PERDIDOS ENTRE MONSTROS DE NOSSA PRÓPRIA CRIAÇÃO || Por Eduardo Carli em A Casa de Vidro

Pandemias mortíferas e catástrofes sócio-ambientais tornaram-se o novo normal. Entre mortos e feridos, nossas certezas se esmigalham e caem ao pó, ficando só a tarefa de lidarmos com as marcas traumáticas nos sobreviventes. Dos cataclismos que fizeram história (como Bophal, Índia, 1984 ou Chernobyl, Ucrânia, 1986) aos desastres mais recentes (Brumadinho, Minas Gerais, 2019 ou a covid-19 grassando pelo globo em 2019-2020, ou os arrasadores incêndios recentes na Amazônia e na Austrália), uma das poucas certezas é a de que momentos históricos de disrupção cataclísmica da vida “civilizada” e “normal” geram como frutos muitos traumas coletivos.

O modo como estas fraturas no esqueleto da “normalidade” ressoam na 7ª Arte [1] está sendo bastante pesquisado ultimamente diante da fenomenal maré montante do que uma coletânea de artigos publicadas pela Routledge chamou de Cinema do Eco-Trauma [2]:

“Film has taken a powerful position alongside the global environmental movement, from didactic documentaries to the fantasy pleasures of commercial franchises. This book investigates in particular film’s complex role in representing ecological traumas. Eco-trauma cinema represents the harm we, as humans, inflict upon our natural surroundings, or the injuries we sustain from nature in its unforgiving iterations. The term encompasses both circumstances because these seemingly distinct instances of ecological harm are often related, and even symbiotic: the traumas we perpetuate in an ecosystem through pollution and unsustainable resource management inevitably return to harm us.

Contributors to this volume engage with eco-trauma cinema in its three general forms: accounts of people who are traumatized by the natural world, narratives that represent people or social processes which traumatize the environment or its species, and stories that depict the aftermath of ecological catastrophe. The films they examine represent a central challenge of our age: to overcome our disavowal of environmental crises, to reflect on the unsavoury forces reshaping the planet’s ecosystems, and to restructure the mechanisms responsible for the state of the earth.”

O Hospedeiro, filme sul-coreano lançado em 2006 e dirigido por Bong Joong-Ho (o mesmo de O Expresso do Amanhã, Okja, Parasita, dentre outros), inicia explicitando um crime ambiental cujas consequências a narrativa irá delinear na sequência. Falada em inglês, a cena revela uma pessoa – com fenótipo de anglo-saxão, um representante do homem cis branco ocidental – ordenando a seu subordinado – com fenótipo de coreano, “oriental”, de olhos puxados e postura subserviente – que faça dumping de formaldeído tóxico no Rio Han de Seul.

– The Han River is very broad, Mr. Kim. Let’s try to be broad-minded about this.

O filme é um pesadelo distópico que revela o avesso do “boom econômico” sul coreano frequentemente descrito como O Milagre Do Rio Han. Nesta ideologia “milagreira”, a Coréia do Sul é celebrado como um tigre capitalista rugindo forte no cenário do capitalismo globalizado: a Coréia do Sul teria “milagrosamente” superado os traumas da Guerra do Coréia (que teve no M.A.S.H. de Robert Altman sua magnum opus de representação crítica), tornando-se um dos epicentros do sucesso (I’d rather call it suck-sess) da Globalização Capitalista propulsionada pelos “tigres asiáticos”.

Por incrível que pareça, o episódio com que se inicia O Hospedeiro – o despejo de formol no Rio Han – é baseado em fatos reais: “This scene is based on a notorious incident involving Albert McFarland, an American civilian mortician at the Yongsan military base, who in 2000 ordered his staff to pour 120 liters of formaldehyde into the morgue’s plumbing. Although the chemicals passed through two treatment plants before reaching the Han, source of Seoul’s drinking water, the scandal sparked an anti-American uproar in South Korea.” [3]

Quando o subordinado obedece a seu patrão, e vai em frente com o crime ambiental, este evento trará trágicas consequências: numa nova forma de banalidade do mal em que o crime não é mais assemelhando ao Holocausto praticado pelos nazis nas câmaras de gás Zyklon B, mas sim fruto da irresponsabilidade socioambiental de alguns psicopatas corporativos [4]. Aquele gesto, na cadeira de mando-e-obediência, será capaz de acarretar no encadeamento de causas e consequências um gigantesco holocausto na metrópole.

Capital e maior metrópole da Coréia do Sul, Seoul tem 10 milhões de habitantes e estes irão sofrer as consequências das toneladas de formol despejadas em suas águas – o Rio Han, para incremento da tragédia, é a fonte de água potável para a população.

Em seu excelente artigo para o livro Cinema do Eco-trauma (https://bit.ly/2t8BOnd), Hsuan L. Hsu chamou a atenção para vários fenômenos sócio-políticos interconectados que marcam presença no filme: os suicídios de empresários arruinados, que se lançam ao Rio Han, são chamados na imprensa sul-coreana de “IMF Suicides” [Suicídios do FMI], uma referência ao cenário de choque neoliberal imposto pelo Fundo Monetário Internacional após a crise de 1997.

No filme, surge um monstro mutante que emerge do Rio Han com apetite voraz e nenhum escrúpulo moral. Eis um filme que evoca clássicos sobre o combate de humanos contra a monstruosidade, a exemplo de Tubarão e Jurassic Park (ambos de S. Spielberg), Alien (trilogia original por Ridley Scott, James Cameron e David Fincher), Moby Dick (romance de Melville com magistral adaptação cinematográfica de John Huston em 1956), dentre outros.

Na história do cinema, O Hospedeiro parece se alinhar também à multidão de obras centradas em monstros gigantes e aterrorizadores que fizeram sucesso a partir dos anos 1950, na esteira dos impactos da bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Nasci ali, no começo da Guerra Fria, enquanto o mundo temia um holocausto nuclear caso o conflito entre EUA e União Soviética esquentasse, um subgênero de blockbusters que lida com as mutações genéticas causadas por radiação, gerando big bugs e outros monstrões, tema de alguns dos principais arrasa-quarteirões de 1954 e 1955: Godzilla, Them!, O Monstro do Mar Revolto (It Came FroM Beneath the Sea).

Este seria um trend do cinema B que não cessaria de causar frisson popular, seja através da aranha gigante do filme Tarântula, seja através da mescla genética bizarra que faz emergir uma mistura de cientista e de mosca na obra-prima de David Cronenberg, A Mosca – The Fly (1984).

O filme de Bong não se restringe à luta humana contra o monstro, mas envereda pelas áreas exploradas pelos dramas de epidemia, em que um vírus letal se dissemina pela sociedade alimentando o pânico, o medo da extinção e as mais desesperadas estratégias de imunização, quarentena e extermínio de infectados.

O cinema esteve atento a várias irrupções de doenças epidêmicas, em obras que falam sobre doenças reais – como o vírus Ebola, nos anos 1990, tema do filme Outbreak (Epidemia), de Wolfgang Petersen, 1995, e também do livro de Richard Preston, The Hot Zone. Também dedicou-se a pandemias imaginadas, como a aniquilação da capacidade reprodutiva das mulheres humanas em um dos melhores sci-fi do séc. XXI, Children of Men, de Alfonso Cuarón.

O título do filme, O Hospedeiro, pode se referir ao soldado dos EUA que é o primeiro a ser declarado pela mídia como hospedeiro de um vírus perigoso por ter tido contato com o Monstro do Rio Han. A narrativa da epidemia potencial de um novo vírus acaba recalcando e ocultando a verdadeira causa da catástrofe, a irresponsabilidade do yankee que ordenou o dumping tóxico nas águas públicas do Rio Han.

O pânico gerado pelo Monstro à solta é incrementado por vias ideológicas através de um complô político-midiático, que dissemina as fake news referentes ao vírus como justificativa para as medidas típicas de um estado de exceção autoritário e brutal. Afinal de contas, não havia nenhum vírus a não ser aquele imaginário, utilizado pelas autoridades para justificar suas intervenções.

Só que estas intervenções são como pseudo-remédios que revelam-se como venenos muito piores do que a doença que pretendem curar. Gênio dos unhappy endings – como ficará ainda mais claro no apocalipse sobre trilhos de Snowpiercer -, Bong termina seu filme sugerindo que a monstruosidade humana supera em muito a daquele monstro anfíbio. Pois borrifar uma megalópole com Agente Amarelo ataca a possibilidade de 10 milhões de cidadãos de terem acesso a um ar respirável e à água potável. Cria-se assim uma bomba para o aparato de saúde e potencialmente um morticínio de câncer para os próximos anos. As “medidas de biosegurança acabam sendo os verdadeiros perpetradores de monstruosidades no filme de Bong” (HSU, p. 123). [5]

Seul torna-se aquilo que Naomi Klein conceituou como sacrifice zones, as zonas de sacrifício onde a vida humana é tratada como descartável e sacrificável [6]. O Hospedeiro mostra muito bem o vínculo entre as corporações irresponsáveis e as catástrofes sócio-ambientais, o que é bastante realista: não se explica a tragédia de Bophal sem falar na Union Carbide, nem a tragédia de Mariana e Brumadinho sem mencionar a empresa Vale (do Rio Doce), etc. Talvez ciente disso, em um filme futuro como Okja, a psicose corporativa será descrita por Bong com tintas ainda mais fortes e caricaturas super contundentes.

O Hospedeiro também traz o retrato do Monstro para a era das mutações genéticas. Estas também serão tema de um de seus filmes posteriores, Okja, centrado nos Superporcos criados pela indústria da carne como suposta solução para hambúrgueres baratos que façam a festa das cadeias de fast food.

O filme foca em uma família, dona de uma pequena lanchonete-trailer, que vende salgadinhos, refris e frutos do mar. Os problemas da família no cotidiano são dos mais simplórios: o pai-patrão briga com o filho-subordinado quando o cliente recebe uma lula de 9 pernas, reclamando pela perna que estava faltando. O pai puxa as orelhas do filho, mas o fato de filho ter devorado uma perninha da lula frita antes de servi-la ao cliente irá logo deixar de ser algo que os preocupa.

Pois haverá a disrupção súbita da normalidade com a primeira aparição da Besta: a princípio, a galera se junta toda curiosa e taca cervejas, amendoins e pipocas na direção daquela novidade que emerge das águas. Mas quando ela emerge do rio com fúria irrefreável instaura o caos na cidade. Devora algumas dúzias de pessoas com seu voraz apetite bestial. Deixa muitos outros feridos e desmaiados. O tecido social é esgarçado pelo pânico. A família protagonista será diretamente afetada: o sequestro de sua filha Hyun-seo faz com que o pai-de-família, desesperado, se lance nas águas, território do inimigo monstruoso. Tudo indica que a mocinha Hyun-seo morreu devorada, e no enterro dela há um traumático encontro familiar, com luto extremado e brigas irracionais, é descrito com tintas satíricas e muita hipérbole pelo cineasta.

Jonas e a Baleia — Pieter Lastman

Depois descobre-se que Hyun-seo está viva, nos esgotos cheios de bichos escrotos, após ter escapado do destino fatal de virar comida de monstro. Vomitada como Jonas da baleia bíblica, a menina estará presa num espaço onde o Monstro guarda a carne humana que ele quer devorar depois. Pois o monstro, pouco tecnológico, não tem um freezer, como tem os humanos, para guardar os cadáveres de bichos mortos a serem devorados em tempos vindouros.

O filme terá muitos momentos sinistros envolvendo este local asqueroso: se o cinema tivesse cheiro, ou seja, caso pudesse nos fornecer estímulos de olfato, sentiríamos todo o horror do fedor da putrefação e de ossos recentes que tiveram sua carne devorada.

O que este filme “fantástico” nos diz sobre o real? Fala sobre catástrofes ambientais, podendo servir de reflexão sobre o que ocorreu em Fukushima (Japão), Bophal (Índia), Chernobyl (Ucrânia), Goiânia ou Minas Gerais (Brasil). O “Monstro” é subproduto da ação humana e nenhum Diabo o criou senão nós mesmos.

O mais interessante dos ensinamentos sobre o real, porém, está na ideologia que se constrói ao redor do Monstro: espalha-se, na mídia, para que a sociedade inteira comungue nesta ideologia fajuta, que a Besta monstruosa está contaminada com o vírus SARS. Dissemina-se a notícia de que todos que entram em contato direto com um infectado também ficam contaminados, o que se descobre a partir do estado clínico de um soldado do Exército dos EUA que sobrevive a uma “treta” com a Bestona. Aí, listas de infectados servem para justificar a “guetificação” de gente colocada em quarentena, impedida em seu direito de ir e vir, e no limite extremo passível de sofrer, nas mãos do estado, processos de lobotomia.

O Hospedeiro serve então como material de reflexão sobre o pânico e suas relações com as ideologias dominantes (o que merece uma análise similar àquela dos filmes dissecados por Slavoj Zizek, em seu O Guia dos Pervertidos da Ideologia). Neste caso fica claro que a ideologia serve para ocultar o crime corporativo por trás da crise sócio-ambiental. O caos provêm de uma irresponsabilidade dos que despejaram o formol no rio e causaram a mutação genética que “gerou” a monstruosidade assassina em série.

Este parente do “T Rex”, babando faminto em toda sua selvageria que rompe com a normalidade civilizacional, coloca-nos também a necessidade de pensar na conexão entre o local e o global: a treta que aflige Seul localmente advêm de um problema sistêmico e global: o poderio exagerado e a hýbris gananciosa das corporações psicopatas. Um problema que se agrava com a governança neoliberal que acaba com regulações ambientais e impede o Estado, reduzido a seu “mínimo”, de agir como protetor ambiental ou garantidor de direitos trabalhistas.

O filme culmina com a provocação pontiaguda: o Agente Amarelo que se espalha por Seoul. Trata-se evidentemente de uma referência semi-cifrada ao Agente Laranja, arma química criada pela Monsanto (hoje fundida com a Bayer numa mega-empresa global), utilizada pelos militares dos EUA durante a guerra imperialista contra o Vietnã e o Camboja. É muito irônico que a princípio a mídia em Seoul anuncie os U.S.A. como o herói dotado da “salvação química” para o problema, quando provavelmente foi um cidadão estadunidense quem cometeu o crime ambiental causador da catástrofe toda – o filme não destaca isso, mas deixa sutilmente subentendido.

Grandes protestos dos cidadãos de Seul ocorrem, contrários à borrifação de Agente Amarelo, pois a cidadania informada e consciente sabe que aquilo destinado a matar o Monstro certamente tornaria o ar tóxico e letal também para muitos humanos. Matar a Besta acarretaria uma catástrofe humanitária, uma bomba para o sistema de saúde, uma epidemia de câncer e doenças respiratórias etc.

A nuvem de Agente Amarelo é a consumação da distopia, uma espécie de remédio pior que a doença. Tentando bloquear a catástrofe do Agente Amarelo, cidadãos tomam a resolução do imbróglio em suas próprias mãos, com garrafas de coquetel molotov, galões de combustível inflamável e flechas flamejantes pra tentar botar fogo na bestialidade produzida pela insensibilidade ambiental dos humanos. Mas o estrago está feito. E muitos não querem ver este estrago – o filme acaba com o noticiário da TV sendo desligado por um adulto e uma criança que não se interessam por aquilo que está sendo confessado ali: que o vírus era uma mentira e fez parte de uma massiva desinformação, uma propagação de fake news gigante.

Por isso o filme se torna emblema do poder da ideologia: p. ex, na cena em que, após ser lobotomizado, o personagem do pai-de-família (com a filha sequestrada pelo monstro) foge do hospital-prisão em que está encarcerado em quarentena, e onde é tratado como louco. Ele usa uma seringa com sangue supostamente “contaminado” como uma espécie de arma para assustar todos a seu redor, como se fosse um revólver. Mas o vírus é fake e aquilo que ele empunha é perfeitamente inofensivo. Tão inofensivo quanto um pouquinho de sangue humano sadio dentro de uma seringa. No entanto, ele logra mobilizar o medo daqueles a seu redor, que comungam com a ideologia dominante, e foge em direção à tentativa de resgate da filha.

O filme traz muito forte este emblema do poderio de uma ideologia falaciosa, mentirosa, quando a maioria da sociedade comunga dela, unidos no delírio oprimidos e opressores (com exceção, talvez, dos opressores que, por razões explicáveis pela hýbris da ganância ou por desejo de usar massas como cobaias científicas em experimentos sinistros, inventaram e disseminaram a mentira ideológica que se transforma, ela mesma, em algo muito mais ameaçador que qualquer Monstro do Lago Ness). A monstruosidade humana, afinal de contas, supera a de qualquer Moby Dick. A monstruosa baleia branca pôde até destruir o Pequod, mas não nos fornece nenhuma razão para que pensemos em sua malevolência. Já a espécie a que pertence Ahab, esta de fato é capaz de uma prole pra lá de monstruosa – como Hiroshimas e Nagazakis, Fukushimas e Bophals, Chernobyls e Guernicas testemunham.

“Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação.”
LEGIÃO URBANA, Será?

Obra de Javcho Savov, “Guernica do Egeu” (2015)

 

REFERÊNCIAS

[1] A expressão Sétima Arte deriva da obra do teórico e crítico de cinema, participante da vanguarda futurista, o italiano Ricciotto Canudo (“Manifesto das Sete Artes“, de 1912).

[2] Vários autores. Eco-Trauma Cinema (Routledge Advances in Film Studies, 2014).

[3] Do site de Roger Ebert.

[4] Refiro-me aqui ao livro de Joel Bakan, The Corporation (também um documentário).

[5] Hsuan L. Hsu, In: Eco-Trauma Cinema.

[6] Naomi Klein. This Changes Everything (Isto Muda Tudo), livro e documentário.

Imagem destacada no início do post: “Los últimos años de la Bestia” – obra do artista espanhol Miguel Brieva.

O DIABO VESTE VERDE-E-AMARELO || A Casa de Vidro

O Inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.” 
WILLIAM SHAKESPEARE, A Tempestade

Os “suicidadãos” e “patriotários” [1] que lambem as botas da familícia Bolsonaro são uma lástima tão nefasta para as populações que habitam este território chamado Brasil quanto a pandemia do coronavírus. São desastres que se somam.

Millôr Fernandes dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha. No Brasil, é o primeiro” [2]. Hoje em dia, muitos Bolsominions consideram-se patriotas mas seguem cegamente a um Coiso que faz continência para a bandeira dos U.S.A., parece uma cheerleader de Donald Trump e fala “e daí?” para 5.000 brasileiros mortos pela doença que ele poderia ter agido no sentido de combater, minimizando seus impactos. Preferiu, como de praxe, ser o disseminador de fake news, desinformação, ódio cego, fanatismo anti-científico: Bolsonaro, parceiraço da foice da Morte que hoje nos ceifa, impiedosa.

Qualquer chefe de Estado digno de seu cargo trataria de cuidar, com todas as suas forças, de evitar vidas perdidas. Só que não: ao invés do cuidado com a saúde do povo, Jair decidiu ser aliado do vírus e do extermínio. De suas mãos e de sua boca pinga um profuso sangue – e muitos de seus seguidores-zumbi bebem este sangue como se fosse vinho. E tornam-se ainda mais raivosos e sanguinários. Urram em prol de um “novo-AI5”, querem o fechamento do Congresso Nacional e do STF, como se o Grande Líder deles já não tivesse poderes o suficiente e precisasse se tornar um autocrata, um tsar, um ditador, com plenos poderes para mandar, desmandar e abusar.

Quando aglomeram-se em grandes rebanhos para gozar do prazer duvidoso de estar nas proximidades de seu “Mito”, estes suicidadãos não estão apenas colocando suas saúdes e vidas em risco – estão atentando contra todos nós ao se tornarem possíveis vetores de transmissão da covid19. A estupidez deles é um flagelo coletivo que só agrava os impactos já gravíssimos daquele “resfriadinho”, desdenhado pelo presifake, que já matou 250.000 vidas humanas. Ao sabotar as medidas de isolamento social, ao desdenhar da profilaxia coletiva que intenta salvar nosso sistema de saúde do colapso, Bolsonaro e seus minions agem como Bestas do Apocalipse.

Só nos EUA, a “gripezinha” já ocasionou mais óbitos do que o número total de soldados estadunidenses que tombaram sem vida durante os 20 anos de invasão imperial do Vietnã (como mostrou a reportagem do The Intercept Brasil) [3]. Ciente disso, seu Jair continua atuando como um atentado ambulante à saúde coletiva, pisoteando as recomendações da OMS, sendo criminosamente irresponsável feito um serial killler, tuo isso diante de instituições acovardadas e de uma população impedida de insurreição pela falta de condições sanitárias para ações de massa.

O empoderamento dos idiotas tornou-se no Brasil algo mais do que um farto manancial para os humoristas fazerem graça com nossa tragicomédia sem fim: a imbecilização viral, de que o Bolsonarismo é o mais grave dos sintomas, é hoje uma maré mortífera que espalha os poderes de Tânatos em um país que atravessa uma hecatombe anunciada.

Diante de uma pilha com mais de 10.000 cadáveres evitáveis, ainda havia no início de Maio de 2020 – pasmem, historiadores do futuro! – quem ainda se aglomerasse diante do pseudo-Messias. Não foram ensinados a desconfiar, com senso crítico vigilante, de energúmenos cheios de ganância e ambição que usam de demagogia barata para tratar seres humanos como gado-de-manobra: o Capetão adora citar a Bíblia, e tem quem engula esta instrumentalização do “sagrado” para fins demagógicos sem nem suspeitar que o Diabo, se existisse, saberia citar as Escrituras.

Diante do estarrecimento que esta patologia social do Bolsonarismo traz àqueles brasileiros que conservaram a lucidez, o senso crítico e o amor à liberdade, resta-nos recusar o inadmissível – e seguir na revolta que pudermos diante desta avalanche de absurdos.

No futuro, os historiadores honestos desta época, olhando para trás a partir de um prisma mais distanciado, quando o homem Jair não passar de ossos enterrados em um túmulo que precisará de soldados o defendendo para que não seja pixado, depredado e profanado, estes historiadores talvez escrevam sobre nosso presente-tornado-passado como uma época passageira de transe lunático que felizmente passou e foi superada. Como diz Frei Betto, tenhamos este fiapo de otimismo e “deixemos o pessimismo para dias melhores”.

Bolsonaro, em alguns anos estará morto e decomposto – e será difícil encontrar algum Minion que o defenda quando os tribunais penais o classificarem como um criminoso do naipe de Pinochet ou Himmler.

Mas que nunca nos esqueçamos! Em meio à pandemia, o Brasil ainda era a terra do apartheid, o último refúgio do escravismo, a última nação a abolir oficialmente o tráfico de seres humanos, o país dos mais de 60.000 homicídios anuais, o líder global na violência homofóbica, o local onde mais são assassinados ativistas ambientais e dos direitos humanos, o distópico lócus de um aprisionamento em massa e de uma Guerra às Drogas conexos à persistência do racismo estrutural e do terrorismo de Estado. Etc. etc. etc. pois não quero saturar o leitor com nossa montanha de horrores. E diante de tudo isso haviam muitos dentre nós, brasileiros, que se sentiam representados e empoderados pelo Seu Jair, com todo aquele anacrônico e abominável racismo, machismo e elitismo vomitado constantemente por sua boca-de-esgoto, faminta por hecatombes, fanática por ditadura, adoradora sádica da tortura.

Ele pode ser rico e famoso, mas Bolsonaro é um ser humano profundamente fracassado, incapaz de aprendizado, estagnado numa cultura do ódio, fóssil vivo de uma mentalidade retrógrada e assassina. Apesar dos poderes que usurpou, representa o fracasso da humanidade, o triunfo de nossas piores perversidades, o egoísmo mais mesquinho e mais vil, a incapacidade de amar a diversidade e de respeitar o humano em todas as suas formas. Ele representa o ser humano decaído a um estado cada vez mais bestial, apesar das máscaras que veste de cidadão-de-bem e homem-de-família, pois monstruosamente prega a seus seguidores-ovelha o extermínio de indígenas, quilombolas, petistas, ribeirinhos, comunistas, afrobrasileiros, idosos… O negócio do Bolsonarismo é o extermínio lucrativo. Eles são o capitalismo exacerbado, em estado de necrose.

O problema não está somente no indivíduo Jair Bolsonaro, um ser humano nojento e desprezível, campeão do desrespeito, nota zero em ética, que em 30 anos de vida como político nunca fez nada que prestasse em prol do bem comum. O problema está nas ovelhas raivosas que seguem este pseudo-Messias, que o consideram um “cidadão-de-bem” mesmo quando ele ensina crianças de colo a fazerem arminhas. Diante disso, o silêncio seria cumplicidade com a barbárie. Precisamos falar como se isto fizesse diferença, como se nossas palavras pudessem acordar nossos concidadãos infectados pelo Bolsonavírus, como se fosse possível a disseminação da luz da lucidez a partir do fogo aceso de milhares de críticas que se fazem unânimes na recusa, ainda que polifônicas nas propostas de alternativas e horizontes.

#ForaBolsonaro

REFERÊNCIAS

[1] Neologismos criados pelo poeta e tradutor José Paulo Paes, presentes em poema do livro “Poesia Completa” (Cia das Letras). Saiba mais: https://wp.me/pNVMz-4P.

[2] Millôr Fernandes citado por Xico Sá no artigo da Folha De São Paulo, “O patriotismo como refúgio dos canalhas”.

https://xicosa.blogfolha.uol.com.br/…/o-pat…/comment-page-1/

[3] The Intercept – Em poucos meses, o coronavírus já matou mais americanos que os 20 anos da Guerra do Vietnã. https://theintercept.com/…/28/coronavirus-eua-mortes-vietna/

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LEIA TAMBÉM:

“Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus” (LIVE @ A Casa de Vidro, 02/05/2020, 15h)

A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) realizou no Sábado (02/05/2020), às 15h, o webdebate “Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus”. Nossas convidadas foram Beatriz de Paula Souza e Francine Rebelo. Mediação: Eduardo Carli de Moraes. Assista à live no canal do Youtube d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura ou pelo site www.acasadevidro.com. Conheça as debatedoras:

FRANCINE REBELO é Cientista Social e Antropóloga, atualmente doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora, militante por uma educação gratuita e de qualidade, feminista e mãe do Raul.

BEATRIZ DE PAULA SOUZA é Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, onde coordena o Serviço de Orientação à Queixa Escolar, do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE. Organizadora das coletâneas “Orientação à Queixa Escolar, Medicalização de Crianças e Adolescentes” e autora do livro “Histórias de Educação”, além de artigos e capítulos de livros de Psicologia na interface com a Educação. Uma das fundadoras do GIQE (Grupo Interintitucional Queixa Escolarhttps://www.queixaescolargiqe.com/) e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, associada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE.

EDUARDO CARLI DE MORAES é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.

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Assista no Canal do Youtube d’A Casa de Vidro:
https://www.youtube.com/channel/UCrs5xa4CQkJob9A78rnq6rA

1º BLOCO

Veja gravação na íntegra sem edições:

ACESSE ROTEIRO NORTEADOR DO DEBATE

Obs: A ilustração utilizada na criação do poster é de autoria de Agata Nowicka / publicada originalmente em BuzzFeed News.


PAUTA TEMÁTICA – ROTEIRO

1) Quais seriam os principais efeitos do confinamento sobre a psiquê humana? E, em específico, o que significa para as crianças estarem confinadas no espaço doméstico, sem escola nem parquinho? Livros como “Desemparedamento da Infância” e sites como criançaenatureza.org apontam a importância, para o desenvolvimento são das crianças, dos espaços abertos, das brincadeiras na natureza, da exploração do território mais amplo etc. Em suma: na perspectiva da psicologia e da antropologia, quão importantes são o movimento e a ação no aprendizado vital infantil? Que autores vcs conhecem que refletiram sobre isso? (Winnicott? Pediatras da S.B.P.?) 

2) Sofrer é inerente à vida e oportunidade de aprendizado. Porem vivemos um período onde o adoecimento psíquico e tende a aumentar a busca por amparo e tratamento, com a ascensão de condições de transtorno de ansiedade, depressão, tendências suicidas, melancolia vinculada à falta de sentido da vida etc. Ao mesmo tempo, vivemos em uma época altamente farmacológica – desnudada por autores como Paul Beatriz Preciado (Testo Junkie) ou Robert Whitaker (Anatomia de Uma Epidemia).

Diante do sofrimento psíquico, tendemos a apelar para os remédios psicotrópicos. O que vcs pensam disso? É aceitável, no contexto, o uso massivo e o incremento na comercialização de soníferos, ansiolíticos, antidepressivos? Ou vcs ainda preferem e recomendar psicoterapias como a Psicanálise (cura pela fala), Logoterapia (proposta por Viktor Frankl), Gestalt, Cognitiva-Comportamental, Corporal (Wilhelm Reichiana), meditação e yoga etc.?

3) Outra complicação que o isolamento social imposto pela pandemia traz, como apontam muitos pesquisadores e já foi relatado em várias reportagens, é a dificuldade nas convivências familiares – os índices de violência doméstica, sobretudo feminicídios, estupros, episódios de homofobia, filhos maltratados por agressões de parentes. A jornalista Eliane Brum recentemente pesquisou e escreveu sobre suicídios juvenis em alta na cidade mais violenta do país, Altamira (Pará). Francine, como estudiosa da obra de pensadoras como Silvia Federici, o que você pensa sobre a condição feminina, o trabalho não remunerado, a opressão de gênero e a masculinidade tóxica neste contexto? Precisamos de feminismo, interseccionalidade e descolonização em tempos pandêmicos?

4) O contexto pandêmico implicou a suspensão das atividades escolares: isto faz com que os pais valorizem mais o trabalho de educadores que cuidam, instruem e favorecem o desenvolvimento psíquico e cognitivo de seus filhos? Como vocês prevêem que será a volta às aulas? Beatriz leu em vídeo prévio um texto interessante que reivindica para as crianças o direito a “uma semana de anarquia”, em que pudessem correr, pular, dançar, cantar, rolar na grama, sem que os educadores impunham “conteúdos” para “correr atrás do prejuízo”. O que vcs recomendariam aos educadores para que possam lidar com as crianças que estão saindo do período de isolamento? Que traumas e confusões crianças e adolescentes podem trazer para o contexto de volta às aulas que não existiam antes da interrupção pandêmica das atividades escolares?

5) Em belo seriado televisivo recente, “Kidding” (estrelado por Jim Carrey), surge uma questão pertinente: o protagonista é um âncora de TV que tem uma alta audiência com seu programa infantil de marionetes (puppet time), porém sofre um trauma familiar severo: seu filho criança morre em um acidente de trânsito. Boa parte da série lida com os traumas desta família dilacerada pela perda, mas também pelo dilema: como é possível conversar sinceramente com as crianças sobre aspectos da condição humana como a morte, a doença, o luto, a perda de alguém amado que não retornará? Como os mais velhos podem dialogar com as crianças e jovens no sentido de dizer a verdade sobre isto, e o quanto devem omitir ou “dourar a pílula” com a intenção de proteger o outro do sofrimento excessivo?

6) Por fim, gostaria de saber como vocês reagem a uma frase de um místico indiano chamado Krishnamurti: ele diz que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente.” Também no mesmo espírito: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, diz Nise da Silveira. Neste sentido, como diz Ailton Krenak, não devemos desejar um “retorno à normalidade”, pois ela era o problema, estar conformado àquilo era um modo de estar neurótico. Diante disso, vocês acham que precisamos aprender sobre saúde mental com outros povos e outras culturas, com indígenas, quilombolas, ribeirinhos? Com os orientais, os budistas, os taoístas, os yoguis? É verdade que nossa sanidade psíquica e nossas convivências familiares serão melhores quanto mais formos inconformados diante da sociedade atual, quanto mais estivermos mais mal-adaptados a esta sociedade adoecida?  


 

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OUTRAS LEITURAS RECOMENDADAS:

AS VALAS ABERTAS E O “FORA BOLSONARO!” – Para evitar o pior será preciso enterrar o fascismo

por Renato Costa para A Casa de Vidro

Diante das valas abertas, manter-se consciente do tamanho da crise e mobilizado(a) para enfrentar suas consequências imediatas é uma tarefa que exige, certamente, muito estômago. De São Paulo a Manaus, passando por Nova York e Madri, é certo que tais medidas são, infelizmente, necessárias para as muitas mortes decorrentes da emergência sanitária [1]. Mas essas valas são, antes de mais nada, a evidência irrefutável da incompetência do estado burguês neoliberal, ao mesmo tempo em que dão testemunho do rigor mórbido e do descaso total com a vida humana no mundo capitalista contemporâneo, seja em países desenvolvidos, ou no Brasil recolonizado.

Ilha de Hart Island, perto do Bronx: Nova York abre valas comuns para enterrar mortos por coronavírus. Em 22 de Abril de 2020, a prefeitura da cidade já registrava 9.944 óbitos por covid-19 em NYC.

Um neomalthusianismo de ocasião se espraia [2] entre pessoas enclausuradas pelos governos liberais dos centros capitalistas, ainda que sob estado de sítio permanente elas mantém a todo custo opiniões racializadas relativas ao controle de populações migrantes. Vindos aos montes dos países emergentes, eles poderiam ser detidos através do asséptico “acesso à imunização em países pobres”. Países e regiões, estes, recentemente destituídos de suas soberanias e poder real de autodeterminação e, obviamente, de fiscalização, mais suscetíveis a “erros médicos” de grande proporção. Eles poderão render bons exemplos, aclamados por grandes corporações, que prometem vacina humanitária, rápida e vitalícia como propõe Gavi Alliance (Microsoft), em colaboração com a identidade digital globalista, a ID2020 [3], mas sem garantir deliberação democrática ou eventual responsabilização corporativa.

Saiba mais: Gavi Alliance

Projetada pelas mesma Organização Mundial da Saúde (OMS), envolvendo governos e instituições financeiras, a iniciativa da vacina digital nega apenas o alarmismo “conspiratório”, no jargão da CIA, sem ao menos, por necessidade publicitária, desmentir seus reais propósitos [4].

Tudo elaborado, imagine-se, a partir dos países centrais do capitalismo financeiro, em rápida mutação ao capitalismo de vigilância [5], que a todos submetem. Em meio a isso, a postura das autoridades governantes de extrema-direita, como o executivo brasileiro, é, tanto mais, um escárnio de vulto histórico, pela dimensão de suas consequências desastrosas e deliberadamente assassinas. Se anuncia um projeto repressivo de biopoder [6] através de um “deixar morrer à margem”, típica do liberalismo econômico e do autoritarismo polítco, com alto teor sarcástico, em que medidas diversionistas dão o tom do novo !Abajo la Inteligencia, Viva La Muerte! [7], revivido através da condução nefasta de uma crise inevitável.

O interesse do conjunto da burguesia, representada pelos governadores de extrema-direita e amparada por Bolsonaro, em esconder o real estado de coisas [8] e anunciar a flexibilização da quarentena com o jargão da abertura “lenta e gradual” [9], provoca ainda mais insegurança e anuncia os horrores do colapso do sistema de saúde brasileiro. Depois que os médicos e enfermeiros estiverem completamente extenuados pelas jornadas intermináveis, o exército não terá pudor em abrir quantas valas comuns forem necessárias [10], e ainda ocultarão os registros dos cadáveres, como sugere o histórico recente, e pretérito, das ditaduras brasileiras.

Ainda que se queira apenas acompanhar os rumos da crise do novo corona vírus no Brasil, a distância, já será exigido bastante empenho. Entre os afazeres domésticos de uns, e as jornadas de sobre-exposição de outros, os dados oficias  de dimensionamento do tamanho da pandemia são duvidosos: os critérios são múltiplos, as rotinas de registro e reportagem limitadas, os atestados de óbito são inibidos por protocolos médicos [11]. Se até o momento em que se publica este artigo, a 22 dias do mês de abril de 2020, quase 2 milhões e seiscentos mil casos eram registrados pelo painel da Johns Hopkins University Coronavírus Resoucers [12] e racionalizados pela palavra “Confirmado”, o número de 43.592 casos e 2.769 mortes reportados no Brasil poderia chegar a ser, apenas, na melhor das hipóteses, o indicativo mais próximo, e insuficiente, do imenso número de subnotificações e danos colaterais do surto de infectados no país e no mundo todo.

Entretanto, se é preciso trabalhar com números atualizados para se dimensionar a Covid-19 como um fenômeno epidemiológico e não apenas como uma doença, isto não significa esquecer da necessidade de continuamente se realizar um trabalho de registro, processamento e interpretação de dados no longo prazo. Uma forma mais ampla e segura de se chegar a um número de mortos em decorrência da doença é garantir os registros totais e, descontados a média de mortes anuais, futuramente contrastar o número de 2020 com os dos anos anteriores e subsequentes [13].

Para tanto, seria necessário rigor censitário, critério científico para os obituários, além de segurança institucional, mobilização popular e respeito à Constituição, tantas das coisas em falta no horizonte do Brasil em tempos de corona vírus. Aliás, a quantas andam o Censo 2020? [14] Adiado para 2021! E as Eleições¿ Já saberemos! Mais urgente é sabermos qual será o futuro das políticas de estado, em seu conjunto, diante da ascensão do cesarismo bolsonarista. Uma vaga incerteza a se perpetuar sobre onde deve parar o declínio da confiança nas instituições e sobre as possibilidades de transparência das mesmas.

Enquanto nos EUA, o Senado aprova um repasse de 480 bilhões de dólares a programas econômicos de assistência [15] a pequenas e médias empresas, de socorro aos hospitais e de incentivo à produção de testes de covid-19, no Brasil, por motivos de cadastro, a crise do auxílio emergencial pode deixar 5 milhões de pessoas sem sacar os 600 reais estabelecidos, justamente, como emergenciais, pelo Congresso. Ao mesmo tempo em que Trump sinaliza se afundar no particularismo estadunidense e para a emissão de Green Card, denotando avanço da política anti migrante, apoia a xenofobia ao falar em reparação da China [16], responsabilizada pela pandemia.

Com estratégia diversionista e com vistas à flexibilização da quarentena, Trump, assim como Bolsonaro, convoca apoiadores a saírem às ruas das principais cidades do país [17], em carro, pedir que os trabalhadores se dirijam aos seus postos de trabalho! Ato seguido, alguns governadores estadunidenses suspendem a quarentena, na última terça-feira, 21. No Brasil, Espanha, e outros países fortemente atingidos, governantes falam em levantar as medidas até o 10 de maio[18].

Em números absolutos, os países mais afetados na América Latina são Brasil e México; em números relativos, Equador e Panamá, com três vezes mais casos que o Brasil [19], em relação proporcional ao número de habitantes. Em São Paulo, Dória lançou o chamado “planejamento de reabertura gradual” [20] nesta quarta-feira 22/04. A quarentena estado mais atingido do Brasil, iniciada em 24 de março, completará um mês nos próximos dias. O estado registra 1.037 mortes e 14 mil casos de covid-19.

Após reunião com o governador de Brasília, Ibanes Rocha, Bolsonaro fala em reabertura de colégios militares de Brasília na próxima segunda-feira, 27/04 [21].  No início de abril, Ibanes havia decretado suspensas as aulas em escolas e universidades até 31 de maio. No mesmo dia, Bolsonaro anuncia que determinará a Sérgio Moro a reabertura a Academia Nacional da Polícia Federal na mesma semana. Em meio à crise entre Executivo e Legislativo, governadores esboçam aliança com o congresso comandado pelo DEM, ao mesmo tempo em que falam em flexibilização da quarentena e sinalizam apoio à retomada das atividades econômicas frente aos riscos à saúde pública, defendida por Bolsonaro. “Será referência para todo o país”, teria afirmado o médico e Governador de Goiás, Ronaldo Caiado [22].

Até o momento, a quarentena no Brasil contou com uma política não-restritiva [23], que apenas recomenda que se fique em casa. Apesar do baixo controle da circulação de pessoas no país e mais de 50% da população de São Paulo se movimentando diariamente [24], alguns municípios, isolados e autonomizados pelo parecer do STF que garante suas competências e responsabilidades no combate da efetivo da pandemia, policializaram a saúde pública e arbitrariamente reprimiram seus habitantes [25], sem nenhum nível de mediação jurídica ou coordenação sanitária. Caberia ao executivo federal garantir condições de suporte econômico, estabilidade política e viabilizar uma estratégia comum de controle do surto, e assim facilitar o tratamento aos infectados.

Em reunião não agenda com Nelson Teich, transcorrida na última segunda-feira [26], Bolsonaro teria levantado dados sobre a pandemia e disse que vai se posicionar sobre o isolamento social. Qualquer que seja a postura anunciada por um executivo ilegítimo, herdeiro de um golpe parlamentar que afastou uma presidenta legitimamente eleita, a leniência diante da pandemia e a notória participação do presidente em atos que atentam contra a constituição [27] – e por isso configuram graves crimes de responsabilidade – estão se configurando em uma verdadeira catástrofe política e humanitária. As perspectivas são as de uma crise entre negacionistas de toda ordem sob o mando da sobre-exposição dos trabalhadores, a mando dos patrões e a desobediência civil, eventualmente apoiada por entes federados insubordinados à condução irresponsável da crise de saúde por parte do executivo nacional.

Os governadores mais lúcidos deverão se negar a flexibilizar a quarentena antes do fim de maio, e ainda terão o dever de fecharem as fronteiras a circulação de pessoas vindas de estados alinhados à lógica da morte e ao imperativo da retomada da economia, antes da retomada da vida. Prejudicados pelo trânsito de pessoas infectadas vindas de regiões sem restrições de circulação, os prefeitos e suas bases poderão insuflar a indignação radical contra as medidas de exposição das populações mais vulneráveis e a favor do enfrentamento decisivo pelo #ForaBolsonaro, como ato pedagógico, contra os que atentam a contra a democracia, e pelo enterro do verdadeiro problema, o neofascismo brasileiro e sua estratégia de matar ou deixar morrer.

Renato Costa

REFERÊNCIAS

  1. https://oglobo.globo.com/mundo/nova-york-abre-valas-comuns-para-enterrar-mortos-por-coronavirus-24364067
  2. https://forbes.com.br/colunas/2019/09/bill-gates-diz-que-planejamento-familiar-e-essencial-para-o-futuro-da-africa/
  3. https://www.gavi.org/our-alliance/about
  4. https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/vacina-do-coronavirus-nao-tera-microchip-para-rastrear-a-populacao/
  5. https://diplomatique.org.br/um-capitalismo-de-vigilancia/
  6. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672018000400003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
  7. http://www.jsfaro.net/2018/08/abajo-la-inteligencia-viva-la-muerte.html
  8. https://www.ovale.com.br/_conteudo/nossa_regiao/2020/04/102062-sp-tera-isolamento-heterogeneo-da-quarentena–area-de-risco–vale-deve-ter-flexibilizacao-mais-lenta.html
  9. https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-discursa-em-ato-com-pauta-a-favor-do-ai-5-e-contra-o-congresso/
  10. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/17/interna-brasil,845574/exercito-pede-informacoes-prefeituras-rio-sobre-sepultamento-em-massa.shtml
  11. https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-07/748-mortes-ligadas-ao-coronavirus-registradas-em-cartorios-no-brasil-mais-um-indice-da-defasagem-nas-estatisticas-oficiais.html
  12. https://coronavirus.jhu.edu/
  13. https://www.youtube.com/watch?v=9xvVxClAkMo
  14. https://censo2020.ibge.gov.br/
  15. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/21/senado-eua-aprova-us-480-bi-a-pequenas-e-medias-empresas-e-luta-contra-a-covid-19.htm
  16. http://www.defesanet.com.br/pw/noticia/36522/Virus-Chines–Trump-adverte-Pequim-sobre-possiveis–consequencias–devido-a-pandemia/
  17. https://www.washingtonpost.com/outlook/2020/04/17/liberate-michigan-trump-constitution/
  18. http://www.rfi.fr/br/europa/20200422-espanha-volta-a-ter-uma-leve-alta-de-mortes-por-coronav%C3%ADrus-mas-prepara-fim-do-isolamento
  19. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52144605
  20. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-04/covid-10-sp-vai-anunciar-na-proxima-quarta-feira-reabertura-gradual
  21. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/04/20/interna_cidadesdf,846613/bolsonaro-e-ibaneis-tratam-de-reabertura-de-escolas-militares-no-df.shtml
  22. https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/sera-referencia-para-todo-o-pais-afirma-caiado-sobre-decreto-que-flexibiliza-quarentena-249165/
  23. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/04/15/coronavirus-mapa-mostra-os-diferentes-tipos-de-quarentena-na-america-latina.htm
  24. https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/isolamento-social-em-sp-e-de-50-aponta-sistema-de-monitoramento-inteligente-2/
  25. https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2020/04/13/mulher-morde-guarda-municipal-ao-ser-detida-por-caminhar-em-praca-de-araraquara.ghtml
  26. https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/bolsonaro-recebe-teich-no-planalto-em-reuniao-nao-agendada,f78b6e06747a532656294718b5c05fefhb90169j.html
  27. https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_85_.asp

O Xadrez do Coronavírus: Geopolítica da Pandemia – Live: Segunda-feira, 20/04/20, 18h às 20h || A Casa de Vidro

Nesta segunda-feira, 20 de abril, A Casa de Vidro e o Grupo de Estudos em Complexidade promoveram o debate “Xadrez do Coronavírus: Geopolíticas da Pandemia“. Com David Maciel (Doutor em História, Professor da UFG, saiba mais abaixo), Eduardo Carli de Moraes (Jornalista, Mestre em Filosofia, Professor do IFG) e Renato Costa (Jornalista e Ativista). A proposta é analisar coletivamente os impactos da Covid-19 nas diferentes sociedades nacionais, levando em conta interesses políticos-estratégicos dos principais países atingidos em suas diferentes respostas diante da crise epidemiológica causada pelo novo Coronavírus: as diferentes versões para a origem da pandemia, os níveis de eficácia na contenção dos surtos e os possíveis cenários socioeconômicos daí resultantes. Acompanhe as nossas transmissões! Dê aquela força pra mídia independente e contra-hegemônica!

DAVID MACIEL, doutor em História, professor da UFG, também atua na editoria do Site Marxismo 21.org e no GT Marxismo e História da ANPUH (Associação Nacional de História). Atua também como músico na banda goianiense Aborto de Nazaré. É autor dos livros; “A Argamassa da Ordem: da Ditadura Militar à Nova República” e “De Sarney a Collor: Reformas Políticas, Democratização e Crise” (Alameda Editorial).

O Xadrez do Coronavírus: Geopolítica da Pandemia
Transmitido ao vivo no Canal A Casa de Vidro no Youtube:

ASSISTA À TRANSMISSÃO COMPLETA (1 hora e 47 minutos):
(LINK: https://youtu.be/9JUP5uvjcFI)

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“Bolsonaro é um troglodita conduzindo o Brasil ao matadouro”, afirma Lula ao The Guardian

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT – Partido dos Trabalhadores) acusa Jair Messias Bolsonaro de ser um “troglodita” que está conduzindo o Brasil “ao matadouro” por sua desastrosa e irresponsável gestão da pandemia Covid-19.

Leia em um dos mais importantes jornais do mundo, o The Guardian (Inglaterra):

Em uma entrevista apaixonada – que chegou quando o número de mortos no Brasil no Covid-19 atingiu 1.924 pessoas – Lula disse que, ao minar o distanciamento social e defenestrar o próprio ministro da Saúde, o líder “troglodita” do Brasil arriscava repetir as cenas devastadoras que acontecem no Equador, onde as famílias tiveram que despejar cadáveres de seus entes queridos nas ruas.

“Infelizmente, eu temo que o Brasil sofra muito por causa da imprudência de Bolsonaro. Receio que, se isso crescer, o Brasil poderá ver alguns casos como aquelas imagens horríveis e monstruosas que vimos em Guayaquil”, disse o esquerdista de 74 anos.

“Não podemos apenas querer derrubar um presidente porque não gostamos dele”, admitiu Lula. “Mas se Bolsonaro continuar cometendo crimes de responsabilidade e tentando levar a sociedade ao matadouro – que é o que ele está fazendo – acho que as instituições precisarão encontrar uma maneira de enquadrar Bolsonaro. E isso significa que você precisará ter um impeachment. ”

Bolsonaro – um ex-capitão do exército orgulhosamente homofóbico, já tão desprezado por brasileiros progressistas por sua hostilidade ao meio ambiente, direitos indígenas e artes, bem como seus supostos vínculos com a máfia do Rio – alienou milhões a mais com sua postura de desprezo ao coronavírus, que ele menospreza como “histeria” da mídia e “um pouco de resfriado”.

O jornal alemão stuttgarter-zeitung.de publicou na edição de sexta-feira (27 de Março de 2020) uma charge com Jair Bolsonaro no púlpito gritando: “É tudo histeria e conspiração!”. Atrás dele, o coronavírus e a Morte aplaudem. Fonte: Facebook A Casa de Vidro.

Desde que a OMS – Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia em 11 de março, o presidente do Brasil repetidamente desprezou o distanciamento social, primeiro convocando e participando de protestos pró-Bolsonaro e depois com uma série de visitas provocativas a padarias, supermercados e farmácias. Durante um passeio desnecessário, Bolsonaro declarou: “Ninguém impedirá meu direito de ir e vir”.

Em março, o populista de direita chegou a sugerir que os brasileiros não precisassem se preocupar com o Covid-19, pois poderiam banhar-se nos excrementos “e nada acontece”.

Tais medidas colocam Bolsonaro em desacordo com seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, médico que virou político e que foi demitido na quinta-feira (16/04/2020) depois de contestar o comportamento do presidente.

Enquanto isso, o filho político de Bolsonaro, Eduardo, levou a bola de demolição para os laços com o parceiro comercial mais importante do Brasil, a China, acusando seus líderes do Partido Comunista de serem os culpados pela crise do coronavírus.

As ações de Bolsonaro provocaram protestos noturnos de panelaços nas cidades de todo o país e ele é desprezado por todo o espectro político.

“O coronavírus deve estar rindo demais”, escreveu Eliane Cantanhêde, colunista do jornal conservador Estadão de São Paulo, sobre as travessuras de Bolsonaro nesta semana.

O governador de direita do estado mais populoso do Brasil, São Paulo, declarou o país em guerra contra o coronavírus e o “Bolsonavírus”.

Lula, que governou de 2003 a 2010, afirmou que as ações “grotescas” de Bolsonaro estão colocando em risco vidas, ignorando as diretrizes de distanciamento adotadas pelo próprio Ministério da Saúde do Brasil.

“É natural que uma parte da sociedade não entenda a necessidade de ficar em casa ou o quão sério isso é – especialmente quando o presidente da república é um troglodita que diz que é apenas um pouco de gripe”, disse Lula por videochamada da Cidade brasileira de São Bernardo do Campo, onde está isolado após retornar de uma turnê pela Europa.

“A verdade é que Bolsonaro não pensa no impacto que seus atos destrutivos têm na sociedade. Ele é imprudente. ”

Bolsonaro diz que sua oposição ao distanciamento decorre de seu desejo de proteger os cidadãos mais vulneráveis do Brasil e seus empregos.

Depois de demitir seu ministro da Saúde, Bolsonaro afirmou estar lutando pelo “povo brasileiro sofredor” e alertou que o coronavírus ameaçava se tornar “um verdadeiro moedor de carne”.

“Em nenhum momento o governo abandonou os mais necessitados … As massas empobrecidas não podem ficar presas em casa”, disse Bolsonaro. “Eu sei… a vida não tem preço. Mas a economia e o emprego devem voltar ao normal. ”

Lula, que nasceu na pobreza rural e ganhou aplausos internacionais por sua luta contra a fome, zombou da ideia de Bolsonaro ser um defensor dos pobres.

“Bolsonaro está interessado apenas em si mesmo, em seus filhos, em alguns generais bastante conservadores e em seus amigos paramilitares”, afirmou, referindo-se a alegações de longa data sobre os laços familiares do presidente brasileiro com a máfia do Rio de Janeiro.

“Ele não fala com a sociedade. Bolsonaro não tem ouvidos para ouvir. Ele só tem boca para falar bobagem.”

Embora o ex-presidente do Brasil alegasse que o impeachment era uma opção, ele admitiu que atualmente não há apoio para isso no congresso do país, como ocorreu quando sua sucessora de esquerda, Dilma Rousseff, foi demitida em 2016.

Ele disse que muitos políticos de direita acham mais prudente permitir que Bolsonaro continue sabotando suas chances de reeleição em 2022 por sua própria incompetência – antes de eleger outro presidente da direita.

Lula, que foi afastado da eleição de 2018 após ser preso por duvidosas acusações de corrupção, sinalizou que ele não seria o candidato de esquerda nesse próximo pleito.

“Perdi meus direitos políticos, por isso não estou falando de mim”, disse Lula, que foi libertado em novembro de 2019 de 580 dias de prisão após uma decisão da suprema corte. “Mas vou lhe dizer uma coisa, você pode ter certeza de que a esquerda voltará a governar o Brasil depois de 2022. Não precisamos conversar sobre quem é o candidato agora. Mas votaremos em alguém comprometido com os direitos humanos e que os respeite, que respeite a proteção ambiental, que respeite a Amazônia … que respeite os negros e os indígenas. Vamos eleger alguém comprometido com os pobres deste país. ”

(…) Lula disse ter certeza de uma coisa: que em um momento de crise nacional, o Brasil precisava de um líder capaz de unir seus 211 milhões de cidadãos.

“Um presidente deve ser como o maestro de uma orquestra”, disse ele. “O problema é que nosso maestro não sabe nada sobre música, não consegue ler uma partitura e nem sabe como as batutas funcionam.”

“Ele está tentando tocar música clássica com os instrumentos que você usa para tocar samba. Ele transformou sua orquestra em uma loucura – uma Torre de Babel”, disse Lula. “Ele não sabe o que está fazendo no palácio presidencial… nem mesmo Donald J. Trump o leva a sério.”

POR TODD PHILLIPS

 

VEJA TAMBÉM:

CARNISMO INFECCIOSO: A pandemia de coronavírus é uma zoonose conectada à Pecuária Industrial?

O estudo Big Farms Make Big Flus (em tradução livre, Grandes Fazendas Fazem Grandes Gripes), do biólogo Rob Wallace, aponta para a possibilidade do novo coronavírus ter surgido a partir do modelo pecuário agro-industrial (1), ideologicamente amparado pelo consumo massivo de carnes. O livro de Wallace, na íntegra, acaba de ser publicado pela Editora Elefante com o título: “Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência” (https://bit.ly/35Kdl7c).

O pesquisador estadunidense é também autor do artigo “Ebola, Doença do Colonialismo”, publicado no portal Outras Palavras (2) onde, igualmente, relaciona a invasão predatória de redutos ambientais ao confinamento de animais em larga escala. Este processo teria como consequências a interação entre patógenos presentes na fauna silvestre e os animais destinados ao abate que estão confinados nas grandes fazendas produtoras da supostamente higiênica “proteína animal”.

Uma simples resposta a seguinte pergunta poderia abreviar todas as nossas inquietações a respeito do novo coronavírus: qual o comportamento humano generalizado que possibilitou o surgimento da Covid-19? Ao menos do ponto de vista patogênico a resposta é fácil: se partirmos da definição da doença pelo seu agente infeccioso, seguindo a definição dada pela Sociedade Brasileira de Parasitologia (3), as zoonoses são doenças infecciosas capazes de ser “naturalmente” transmitidas entre animais e seres humanos, concluímos que a Covid-19 é uma delas. Ainda segundo esta instituição, as anfixenoses são aquelas zoonoses capazes de circular indistintamente entre humanos e animais, ambos capazes de hospedar agentes patógenos como, entre outros, bactérias, fungos e vírus. Desta forma, temos classificado a Covi-19 como uma anfixenose, desde um ponto de vista preciso e crucial, o de sua atividade patogênica.

A organização ativista PETA (People For The Ethical Treatment of Animals), em artigo sobre coronavírus e consumo de carne (4), aponta que o novo-coronavírus tem muitas semelhanças com os surtos de SARS e MERS, todas doenças relacionadas ao consumo humano da carne de outros animais. Porém, a Organização Mundial da Saúde (OMS) – instituição alçada pela pandemia ao mais proeminente posto de ator político na governança sanitária global – faz o seguinte alerta aos carnistas: “Para proteger a si mesmo, quando for a um mercado de animais vivos, evite ‘contato’ direto com animais e superfícies em contato com animais”. Ao contrário do enfrentamento necessário ao consumo de organismos vivos e mortos, e da mais óbvia conclusão restritiva a se esperar de uma organização responsável, a OMS acrescenta cinicamente: “Manuseie carne crua, leite ou órgãos de animais com ‘cuidado’ para evitar contaminação com alimentos não cozidos e evite também consumir produtos animais crus ou mal cozidos. ”

Ao invés de estender a crítica ao consumo de todo ‘comestível’ com alta capacidade de contaminação alimentar e ambiental, o senso comum carnista global permanece com a confortável certeza da continuidade de seu morticínio especista. A ideologia carnista segue intacta na propagação de uma pseudo-segurança sanitária de um ‘produto’ praticamente impossível de ser atestado como inteiramente seguro. Rob Wallace reforça esta hipótese, no estudo citado, ao alertar que as imensas doses de antibióticos e similares, aplicados aos animais de granja, superam o consumo humano dos mesmos. Indica ainda que a resistência criada pelos patógenos presentes nos animais à estes medicamentos leva a um processo de adaptação seletiva e impulsiona as ‘grandes gripes’, podendo chegar ao nível pandêmico.

Até quando vamos negligenciar a interferência humana no aparecimento das pandemias em plena era do Antropoceno, em que nenhum processo ambiental macro escapa às ações e presença verdadeiramente pandêmicas da humanidade diante do planeta e de outras espécies? Estudos sobre zoonoses do CDC (Center for Disease Control and Prevention) indicam que 75% das doenças infecciosas emergentes que afligem os seres humanos são de origem animal (5). Com o devido esclarecimento de suas causas, ou seja, o consumo humano de carne, a ideologia carnista e a pecuária industrial, a pandemia do novo coronavírus não poderia convencer um número mais amplo de pessoas a modificarem seus hábitos alimentares e comportamentais, aderindo ao veganismo? (6)

Se os animais ‘exóticos’ são os ‘responsáveis’ pela pandemia, porque o novo coronavírus não estava em circulação antes? Ele provem, de fato, de um animal, que apesar de ameaçado de extinção, é utilizado há milênios pela medicina chinesa, como é o caso do pangolim? Por abrigar coronavírus até 92% similares ao SARS-Cov2, isto atesta sua pertinência patogênica e epidemiológica?

Muitas perguntas ainda em aberto nas hipóteses do especismo, aquelas mais confortáveis, já que apontam à responsabilização das outras espécies. E outras, igualmente plausíveis, porém, em outra direção: Se sequenciarmos os códigos genéticos dos vírus encontrados em suínos, por exemplo, vamos encontrar outros coronavírus similares ao SARS-Cov2? Se isto for possível, teremos um animal hospedeiro intermediário muito mais próximo do genoma humano, com maiores chances de interação física e genética com os pacientes portadores dos 13 halótipos, pertencentes a todas as 5 cepas virais do novo coronavírus, e exclusivamente encontradas no território dos Estados Unidos? (7)

Considerando estas possibilidades, em meio ao imenso volume informações epidemiológicas em torno do novo coronavírus e da Covid-19, a ausência de uma análise patogênica primária a respeito da pandemia é notável. Recentemente, testemunhamos muitas manifestações de  xenofobia anti-China, com a tentativa de lançar toda a culpa pelo surto inicial da pandemia sobre o mercado de carnes exóticas de Wuhan, porém estudos geopolíticos, como aqueles empreendidos por Pepe Escobar, levam-nos a suspeitar que a origem do novo coronavírus possa ter sido a base militar de Fort Detrick (EUA) e seu espalhamento possa ter se dado a partir do Exército dos EUA presente nos Jogos Militares de Wuhan (8).

Soma-se a esta desconfiança anti-imperialista o fato de que há 5 cepas do vírus em território estadunidense, e a consequente conclusão de sua origem americana. Entre as análises da hecatombe econômica que se avizinha, facilitada pela indiferença dos governos neoliberais e neofascistas, pela guerra comercial envolvendo as maiores potências globais, pelas crises políticas, epidemiológicas e diplomáticas, parece se instaurar uma espécie de censura prévia, por isso estruturante, estabelecida entre os que se debruçam, exclusivamente, sobre as consequências da pandemia, sem atentar para suas causas. Fala-se muito nos efeitos da pandemia, mas mantêm-se um tabu sobre discussão do que a causou: o consumo humano de carne, possivelmente – e práticas imperialistas de guerra biológica, como aponta a tese pepe-escobariana.

Faltaria, portanto, ao jornalismo mainstream e às publicações científicas, em particular, a determinação resoluta de apontar no rumo da raiz ética e comportamental do problema e realizar a urgente denúncia contra a expansão desenfreada das fronteiras agro-pecuárias, encampando a guerra necessária contra o carnismo: o estranho e naturalizado hábito político de matar – e se matar – para se alimentar de doenças!

Por Renato Costa
Edição por Eduardo Carli
A Casa de Vidro – 08 de Abril de 2020

REFERÊNCIAS:

  1. https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2020/04/coronavirus-agronegocio-modelo-predatorio/

  2. https://outraspalavras.net/descolonizacoes/ebola-doenca-do-colonialismo/

  3. http://www.parasitologia.org.br/estudos_glossario_Z.php
  4. https://www.peta.org/blog/links-between-meat-and-coronavirus-facts-myths/

  5. https://www.cdc.gov/onehealth/basics/zoonotic-diseases.html

  6. https://www.climatehealers.org/blog/2020/3/9/how-the-coronavirus-leads-us-to-a-vegan-world
  7. https://www.researchgate.net/publication/339351990_Decoding_evolution_and_transmissions_of_novel_pneumonia_coronavirus_SARS-CoV-2_using_the_whole_genomic_data

  8. https://www.brasildefato.com.br/2020/03/18/artigo-como-o-exercito-dos-eua-pode-ter-levado-o-virus-a-china-por-pepe-escobar

Ilustrações: PETA (imagem em destaque) e “Manual de Prevenção e Controle da Covid-19 segundo o Doutor Wenhong Zhangforam” (Copyright ©2020 – Shanghai Scientific and Technical Publishers).

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O GRUNGE QUE SE MEDE EM GIGATONS: Pearl Jam mostra vitalidade e sintonia com nossa época em “Gigaton” (2020), seu 11º disco

A música, quando entra em sintonia fina com o tempo histórico e consegue expressar o zeitgeistatinge aquele estado raro em que ultrapassa os modismos e consumismos, transcendendo a condição que tentam lhe impor, a de mercadoria consumível e rapidamente descartável, para transformar-se em obra-de-arte de interesse perene, inclusive para futuras gerações que queiram entrar em contato com uma obra que seja um sign of the times.

Obviamente, nada impede que uma obra musical seja simultaneamente um marco histórico e uma mercadoria altamente lucrativa (é só pensar no fascinante paradoxo da Beatlemania ou nos rios de dinheiro gerados pela cataclísmica eclosão do Nevermind do Nirvana). São raros, mas existem os “queridinhos dos críticos” que são simultaneamente um estouro nas paradas. Na corda-bamba entre a margem da indústria cultural e a margem da aventura artística, as melhores bandas do mainstream mass-mediático são aquelas que, a exemplo do Pearl Jam, não se rendem a serem meros serviçais do sistema a serem achincalhados como sell-outs, prosseguindo sempre com este alvo no horizonte: criar uma arte que esteja à altura de expressar nossa existência coletiva no tempo atual.

Quando a arte tem esta umbilical ligação com a atualidade e esta capacidade de captar o aqui-e-agora, ela é menos evanescente do que o seu banal hit toppin’ the charts (o sucesso que dura pelo verão e depois é semi-esquecido para venham os próximos na fila da fama…). “O dever do artista” é ser um espelho onde se reflete o tempo em que o artista vive, como propunha Nina Simone. Mas a arte serve também, como queria Brecht (citando Maiakóvski), não apenas como um espelho que reflete o mundo (deixando-o subsistir tal qual é) mas muito mais como um “martelo para forjá-lo”. Como um escultor que trabalha a pedra bruta para dê-la extrair O Pensador ou o Laoconteo artista martela sua matéria-prima, dando forma a algo novo ao invés de ser apenas espelho ou prisma.

Na música, às vezes o artista martela canções nos tímpanos dos ouvintes até que elas entrem para um tesouro cultural comum que a coletividade enxerga como seu repositório de clássicos, ou seja, aquilo que merece ser salvo do naufrágio do tempo. Na da sucessão de gerações, os clássicos são aquilo que consideramos digno de ser transmitido pelos contemporâneos aos vindouros. O exemplo mais emblemático que consigo pensar é deste ethos Brechtiano alçando-se à condição de clássico, na história do rock, é o The Clash.

Uma banda tão espetacularmente bem-sucedida em sua capacidade de entrar sintonia com o tempo histórico, tão supimpa em sua expressão entusiasmada de um ímpeto ativista e transformador, que fazia com que todas as outras parecessem desimportantes. O The Clash, para nós seus fãs, é descrito com a hipérbole: A Única Banda Que Importa. Pois Joe Strummer, Mick Jones e cia não faziam apenas a expressão da época do mundo, além disso explodiam nos amplificadores a fúria criativa de quem quer modificar o que há pois descobriu que a realidade social é co-criável por nós. É um pouco deste ethos, crucial por suas ressonâncias posteriores em bandas cruciais como o Fugazi ou o Rancid, que fez de London Calling uma das maiores obras-primas da história da arte (e fodam-se quem, por preconceito acadêmico ou elitismo estético, pré-julga o movimento punk como se fosse incapaz de alçar-se às nuvens elevadas das Belas Artes…).

É que a arte, criando a si mesma, recria o mundo, refaz os outros, no que poderíamos chamar, sob a inspiração de Gênio Gil, de uma refazenda de tudo – a começar pelas nossas percepções de nós mesmos e do próprio mundo. Isto é, a arte é uma criação do engenho criativo humano que entra na História como uma novidade, expressando o que antes não tinha sido expressado, expandindo a paleta de cores, de dramas, de sinfonias etc. do mundo-em-fluxo onde estamos embarcados.

Tendo atravessado toda a Era Grunge, do começo dos anos 1990 até a aurora dos 2020, resilientes como ninguém daquele movimento, o Pearl Jam é hoje uma destas instituições que já virou clássica. O quinteto formado por Eddie Vedder, Jeff Ament, Mike McCready, Stone Gossard e Matt Cameron, nascido em 1990 das trágicas ruínas do Mother Love Bone (banda de Seattle que foi a pique com a overdose fatal que acometeu seu líder Andy Wood, o que deu ensejo para a criação do Temple of the Dog), adentra a década de 2020 com muita vitalidade.

Após o colapso do Nirvana, do Soundgarden, do Stone Temple Pilots, do Hole, dos Screaming Trees, além da reinvenção com novo vocalista do Alice in Chains, alguns se apressaram a decretar a morte do grunge após tantas bandas já terem encerrado suas atividades (muitas vezes de maneira trágica, devido a suicídios e overdoses fatais). Mas o Pearl Jam sobreviveu a tudo, mantendo pulsante o Som de Seattle – e está vivinho para cravar em 2020 um dos álbuns mais significativos desta entrada de década.

Em meio à pandemia de covid-2019, no primeiro semestre de 2020, foi lançado “Gigaton”, novo álbum das lendas vivas do Grunge: Pearl Jam ressurge após um hiato de 7 anos desde “Lightning Bolt” (disco de 2013). A banda de Seattle entrega ao mundo seu 11º álbum de estúdio, com 12 canções inéditas, sem perder o pique mesmo após 3 décadas de carreira (os 20 primeiros deles já celebrados em livro e documentário através do magistral projeto PJ20 de Cameron Crowe).

 

Os caras do Pearl Jam – liderados por um incansável Eddie Vedder, um dos grandes poetas líricos e um dos mais expressivos cantores de nossa geração – encaram o desafio gigatônico de expressar musicalmente os dilemas mais urgentes de nossa época:

“O clima é uma preocupação estimulante [galvanizing] em ‘Gigaton’, com o Pearl Jam estruturando seu décimo álbum em torno da crise climática iminente. Há pouca sutileza a esse respeito: o título se refere à quantidade de gelo perdido nos pólos árticos, a capa do álbum mostra uma geleira derretida, e as letras estão sujas com imagens apocalípticas, ainda que nem todas derivadas do clima.” Stephen Thomas Erlewine, AMG All Music Guide (https://bit.ly/3dDV92m)

Aderindo ao catastrofismo esclarecido, o Pearl Jam evoca a ciência climática atual que mede em gigatons a quantidade de gelo derretido na Antártida ou na Groenlândia em nossa era de Efeito Estufa – segundo um Tweet da banda, 1 gigaton equivale ao peso de 100 milhões de elefantes ou 6 milhões de baleias azuis.

Em uma das obras-primas do álbum, “Retrograde”, a banda utiliza um vídeo-clipe sensacional para evocar grandes metrópoles sendo afundadas debaixo de dilúvios causados pelas mudanças climáticas. Menciona figuras contemporâneas que estão na vanguarda da luta ecológica, como Greta Thunberg e o movimento grevista #FridaysForFuture. Conclama ainda que “será preciso muito mais que amor ordinário” para nos erguer para cima diante deste contexto que ameaça nos submergir (o que lembra do ethos de Neil Young em canções como “Lotta Love”).

Outra das obras-primas do “Gigaton” (2020), novo álbum do Pearl Jam, “Quick Scape” (Fuga Rápida) revela Vedder, um dos melhores letristas vivos, aderindo ao eu lírico de um nômade das catástrofes sócio-ambientais. “Cruzei a fronteira para o Marrocos”, canta a certo ponto. “Quantas distâncias tive que cruzar / Até encontrar um lugar que o Trump ainda não tinha fodido!”.

A vida dura do refugiado, condenado a “levantar pedras por um salário”, evoca a trágica punição imposta por Zeus a Sísifo, na mitologia grega. O que não impede que o eu-lírico seja também o veículo daquela Sabedoria que Vedder expressou na trilha-sonora que compôs para Into The Wild – Na Natureza Selvagem: “Atento a todo pôr-do-sol / Nenhuma noite estrelada desperdiçada…”. Siga a letra na íntegra e aprecie o videoclipe das lendas vivas do grunge:

Reconnaissance on the corner
In the old world not so far
First we took an aeroplane
Then a boat to Zanzibar
Queen cracking on the blaster
And Mercury did rise
Came along where we all belonged
You were yours and I was mineeah, yeah

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape
Had

Crossed the border to Morocco
Kashmir then Marrakech
The lengths we had to go to then
To find a place Trump hadn’t f*cked up yet
Living life on the back porch
Lifting rocks to make a wage
Every sunset paid attention to
Not a starry night went to waste

Had to quick escape
Had to quick escape
Had to quick escape

And here we are, the red planet
Craters across the skyline
A sleep sack in a bivouac
And a Kerouac sense of time
And we think about the old days
Of green grass, sky and red wine
Should’ve known so fragile
And avoided this one-way flight

Had to quick escape…

O Pearl Jam tornou-se uma das bandas atuais que melhor conseguiu, em suas mutações, seguir sintônica com o que rolava de mais urgente no globo. Rebeldes e dissidentes, as canções de Vedder e cia explodem nos amplificadores com a ousadia de tematizar os descaminhos da evolução humana (“Do The Evolution”), as tendências suicidas da civilização capitalista-ocidental (“World Wide Suicide”), a angústia juvenil e as engrenagens de um massacre escolar (“Jeremy”), dentre outros temas cabeludíssimos.


Em 2020, o Pearl Jam segue honrando a sonoridade e a atitude das bandas do passado que mais inspiram a caminhada do mamute grunge: penso no The Who, em Neil Young e Crazy Horse, em Bruce Springsteen, mas também nos Ramones. O processo de amadurecimento de Vedder, que parecia conduzi-lo a se tornar um ícone folk, o Dylan ou Young de sua geração, como mostra sua criação solo mais genial, Into the Wild, e como sugere também sua faceta mais suave e tranquila que se expressa no projeto Ukulele Songs, não foi uma maturação que o tenha feito esquecer suas raízes punk grunge. 

Canções como “Quick Scape”, “Superblood Wolfmoon” ou “Never Destination” revelam um Vedder que nunca cessou de amar os Ramones. Além de uma instituição da história do movimento punk, acredito que os Ramones tem uma significação mais ampla, para o rock’n’roll como um todo, entendido não como estilo musical mas também como subcultura. Em outros termos, tão importantes quanto Chuck Berry, Little Richard, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Bo Didley para  história do rock’n’roll, os Ramones são uma espécie de condensação daquilo que o punk propôs: o back to basics, o foco na energia rítmica, na entrega emocional, na eletricidade exuberante, na ausência de firulas para que pudesse melhor brilhar o essencial.

Joey Ramone, enquanto vivia, serviu como uma espécie de mentor para o cantor e compositor do Pearl Jam de muitas maneiras, sobretudo conduzindo o Pearl Jam e seu líder a estarem sempre engajados com os “elementos fundamentais do rock’n’roll”, como o próprio Vedder relata no livro Pearl Jam 20 (p. 314): “Munição extra [para Vedder] veio do falecido Johnny Ramone, que não apenas inspirou a letra de “Life Wasted”, mas desafiou Vedder a estudar os elementos fundamentais do rock’n’roll” – e sabe-se do impacto emocional que a vida e a morte de Joey tiveram sobre Vedder:

– Há essa energia fúnebre, quando você literalmente se senta ali com a morte de seu amigo e percebe como a vida é preciosa – diz Vedder sobre a morte de Joey Ramone. Funerais e casamentos são bons para isso. Você tem essa sensação renovada de viver a vida ao máximo quando você vê como ela evapora rápido. Você não dá o devido valor… ‘Life Wasted’ veio disso: ‘Já passei por isso, uma vida desperdiçada, nunca voltarei’. Viva a vida ao máximo. Eu não ia deixar essa perda profunda passar sem reconhecimento.”

O reconhecimento que Vedder quis expressar por seu ídolo e amigo passou inclusive por cantar com os Ramones no show de despedida em 1996 (lançado no álbum We’re Outta Here) e pelo papel que ele teve como anfitrião da consagração Ramônica no Rock’n’roll Hall of Fame em 2002. Um bootleg interessante revela Vedder cantando Ramones:

É bem verdade que o Pearl Jam transcendeu aquela simplicidade dos Ramones que alguns confundem com tosquice, mas que não é senão a arte do foco energético concentrado que torna tão pulsante a maquinaria sônica rock’n’roller ramônica. O Pearl Jam se complexificou, explorou muitas sonoridades e afetos, tornou-se capaz de soar às vezes como o Jethro Tull ou o Pink Floyd, bandas nas antípodas dos Ramones. Mas algo de ramônico sempre permaneceu lá, no âmago do Pearl Jam, e ouso afirmar que está aí um dos segredos para a vitalidade do grupo.

É verdade que, como Gigaton mostra, a concepção de álbum que move o Pearl Jam difere bastante daquela que norteava bandas como os Ramones, o AC/DC, o Motörhead ou o Nirvana – para estas bandas, com o perdão de uma generalização que corre o risco de uma certa injustiça, um bom álbum retira sua coerência do fato de que as canções soam parecidas umas com as outras, seguem-se numa acachapante fileira de riffs matadores e refrões-chiclete, gerando um daqueles objetos que os fãs adoram pois está inteiramente repleto de thrills (e nenhum filler). 

O Pearl Jam, em contraste, pensa um álbum como um “épico” onde a diferenciação é valor: o disco deve ter muitos contrastes, mesclando as pedradas pesadas mas também as baladonas mais atmosféricas. Deve ter aquele frio na barriga e aquela taquicardia de uma viagem de montanha-russa, mas pode e deve conter também um momento mais contemplativo, como flutuar num lago sobre um caiaque sob a luz de uma lua cheia enquanto lobos uivam para a lua. Grandes álbuns do Pearl Jam, como Vs, Yield, Binaural, Riot Act, tem esta abordam do álbum multi-colorido e excêntrico, que viaja de momentos punky e explosivos em direção a experimentalismos menos palatáveis, para depois voltar à quebradeira catártica.

O Pearl Jam chegou em 2020 com uma single que mostra a banda querendo brincar com sonoridades meio funky, em “Dance of the Clairvoyants”, que parece uma homenagem a David Byrne e os Talking Heads, mas que também dialoga com as obras-primas do Gang of Four nos anos 1970 e 1980 (Entertainment, Solid Gold…). 

Esta ousada sonoridade, com sabor de excentricidade, que o primeiro single de “Gigaton” traz, mostra não só que o Pearl Jam curte e idolatra os caras que fizeram obras-primas como Fear of Music Remain in Light: é verdade que os Talking Heads re-vivem através do prisma grungy-funky de “Dance of the Clairvoyants”, mas isso se dá sem que o Pearl Jam perca o bonde do contemporâneo. A música dialoga perfeitamente com a obra de algumas das melhores bandas atuais, como o s maravilhosos Dirty Projectors e TV On The Radio.

Já em “Seven O’Clock”, uma power-baladona que honra como heróis os xamãs nativo-ameríndios Sitting Bull e Crazy Horse, o Mr. Trump toma na testa um petardo: é xingado de “Sitting Bullshit”, “our sitting president”. A música é um tratado sobre as ações tresloucadas de húbris dos seres humanos diante da natureza, exemplificada pela atitude de alguém que agarra uma borboleta, quebra suas asas e a põe numa vitrine, desprovida de toda a sua beleza desde o momento em não pôde mais voar livre:

“Caught the butterfly, broke its wings then put it on display
Stripped of all its beauty once it could not fly high away
Oh, still alive like a passerby overdosed on gamma rays
Another god’s creation destined to be thrown away
Sitting Bull and Crazy Horse, they forged the north and west
Then you got Sitting Bullshit as our sitting president
Oh, talking to his mirror, what’s he say, what’s it say back?
A tragedy of errors, who’ll be the last to have a laugh?”

É 2020 e talvez não haja em atividade nos EUA nenhuma banda tão capaz quanto o Pearl Jam de denunciar a “tragédia de erros” que domina um virulento zeitgeist, ao mesmo tempo que prova, por sua própria resiliência, a possibilidade de uma trajetória de acertos. O ethos pearljâmmico, aquilo que segue animando esta lenda viva do rock global, tem ainda muita relevância em nosso mundo, mostrando que as duas visões sobre as funções da arte que mencionamos a pouco – a de Nina Simone, a de Brecht / Maiakóvski – não são mutuamente excludentes mas sim conjugáveis. O artista tem sim o dever de refletir em sua obra o tempo histórico, mas sua obra é também um martelo com o qual forjar o novo. O élan vital que atravessa a obra do Pearl Jam, banda incansável e que não quer ir dormir na auto-satisfação, é um salutar contágio nestes tempos em que viralizam desgraças.

Eduardo Carli de Moraes
Abril de 2020
http://www.acasadevidro.com

 

OUÇA TAMBÉM, DE “GIGATON”:

DISCOGRAFIA DO PEARL JAM:

01. Ten (1991)
02. Vs. (1993)
03. Vitalogy (1994)
04. No Code (1996)
05. Yield (1998)
06. Binaural (2000)
07. Riot Act (2002)
08. Pearl Jam (2006)
09. Backspacer (2009)
10. Lightning Bolt (2013)
11. Gigaton (2020)

 

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A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

O último filme de Ken Loach faz uma radiografia da pandemia de “Uberização” laboral || A Casa de Vidro

A tragédia da riff-raff britânica na era da Uberização laboral: eis o cerne de Sorry We Missed You (Você Não Estava Aqui), novo filme do mestre Ken Loach (UK, 2019, 100 min), duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Partindo de uma narrativa que foca suas atenções sobre uma família específica, o filme manda seu recado sobre uma situação geral daquela fração da classe trabalhadora, em constante expansão, que inclui aqueles apelidados de infoproletários e de “Precariado” (analisados em minúcias, no Brasil de hoje, por cientistas sociais como Ruy Braga e Ricardo Antunes).

No roteiro escrito por Paul Laverty, o destino da família protagonista serve como emblema para a condição do Precariado na atualidade. Esta classe sofre com a insegurança extremada conectada à informalidade, com o colapso da jornada de trabalho de 8 horas e com a perda de direitos elementares à saúde, à educação e à previdência. Estes trabalhadores precarizados frequentemente são enforcados pelas dívidas, sendo assim algemados a neo-servidões e neo-escravidões.

Conquistas dos movimentos sindicais, sociais e revolucionários do passado vão se perdendo no grande desmonte privatista neoliberal conforme a crueldade capitalista adere às núpcias sinistras com o fascismo. Como ensinou Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio” – hoje, neofascismo e neoliberalismo tem transado em praça pública e sua prole é tenebrosa.

As linhas de montagem não são mais aquelas dos Modern Times de Chaplin (1936). São as linhas de montagem invisíveis do Ubercapitalismo, que cada vez pretende estender seu império a ponto de tornar-se ubíquo. Os prazos a cumprir no delivery de mercadorias são as novas cadências de velocidade brutal, linhas de montagem lançadas para fora das fábricas e adentrando cada vez mais o trânsito caótico dos grandes centros urbanos.

O “novo” patronato vai agindo contra o proletariado com a velha mentalidade escravista que as elites do atraso recusam-se a abandonarno mundo afora e não só no Brasil radiografado por Jessé Souza. O escravismo dá lucro, e por isso tanta adesão a ele por parte de patrões que, em termos éticos, estacionaram na História e desejam sobretudo a continuidade obscena de seu gozo de privilégios excludentes. Elites que agem com a sádica alegria com a desgraça alheia e o senso de superioridade de quem, na relação entre a bota e a face que ela pisa, está do lado de quem é o dono do pé pisoteante.

A rotina massacrante quebra a espinha do trabalhador uberizado e ifoodido. O protagonista de Sorry We Missed You é um emblema do pai de família que não consegue mais sentar direito a bunda na mesa-de-jantar de casa, tamanha a correria de seu trampo. Um trabalhador que atinge no filme um tal grau de exaustão que ele flerta com a auto-destruição. O cara chega a tal fundo de poço que está às beiras de enfiar sua van num muro e morrer no crash, deixando uma viúva e dois órfãos. O protagonista vai sendo lançado, por este sistema insano, a uma situação de nervous breakdown. 

Eis uma sociedade governada por elites econômicas que querem ensinar ao trabalhador que ele não deve crer na sua dignidade intrínseca – e ele muitas vezes interioriza este desrespeito alheio e torna-se auto-depreciativo. Como no diálogo em que o pai elogia a filha dizendo que ela é inteligente e esperta demais, e lhe diz: “com certeza você não herdou meu cérebro”.

Esta auto-derrisão também se manifesta quando ele exorta o filho a ser disciplinado na escola ao invés de pintar grafites pela cidade (ultimamente, inclusive com spray roubado): “não quero que você termine como eu”. O filho, que tem agido com uma atitude punky, num espírito à la Banksy, atua como a consciência crítica da família e despreza a perspectiva de entrar na universidade. Não que ele esteja dominado por um desprezo pelo conhecimento, mas sim sente nojo por toda a condição do universitário pobretão que só consegue estudar afogando-se em dívidas e aniquilando qualquer chance de ter tempo para lazer, cultura, contemplação e descanso.

Pois a realidade educacional anglo-saxã, onde o liberalismo impôs o avanço da escola-empresa e do conhecimento-mercadoria, na esteira das teoria do “capital humano” de Gary Becker, o universitário pobre é obrigado a trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Mesmo depois de formado é obrigado a trabalhar anos para pagar as dívidas contraídas, e durante seu curso é coagido a um sobretrabalho estafante que prejudica a qualidade de seu trabalho intelectual e de sua aprendizagem. Um contexto que lança seu mundo emocional no turbilhão da angústia e da ansiedade constantes, pois sabe que pende sobre sua cabeça a espada de Dâmacles dos credores papa-juros que ameaçam cortar sua cabeça nas guilhotinas do Mercado.

O filme de Loach é também brilhante no retrato contemporâneo do fenômeno da dívida – cuja história nos últimos 5.000 anos foi realizada pelo antropólogo anarquista David Graeber em Debt: The First 5,000 Years. O filho da família sabe que entrar para a universidade, para alguém de sua classe, consiste em botar o pescoço na guilhotina das tuition fees. O garoto sabe que a ascensão social via estudo, para alguém da riff raff, só é algo plausível sob o domínio de um cruel endividamento que iria tornar ainda pior a situação financeira familiar.

Escultura de Cain Motter

O filme de Loach, ultra-realista, faz o retrato de uma classe down’n’out na Grã-Bretanha do Brexit. Uma gente que os banqueiros tratam como arraia-miúda e que interessou a George Orwell – autor do crucial livro de ensaios  Como Morrem Os Pobres (Cia das Letras), que aqui Loach parece querer atualizar para nossos tempos.

O teor trágico de Sorry We Missed You vem da ausência de perspectivas revolucionárias. Nem mesmo algum tímido sindicalismo reformista dá o ar de sua graça no filme (nada do “espírito Norma Rae“, do entusiasmo Martin Rittiano pela mobilização proletária, aparece por aqui). O pai-de-família que protagoniza a obra desce ao inferno-na-terra ao ser alvo de múltiplas opressões cruzadas, apesar de ser um homem, branco e hétero (suposta epítome do estereótipo do opressor).

Cúmulo de seu destino enquanto oprimido desta sociedade de opressões que se interseccionam é aquela série de cenas em que ele é literalmente roubado após ser esmurrado, chutado e encharcado com o próprio mijo. Depois é cobrado pelo patrão pelo prejuízo acarretado ao equipamento da firma pelos assaltantes. Todo quebrado e fodido, no hospital, esperando o resultado do raio-X, ele passa por esta humilhação suplementar. A esposa não aguenta e explode em indignação contra o patrão do esposo pelo telefone.

Em uma cena-chave, o patrão havia se gabado dos índices de produtividade de sua empresa, supostamente “de elite” em toda a Great Britain. As atitudes senhoriais são justificadas com um apelo à ideia de que os clientes só se importam em receber os produtos que encomendam na hora certa – e estão pouco se fodendo em relação ao bem-estar dos que trampam nas vans, motos e bikes deste enxame crescente de “entregadores de aplicativo”.

– Alguém genuinamente já te perguntou como você está, quando você aparece na soleira da porta após tocar a campainha com um pacote em mãos? Acha que os clientes se importariam se você batesse as botas ao chocar a van contra um muro?

Quando um patrão trata seu “sócio” desta maneira podemos ter certeza de que não se trata de uma relação simétrica entre dois “patrões de si mesmos” que estão em negociação. É uma relação assimétrica e injusta onde burguês e proletário seguem existindo, apesar de mascarados pelas novas noções de CEO e “empreendedor”. Um abismo de desigualdade social imensa separa estas duas posições.

Neste mundo de colapso generalizado da empatia, da pandemia duma frieza de coração, empedernida e violenta, a ideologia tóxica do neoliberalismo empreendedorista surge para tentar nos convencer de que o egoísmo é parte da natureza humana. Mas não é, como argumenta o filósofo australiano Roman Krznaric em O Poder da Empatia: o egoísmo não pode ser descrito como intrínseco e inato à natureza humana, como querem muitos liberais, pois sua manifestação atual, enquanto individualismo empreendedor, é produto de uma ideologia inculcada e de um imenso aparato de doutrinação. Nurture, not nature.

O sistema de remuneração por produtividade prejudica a classe trabalhadora pois os detentores do poder sempre podem, na ausência de regulações estatais que coloquem freios no laissez faire do Mercado, puxar as metas para cima, exigindo ritmos e durações laborais incompatíveis com a dignidade humana.

Inculca-se a ilusão, na cabeça do precário-proletário, de que ele seria proprietário de um meio de produção, quando na verdade ele é unicamente o dono de um carro, uma moto ou uma bike. O sujeito quer tratar a si mesmo como empreendedor, um “patrão de si mesmo”, mas na real isso mascara a brutal desproporção entre os donos dos meios de produção e concentradores de capital – o Patronato! – e o enxame dos que não tem nada senão o poder de se deixar explorar por 12 horas ao dia por um salário de miséria ganho com o suor do próprio rosto, enquanto os CEOs de empresas como Uber e Ifoods ficam no bem-bom, vagabundeando em suas jacuzis nas suas mansões de 500 milhões de dólares no Vale do Silício.

Na real, o trabalhador ifoodido não possui direitos trabalhistas, não tem direito a adoecer e se tratar, obviamente não tem direito ao lazer e à cultura – nem mesmo, muitas vezes, tem o direito de mijar no banheiro (o protagonista do filme de Loach é obrigado a fazer xixi numa garrafa). Enquanto  os donos da Uber, da Ifoods ou da Rappi ficam bilionários apenas gerindo sistemas informacionais e logísticos, os empreendedores labutam como condenados, muitas vezes sem direito a fim de semana e férias, para girarem na roda da miséria como nas torturas gregas impostas a Íxion, Sísifo ou Tântalo. Eles são a nova-versão do “homem-boi” de Taylor, satirizado em versão equina, com verve sarcástica, no provocativo filme Sorry To Bother You, de Boots Riley.

Marilena Chauí, em entrevista recente, aponta que a ilusão de independência do moderno precariado acaba sendo bastante difícil de desconstruir. Sempre em trânsito, essa força de trabalho perde o tempo que poderia ser dedicado às conversas com seus iguais. Eles lhe aparecem como competidores, apenas. Sobra-lhes um espaço público degradado por obstáculos que sacrificam o pensamento independente pois exigem constante atenção ora a um buraco na rua, um cachorro a persegui-los ou um guarda indisposto.

Uma rotina que lembra a dos “negros de ganho” do Brasil colonial (que “eram aqueles que trabalhavam e que repassavam todos os seus ganhos a seus donos”). Ao precariado, a posse de um veículo automotivo e a possibilidade de mudar de senhor já são um engodo poderoso o suficiente para estabelecer um líquido sistema de servidão voluntária. Nele, como diz a filósofa Marilena, as pessoas já não se definem pela sua ocupação ou pelo seu contrato de trabalho. Em um mundo liquefeito como lama, ora sou entregador, ora sou garçom, ora sou manobrista, ora trabalho das 7h às 22h, ora das 22h às 7h: isto seria liberdade, ou somente a nova encarnação da servidão voluntária?

Quando possível, os precários caem no desemprego e tentam recuperar-se dessas jornadas exaustivas gastando irrisórios seguros-desemprego (quando a eles tem direito). Quando seguem na informalidade, pulando de trampo precário em trampo precário, como breve bálsamo para suas torturas cotidianas gozam no consumismo com suas parcas economias. Um consumismo frequentemente movido a crédito e financiamento – ou seja, propulsionado a dívida.

Através de seus filmes recentes, Ken Loach faz a crítica de um sistema que quer convencer “as pessoas mais vulneráveis da terra” de que “a pobreza é sua própria culpa”. Ou seja, a ideologia meritocrática, ancorada no racismo estrutural (como argumenta Silvio de Almeida), quer persuadir que os ricos são ricos por seu próprio mérito (e não pelo roubo, exploração e desumanidade que praticam em sua crudelíssima ação de classe).

Despontam muitas perguntas, ainda sem respostas, incitadas pelos filmes deste mestre britânico da 7ª arte: será que o cinema recente praticado de Ken Loach, com sua vibe meio bleak, seria um fator desmotivador das lutas anticapitalistas? Em outras palavras, seus filmes comunicariam um sentimento de desolação que poderia conduzir a uma certa apatia? 

Em certa medida, parece-me que sim: Sorry We Missed You Eu Daniel Blake parecem-me filmes um tanto desanimadores, que parecem se desenrolar sob o signo da derrota de uma certa esquerda. É como se John Lennon, aos 29 anos, quando dizia que “o sonho acabou”, estivesse de fato com a razão – e o octagenário Ken Loach estivesse fazendo o cinema para prová-lo. Um certo clima de there’s no alternative espraia uma energia deprê por estas narrativas.

O sonho utópico não dá o ar de sua graça nestes filmes de Loach – pelo menos não de maneira explícita. No máximo, podemos falar de algum utopismo subliminar, envergonhado de si mesmo, que ousa se manifestar apenas de viés, através do elogio ético da empatia e da solidariedade, mas sem ousar encarnar esta aspiração em algum movimento cidadão ou partido revolucionário.

Sob o signo da derrota, Ken Loach sempre desenvolveu seu poderoso cinema. Os últimos filmes parecem mergulhados na atmosfera da derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbin diante do triunfo dos Brexit-ers à la Boris Johnson. Sob o signo também da derrota dos movimentos sociais que defendem serviços públicos de qualidade e inclusão social, ainda que no horizonte limitado do welfare state. Derrotas às mancheias. Mas será que Ken Loach está nos propondo a resignação? Está nos contaminando com a atmosfera da desistência? Está nos conduzindo à admissão de que perdemos, e à decisão de abandonar a arena de luta?

Não necessariamente, e neste aspecto é preciso colocar sua obra recente no contexto de sua filmografia. O italiano Enzo Traverso, um dos maiores pensadores políticos contemporâneos, que leciona em Cornell (Ithaca, Nova York), dedicou algumas das páginas mais lindas de seu livro Melancolia de Esquerda a este “derrotismo” de Loach. Ali, analisa principalmente o modo como Loach retrata derrotas em seus melhores filmes – como fez em seu retrato da Guerra Civil na Espanha (1936 – 1939) em uma de suas obras-primas, Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), premiado com a Palma de Ouro em Cannes:

“Em Terra e Liberdadeé a revolução em si que se transforma em domínio da memória, evocada e ‘vivida’ com empatia e uma nostalgia dilacerante, ainda que o olhar melancólico de Loach seja o oposto da resignação. Muito além de uma homenagem à revolução espanhola, seu filme queria mexer com o zeitgeist conformista dos anos 1990, além de contestar  a representação convencional da Guerra Civil Espanhola como uma catástrofe humanitária.

Sob esse ponto de vista, Terra e Liberdade surge quase como um antípoda de Soldados de Salamina (2001), o aclamado romance de Javier Cercas em que uma trágica dimensão da guerra não deixa lugar para esperança nem motivo para o engajamento político. (…) Terra e Liberdade descreve uma experiência histórica encerrada que, epítome da derrota das revoluções socialistas do século XX, claramente transcende as fronteiras espanholas.

O protagonista do filme é um jovem proletário de Liverpool, David Carr (interpretado pelo ator Ian Hurt), que vai para a Espanha não para participar de uma conferência internacional em defesa da cultura, mas com o intuito de lutar nas Brigadas Internacionais. Lá David completa sua educação política e sentimental, desenvolvendo valores e convicções que não abandonará pelo resto da vida.

(…) A última cena retrata o enterro do protagonista: a neta lê um poema de William Morris, ‘O dia está próximo’, que reafirma a visão socialista da memória: ‘Vem, junta-te à única batalha onde ninguém pode perder / onde aquele que morre ou desaparece / em seus feitos, porém, prevalece.’ Em seguida, a neta desata o nó do lenço e joga a terra da Espanha no túmulo. Eles foram derrotados, mas outros seguirão lutando e ganharão. Essa conclusão convencional encerra um filme que é um monumento às revoluções do século XX.” (TRAVERSO, Melancolia de Esquerda, Ed. Âyiné, 2018, p. 232)

O cinema de Loach, ao retratar derrotar, não quer nos resignar ao derrotismo, mas nos conduzir àquela lucidez que Gramsci consolidou numa frase lapidar: temos o direito ao pessimismo da inteligência, mas precisamos do otimismo da vontade. Ao pintar a via-crúcis de Daniel Blake ou da família de Sorry We Missed You, este cineasta magistral está querendo nos comover para os destinos que um sistema desumano massacra cotidianamente – não para que nos resignemos a assistir a isso de braços cruzados, mas para que possamos ir à luta em prol da construção difícil e infindável de algo melhor.

 

Por Eduardo Carli de Moraes e Gisele Toassa,
Goiânia – Março de 2020
http://www.acasadevidro.com

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