carvalho, Ag. A Tarde, em 03/08/06

Paul Gilroy, autor de O Atlântico Negro. Foto: Walter de Carvalho, Ag. A Tarde, em 03/08/06.

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Falls Road, Belfast

Street Art na Irlanda destaca em seu centro Frederick Douglass. Local: Falls Road, Belfast.

O imperio da necessidadeA situação de cisão e apartheid social no Brasil, um dos lócus mais marcados pela diáspora africana que o termo Atlântico Negro pretende captar, marca nosso presente com seus nefastos legados racistas e discriminatórios até hoje (vejam, por exemplo, o documentário Abolição, de Zózimo Bulbul, lançado no centenário da Lei Áurea,). A escravatura em terra brasilis é bem retratada visualmente pelas obras de Débret, Rugendas e outros artistas menos conhecidos – como é o caso do pintor e desenhista francês François Auguste Biard (cerca 1798–1882), cuja pintura “O Tráfico de Escravos” ilustra a abertura deste post (acima) e decora a capa de livros que estudam o tema, como O Império da Necessidade – Escravatura, Liberdade e Ilusão no Novo Mundo, de Greg Grandin (Ed. Rocco).

Segundo este artigo publicado pelo Goethe Institut:

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François Auguste Biard (cerca 1798–1882), que durante um tempo trabalhou também como retratista oficial na Corte francesa, viajou ao Brasil em 1858 e percorreu amplas extensões do país. Após regressar a Paris, publicou em 1862 o livro, amplamente ilustrado, Deux années au Brésil (Dois anos no Brasil). Segundo Berthold Zilly, a ilustração do transporte do piano pode ser vista “como símbolo da cisão da sociedade brasileira, incluída a elite, entre a pretensão civilizatória e a bárbara base socioeconômica”.

the_slave_trade_by_auguste_francois_biard“O tráfico de escravos – The Slave trade”, pintura de François-Auguste Biard (1833). SAIBA MAIS.

Diante da diáspora africana, causada pela instituição da escravatura, é a modernidade ocidental como um todo que vai parar no banco dos réus. O Atlântico Negro torna-se juiz da modernidade. Segundo Gilroy, a diáspora pelo Atlântico Negro acabará por constituir poderosas contraculturas, que o autor analisará com muita perspicácia através das obras de W.E.B. Du Bois, Frederick Douglass, Toni Morrison, Richard Wright – no âmbito da cultura letrada -, focalizando também na expressão musical negra, em suas múltiplas manifestações (blues, reggae, funk, r&b etc.), de Quincy Jones e Billie Holliday à emergência do hip hop e dos grafiteiros.

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“A impossibilidade da alfabetização para os escravos e seu refinamento compensatório na arte musical não explica o compromisso obstinado e consistente da música negra com a ideia de um futuro melhor. O poder da música no desenvolvimento das lutas negras pela comunicação de informações, organização da consciência e articulação das formas de subjetividade exigidas pela atuação política, seja individual ou coletiva, defensiva ou transformadora, exige atenção tanto aos atributos formais dessa cultura expressiva como à sua base moral distintiva.” (GILROY, p. 94)

A produção cultural vinculada ao Atlântico Negro representa, na avaliação de Gilroy, uma crítica radical de todo o projeto da modernidade ocidental e seu culto à razão. Seria mesmo bizarro que as vítimas da violência escravocrata pudessem acreditar na “racionalidade” do sistema imposto pelos impérios colonizadores. Segundo Gilroy, o exuberante florescimento da arte no âmbito das contraculturas negras revela uma filosofia-de-vida que enxerga na expressão artística uma peça central das “esperanças de emancipação” e “libertação comunal”, em contraste com a tradição da “modernidade” européia, tão logocêntrica e cuja tradição se baseava em esperanças excessivas no poder redentor da “racionalidade”:

“Esta tradição havia mantido a ideia de que a vida boa para o indivíduo e o problema de uma ordem social e política melhor para a coletividade poderiam ser alcançadas por meios racionais. Embora raramente seja reconhecida ainda hoje, essa tradição perdeu seu direito exclusivo à racionalidade, em parte pelo modo como a escravidão se tornou interna à civilização ocidental e pela cumplicidade óbvia que tanto a escravidão da plantation como os regimes coloniais revelaram existir entre a racionalidade e a prática do terror racial. (…) “No pensamento crítico dos negros no Ocidente, a autocriação social por meio do trabalho não é a peça central das esperanças de emancipação. Para os descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e subordinação. A expressão artística (….) torna-se o meio tanto para a automodelagem individual como para a libertação comunal.” (GILROY – p. 98 – 100)

Um dos elementos mais interessantes desta obra-prima da historiografia e da crítica cultural que é o Atlântico Negro de Gilroy é sua abordagem da questão do “pós-modernismo”. Gilroy defende que “repensemos drasticamente” a periodização histórica vigente, que pressupõe uma ruptura radical entre modernidade e pós-modernidade. É preciso superar “versões da modernidade elaboradas pelas míopes teorias eurocêntricas”, o que Gilroy realiza de modo brilhante:

“O conceito de pós-modernismo é frequentemente introduzido para enfatizar a natureza radical ou mesmo catastrófica da ruptura entre as condições contemporâneas e a época do modernismo. Dessa forma, pouca atenção é dada à possibilidade de que grande parte do que é identificado como pós-moderno possa ter sido pressagiado ou prefigurado nos contornos da própria modernidade. Tanto os defensores como os críticos da modernidade parecem não atentar para o fato de que a história e a cultura expressivas da diáspora africana, a prática da escravidão racial ou as narrativas de conquista imperial europeia podem exigir que todas as periodizações simples do moderno e do pós-moderno sejam drasticamente repensadas.

(…) Pode-se argumentar que grande parte da suposta novidade do pós-moderno se evapora quando vista à luz histórica inexorável dos encontros brutais entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e escravizaram. (…) Um conceito de modernidade que se preze deve, por exemplo, ter algo a contribuir para uma análise de como as variantes particulares de radicalismo articuladas pelas revoltas de povos escravizados fez uso seletivo das ideologias da Era da Revolução ocidental e depois desaguou em movimentos sociais de um tipo anticolonial e decididamente anticapitalista. Por último, a superação do racismo científico (um dos produtos intelectuais mais duráveis da modernidade) e sua transmutação no pós-guerra em formas culturais mais novas, que enfatizam a diferença complexa em lugar da hierarquia biológica simples, podem fornecer um exemplo concreto e revelador do significado do ceticismo em relação às narrativas grandiosas da razão científica.

O interesse pela subordinação social e política dos negros e outros povos não europeus geralmente não se apresenta nos debates contemporâneos em torno do conteúdo filosófico, ideológico ou cultural e das consequências da modernidade. Em seu lugar, uma modernidade inocente emerge das relações sociais aparentemente felizes que agraciaram a vida pós-Iluminismo em Paris, Berlim e Londres. Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos povos sem história, cujas vidas degradadas poderiam levantar questões incômodas sobre os limites do humanismo burguês. (…) O trabalho de uma série de pensadores negros será examinado adiante como parte de uma argumentação geral de que há outras bases para a ética e a estética que não as que parecem imanentes às versões da modernidade elaboradas pelas míopes teorias eurocêntricas. (…) As experiências históricas características das populações da diáspora africana criaram um corpo único de reflexões sobre a modernidade e seus dissabores, que é uma presença permanente nas lutas culturais e políticas de seus descendentes atuais.” (GILROY: 103 – 106 – 107)

Gilroy não permite que o leitor jamais se esqueça da “estreita associação entre modernidade e escravidão”, de modo a insistir numa “firme rejeição da ideia hipnótica da história como progresso” (p. 123). Para escaparmos aos míopes eurocentrismos, é preciso observar a modernidade da perspectiva de suas vítimas, é preciso enxergar as resistências e rebeliões contra uma modernidade que foi vivenciada por milhões como bárbara e opressora. É preciso dar voz, para que contem o seu quinhão da história, aqueles que resistiram bravamente contra o cortejo de atrocidades que lhe eram impostos. A própria história da filosofia precisa passar por uma revolução de modo a considerar, por exemplo, que a dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia do Espírito de Hegel pode ser analisada à luz de eventos históricos de que o filósofo alemão foi contemporâneo, em especial “as lutas dos escravos pela emancipação e pela justiça racial, e que persistem nas lutas atuais de seus descendentes dispersos” (p. 124).

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Obras-primas da arte contemporânea tematizam os dramas e dilemas vinculados à diáspora africana e ao Atlântico Negro. É o caso do romance Beloved, de Toni Morrison, a primeira escritora negra a vencer um prêmio Nobel de Literatura. Neste romance, segundo Gilroy, Toni Morrison recria com “patente habilidade” a “assustadora história da tentativa de fuga de Margaret Garner da escravidão em Kentucky”: a mulata Garner, em 1856, em um trenó puxado a cavalo, fugiu com seu marido e seus 4 filhos, além de 9 outros escravos, em direção ao Ohio. Porém, “apanhada em casa pelo cerco de caçadores de escravos, Margaret matou sua filha de três anos com uma faca de açougueiro e tentou matar as outras crianças em lugar de deixar que fossem levadas de volta à escravidão por seu senhor” (GILROY: p. 144).

BELOVEDEm seu impressionante filme, também chamado Beloved, Jonathan Demme soube retratar bem a complexidade e densidade psicológica desta mulher que poderia ser descrita como uma Medéia Escrava e que, segundo Gilroy, na radicalidade de seu infanticídio, manifesta uma “preferência positiva pela morte em lugar da continuidade da servidão. Ela fornece uma valiosa pista para responder à pergunta de como o reino de liberdade é concebido por aqueles que nunca foram livres.” (p. 150)

Não é possível idealizar a ideologia burguesa da modernidade, supostamente humanista e iluminista, diante das cicatrizes e feridas condensados na memória vital dos escravizados. Se o Atlântico Negro merece ser considerado seriamente no “tribunal da História”, como juiz da modernidade, é também para que superemos uma tendência míope da historiografia, que é o foco nacionalista ou etnocêntrico:

“Com algumas nobres exceções, as explicações críticas da dinâmica da subordinação e resistência negra têm sido obstinadamente monoculturais, nacionais e etnocêntricas. Isso empobrece a história da cultura negra moderna, pois as estruturas transnacionais que trouxeram à existência o mundo do Atlântico Negro também se desenvolveram e agora articulam suas múltiplas formas em um sistema de comunicações globais constituído por fluxos. Este deslocamento fundamental da cultura negra é particularmente importante na história recente da música negra que, produzida a partir da escravidão racial que possibilitou a moderna civilização ocidental, agora domina suas culturas populares. (…) O O conceito crucial de diáspora é indispensável no enfoque da dinâmica política e ética da história inacabada dos negros no mundo moderno.” (GILROY: p. 170)

A obra de Gilroy é magistral em revelar uma “percepção profunda” do quanto “a modernidade se estrutura numa cumplicidade entre a racionalidade e a prática do terror supremacista branco”, algo revelado pela teoria e práxis de grandes figuras da história do ativismo negro como Frederick Douglass, Martin Luther King, Malcolm X, Nelson Mandela, Angela Davis, Toni Morrison, entre outros. A contribuição inestimável do livro de Gilroy está em fornecer-nos uma viagem transatlântica pela plural e diversificada cultura negra, em especial aquela que põe sua “ênfase no terror como traço definidor dos regimes escravos santificados tanto por Deus como pela razão” (Gilroy: p. 234).

Em um dos livros mais clássicos em toda a história da produção cultural do Atlântico Negro, The Souls of Black Folk, de W. E. B. Du Bois, sintetiza-se bem esta benjaminiana percepção da modernidade-bárbara: “Guerra, assassinato, escravidão, extermínio e devassidão: este tem sido reiteramente o resultado de se levar a civilização e o abençoado evangelho às ilhas do mar e aos pagãos sem lei.” (DuBois, apud Gilroy, p. 234)

Profundamente inspirado pelas obras de Du Bois, Douglass, R. Wright, Toni Morrison, C.L.R. James, Frantz Fanon, além de impregnado com a música múltipla produzida pela diáspora africana, Paul Gilroy produziu em O Atlântico Negro um monumento da historiografia e da crítica cultural que busca lutar contra “tradições raciais hermeticamente lacradas e culturalmente absolutas”. A aposta de Gilroy é na

“inevitabilidade e valor legítimo da mutação, hibridez e mistura em marcha rumo a memórias do racismo e da cultura política negra melhores do que aquelas até agora oferecidas por absolutistas culturais de vários matizes fenotípicos. A história dos negros no Ocidente e os movimentos sociais que têm afirmado e reescrito essa história podem fornecer uma lição que não se restringe aos negros. Existe aqui, por exemplo, uma contribuição potencialmente importante rumo à política de um novo século no qual o eixo central de conflito não será mais a linha da cor, mas o desafio do desenvolvimento justo e sustentável e as fronteiras que separarão as áreas super-desenvolvidas do mundo (internamente e no exterior) da pobreza intratável que já as circunda. Nessas circunstâncias, pode ser mais fácil considerar a utilidade de uma resposta ao racismo que não reifique o conceito de raça e premiar a sabedoria gerada pelo desenvolvimento de uma série de respostas ao poder do absolutismo étnico, que não tente fixar absolutamente a etnia mas, sim, a veja como um processo infinito de construção da identidade.” (GILROY: p. 415)

SIGA VIAGEM NA CASA DE VIDRO: Angela DavisFrederick Douglass

Leia também: Harvard University Press – Africa in Words – Eufrázia (Scielo) – Critical Legal Thinking – Encyclopedia.com.