PROIBIDO ESQUECER – Os deveres da memória em tempos de genocídio: O caso “Black Earth Rising” (BBC/Netflix)

“A million candles burning
For the help that never came
You want it darker
We kill the flame…”
LEONARD COHEN

Ruanda, 1994: cerca de 800.000 pessoas são assassinadas em 100 dias de carnificina. Recontada no cinema em Hotel Ruanda (de Terry George, 2004), em livro-reportagem no Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas Famílias de Philip Gourevitch (Cia das Letras) e nos romances de Scholastique Mukasonga (três deles publicados no Brasil pela Editora Nós), a história do genocídio ruandês agora volta à tona: Black Earth Risingsérie de 8 episódios produzida pela BBC e que está no acervo da Netflix, retrata os traumas e cicatrizes que marcam os sobreviventes, as testemunhas e os perpetradores deste monumental e trágico evento histórico. Ao fim do século 20, a violência ainda inundava a História Humana, este pesadelo do qual tentamos acordar (para lembrar do personagem de James Joyce, S. Bloom, que afirma no Ulisses: “History is a nightmare from which I am trying to awake”). [1]

Escrita, produzida e dirigida por Hugo Blick (também responsável pela minisérie The Honourable Woman (A Mulher Honrada), Black Earth Rising foca no trabalho de uma equipe de juristas que dedicam suas vidas ao esforço de penalização de genocidas e criminosos-de-guerra, processados em tribunais penais internacionais como o de Haia (Holanda). A personagem principal, Kate Ashby (interpretada por Michaela Coel), atravessa radicais transformações de identidade em uma trajetória para desocultar os segredos de seu passado: ela era uma criança em meio à matança generalizada deflagrada em 1994 lá em sua terra natal Ruanda, e que se estendeu pelos anos seguintes no país vizinho (Zaire / Congo).

Sem memórias claras de sua primeira infância, Kate – que foi adotada pela advogada inglesa Eve Ashby – só poderá compreender muito mais tarde os maiores mistérios de seu destino prévio. Transformada numa mulher em ação, na luta pela memória e pela justiça, ainda que tardias, Kate Ashby vai numa jornada em busca do tempo perdido bastante peculiar, desvelando os nós que entrelaçam seu destino pessoal com os destinos coletivos dos povos do Continente Matriz da humanidade, a África.

Em entrevista à BBC, Blick revelou um pouco do que o inspirou a realizar a série:

“Onde eu cheguei não é o destino que eu esperava. Alguns anos atrás, olhei para os julgamentos de Nuremberg como parte de uma pesquisa de fundo para a série “A mulher honrada “. Consequentemente, fiquei interessado em explorar como perseguimos hoje os criminosos de guerra internacionais. Comecei com o Tribunal Penal Internacional (TPI) e fiquei surpreso ao descobrir, no momento da minha pesquisa, que a maioria, senão todas as acusações formais, eram contra africanos – negros africanos. Isso então me atraiu para o Congo. O TPI não estava apenas perseguindo os perpetradores do genocídio de Ruanda, fiquei ainda mais intrigado ao descobrir que ele também estava perseguindo indivíduos que ajudaram a pôr fim ao genocídio. Ambos os lados eram procurados pelo TPI por supostas atrocidades cometidas na República Democrática do Congo após o genocídio em meados da década de 2000. Eu queria entender por que aparentes vilões e heróis estavam sendo perseguidos. E quanto mais eu olhava, mais fundo eu tinha que ir. ” (BLICK, Hugo. BBC.) [2]

A compreensão do que ocorreu em Ruanda, em 1994, é um desafio cognitivo tremendo. As dificuldades começam pelo fato de que poucos tem estômago para mergulhar no estudo de fenômenos que são tão chocantes e angustiantes, devido à escala monumental do horror e da violência que envolvem. Philip Gourevitch escreve, sobre aquela época, de maneira bem punk, que “o governo ruandês adotara uma nova política, segundo a qual todo mundo do grupo majoritário hutu era convocado a matar todo mundo da minoria tutsi. O governo e um impressionante número de seus súditos imaginavam que exterminando os tutsis poderiam fazer do mundo um lugar melhor – e o assassinato em massa começou.” (GOUREVITCH, P. Cia das Letras, leia um trecho) [2]

O trecho de Gourevitch estabelece uma distinção entre a minoria Tutsi e maioria Hutu, afirmando que a maioria, através do assassinato em massa da minoria, “imaginavam que poderiam fazer do mundo um lugar melhor”, o que é o supra-sumo do contra-senso: utilizar um meio como o assassinato em massa para atingir a finalidade de um mundo melhor é algo estapafúrdio. Só temos a lamentar a crença de muitos na tese de que “o fim justifica os meios”, quando na verdade meios atrozes e cruéis sempre hão de conspurcar os fins, mesmo os supostamente mais elevados. Creio, porém, que o buraco é mais embaixo, que o ímpeto idealista de fabricar uma realidade social melhorada através da purificação, da limpeza étnica, está calcada num dos mais sérios problemas a desgraçar a caminhada humana sobre o planeta – o racismo. Tema que Black Earth Rising evita encarar de frente.

Outra dificuldade que se interpõe como obstáculo na nossa tentativa de compreensão das ocorrências em Ruanda, em 1994, parece-me ser a seguinte: por comodismo e facilidade, ou seja, pela lei-do-mínimo-esforço que preside o trabalho de muitas mentes que se abandonam ao Império da Preguiça, temos uma certa tendência a simplificar as coisas através da perigosa prática do binarismo – e também do maniqueísmo que muitas vezes o acompanha. Usualmente, desejamos enquadrar o mundo e a história em um esquema em que separamos o joio do trigo de modo bastante tosco: há vilões e heróis, bandidos e mocinhos, a luta entre o Bem e o Mal, “ou você está conosco ou está contra nós” (recentemente, um presidente genocida como George W. Bush reciclou esta desgraça de maniqueísmo binário ao lançar sua Guerra Contra o Terror).

A realidade, porém, é muito mais complexa e destroça nossos binarismos maniqueístas. Jamais faríamos o mínimo de Justiça, nem honraríamos os deveres da Memória, tentando enquadrar, em massa, Tutsis e Hutus em uma dessas categorias: Vítimas e Carrascos. Precisamos ir além do simplismo de opor uma “coitada minoria massacrada” e uma “desumana maioria assassina”. Temos que complexificar o quadro e olhar de frente no rosto da Besta Humana. Pois a Humanidade sabe muito bem ser desumana. Nossa união ainda está por ser inventada.


PARA ALÉM DO BINARISMO E DO MANIQUEÍSMO

Um dos ensinamentos de Black Earth Rising é que não podemos cair no binarismo fácil de classificar estas etnias como vítimas (Tutsis) carrascos (Hutus) – as posições de vítimas e carrascos são muito mais intercambiáveis. Ser um Tutsi não é um atestado de vítima, nem imuniza a pessoa contra o cometimento de atrocidades, nem tampouco ser um Hutu é um atestado de genocida, nem impede a pessoa de militar em prol da convivência pacífica.

É isto que Kate Ashby não consegue compreender a princípio: ela está aferrada à noção de que os Tutsis são as vítimas, os Hutus os genocidas. Aferrada, além disso, à crença sobre si mesma: está certa de que é uma Tutsi sobrevivente do genocídio, e tudo fará para que os responsáveis pelo morticínio escapem da impunidade de que ainda gozam. Por isso Kate suporta tão mal que sua mãe tente incriminar em Haia o General Simon Nyamoya, um chefe Tutsi que ajudou a pôr fim ao massacre, em 1994, mas depois se envolveu em crimes de guerra e tráfico de minérios no Congo, além de ter participado de uma carnificina contra um campo de refugiados Hutu em território congolês.

Baseado em fatos reais que o Mirror reconta, assim como a reportagem da BBC, Black Earth Rising merece ser vista na íntegra para que se possa ter uma experiência plena das metamorfoses de Kate Ashby no decorrer da série. Ema espécie de 1º ato, Kate Ashby reluta em ver seu herói Nyamoya sendo destronado, caindo do pedestal em que ela, e tantos outros, mantinham-no. É uma primeira amarga lição, que a impede de idealizar cegamente os chefes Tutsis que lutaram para pôr fim ao genocídio em 1994: apesar de “libertador” dos Tutsis que estavam sendo massacrados, revela-se que Nyamoya também é culpado por crimes contra a humanidade e limpeza étnica – sobretudo no episódio do “desmantelamento” (eufemismo para extermínio!) do campo de refugiados Hutus no Congo.

Mais para o fim da série, será revelado que a própria Kate esteve neste campo, sendo dele resgatada por um ativista de ONG. Quase no desfecho da série, Kate está dentro de uma cova coletiva, temendo por sua vida, como se tivesse ganho algumas décadas de sobrevivência para finalmente perecer no buraco onde deveria ter ficado enterrado seu cadáver infantil, mas percebe que um mutirão de pessoas decidiu, como ela, trabalhar para trazer à tona no presente os ossos enterrados de uma História mal contada e ocultada.

Não é possível compreender as ocorrências de que fala a série com o nosso foco exclusivamente em Ruanda em 1994: os precedentes do genocídio incluem necessariamente as ações das grandes nações imperialistas do Ocidente. Não é fora de propósito averiguar quanto do sangue derramado em Ruanda tem origens numa insanidade racista que foi inicialmente propagada pelo colonizador europeu e pelas ideologias supremacistas que marcaram não apenas o nazifascismo, mas também o escravismo nos EUA calcado na white supremacy. Sim, precisamos falar sobre ideologias racistas típicas do imperialismo “ocidental” – aquele que praticou por séculos a escravidão contra milhões de africanos – para chegar perto de entender melhor o destravamento das carnificinas ruandesas de 1994.

No fim do século XX d.C., a Humanidade descobria, atônita, nossa resiliente capacidade para o pior, somada à nossa incapacidade de autenticamente aprender com erros passados e suas funestas consequências. Parecíamos condenados a repetir, com Maslow: “O Horror! O Horror!”, frase com que se encerra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, retrato do Congo belga no livro que depois se transformou em Apocalypse Now (filme de F. F. Coppola). O pesadelo do fratricídio entre Tutsis e Hutus segue desafiando nossa Razão a decifrar seus porquês – e diante de vidas humanas reduzidas em massa à morte, é preciso cuidado redobrado naquilo que dizemos e escrevemos. Aqui estou na postura de quem se estarrece que acontecimentos assim estejam entre nossos possíveis, mas não na postura de quem traz todas as respostas em uma bandeja.

Pelo contrário, trago uma bandeja cheia de questões: nós, que nos acostumamos a pensar sobre o racismo como um fenômeno vinculado ao “preconceito de cor”, para lembrar um samba de Bezerra da Silva, como podemos reconfigurar nossa compreensão do racismo diante daquilo que parece ocorrer entre grupos humanos que não estão separados pela barreira epidérmica das dosagens de melanina? O III Reich hitlerista assassinou em massa judeus e bolcheviques, homossexuais e ciganos, mas não consta que tenha visado, como alvos, as populações de descendência africana que estavam naquela Europa que o nazismo pretendeu subjugar a seu sinistro império. Porém, o Holocausto – o genocídio imposto pelo governo nazifascista alemão a mais de 6 milhões de judeus europeus – não é menos racista pelo fato de que, olhado através de um viés bem superficial, trata-se de brancos matando brancos, europeus chacinando europeus.

Algo semelhante me angustia diante do contexto em Ruanda nos anos 1990: Tutsis e Hutus não são distinguíveis por sinais visíveis – similarmente, olhando através de um viés epidérmico, de uma perspectiva que pára na pele, trata-se de negros matando negros, africanos chacinando africanos. O racismo estaria, portanto, riscado da lista de motivações possíveis para estes genocídios? Não creio. O que exige repensar o racismo de modo mais aprofundado, como uma espécie de crença coletiva que um grupo social compartilha e que inclui a desumanização de um outro grupo social. Um dos elementos mais interessantes de Black Earth Rising está na flutuação identitária que o seriado retrata ao descrever as descobertas bombásticas que realiza, em sua vida, a personagem Kate Ashby.

Para todos os efeitos, Kate Ashby aparece-nos, no começo da série, como uma cidadã britânica, uma falante da língua inglesa, uma londrina que cresceu sob os cuidados de sua mãe adotiva, a célebre jurista Eve Ashby. Porém, Kate Ashby é um nome postiço e tardio que vem para encobrir o anonimato de uma criança que sobreviveu sozinha ao genocídio: sem familiares nem amigos que pudessem dizer seu autêntico nome, privada das informações sobre seu batismo africano originário, ela se torna uma sobrevivente do genocídio ruandês a quem se oferece um novo começo no United Kingdom: cresce acreditando, a partir das narrativas que lhe contaram, que é uma Tutsi, sobrevivente de um massacre cometido pelos Hutus.

Qual não será a sua surpresa quando descobrir, conforme avançam suas investigações relacionadas com a tentativa de condenação em Tribunal Penal Internacional do general Hutu Patrice Ganimana, que na verdade Kate Ashby foi em sua primeira infância algo bem diferente de uma criança Tutsi sobrevivente de um genocídio: era uma criança Hutu que deixou o país após o fim da carnificina, tornando-se uma emigrante e depois uma refugiada no país vizinho, então o Zaire, hoje a República Democrática do Congo. A mulher que se conhece por Kate Ashby, cujo nome africano nunca se soube, descobre que lhe mentiram sobre as circunstâncias em que foi resgatada em meio à insana matança dos adultos que a rodeavam: ela acreditava ser um Tutsi que perdeu tudo devido a sanguinários Hutus, e descobre que era uma Hutu que sobreviveu a um massacre perpetrado contra um campo de refugiados no Congo onde estavam 50.000 pessoas, cerca de 9.000 delas crianças.

O que pensar sobre o tema da identidade diante deste caso? Apesar de fictício, o enredo de Black Earth Rising pode nos instigar a seguinte reflexão: nossa identidade não é independente das narrativas que interiorizamos sobre quem somos e sobre a qual grupo social pertencemos. Kate Ashby, em Black Earth Rising, é sempre descrita como uma pessoa sob o risco de colapso psíquico: no primeiro episódio, ela consegue pílulas para tentar controlar seus ímpetos suicidas e faz uma piada com a obra de Primo Levi, judeu sobrevivente do Holocausto. O fato de ser uma sobrevivente de genocídio é essencial à sua identidade, mas os fragmentos de seu passado que ela usou para compor sua auto-imagem revelam-se falsos.

Ela se vê então envolvida numa teia de acontecimentos em que seu destino individual se mescla com o destino de sua pátria e de todo o continente africano: Kate Ashby não está apenas numa viagem de “auto-descoberta”, mas também presa numa teia coletiva e histórica em que terá que reconsiderar radicalmente tudo o que acreditou sobre si, sobretudo a crença de sua pertença à raça/etnia Tutsi.

Um dos grandes temas de Black Earth Rising é o direito à memória e à verdade. A essência dos discursos da personagem Alice Munezero vão neste sentido, o de conclamar-nos para que acessemos o passado em sua verdade, pois em nada contribui para a reconciliação você recalcar o passado coletivo, não permitindo que venham à tona certos episódios que certos grupos não julgam convenientes tornar conhecidos e públicos. A lição que tiro disto é que não devemos “essencializar” a diferença entre Tutsis e Hutus, nem entre nazistas e judeus, como se houvesse de fato uma diferença de essência entre eles que justificasse a noção de que cada grupo pertence à uma diferente raça. Se a diferença não é de essência, é preciso que ela esteja em outra parte, que a diferença seja de pertença, de cultura, de aprendizado, de interiorização narrativa, em suma: de educação. Nurture, not nature.

O racismo, pois, é um construto: não existem raças humanas, mas sim grupos humanos capazes de acreditar na supremacia étnica ou racial. Não parecem existir justificativas para cindir a humanidade em raças superiores e inferiores por razões genéticas, como quiseram fazer os eugenistas de todos os tempos, o que nos conduz à tese de que o problema está de fato na presunção de superioridade que certos grupos acabam interiorizando como uma espécie de item narcísico identitário. Esta crença supremacista – que leva o sujeito à fé de que pertence a um grupo social, ou casta, ou raça, que é melhor, mais superior, mais civilizado, mais humana que o grupo, casta ou raça inferiorizado e desumanizado – está na raiz do problema.

Por isto a educação também está: se não “genes-Tutsi” nem “genes-Hutus”, ou seja, se ninguém nasce com um DNA Tutsi ou Hutu, estas diferenças são construídas, ou seja, as pessoas são ensinadas a aderir a uma certa pertença comunitária que define sua identidade. Se foram ensinadas, ou seja, culturalmente determinadas, isto significa, como é evidente, que a educação e a cultura, transformadas e revolucionadas, são as forças principais para que o racismo construído cesse de sê-lo. Raças humanas nunca existiram, agora é nossa tarefa desconstruir, criticar e aniquilar os racismos para que também eles cessem de ser.

O racismo a que me refiro, ou seja, esta presunção de superioridade e este supremacismo étnico-racial motivado por uma pertença identitária, pode se amparar em características corporais ou epidérmicas – como foi no racismo instituído no Sul dos EUA durante o domínio da white supremacy ou na África do Sul na vigência do apartheid. Mas a crença supremacista pode se amparar em outros elementos, menos epidérmicos, aparentemente desvinculados de questões cromáticas e das aparências do corpo humano.

Hoje, não resta muita dúvida de que Adolf Hitler e o regime que chefiou era alicerçado no racismo instituído, na fantasia de domínio dos “arianos”. E tampouco me parece contestável a tese, defendida por Domenico Losurdo (entre outros), de que há muita similaridade entre os nazis arianistas e os supremacistas brancos dos EUA; há mais em comum entre a Ku Klux Klan e o nazismo do que sonha a liberal filosofia… A insana “originalidade” do hitlerismo foi tratar judeus e bolcheviques como se fossem negros no Sul dos EUA na era escravagista. Se as raças humanas não existem de fato, como podem garantir muitos cientistas, o racismo de fato existe como fenômeno ideológico e como práticas instituídas, de modo que o combate ao racismo permanece necessário e urgente, sendo um dos grandes desafios educacionais que deve mobilizar os esforços de todos nós que trabalhamos com educação, comunicação social e mobilização de massas. Como disse Nelson Mandela:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” –
Nelson Mandela, “Long Walk to Freedom”, 1995. [3]

Genocídio é uma palavra nova, um fruto macabro da época que o historiador Hobsbawm chamou de “A Era dos Extremos”. Através de livros como A Problem From Hell, de Samantha Power, e de filmes como Watchers of the Sky, de Edet Belzberg (2010), podemos aprender que o termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin (1900-1959) e une o cide (assassinato em latim) e o genos (família, tribo ou raça em grego) para forjar um conceito que se refere ao assassinato em massa cometido por ódio étnico-racial. O antropólogo anarquista Pierre Clastres posteriormente irá distinguir o conceito de genocídio do conceito de etnocídio, em Arqueologia da Diferença. Aqueles que acompanham o cenário musical também sabem dos esforços de artistas atuais como M.I.A. (rapper inglesa, de origens no Sri Lanka), na denúncia de processos genocidários que ocorrem hoje contra os Tamil do Sri Lanka ou os Rohingya de Mianmar, ou do System of Down, banda de heavy metal que sempre quis relembrar episódios de m passado esquecido por muitos, como o Holocausto armênio de 1915 – 1923, tema também do filme The Cut de Fatih Akin.

Diante do genocídio ruandês, a pior das explicações é aquela que culpabiliza os próprios ruandeses por terem descido à barbárie de “uma insanidade tribal”, como diz um burocrata governamental inglês em Black Earth Rising. Esta explicação, de um racismo velado, parece atribuir toda a culpa às insanidades do tribalismo africano, conduzindo à noção eurocêntrica e supremacista de que as afiliações e pertenças étnicas dos ruandeses “atrasados” e “primitivos” são as culpadas pelo horror. Na verdade deveríamos estar nos perguntando qual é o grau de responsabilidade do Imperialismo Ocidental – que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, sendo que foram necessários muitos movimentos anticolonialistas na África e na Ásia após 1945, em luta por libertação!

As ideologias de supremacismo étnico-racial são bastante típicas de países que foram impérios escravocratas sediados na Europa, e não é fora de propósito supor que estas ideologias racistas possam ter sido exportadas pelos imperialistas colonizados, acabando por contaminar os povos colonizados: a Bélgica, a França, a Alemanha, a Grã-Bretanha, não podem se eximir de toda a responsabilidade pelo que se passou em Ruanda em 1994. Além disso, diante de 800.000 mortos em 100 dias, precisamos nos perguntar também: Estados Unidos da América, que pretendia ser após o colapso da URSS e da queda do Muro de Berlim, uma espécie de Xerife Global e o Super-poder de um mundo Unipolar, em um contexto em que Fukuyama previa o “fim da História” com o triunfo final do capitalismo liberal globalizado, por que diabos o Tio Sam, ou melhor, suas maiores autoridades, fizeram tão pouco e foram tão ineficazes para conter a carnificina, para amainar sua fúria, para salvar dezenas de milhares de vidas? A resposta de Samantha Power, vencedora do Prêmio Pulitzer, é chocante mas me parece verdadeira:

Romeo Dallaire, a Canadian major general who commanded UN peacekeeping forces in Rwanda in 1994, appealed for permission to disarm militias and to prevent the extermination of Rwanda’s Tutsi three months before the genocide began. Denied this by his political masters at the United Nations, he watched corpses pile up around him as Washington led a successful effort to remove most of the peacekeepers under his command and then aggressively worked to block authorization of UN reinforcements.The United States refused to use its technology to jam radio broadcasts that were a crucial instrument in the coordination and perpetuation of the genocide. And even as, on average, 8,000 Rwandans were being butchered each day, the issue never became a priority for senior U.S. officials. Some 800,000 Rwandans were killed in 100 days. No U.S. president has ever made genocide prevention a priority, and no U.S. president has ever suffered politically for his indifference to its occurrence. It is thus no coincidence that genocide rages on…” SAMANTHA POWER [4]

É bem-vinda a chega entre nós de Black Earth Rising, que demonstra que BBC e Netflix eventualmente se interessam por temas tão importantes quanto o direito à memória, a difícil concretização de uma justiça penal internacional e os mecanismos de prevenção ao genocídio. A série é ótima, no geral, apesar de algumas falhas – dentre estas, eu mencionaria que a série jamais revela porquê Kate Ashby teria sido iludida com mentiras explícitas por todos ao seu redor, sendo convencida de que era uma Tutsi e não uma Hutu. Qual o sentido desta teia de mentiras que depois será duramente desfeita? Apesar destes pontos obscuros, Black Earth Rising é uma obra potente, repleta de protagonismo feminino, que retrata também o empoderamento da mulher negra em espaços de poder, inclusive através da personagem da presidenta de Ruanda e seus dilemas no sentido de avançar no sentido da justiça social, tendo como uma das dificuldades maiores o neo-imperialismo que se manifesta pela fome ocidental por minérios. Sabemos que as minas de cobalto e outros minérios, em Ruanda e no Congo, estão na mira de várias corporações internacionais que fabricam celulares e computadores (vejam o documentário Blood in The Mobile).

Em uma das cenas mais inesquecíveis, Kate Ashby revisita em Ruanda uma igreja onde centenas de Tutsis foram massacrados. Transformada em Museu, a igreja agora acolhe apenas as roupas ensanguentadas dos que pereceram no massacre, assim como o Museu do Holocausto em Berlim visa dar uma noção do tamanho do extermínio perpetrado pelos nazis ao empilhar sapatos, aos milhares, dos que pereceram nos campos da morte erguidos pelo III Reich.

Diante de uma estátua de Cristo sem cabeça, Kate Ashby parece ter sua vida invadida pelos fantasmas de todos os massacrados, num transbordamento psíquico tão insuportável que ela precisa, na saída da igreja, chorar convulsivamente e buscar amparo no peito daquele que ela foi ensinada a odiar, um Hutu – que também foi ensinado a odiá-la. Instantes depois, conduzida ao local onde os refugiados Hutus no Congo foram massacrados pelos Tutsis, ela se surpreende com a aparição de centenas de pessoas da comunidade que decidem cavar para revelar, através da cruel pedagogia dos ossos, uma verdade que estava enterrada.

“She risked her future to uncover her past“, diz a frase no cartaz de Black Earth Rising: de fato, Kate Ashby tornou-se um emblema, concedido à Humanidade por uma competente teledramaturgia, de alguém que tem a ousadia de ir atrás do desocultamento de verdades, por mais amargas e cruéis que sejam, arriscando seu futuro para desocultar seu passado. Ensina, assim, sobre a importância suprema de cumprirmos com nossos deveres de memória e com nossos trabalhos de justiça, pois a possibilidade dos genocídios do futuro dependem de nossa negligência presente em aprender com o passado. Se nos recusarmos à lembrança e não buscarmos trazer à justiça carrascos e genocidas, só estaremos contribuindo para que nosso futuro esteja tão repleto de atrocidades quanto nosso passado.

Na canção tema da série, o bardo canadense Leonard Cohen canta um sombrio folk que fala sobre “um milhão de velas queimando por uma ajuda que não veio”. Sinistro, Cohen evoca o serviço atroz daqueles que se engajam nas tarefas do obscurantismo e querem tornar tudo, para todos, mais escuro (“you want it darker? we kill the flame…”). Diante disso, precisamos ser os que re-acendem a Iluminação plena para que esta se espraie pela História, aumentando nossa compreensão corajosa dos horrores que se passaram, de modo a evitar os genocídios do porvir – infelizmente prováveis, possíveis e plausíveis em uma época em que estão empoderados genocidas-em-potencial como Jair Bolsonaro, racista, misógino, homofóbico, notório defensor de Ditaduras Militares, fã de criminosos-contra-a-humanidade como Ustra, Pinochet e Stroessner, que prega o extermínio de opositores políticos e jamais escondeu suas posturas de supremacista branco que mede “afrodescendentes” em “arrobas”.

Em meio à pandemia de covid-19 em 2020, vimos Bolsonaro ser denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional de Haia que é cenário para Black Earth Rising. O presifake brasileiro, denunciado por incitação ao genocídio, demonstrou através de sua criminosa irresponsabilidade perante à crise da saúde coletiva, e também por sua participação em atos públicos que demandavam o colapso das instituições democráticas, que é um atroz agente de uma necropolítica do assassínio-em-massa e do ocultamento da História.

O Bolsonarismo deseja desmantelar o direito do povo brasileiro à memória e à justiça, cuspindo naqueles que trazem à luz os ossos de nosso passado real como se não passassem de cães, quando na verdade são figuras como o “Seu Jair” que, através da História, propiciaram as condições para os “massacres administrativos” e para a “banalidade do Mal” de que nos fala Hannah Arendt. Black Earth Rising nos ajuda a aprender que a atrocidade terá longo futuro enquanto formos incapazes de iluminar, com nossa compreensão e lucidez, com a coragem de nosso conhecimento, as atrocidades passadas e hoje ainda infelizmente tão possíveis. Só o passado iluminado pela lucidez atual é capaz de dar força e energia para que a geração atual possa ir mudando os rumos que já se mostraram que conduzem ao abismo e à carnificina.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020

Link para este artigo:
https://wp.me/pNVMz-6p1.

REFERÊNCIAS

[1] JOYCE, JamesUlisses.

[2] BLICK, Hugo. Entrevista à BBC.

[3] GOUREVITCH, Philip. Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas FamíliaCia das Letras.

[4] MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom, 1995.

[5] POWER, Samantha. A Problem from Hell: America and the Age of Genocide. 

VÍDEOS RECOMENDADOS:

SAMANTHA POWER:

LINKS DE INTERESSE: The GuardianCineset

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O SAMSARA ROCKER: A gangorra entre egotismo e sororidade no filme “Her Smell” (2018)

Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.

Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.

A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.

Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.

Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.

Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.

Na época da gravidez, Courtney Love foi escorraçada na imprensa, sobretudo numa reportagem da Vanity Fair que denunciava que a vocalista do Hole teria usado heroína com Frances ainda em seu útero (saiba mais lendo o célebre artigo “Strange Love” de Lynn Hirschberg). O texto comparava o casal mais célebre do grunge com Sid Vicious e Nancy Spungen – e contribuiu para que Frances, por um breve período, tivesse sua custódia retirada dos pais pela justiça.

Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.

Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.

Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.

Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.

As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.

Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.

E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.

Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.

Keyart for Last Days.

Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood. 

De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.

A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.

Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.

Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.

O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.

Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.

Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.

Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.

Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.

Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.

O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.

Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.

“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE

Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.

Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.

Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.

A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.

Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.

Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.

“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.

Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK 

Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.

Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…

Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.

Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.

Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.

E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.

Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.

Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.

E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.

São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.

Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!

Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.

Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…

Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.

Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro
Goiânia, 16 de Março de 2020

“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRICKE, DavidLive Through This. In: Rolling Stone.

GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.

HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair. 

Consagrado em Cannes e no Oscar, “Parasita” expressa todo fedor e fúria da luta de classes

por Gisele Toassa e Eduardo Carli de Moraes

 “A história de toda sociedade que até hoje existiu é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial, em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta.” – MARX E ENGELS, Manifesto Comunista

Representando as novas formas da luta de classes em um contexto high tech, o filme “Parasite” (2019) consagrou-se como uma das mais importantes obras do cinema contemporâneo. Vencendo a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, o prêmio do público na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, além de 4 estatuetas do Oscar (Melhor Diretor, Filme, Roteiro Original e Filme Estrangeiro), dentre outros prêmios. Tudo indica que a obra se tornou um emblema de nossos tempos – e um alerta sobre o porvir.

A trajetória extraordinária do cineasta sul-coreano Bong Joon-Ho culmina com esta obra-prima que expressa todo o fedor e fúria da luta de classes em um planeta de capitalismo globalizado. Na era dos drones, das mídias sociais onipresentes, dos enxames de entregadores de pizza de IFood e motoristas de aplicativos como Uber, em que o Google aparece como a pitonisa esclarecedora de quaisquer dúvidas – a guerra de classes não cessou.

Bong Joon Ho com a estatueta do Oscar no 92º Academy Awards – Los Angeles, USA – 09 / 02 / 2020

Bong vem de uma trajetória marcada por trabalhos que bagunçam as fronteiras entre o cinema de ficção científica e de horror – adicionando a este mix de sci-fi horrífico altas pitadas de comédia e colheradas de impiedosa crítica social. Assim o cineasta construiu uma trajetória recheada de obras-primas, como a sci-fi apocalíptica Snowpiercer (Expresso do Amanhã), o manifesto contra o especismo e a dominação dos humanos sobre os demais animais Okja, a denúncia da monstruosa poluição de recursos hídricos em The Host (O Hospedeiro) etc. Mesmo seus filmes de menor impacto popular – como A Mãe e Memórias de Assassinato – revelam um cineasta cuja força expressiva violenta e intensa evoca o cinema de Scorsese, Glauber Rocha, Hitchcock, Kusturica, dentre outros.

Para Bong, não é problema usar recursos de thriller de entretenimento para mostrar o fedor e azedume da vida dos pobres. Uma lição de sociologia se constrói nos pequenos dados dispersos de Parasita, esclarecendo através do microcosmo fílmico todo um contexto de precarização do trabalho, colapso da consciência de classe e ascensão social trambiqueira. Tudo em um contexto de exacerbada competição inter-individual promovida pela ideologia neoliberal: “Na sociedade capitalista de hoje”, expressou o cineasta, “existem castas que são invisíveis aos olhos. Nós tratamos as hierarquias de classe como uma relíquia do passado, mas a realidade é que ainda existem e não podem ser ultrapassadas.” (UOL)

CRÔNICA DA TRAGICOMÉDIA DO PRECARIADO

Parasita começa leve, evoluindo em uma comédia doméstica sobre a família Ki, composta por um casal de meia-idade e dois filhos adolescentes. Eles moram em um porão cuja janela fica à altura da rua. Logo no início da trama, em meio ao intenso calor, recebem em cheio as espessas nuvens de um fumacê anti-insetos disperso no bairro. Os Ki têm montado embalagens para delivery de pizzas, mas seu trabalho não satisfaz a contratante: caixas com cantos derreados, dobras mal feitas e outros defeitos.

Empilhadas em um canto da apertada casa, parecem ironizar os apólogos das novas formas de geração de renda, no qual trabalho, domesticidade e tempo livre deixaram de se distribuir em diferentes espaços. Ao invés das filas nas portas de fábrica, o mundo urbano se apresenta a esta família integrante do precariado através da janela da cozinha na forma de bêbados a urinarem, sem a vergonha ou outros biombos que costumamos associar à feliz privacidade doméstica.

Como destacou Matheus Pichonelli em seu artigo, nas primeiras cenas do filme:

“Dois irmãos caminham pelos corredores de casa com os celulares apontados para cima. Eles buscam conexão, e só encontram um wi-fi aberto perto da privada do banheiro-puxadinho de uma aberração arquitetônica que não reconhece a fronteira entre a rua e o espaço privado. Aquele porão, no subsolo de uma rua sem saída onde uma enxurrada é pena de morte e os bêbados vão urinar ao fim do dia, é onde vive uma família sem estudo e sem ocupação num país que em 50 anos saiu da pobreza extrema e se tornou uma potência tecnológica — mas, a exemplo de tantas nações, não foi capaz de encurtar as distâncias entre vitoriosos e esfolados.” (PICHONELLI, 2019)

Os Ki mostram precária solidariedade de classe: o pequeno clã familiar, sempre unido na luta pela sobrevivência, vai buscar outro emprego depois do trampo com a pizzaria ter gorado. Para os Ki, não importa quantos de seus semelhantes de classe eles tenham que prejudicar, o importante é ir busca de ascensão social, para longe daquele porão muquifento que fede a mijo e está sempre sob ameaça de inundação.

É o jovem Min, amigo da família, que mudará essa cena, primeiro concedendo como presente uma pedra com supostas qualidades mágicas, um amuleto da prosperidade, que presenteia a Ki-Woo, o filho da família Ki. Além disso, Min pede a seu amigo Ki-Woo para substituí-lo como tutor de inglês de uma adolescente rica, Park-Da-Hye.

Ki-Woo falhara quatro vezes nos exames de admissão à universidade e parecia estar longe de tornar-se um rival de Min no coração de Da-Hye. Porém, com documentos falsificados pela sua irmã Ki-Jung, Ki-Woo ingressa por indicação no mundo dourado da família Park, onde nada lembra bêbados, wifi roubado ou pilhas de caixas imprestáveis. Os patrões são um pote de ouro; além de ricos, são tolos.

Como destacou Pichonelli: “a chegada na mansão é a alegoria perfeita da ascensão social em uma Coreia tão dividida quanto hiperconectada —para estar ali, ele sobe todo tipo de escada.” A genialidade de Bong Joo-Ho, nesta obra, está conectada à sua capacidade de dar concretude à problemática da luta de classes. Esta sai das abstrações do pensamento econômico-político para se encarnar no concreto dos corpos – corpos que fedem e corpos perfumados, corpos que moram em mansões acessíveis só depois de muito subir escadas ou corpos que moram em subterrâneos onde sempre invade a água enlameada das enchentes ferozes.

Como escreveu Bernardo Parreiras no Recanto das Letras:

“Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos. (…) Acerca da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa, descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao chegarem ao porão este está alagado. Ainda sobre a altura, chama atenção a localização de um objeto específico na casa dos pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles, talvez para o esgoto.” (Fonte)

Em artigo para a Folha De São Paulo, que dedicou a capa da Ilustríssima ao filme, Guilherme Wisnik explorou este tema tão interessante da “arquitetura da opressão”, como eu a chamaria, mostrando as escadas no filme como um emblema da exclusão social. “O conflito de classes se espacializa na oposição entre a família rica, que reside em uma espaçosa e ensolarada casa na parte alta de Seul, e a família pobre, que habita o úmido e malcheiroso porão semienterrado de um edifício nos baixios alagáveis da mesma cidade” (WISNIK, G.)

O filme Parasita, afinal de contas, é uma obra pouquíssimo “imaginária” em contraste com Okja ou Snowpiecer, é quase Bong sendo hiper-realista, pois inspira-se nas vidas reais dos habitantes de porões em Seul (como revelou a reportagem da BBC). O jornal paulista aponta ainda que há mais similaridades entre a Seul de Parasita e Sampa em 2020 do que sonha a vã filosofia dos que passam pano pras núpcias sinistras e sanguinolentas entre neoliberalismo e neofascismo. “São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita'”, escreveu Naief Haddad em seu artigo para a mesma Ilustríssima.

A família Ki, em seu processo de tentar a ascensão social pela via dos trambiques, tornam-se uma espécie de precariado fissurado em fake: para subir na vida, é preciso atuar, fingir, vestir máscaras, a fim de enganar a classe que detêm os meios de produção e a capacidade de pagar salários. Assim, a família Ki parte pra cima do patronato, querendo ascensão social a qualquer preço, enquanto os de cima seguem desejando que os de baixo se mantenham servis, obedientes, quietos como ratos dopados em seus porões apertados, satisfeitos com migalhas.

Mostrando experiência digna de artistas do estelionato, em pouco tempo, todos da família Ki se empregam na casa da rica família Park. Ki-Jung torna-se a arte-terapeuta do excêntrico menino dos Park; o pai, motorista da família; e a mãe, governanta da casa. Sem dar pinta de se conhecerem, só têm em comum o cheiro do seu porão, detectado pelo menino Park. Como poderia ter dito Shakespeare, “há algo de podre no reino da Coreia do Sul”.

A riqueza disfarça todo e qualquer mal cheiro, mas a feia vida dos pobres sempre estará à vista. Costuma-se dizer que “a burguesia fede” mas tem grana para comprar perfume. No caso das famílias espelhadas de Parasita, o fedor da luta de classe salta aos olhos. Nesse caso, a cisão de uma sociedade rachada entre privilegiados e desvalidos é facilmente farejável pelo olfato.

OS FÉTIDOS PARASITISMOS DAS RELAÇÕES SOCIAIS CAPITALISTAS

Como escreve Parreiras, Parasita traz desde seu nome a noção de uma analogia entre os seres humanos na sociedade cindida pela luta de classes e fenômenos do domínio da animalidade mais visceral e mais fétida:

“A ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais (insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a diferença entre os ‘bichos’ de diferentes classes. Não é nada comum que pessoas – ainda mais habitantes de cidades grandes – usem o olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não conseguem disfarçar o ‘fedor’ inerente à sua condição precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados, e o ‘fedor’ do motorista (pai ‘fracassado’) ultrapassa os limites tão caros ao pai bem-sucedido.” (PARREIRAS, op cit)

A família do privilégio, da riqueza ostensiva, da mansão, os winners da sociedade cindida são os Park. Com dinheiro de sobra, e tanto poder que é difícil resistir à tentação do abuso, os Park não se preocupam com o precariado. Demitem quando não gostam do trabalhador, e não se preocupam em nada, depois, com os trabalhadores demitidos. Na sua simplicidade, o ato de demitir não se apresenta como a trágica diferença entre vida e morte dos trabalhadores. Suspeitamos que os Ki tramam ação mais diabólica contra os patrões. Mas suas intenções se reduzem a manter seus novos empregos, em um tempo no qual uma vaga para vigia atrai não menos que 500 candidatos, entre os quais enfileiram-se até universitários.

É nesse humilde universo mental que nos permitirmos rir do patrão, que, muito preocupado com o estado de seus trajes após a demissão da governanta, recebe um cartãozinho do pai-motorista Woo, elogiando certa empresa prestadora de serviços domésticos. Mas, do outro lado da linha, espera Ki-Jung, fazendo-se de consultora sênior que exige suposta comprovação de renda dos contratantes Park, quando, de fato, apenas medeia a admissão da própria mãe.

Os Park confiam nas indicações dos seus empregados, mas engolem com apetite o simulacro de um serviço doméstico exclusivo, ou de credenciais falsas de uma Universidade americana. De pronto torceriam o nariz para esses pobres ratos humanos dos Ki – caso desde o princípio os patrões não tivessem sido conquistados pela encenação. Afinal de contas, o precariado pode até feder, mas de vez em quando descola um troco para comprar um perfume e sentir-se, junto com os ricos, como se estivesse entre os seus – mas logo re-explode a guerra, contradição social pulsando no âmago da cidade cindida. A mímesis que o oprimido opera em relação ao ethos do opressor é o que Parreiras destaca como tema importante do filme:

“Neste processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização, que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação, havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da trupe teatral.” (PARREIRAS, op cit)

 


LUDIBRIANDO OS RICOS

Como no Brasil, essa modernidade parece epidérmica: os filhos continuam a trabalhar praticamente de graça para os patrões dos pais, enquanto milionários julgam abraçar a meritocracia moderna. O clima é de uma descontraída gincana televisiva, pouco mais que um reality show, e nós, espectadores, temos de admitir: ludibriar tem o seu lado divertido, ainda mais quando os alvos são os ricos. Vencer é bom, ainda mais quando o fazemos por equipes. Abrir nosso próprio caminho é válido, ainda mais quando somos astutos.

A desigualdade das condições dos concorrentes, ou a humilhação dos humilhados ficam fora de cena, como o lixo que produzimos e cujos efeitos sócio ambientais não enxergamos – para lembrar as poderosas meditações de Zygmunt Bauman sobre a indissociável relação entre os planos e os resíduos que eles produzem [ver Vidas Desperdiçadas]. Nós brindamos ao prazer dos sofridos vencedores, que desfrutam da sala de estar dos seus duplos milionários com uma alegria desconhecida em seu medonho porão.

“Os refugiados, os deslocados, as pessoas em busca de asilo, os migrantes, os sans papiers constituem o refugo da globalização. Mas não, em nossos tempos, o único lixo produzido em escala crescente. Há também o lixo tradicional da indústria, que acompanhou desde o início a produção moderna. Sua remoção apresenta problemas não menos formidáveis que a do refugo humano, e de fato ainda mais aterrorizantes – e pelas mesmíssimas razões: o progresso econômico que se espalha pelos mais remotos recantos do nosso planeta “abarrotado”, esmagando em seu caminho todas as formas de vida remanescentes que se apresentem como alternativas à sociedade de consumo. (BAUMAN, 2005, p.76, via Colunas Tortas.)

Esvaziando as garrafas dos Park, eles fazem planos e desfrutam de uma vista esplêndida do gramado através dos janelões de vidro, nessa ex-casa projetada por um famoso arquiteto, onde a luz se infiltra com o desembaraço da mais íntima das amigas, dessas que chegam e se espalham sem precisar de licença nem convite. De olhos abertos, eles se autoenganam. O conforto, a beleza, a segurança daquela mansão os fazem esquecer o seu enorme currículo de subempregos, e a incerteza guardada no porão do seu subúrbio. Edward Thompson, o grande marxista britânico, veria nos Ki exemplares de uma classe trabalhadora que não se apropriou de qualquer consciência de classe (THOMPSON, 1981).

A experiência social da família protagonista de Parasita se faz à margem da consciência política. Sua sobrevivência depende de um sincrético arsenal de estratégias que mistura savoir faire e estelionato, futilidade e saber verdadeiro; a arte de forjar documentos e a de dirigir uma Mercedes.

Julgando pela superfície da convivência doméstica – que se traduz em uma intimidade ilusória para a família Ki – eles consideram que as pessoas ricas seriam ingênuas, inexperientes. Se pensar é resolver problemas, pensará mais e melhor quem os tiver em quantidade – e, neste sentido, poderia afirmar Thompson, como os marinheiros sabem das correntes marítimas, o sapateiro das diferenças do couro, os Ki, que são trabalhadores de uma economia de serviços domésticos, sabem do universo psicossocial da classe que os avalia. O que é tão ou mais importante do que dominar os saberes de suas atividades laborais. Afinal, arte-terapia, área que Ki-Jung apenas finge praticar, pode ser rapidamente aprendida em tutoriais de Internet ao se recorrer ao inestimável auxílio do Google.

Os problemas dos Ki aparecem-lhes como pessoais e não coletivos, como problemas deles como indivíduos e não da classe social a que pertencem. Uma das armadilhas do trabalho doméstico é ser atravessado por uma personalização: importa que a patroa queira os lençóis dobrados à direita ou à esquerda, ou que o patrão aprecie duas ao invés de três colheradas de açúcar em seu café. Neste trabalho, sempre servimos a alguém. Em tom quase culpado, admite o pai que nos patrões “tudo é passado a ferro, sem vincos”.

Conhecendo os vincos e lisuras das calças e das almas dos patrões, parece mais fácil ao trabalhador doméstico se iludir sobre a desumanidade que o mantém como as mãos e pés de uma classe que os torna uma extensão corporal de si mesma. Trata-se de uma opressão menos evidente, e mais complexa, que a dos operários na frieza e monotonia da fábrica; opressão na qual alguns podem ser punidos por dobrar os lençóis à direita e não à esquerda, enquanto as maldades da classe patronal fogem ao nosso texto, por sua extensão e gravidade. A estreiteza de seu saber político fazem os Ki acumular uma amoral experiência social.

O pensar dos Ki frequentemente se reduz a estratégias de sobrevivência a curto prazo. São produtos da reforma do espírito concebida por Thatcher, segundo quem “a sociedade não existe, apenas homens e mulheres individuais” – e, acrescentou depois, suas famílias. Todas as formas de solidariedade social tinham de ser dissolvidas em favor do individualismo” (Harvey, 2014, p. 32).

Os Ki não enxergam horizonte para além de sua existência como família, fora da qual os seus iguais em matéria de classe se apresentam na posição abstrata de competidores a vencer. Mas, a despeito de si mesmos, são percebidos pelos patrões em sua condição social pelo fedor que exalam, o mesmo das multidões no metrô. Que as consequências das faltas éticas dos Ki se mostrem no retorno dramático da velha governanta e seu marido, um pobre-diabo confinado a um porão, o espectador não imaginaria. É então que nossos protagonistas absolvem-se de sua duvidosa conduta moral, pois vemos como não são os únicos a enganar a classe proprietária em prol de uma sobrevivência mínima, mais que aviltada.

No mundo do darwinismo social, as únicas ações passíveis de criminalização são os que delas precisam – os pobres – pois os ricos serão sempre absolvidos, antes mesmo de serem acusados, motivo pelo qual muitos identificam, na reforma do espírito pelo neoliberalismo, o advento de uma razão irremediavelmente cínica.

A governanta e seu marido se apresentam como o espelho negativo dos Ki, ou seja, a imagem do precariado assolado pelo desemprego e pelas dívidas. Sua aparição coloca em risco a teia de mentiras na qual se enredaram.

Pichonelli destaca:

“Em uma cena antológica, uma das personagens ameaça divulgar uma foto comprometedora da família num app de mensagem instantânea. Ela então se autonomeia Kim Jong-il, o ditador da vizinha Coreia do Norte que poderia acabar com a paz apertando um botão vermelho, porque a possibilidade de detonar reputações lhe dá poderes “explosivos”. As vítimas do flagrante ficam com as mãos para cima diante do celular apontado contra elas e prestes a efetuar o “disparo” a qualquer momento. Todos temem o compartilhamento da “verdade”. O que une os lados no país do celular mais vendido do planeta são os aplicativos de comunicação e troca de conhecimento. É ali que se estabelece uma conexão entre as classes, que mal convivem fora de suas bolhas.” (PICHONELLI, op cit)

Parreiras destaca ainda:

“Outro ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da história que revela medo e covardia que levaram à construção do esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha. A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática, diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.”

Contudo, supomos que pouca ou nenhuma consequência desses “malfeitos” faria diferença aos patrões, não fosse por um fato mais imprevisível e genuíno, a revolta espontânea do pai Ki contra o patrão Park. É um sinal concreto de ódio de classe a emergir no filme logo após trágicos fatos, dos quais destacamos um: a rejeição de Park à familiaridade de uma indagação de seu motorista. O patrão rejeita a reciprocidade de tratar com seu motorista como se essa conversa fosse entre seres singulares, pais de família, e não do patrão que contrata o empregado como força de trabalho a ser paga com horas extras.

O absurdo fantasiar dos oprimidos em viver como os opressores se mostra em uma das mais marcantes cenas do filme, aquela na qual Ki-Jung, impotente demais até para sair do lugar, senta-se na privada e acende um cigarro em meio ao esgoto que brota da banheiro inundado. Sua família é personagem do roteiro ideal do precariado, o de estar todo empregado, mas em uma Coreia neoliberal, após o enfraquecimento dos sindicatos, onde não há sequer garantias de sobrevivência – que dirá de conforto! – a quem trabalha.

Mesmo à base de pleno emprego e horas extras, os Ki não conseguem se garantir e estão condenados à insatisfação laboral, aquilo que ajuda a construir também aquela fúria plebeia que às vezes explode nas ruas em insurreições pontuais e sem horizonte (há muito o que dizer sobre as Jornadas de Junho de 2013 e este precariado despolitizado que visa expressar sua fúria diante do fedor da sociedade capitalista cindida em classes antagônicas).

Seja qual for a tragédia do dia anterior, na manhã seguinte os pobres precisarão pôr um sorriso no rosto e trabalhar pesado para satisfazer aos caprichos dos que moram nos salões iluminados, abafando até mesmo os gemidos de esforço que possam ferir os sensíveis ouvidos dos ricos, para não falar do ofensivo fedor de seus porões. Para a emergência da consciência de classe para os Ki faltou algo mais: o gesto amoroso de solidarizar-se com seus semelhantes mais próximos. De esboçar com eles uma convivência. Esta tende a ser dolorosa por fundar-se não apenas nas imagens de um jardim ensolarado, mas também na teia comum de ofensas e tragédias que, de tempos em tempos, explodem como a base real de uma sociedade fétida, deixando de viver nos porões do esquecimento.

Parasita faz a crônica do espírito deformado pelo neoliberalismo em uma sociedade fétida de que somos contemporâneos – e talvez cúmplices. Aqui, vemos em atividade o que Fritz Perls poderia chamar de um “modo de existir preocupado”, no qual a vigilância é indispensável.

Já os Park precisam de um mundo estendido, multiplicado pelas mãos dos seus muitos prestadores de serviços. O mundo artificial – e monótono – dos Park se apresenta no persistente role play do filho, que, fazendo-se de índio de faroeste, cisma de dormir na barraca montada no gramado, sob a condescendente vigília parental, quando já se acabara o curto período de sonho dos seus duplos.

Diversamente de Dorian Gray, jamais foram obrigados a se olharem no espelho de sua própria classe. Rodeados de segurança; com tempo sobrando para dedicar às ocupações mais tolas, na certeza de que os empregados são coisas, os Park são dessa gente rica que não desconfia de muita coisa, muito menos de que é a opressão encarnada, apesar de suas máscaras de civilidade.


COMO O VÍRUS NEOLIBERAL PARASITA NOSSOS CORPOS E MENTES

A ideologia neoliberal, internalizada pelos sujeitos que a ela aderem sem crítica, acaba se tornando-se uma força psíquica que recalca a consciência de classe e a possibilidade de solidariedade. Reprimindo a jornada do sujeito rumo a ir-além-de-si-mesmo, transcendendo-se na coletividade de que participa, a ideologia individualista e competitivista do neoliberalismo condena à desunião. Se “não há sociedade”, só indivíduos e famílias, como papagueava a papisa neoliberalista Margaret Tatcher, então está tudo “liberado” para o egoísmo reinar sem freios.

Recuperam-se assim as lições de Adam Smith, desenterrando uma lendária Mão Invisível que, na obra de Smith, está tão bem escondidinha que quase não dá o ar de sua graça, Através deste truque circense da providencial Mão-Que-Não-Se-Vê, pode-se pregar a todos: sejam indivíduos liberados para agir com total egoísmo, norteados pelas ambições individuais, pelas cobiças de consumo, pela ânsia de riqueza de que outros estarão privado, pois o novo Deus Todo-Poderoso – a Mão Invisível do Mercado! – irá providenciar a prosperidade geral em uma sociedade em que cada um corre atrás de alimentar o próprio umbigo.

A família nuclear, no caso de Parasita, reduz-se a uma espécie de egoísmo ampliado, de narcisismo compartilhado, servindo como a bolha-das-bolhas. É claro que, socialmente, os membros das famílias integram outras bolhas sociais além da familiar – seja o de colegas de trabalho (a bolha laboral), seja o de outros estudantes com quem compartilhem espaços de ensino (a bolha educacional), seja a das conexões que possuem pelas mídias digitais (a bolha cibernética).

Porém, no panorama que parte do indivíduo e abarca bolhas concêntricas cada vez mais amplas, a família representa a bolha mais estreita e a mais confinante. A ideologia neoliberal, desnudada no dito de Margaret Tatcher, triunfante na prosa pregatória de Ayn Rand, presente em Milton Friedmann e na ditadura Pinochetista-Yankee que ele colaborou em produzir, quer que indivíduo e família reinem supremos, como valores hierárquicos superiores: indivíduo e família são a via para uma vida digna do humano temente à Deus, são o caminho do Bem, aquilo no quê devemos investir. Assim entram em eclipse e corroem sua vitalidade outras formas de pertença social, outras maneiras de fazer parte de outros todos que podemos integrar (não só o partido, o sindicato, o movimento social, a ONG, mas também a banda, a trupe, o projeto transformador coletivo).

Isto dá o que pensar sobre as transformações históricas que culminaram com o advento do capitalismo. O filósofo australiano e fundador da School of Life, Roman Krznaric, propõe um experimento mental muito interessante que culmina com reflexões de Karl Marx sobre o vampirismo do capital. Imagine que você tivesse nascido na Europa medieval; vivendo naquela época, você descobriria que

“a vasta maioria da população era constituída por servos, presos a propriedades rurais e aos caprichos de seus senhores, num sistema feudal de servidão. A Revolução Industrial e a urbanização nos séculos XVIII e XIX proporcionaram uma libertação ambígua da ordem social quase estática do feudalismo. Sim, você fora emancipado da servidão e dos grilhões das guildas, mas agora era um hóspede da ordem burguesa, um ‘vampiro que suga sangue e miolos e os atira no caldeirão de alquimista do capital’, como expressou Karl Marx de maneira tão delicada.” (KRZNARIC, 2013, p. 95)

Ao falar do vampirismo do capitalismo, Marx obviamente se referia aos detentores do capital, mancomunados entre si com o cimento do interesse de classe, que como sanguessugas se apropriam dos frutos do trabalho alheio.

De Marx pra cá, a lógica do sistema capitalista alterou-se num sentido do exacerbamento da taxa de exploração  e do incremento dos efeitos catastróficos do capitalismo no que diz respeito às condições ambientais e laborais. O instituto Tricontinental, por exemplo, calculou a taxa de exploração do Iphone da Apple, emblema deste processo. A ascensão de governos que fundem o neoliberalismo econômico com a repressividade neofascista, como Bolsonaristas no Brasil, revelam o pânico das elites diante das consequências de seu próprio vampirismo parasitário, que gera um incremento tanto das desigualdades e injustiças sociais quanto da degradação ecológica-ambiental.

Isto se deve fundamentalmente às falhas estruturais deste sistema que produz sem cessar o monstro do parasitismo – como melhor exemplificar isto do que falar dos parasitas do mercado financeiro, que nada produzem de efetivo e só ficam impondo opressões enquanto brincam em suas Disneilândia do Cassino-Capitalismo?

Com os capitais que acumularam através do roubo instituído conhecido por extração da mais-valia, os grandes capitalistas globais que hoje investem em ações na Bolsa são o supra-sumo do parasita; assim como a classe rentista, que trabalha sentando na própria bunda e só recebendo a grana dos aluguéis pagos por aqueles desprovidos de propriedade imobiliária.

Os proprietários são os parasitas sociais supremos. O problema – que Parasita de Bong explicita – é que a deformação psíquica disseminada pela hegemonia neoliberal transforma a ânsia de ser proprietário, o desejo de ser rico, o sonho de tornar-se capitalista, em uma espécie de clichê, de fôrma padronizada para a produção em massa de subjetividades individualistas, “familistas” e narcisistas até a doença. Soma-se a isso o colapso de uma educação que formasse a consciência de classe dos estudantes em prol do engajamento em movimentos coletivos de transformação social.

Vivemos em uma era de ascensão do precariado enquanto classe, mas os precários ainda estão bem pouco conscientes de sua força coletiva – apesar de uma ou outra greve que estoura contra a Uberização trabalhista, os McEmpregos e a epidemia dos empregos de merda (fenômenos dos quais o antropólogo anarquista David Graeber é um excelente comentarista).

O mercado de trabalho organizado pelo capitalismo neo-liberal contêm todas os males de origem de uma estrutura carcomida por uma fétida injustiça que se produz e reproduz sem cessar. Pelo menos até que uma classe diga “basta!” e resolva, na encruzilhada histórica que oferece as opções “Socialismo ou Barbárie!”, dar um virada revolucionária para outra realidade possível que não a continuação indefinida da horrenda barbárie capitalista.

A barbárie do vampirismo capitalista só se agrava com a injustiça das barreiras que interpõem-se à ascensão social de mulheres, dos corpos marcados como racialmente inferiores, das pessoas estigmatizadas como criminosos sexuais-afetivos, dos povos colonizados pelo imperialismo escravocrata e seus descendentes etc.

Os “párias do mundo”, os que não são ninguém, a legião dos nadie, a horda imensa dos Nowhere Men de Lennon e McCartney, expõem a olhos vistos que o capitalismo gera exclusão. Para ele, riqueza é privilégio e não bem a ser compartilhado com todos. E assim seguimos em uma realidade onde ser mulher, afrodescendente, homossexual ou imigrante te faz automaticamente ser um pária do sistema, contra quem os parasitas que se apossaram de muito capital levantam as barricadas feitas com suas tropas de choque, com seu gás lacrimogêneo, suas bombas de (d)efeito moral, suas tropas fardadas, suas penitenciárias lotadas, seus atômicos arsenais de weapons of mass destruction.

A coexistência de bilionários e miseráveis é a obscena realidade que se manifesta explicitamente onde quer que o capitalismo neoliberal tente estabelecer seu chocante reinado:

“A pobreza assegura a existência permanente de uma classe mais baixa, cujas escolhas de trabalho estão limitadas a enfadonhos McEmpregos no setor de serviços. (…) O problema foi exacerbado pela erosão do ‘emprego vitalício’, ao longo das últimas três décadas (1990s, 2000s, 2010s), em decorrência do enxugamento das empresas, dos contratos por curto prazo e dos empregos temporários, a pretexto da ‘flexibilização’ do mercado. (…) Levantamentos realizados pela Work Foundation e outros institutos mostram repetidamente que 2/3 dos trabalhadores da Europa hoje estão insatisfeitos com seus empregos e sentem que suas carreiras atuais não correspondem às suas aspirações.” (KRZNARIC, op cit, p. 97-98)

Se Parasita tornou-se um filme emblemático de nossa época, isso se deve ao fato de que Bong Joon-Ho e sua equipe retrataram, na Coréia do Sul, algo que vem ocorrendo globalmente: a corrosão dos empregos vitalícios, a ascensão do precariado, a crescente dominação da ideologia meritocrática, as formas atuais de fusão entre neoliberalismo e neofascismo (representada na América pelos governos de Trump e Bolsonaro).

Sintomático disso é o fato de que, poucos dias antes de Parasita ser consagrado como o grande filme de 2019 na cerimônia da Academia de Cinema em Los Angeles, o Ministro da Economia de Bolsonaro, um fã de Pinochet e dos Chicago Boys, Mr. Paulo Guedes, comparou os funcionários públicos do país a parasitas. Tudo parte de um projeto de privataria generalizada em que o Mercado pretende abocanhar tudo o que antes era gerido pelo Estado.

Banqueiros e rentistas são os verdadeiros parasitas sociais, os maiores sanguessugas do trabalho alheio, que só coçam o saco e contam seus dólares enquanto “o resto” labuta. Guedes, que fez carreira como banqueiro, irmãozinho duma senhora que está entre as privatistas-mor da Educação Pública, é a própria encarnação do parasita da elite predatória. Guedes, xingando os outros de parasitas, é o cúmulo do processo psíquico de projeção, no outro, daquilo que se é. Ele vê um parasita no espelho todos os dias.

Em meio à enxurrada de frases grotescas de políticos desqualificados que proferem horrores em jato contínuo, as fala de Guedes em Davos conseguem sobressair pelo seu absurdo ofensivo e por sua estupidez explícita. É sério que a gente não acordará deste pesadelo, desta surrealidade onírica de ter um Ministro da Economia do desgoverno neofascista soltando coices (me recuso a chamar isto de “argumento”) e xingando todos os servidores públicos de “parasitas”? Dá vontade de mandar Mr. Guedes tomar… uma dose daquele blues, “Before You Accuse Me, Take a Look At Yourself”.

Nós, que trabalhamos como servidores públicos federais da educação, sabemos bem que aquilo que predomina é o trabalho duro, muitas vezes sub-remunerado, na nossa lida cotidiana. Porém, no delírio psicopata dos bozolóides, estamos praticando o parasitismo enquanto eles cuidam do progresso de uma nação-de-Deus onde prosperam os cidadãos-de-bem, devidamente armados com revólveres, bíblias e camisetas “Ustra Vive”.

Seu Jair, que parasitou o Estado por mais de 30 anos sendo um parlamentar pior que inútil (pois nefasto), ao se alçar à presidência em uma eleição fraudada e ilegítima conseguiu se cercar de um séquito de abortos humanitários que estão levando sempre suas declarações a graus ainda mais vis de baixeza. Esta diarréia de que os servidores públicos são todos uns parasitas merece destaque no show de horrores a que já estamos nos acostumando (ainda que não devêssemos nunca nos acostumar a tais níveis de ofensa à nossa dignidade).

O pior de tudo é que não se trata só de falação: os capetões vem aí com a política de Jack o Estripador, inspirados no Pinochetismo e nos Chicaco Boys, pra terminar de estripar as condições dignas de trabalho para servidores públicos – eles nos querem todos precários. E patriotários. A elite parasita sabe que a guerra de classes não acabou – e, como confessou um bilionário, Warren Buffet, “os ricos estão ganhando”. Porém, os dados ainda estão rolando e a única certeza que a vida nos concede, além da morte que é seu horizonte constitutivo, é a de que o tempo está sempre fluindo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, ZygmuntVidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GRAEBER, DavidA sociedade dos empregos de merda. Site Outras Palavras.

HADDAD, Naief. São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita‘. Site da Folha de S. Paulo, 2020.

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

KRZNARIC, Roman. Sobre a Arte de Viver – Lições da história para uma vida melhor. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

PARREIRAS, BernardoAfinal, quem são os parasitas?Site Recanto das Letras.

PICHONELLI, Mateus. Conectados e alienados: ‘Parasita’ brilha com luta de classe high-tech. Site do UOL.

THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria – Ou um Planetário de Erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

TRICONTINENTAL. O Iphone e a taxa de exploração. Site do Instituto Tricontinental.

WISNIK, Guilherme. Conflito de ‘Parasita’ se revela em casas de ricos e pobres. Folha de S. Paulo, 2020.

 

OUTRAS TRAVESSIAS SUGERIDAS

O Globo -“‘Parasita’ sintetiza décadas de investimentos públicos no mercado audiovisual, que desde os anos 1990 passou a ser visto pela Coreia do Sul como um setor estratégico para o desenvolvimento do país e a conquista de novos mercados, responsável por fenômenos como o K-Pop.”

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FARDOS E PRÊMIOS DA SOLIDARIEDADE INTERNACIONALISTA: Cuba acolhe os doentes de Chernobil no filme “O Tradutor” (2018)

OS FARDOS E PRÊMIOS DA SOLIDARIEDADE INTERNACIONALISTA

por Eduardo Carli de Moraes – #CinephiliaCompulsiva @ A Casa de Vidro

O desastre na usina nuclear de Chernobil, no norte da Ucrânia (então pertencente à URSS), no ano de 1986, foi tema d’uma mini-série lançada em 2019 pela HBO e d’um livro da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Alexiévich.

Cerca de 25.000 pessoas, que tiveram graves impactos na saúde ao serem expostas à radiação, foram acolhidas em Cuba para tratamentos médicos gratuitos através de um programa de parceria, criado por Fidel Castro, que se estendeu até o ano de 2011 (reportagens sobre o tema podem ser acessadas em UOL, O Globo, Revista Fórum, Granma etc).

O Ministério da Saúde de Cuba estima que 21.378 crianças, atingidos pela hecatombe nuclear, que receberam cuidados médicos e amparo psicológico na Ilha – que se notabilizou, sobretudo após a revolução comunista de 1959, pela construção de um dos melhores sistemas públicos de saúde do planeta.

Médica cubana posa com uma das chamadas “crianças de Chernobil”, em foto dos Anos 90. Fonte: Revista Fórum.

Em circunstâncias históricas de crise humanitária, Havana acolheu como pôde os doentes de Chernobil, mostrando na prática o que significa o conceito, que muitos permitem que seja apenas teórico (ou nem isso…), de solidariedade internacionalista: “(Este programa) é um exemplo do que pode fazer um povo que, sem ter grandes riquezas materiais, tem a grande riqueza espiritual de haver-se educado na solidariedade”, disse o ministro de Saúde cubano, José Ramón Balaguer, durante cerimônia do projeto em Tarara, a 20 quilômetros de Havana. [O GLOBO]

Ator Rodrigo Santoro e os irmãos que dirigem este filme baseado na trajetória dos próprios pais.

No filme “O Tradutor” (2018), co-produção Cuba-Canadá, realizado pelos irmãos Rodrigo e Sebastián Barriuso, os cineastas contam a história dos próprios pais, Malin e Isona, no fim dos anos 1980. Malin – interpretado por Rodrigo Santoro (Bicho de Sete Cabeças) – é um professor de literatura russa de uma universidade de Havana que assume a responsabilidade de ser tradutor na ala infantil de um hospital que atende crianças adoentadas devido à hecatombe ucraniana. Já sua esposa Isona – interpretada por Yoandra Suárez – é uma curadora de arte, merchant de pinturas, que está grávida do segundo filho do casal. As duas crianças da família – a já nascida e aquela ainda em gestação – crescerão para se tornarem os diretores do filme que o espectador assiste.

O casal, durante o filme, tem vários problemas de incompreensão mútua e de conflitos conjugais que parecem devidos à dificuldade que cada qual tem de traduzir para o companheiro os sentimentos vivenciados em seu respectivo trabalho. Malin está imerso num ofício que, além de novo para ele (como avançar em um território inexplorado e sem mapas prévios), é tremendamente angustiante, doloroso, saturado com a angústia dos pais à beira da cama de seus filhos doentes, alguns agonizantes.

Ao servir de intermediário entre médicos e enfermeiras cubanas, de um lado, e as vítimas ucranianas e russas que batalham contra o câncer e a leucemia, de outro, ele é incapaz de simplesmente fazer o seu serviço como um “técnico” da linguagem. É-lhe impossível a frieza maquínica do Google Tradutor.

O envolvimento afetivo é incontornável, e logo Malin está dominado pela empatia. Acaba servindo também como contista que traduz contos populares cubanos na linguagem das crianças estrangeiras, sendo uma espécie de agente de intercâmbio intercultural. Acaba investindo também numa espécie de arte-terapia, em que incentiva a expressão mirim através de desenhos e poemas. Sem nenhum conhecimento sobre os trabalhos pioneiros de figuras como Nise da Silveira, aplica, a seu modo, a noção de uma terapia pela arte que ajude aquelas crianças a atravessem o inferno na terra que lhes foi dado viver sem que o tenham escolhido.


De tom melancólico, fugindo do melodrama exagerado, o filme foca suas atenções na dureza da lida cotidiana deste tradutor que subitamente se vê lançado a situações que antes não imaginava: ele estava acostumado à cátedra universitária, às suas aulas sobre autores como Gógol e Tolstói, e de súbito uma crise humanitária em outra parte do globo o faz envolver-se com os destinos sofridos dos atingidos pelo desastre nuclear.

Na medida do seu possível, ele fornece sua ajuda amiga – enquanto médicos e enfermeiras administram morfinas, realizam cirurgias ou drenam pulmões, ele também realiza o trabalho importante da comunicação e da construção do sentido. Envolver aquelas crianças num ambiente onde a narratividade e a expressividade são incentivadas é um modo que ele encontra para tentar evitar que todos naufraguem no horrendo abismo do sem-sentido, do absurdo, do “em vão”.

A situação matrimonial de Malin e Isona não é muito harmônica ou satisfatória no decorrer do filme, e isto talvez por um abismo que há entre eles: Malin, que em seu trabalho exercita seus dons de tradutor, indo do russo ao castelhano e vice-versa, parece pouco capaz de traduzir para a esposa as vivências e os afetos que tem vivenciado no hospital, inclusive o luto pelas crianças com quem conviveu e que não sobreviveram.

É só mais para o fim do filme, quando a esposa Isona vai ao hospital e encontra um mural repleto de desenhos da criançada, que ela de fato percebe a densidade das vivências que Malin, no cotidiano doméstico, tratava como incomunicáveis. Há algo mesmo de inefável no sofrimento humano excessivo, sobretudo quando atinge crianças e quando nos dá a clara sensação de ser um sofrimento imerecido.

As crianças da nação euroasiática danificadas pela catástrofe nuclear desfrutam da praia de Tarará como parte de sua reabilitação. Foto: Pedro Beruvides. Fonte: Granma.

Na crítica do Trem do Hype, destaca-se ainda que

“em pleno final dos anos 80, Cuba viveu uma profunda crise social e política. O governo do líder Mikhail Gorbatchev começou a entrar em colapso, com Gorbatchev defendendo o liberalismo econômico na URSS como a única solução para os graves problemas econômicos e sociais. Dessa maneira, as reformas inseridas (chamadas perestroika e glasnost) tiveram o objetivo de traçar caminhos para mudanças estruturais na economia, mas funcionavam como uma crítica aberta ao regime soviético. Logo, o declínio do comunismo provocou uma crise financeira que atingiu toda a população, alterando a vida e rotina das famílias. E dentro disso, o país ainda precisou lidar com as consequências do acidente nuclear de Chernobyl, uma das maiores catástrofes mundiais. Nesse contexto sócio-político que acompanhamos a trama de ‘O Tradutor’.”

De fato, estamos em uma Cuba afetada pela conjuntura internacional, onde há escassez de combustível – os postos fechados exibem cartazes que avisam “no hay gasolina”. Na TV chegam imagens do colapso do Muro de Berlim no início do processo de re-unificação da Alemanha. O ocaso da União Soviética afeta diretamente a realidade cubana, lançando nubladas nuvens de incerteza ao horizonte.

É neste contexto que “O Tradutor”, filme contido, triste, de “temperatura” afetiva tendendo para os tons frios, tem algo de belo e valioso a ensinar: para Malin, o seu trabalho cotidiano não é uma delícia, um deleite, uma festa, mas sim um ofício vivido como duro fardo, difícil de carregar, que pesa em seus ombros. Mas que também tem seus prêmios – colhidos não em ganhos financeiros, mas no que eu chamaria de sabedoria afetiva.

Apesar dos pesares de seu trampo, que é dureza braba e emocionalmente extenuante, Malin é guiado por uma espécie de farol ético que lhe indica seu deve-ser: em uma época marcada pela crise humanitária severa de Chernobil, em que a União Soviética vivia seus estertores e a revolução cubana via-se também ameaçada com a queda do bloco socialista a ela aliado, a solidariedade internacionalista ganha outro sentido. Outra premência. Outro senso de urgência.

Por isso eu diria que o filme fala sobre os fardos e os prêmios de uma solidariedade internacionalista que tem a ver com o compartilhamento de uma tragédia. Uma solidariedade difícil, pesada, que obriga à melancolia e à coragem. Seria muito mais fácil para Malin abandonar-se ao conforto comum do egoísmo; ele, no entanto, escolhe a rota mais difícil, que é a de oferecer os ombros para que outros depositem ali uma parte de seus fardos.

Em artigo sobre o filme, Lisandra Detulio, do site Vertentes do Cinema, enxergou similaridades com “Patch Adams – O Amor é Contagioso”, de Tom Shadyac, e afirmou que “Un Tradutor” é “um filme que busca nos humanizar pela delicadeza”.

De fato delicado e humanizador, o filme também tem importância pedagógica e educativa para os brasileiros. Assistir ao filme em 2020 inevitavelmente fez com que eu me lembrasse de toda a indelicadeza e desumanidade do “Seu Jair”, que em uma de suas primeiras medidas enquanto presidente do Brasil cometeu a atrocidade estúpida de expulsar os médicos cubanos que aqui desenvolviam seus trabalhos, levando cuidados médicos à população que habita em rincões que os médicos brasileiros, formados em uma cultura elitista e aristocrática, não aceitam trabalhar.

Por Vitor Teixeira

A delicadeza do filme, seu clima de empatia (mesmo que dolorida) e de solidariedade (ainda que pesada), contrasta de modo radical com a atrocidade perversa que constitui o cerne da doença coletiva do Bolsonarismo. De modo doentio e desumano, um sujeito infectado por Bolsonarismo é capaz de agir na cegueira sectária mais brutal, como fez o próprio “führer” da seita, a ponto de condenar milhares de brasileiros à ficarem desassistidos e abandonados, chutando a bunda dos profissionais cubanos que foram educados em uma cultura da solidariedade internacionalista (e que aqui a praticavam), como se não passassem de cães pulguentos.

O documentarista e ativista Michael Moore, em seu filme Sicko, já alertou sobre os horrores de um sistema econômico que privilegia as privatizações do que antes eram serviços públicos: nos EUA, a saúde não é direito, mas privilégio acessível por aqueles que puderem pagar por ela (apesar dos esforços de Obama, através do programa Obamacare, os States ainda possuem um sistema de saúde dominado por interesses corporativos e cego aos direitos humanos fundamentais). No Brasil, o estrupício que nos desgoverna desde 2018, com a rasidão de pensamento e a secura de coração que lhe é característica, dentre centenas de exemplos que já deu de sua execrável incapacidade para o discernimento ético e sua completa ausência de empatia, chegou a fazer pose com uma camiseta onde se lia que “direitos humanos são o esterco da vagabundagem”.

Um macho tóxico, racista e elitista, defensor de torturadores e milicianos, sendo sem pudores um escrotildo sorridente em um Tweet de seu filhão Carlos, um dos filhinhos-de-papai que enriqueceu pelas vias sórdidas do nepotismo.

No começo de 2020, o Coiso voltou a cagar pela boca e usar nosso ouvido como privada. Relincha de novo a besta quadrada: o presifake, acostumado a mentir, agora tenta justificar a expulsão dos médicos cubanos do Brasil a partir da lorota absurda de que “havia um montão de terrorista” entre eles. Não é só uma mentira, é uma estupidez. Ao invés de governar, o energúmeno distribui ofensas e coices contra profissionais da saúde que aqui estavam nos ajudando e exercendo a solidariedade internacionalista que é valor basilar da revolução cubana.

As lamentáveis desumanidades perversas de Bolsonaros e Bolsominions – que implicam também o colapso no financiamento do SUS e o aparelhamento do Ministério da Saúde por lobbystas favoráveis aos conglomerados corporativos como a Unimed (o Ministro Mandetta que o diga!) – precisam ser curadas também pela arte. E “O Tradutor” funciona sim, para aqueles que souberem se deixar emocionar e esclarecer por ele, como antídoto contra a queda-sem-fim-no-sadismo que define a seita dos bestificados patriotários que se prestam a serem os imprestáveis seguidores do pseudo-mito.


Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 05/01/2020

TRAILER:

PLAYING THE PAIN AWAY – Sobre a arte prodigiosa de Tash Sultana e sua prática da catarse musicoterápica

Fico impressionado, de queixo caído, com os múltiplos dons musicais da Tash Sultana. Esta multi-instrumentista australiana, nascida em 1995 lá em Melbourne, vem se destacando no cenário cultural global como uma “banda-duma-mina-só” que esbanja inovação e feeling através dum som viajado, complexo, irrotulável. Sobretudo inspirador.

Virtuose da sinergia, Tash revigora como poucas artistas atuais os domínios do Rock Alternativo e da “cultura neo-hippie”. No processo, semeia fascínio em relação aos poderes da juventude humana quando pode deixar florescer sua criatividade e curiosidade. Com seu controle ímpar de instrumentos múltiplos e pedais de loop, ela chegou pra provar que é possível o surgimento de novos “guitar heroes” que não sejam apenas os que repisam nas pegadas de Clapton, Hendrix, Jeff Beck ou Eddie Van Halen.

Esta guitar heroine despontou com a viralização de seu vídeo caseiro da música “Jungle”, há 3 anos atrás (hoje ele possui cerca de 30.000.000 de visualizações no YouTube – assista abaixo). Com uma câmera estática filmando seu processo de “maga” dos sons, ela mostrou ao mundo que o cenário do indie-rock da Austrália ia muito além do Tame Impala. A performance de Tash, adicionando camadas e mais camadas de sons ao seu caldo de bruxa, voodoo child da novíssima generation, estarreceu muita gente com uma espécie de orquestra rock de uma mulher só:

Natasha (vulgo Tash) empilha sons em camadas superpostas sem precisar para isto do recurso de estúdio do overdub. Ela é capaz de criar, ao vivo, as “paredes de som” Phil Spectorianas que muitos pensavam só serem produzíveis em um contexto de estúdio e overdubbing. Ela é mestra na produção de um fluxo sônico onde os primeiros sons que ela produz na canção entram em estado de loop (repetição cíclica), repetindo-se como um eco do passado que segue presente, e os próximos sons adicionam-se a estes sons tocados no passado que seguem ressoando por proeza da tecnologia digital.

Conforme a canção progride, o que temos é uma espécie de câmara de ecos que poderia chafurdar na confusão mais caótica se não houvesse, no controle do processo, uma “regente” genial de si mesma como esta moça é. A revista Rolling Stone publicou uma crítica onde demonstrou toda sua admiração por um disco de estréia descrito como “deeply impressive”, onde sobressai a “guitar wizardry” da moça que é uma faz-tudo (cantora, compositora, multi-instrumentista, produtora, e por aí vai):

This Melbourne-based busker-gone-legit raises the “do it yourself” stakes with her debut, which is a top-to-bottom showcase of her varied virtuosity; she’s the lone musician credited on the album, as well as its producer and songwriter. Given Sultana’s playing-for-tips roots, it’s probably appropriate that Flow State whirls through styles — “Cigarettes” starts as loose-limbed R&B then speeds things up to a near-frantic pace, “Salvation” recalls the marriage of big beats and gossamer voices that dominated indie discos in the late Nineties, and the simmering “Seven” showcases Sultana’s violin skills over plush synth-pop and agitated chase-scene scores. Sultana can play 20 instruments, but her guitar wizardry is the clear star here; the yearning solo on “Pink Moon” yawps and shudders, while the gathering-storm riffage of “Blackbird” stretches out over nearly ten minutes, all thrilling. After years of being a festival and YouTube sensation, Sultana’s thrown down the gauntlet forcefully. (ROLLING STONE)

Parece-me que este é um procedimento estético que, além de dialogar com aquilo que o Radiohead fez de mais vanguardístico em sua carreira (a exploração cada vez mais arrojada de patterns rítmicos e ambiências que rompessem todas as caixinhas fechadas dos dogmas e paradigmas), aproxima Tash da “lógica” dos mantras budistas. Além disso, faz com que ela dialogue com a filosofia do Eterno Retorno Nietzschiana, como se seu imperativo categórico enquanto musicista fosse: “toque cada nota e cante cada frase como se você quisesse que aqueles compassos se repetissem eternamente no futuro da canção”.

Mas ninguém precisa intelectualizar demais a sua “stésis” (ou seja, seu aprendizado a partir da experiência sensorial) pra apreciar esta música: ela é capaz de fazer algo de benigno com nosso cérebro se simplesmente nos abrirmos a ela, sem pensamentos inúteis servindo de barreira para o impacto de seus encantos. Seus dois primeiros álbuns, Notion (2016) e Flow State (2018) – que A Casa de Vidro disponibiliza para dowload gratuito – penetram por nossos sentidos como uma avalanche sensorial complexa e inebriante, uma espécie de hippie-prog-rock do século 21.


“Synergy”, canção que abre o EP de estréia de Tash Sultana, Notion 

A habilidade rítmica da moça faz com que ela seja mestra em nos conduzir ao transe místico. Como uma neo-hippie pilotando a tecnologia da atualidade com maestria poucas vezes vista, Tash Sultana abre novos horizontes para uma percepção mais fluida de mundo e para uma redescoberta da música como mística. Ouvir os álbuns é uma vivência que recomendo, mas antes de ir a eles seria interessante uma imersão nos vídeos, pois neles se explicitam melhor os procedimentos técnicos e performáticos que permitem que uma musicalidade de tamanha complexidade possa nascer, ao vivo, de uma única pessoa, extraordinariamente jovem, que toca todos os instrumentos que se ouvem em seus shows e discos – o que alguns ouvintes vão julgar inacreditável. Tash Sultana toca como se quisesse nos conduzir, pela via dos sons, a alguma espécie nova de iluminação búdica.

FAÇA O DOWNLOAD DA DISCOGRAFIA DE TASH SULTANA EM MP3 – Notion EP (2016) e Flow State LP (2018)

Pra se ter uma noção do que são Notion e Flow State, são necessárias repetidas imersões em seus complexos sons. As explorações de territórios novos no indie rock, como Velvet Underground, Talking Heads ou Pixies fizeram no passado, convivem na obra de Sultana com influências culturais orientais, vibes meio rasta, flertes com o dub e o trance, tudo impregnado de uma espiritualidade meio búdica. Uma neo-hippie no perfeito comando da tecnologia a seu dispor, ela é também capaz de explorações existenciais e mergulhos psicológicos que expressam sua subjetividade conturbada. Uma de minhas prediletas fala sobre tudo aquilo que nos oprime por dentro, nos confunde a subjetividade, nos esmaga invisivelmente – tudo que é “assassinato pra mente” (“murder to the mind”):



“I was only screaming out for help
It was murder to the mind
It was blood on my hands
Fire in my soul…”

“Murder to the Mind” é uma das músicas que mais impressionam em Flow State, um dos álbuns de estréia mais ambiciosos do século 21. O videoclipe é primoroso e revela ao espectador toda a densidade da experiência sensorial envolvida em Tash Sultana. Ela, em operação, é um corpo pulsando intensamente com a música, com seu organismo inteiro movimentado pelo estado-de-fluxo que a música propicia quando se é capaz de cometer, com ela e através dela, “abraço místico”, tema de outra das lindas canções do disco, “Mystic”, que evoca Van Morrison e sua música que nos conduz a “velejar into the mystic” em obras-primas da história da música como Moondance e Astral Weeks:


“There’s a natural mystic in the air…”

Na guitarra de Tash, repercutem os ritmos do dub, do ska, do reggae, do R&B, enfim: da diversidade abraçada, celebrada, praticada. Ela vai criando riffs onde também se manifestam toda a maestria Sultânica para a arte do loop. E acima de tudo isso, evidências de sobra de que ela sabe rockear: sua atitude nos palcos e na vida é de alguém que sabe também ser confrontacional. Outro de seus méritos enquanto musicista é que, não importa quão experimental seu som se torne, ela é sempre groovy em seu processo de ir experimentando… Não se trata apenas duma geek privilegiada que está com tempo livre de sobra pra aprender uns gimmicks com pedais-de-guitarra e softwares de sequenciamento de beats. Em Tash Sultana, estes instrumentos estão a serviço da maestria expressiva e interpretativa:


Estamos em uma era, na música, onde se agigantam de novo as teens fenomenais, dando uma nova versão da angústia adolescente através de uma Billie Eilish, mas igualmente através da imensa sabedoria que Tash Sultana já manifestava aos 21 anos de vida. Isso se evidencia na TED Talk em que ela, em clima confessional (similar àquela linda sessão TED com Flaira Ferro), relembra de certos episódios de sua vida pregressa em que lidou com a “psicose”, a confusão mental, a insociabilidade, a incapacidade de funcionar corretamente em meio à sociedade careta. Toda aquela dor, ela diz, foi sendo trabalhada através do tocar música, até que ela tenha alcançado um pouco de “clareza” [clarity] sobre os afetos [passions].

Aí, parece-me, está se exprimindo algo que também marcou a trajetória de Kurt Cobain, aquele irônico e icônico ídolo juvenil suicidado aos 27 e que cravou versos inesquecíveis como aquele que agora acorre à memória: “teenage angst has paid off well” (de “Serve the Servants”, magistral faixa de abertura do “In Utero”). Talvez Sultana possa dizer que conheceu a teenage angst cobainiana, que esteve tentada a auto-destruir-se devido a suas suicidal tendencies, mas que conseguiu, ao contrário do líder do Nirvana, encontrar saúde e clareza através da catarse musicoterápica. O que a aproxima também de Laura Jane Grace, mulher-trans à frente de uma das mais importantes bandas punk do mundo, o Against Me, que também fala no processo de “buscar claridade” em meio ao caos, através de sua arte, em álbuns incríveis como Searching For a Former Clarity e Transgender Disphoria Blues.

Ela não buscou esta catarse através da expressão por vontade de se conformar aos padrões e paradigmas da sociedade careta, mas ao contrário foi “playing the pain away” em sessões de performance-de-rua [streetperforming] que ela foi burilando seu estilo e aprendendo a comandar a impressionante aparelhagem que ela opera. Multi-instrumentista capaz de tocar mais de 10 instrumentos diferentes, ela é prova da vivacidade extasiante da capacidade de aprender humana manifestando-se na flor da juventude. Skateira, pouco conformada aos padrões de gênero que propõe à mulher que seja dócil e comportada, sempre de trejeitos “femininos” (ou seja, delicados…), ela traz na pele tatuada os signos de uma ânsia por sentido, diante da morte, construída com arte.

Aquela TED Talk, neste contexto, ensina uma imensidão: uma mente humana, há 21 anos no mundo, é uma das coisas mais complexas e fascinantes do cosmos – e pobres dos velhos que, prepotentes e arrogantes, ousam desprezar a juventude e supõe que ela é sempre mais tola e estúpida do que a geração que está a mais tempo no mundo. Na verdade, pode ser que o apego às velharias conhecido pelo nome de conservadorismo seja uma esclerose senil e que as forças da renovação da existência encarnam-se na geração juvenil. Isto é tão óbvio e evidente mas precisa ser reafirmado diante de uma faceta que nos esfaqueia no fascismo da atualidade: os fascistas são quase sempre velhos, opressores da juventude, apegados ao dogma de que os mais velhos devem mandar, numa espécie de gerontocracia. 

A música e a pessoa de Tash Sultana é pra dar um pontapé nesses arrogantes gerontocratas. A juventude pode muito e ainda vai poder mais: Rimbaud já tinha marcado para sempre a história da poesia francesa com 17 anos de idade, e eu afirmaria sem medo de errar que a música “pop” nos EUA poucas vezes foi marcada por uma obra prima artística tão primorosa quanto foi pelo lançamento de Tidal, disco de estréia gravado por uma Fiona Apple  que havia criado aquilo após apenas 16 giros de seu corpo ao redor do Sol.

Na esteira dos Beatles e do mantra “Can’t Buy Me Love”, ela realizou “Can’t Buy Happiness” (Não Se Pode Comprar Felicidade), sugerindo que só se é feliz, nesta vida, quando utilizamos a criatividade para lidar com os sofrimentos inevitáveis que a vida comporta.

A salvação não precisa ser privilégio dos crentes, nem ser necessariamente post mortem: pra salvar-se em vida de uma morte travestida de existência, de uma meia-viva apagadinha e meia-boca, é preciso que a arte seja convocada para infundir beleza e sentido ao que de outro modo poderia chafurdar no nonsense e na insignificância confusa. Para além de ser uma wizard dos instrumentos musicais, de ser brilhante no controle dos aparatos tecnológicos, Tash Sultana é também alguém que vivencia a arte como espiritualidade – o que é laico, secular, acessível a qualquer ateu. A beleza é um deus terreno que não exige de nós crença na transcendência sobrenatural, nem sacrifícios ascéticos em louvor a esta. Salvação, aqui e agora, através da criação, pela arte, de um mundo mais belo e mais habitável, de uma vida mais fascinante e envolvente.

É claro que, de um viés crítico, há o que se dizer sobre esta hipérbole do protagonismo que é o método do-it-yourself de Sultana levado ao extremo de um do-it-alone (with no one else). Alguns podem ler excesso de individualismo nesta estratégia artística de alguém que quer fazer tudo, estar no controle de todos os elementos, levando a questão da expressão individual à elefantíase. Avessa à especialização de funções, Tash não quis chamar uns brothers ou sisters para tocarem baixo, batera, trompete com ela. Ela toca consigo. Será isso solipsismo? Mesmo numa artista que, em “Mystic”, nos fala de uma sabedoria que consiste em botar o ego pra dormir?

“I guess I laid my ego to rest.” (“Mystic”)

Ela corre o risco de se embrenhar numa jornada egóica, como muito guitar hero já fez, fazendo a ostentação de seus feats técnicos para platéias embasbacadas. Ela é prodigiosa e sabe disso, mas isto coloca o perigo de um ego que cresça como um balão que se enche de ar e se desprega do chão. De todo modo, como o clipe de “Cigarettes” indica, Tash é um exemplo vivo do que pode acontecer com alguém que tem sua iniciação musical bem cedo, que tem seus dons expressivos incentivados desde o berço, e que ademais consegue trilhar como estudante os caminhos do aprendizado auto-didata (ela se diz self-taught):

Em seu pertinente e provocante documentário The Century of the Self, Adam Curtis sugeriu que vivemos no “século do self” no último centênio. Tash Sultana é expressão isso, de uma self made woman que conseguiu tornar-se “sozinha” um fenômeno transnacional da música. Só que este self é nela questionado pelos tropismos que ela manifesta pelas vertentes da sabedoria oriental que colocam a felicidade justamente na transcendência do ego e numa mística da re-união. Búdica religião do re-ligare, que através da arte faz o eu transbordar de si e encontrar-se com outros na mística profana e maravilhosa da comunicação estética. Através de sua arte, como uma blueswoman tecnizada, ela segue a caminhada da vida playing the blues away, na descoberta de uma catarse musicoterápica.

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 20/12/2019

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A ODISSÉIA DUM PEIXE DANÇARINO PRA FUGIR DE UM AQUÁRIO-PRESÍDIO – Sobre o filme “FISH TANK” (U.K., BBC Films, 2009), de Andrea Arnold

“I’m good at being uncomfortable
So I can’t stop changing all the time.”

FIONA APPLEExtraordinary Machine [ouça]

O desconforto com o atual enrosco, o inconformismo diante de situações intragáveis, são motores dos movimentos de auto-transcendência. A superação-de-si exige de nós que tenhamos uma boa dose de discórdia conosco mesmos, uma vontade de deixar-se para trás rumo a uma melhor versão de si.

Eis alguns dos ensinamentos possíveis de sugar da narrativa cinematográfica arrojada, comovente e impactante de Fish Tank. Através do belo filme da Andrea Arnold, lançado pela BBC Filmes em 2009, temos acesso a uma vivacidade juvenil intensa, ingovernável, que lida com as opressões à sua volta com o sadio desrespeito pelas correntes que têm, quando capturados, os animais que haviam sido antes selvagens – e que passaram todas as suas vidas correndo livres e soltos pela floresta.

Em um filme que aposta em metáfora bastante significativas, a mensagem parece ser um conclame ao amadurecimento criativo que envolve, sempre, revoltas contra limitações e travas socialmente impostas e que bloqueiam o nosso crescer. A protagonista de Fish Tank é uma peixona adolescente faz de tudo para romper com o confinamento em um aquário que é seu presídio. Melhor dizendo: Mia é uma espécie de símbolo de uma juventude que, caso as velhas gerações ainda vivas, em sua autoritária gerontocracia, tentem encerrar na jaula de uma tanque de peixes onde a ração são só migalhas, explode em revolta.

Mia dá conta, no processo, de que fazer com que esta revolta, para além dos elementos destrutivos que carrega, refulja como uma revolta criativa, uma criatividade revoltada. Uma femme revolté que talvez agradasse a Camus ou Beauvoir, caso estivessem vivos para espiarem com olhar existencialista esta bela obra do cinema contemporâneo. Em Mia, refulge algo à la Emma Goldman,  pulsa no anarquismo espontâneo de Mia a determinação a ir dançando sua revolução.



Ao assistir ao filme, por vezes me lembrei do que canta Fiona Apple na bela canção que dá título a seu maravilhoso álbum em parceria com Jon Brion, Extraordinary Machine: quem é “bom em sentir desconfortável não pode parar de mudar o tempo todo”.

Em Fish Tank (Aquário), filme de Andrea Arnold , a vida de uma adolescente britânica chamada Mia (interpretada por Katie Jarvis) é explorada nos meandros de seu labirinto existencial. Nós somos lançados direto para o epicentro deste labirinto que é Mia, desnorteada e enfurecida, irrompendo na tela com a fúria de uma punk urbana que taca pedras em vidraças e quebra o nariz dos desafetos a cabeçadas. Algumas cenas adiante, a mãe anuncia a Mia que, em 2 semanas, ela irá para a “casa de correção”.

Fish Tank revela, de maneira instigante, o labirinto em que Mia se debate feito um peixe-dançarino em revolta contra as dimensões estreitas demais de seu aquário-presídio, repleto de opressões que a rodeiam e tentam esmagá-la. Envolta numa miríade de opressões, ela vai dando um jeito de driblar as adversidades da vida, um pouco no remelexo, um pouco na irrupção de raiva reativa. Com os beats do hip hop bombando em seus fones-de-ouvido e soundsystem, esta peixa irritada com o confinamento em aquário demasiado estreito debate-se querendo fugir.

Um dos símbolos supremo que o filme ergue para representar este ímpeto de fuga é a égua de seu amigo, sempre acorrentada e raquítica. A égua que ela tenta roubar, arrojando contra o cadeado que mantêm o animal preso a golpes de pedras e marteladas. Esta égua, que ela fracassa em libertar através da martelada, faz com que ela descubra-se confrontada, mais uma vez, pelo “monstro” social onipervasivo, Minotauro de seu labirinto: uma cultura onde as relações sociais são brutas, sem delicadeza, norteadas pela ofensa mútua. À semelhança da estética dos Sex Pistols, ficamos com a impressão inicial de que esta é uma Inglaterra da Juventude No Future e que todos estão cuspindo uns nas caras dos outros.

Incapaz de resgatar a Égua, com quem ela provavelmente fugiria pra bem longe de sua vida-inferninho nos subúrbios de Londres, esta princesa-punk tem que encarar o Minotauro da macheza tóxica. Vemos uma gangue de três caras e um rottweiler tentando estuprá-la. Ela se debate com todas as forças de seu corpo, briga com eles esperneando e desferindo socos. Até que se liberta o bastante para correr na velocidade de um atleta dos 100m raso nas Olimpíadas.

Ter escapado de uma tentativa de estupro não a torna muito predisposta a ser gentil com os homens em geral – muito menos com o novo namorado de sua mãe, Connor (interpretado por Michael Fassbender). Se ela, de cara, antipatiza com ele e o trata como inimigo, é pois isto tornou-se sua reação emocional padrão diante dos humanos em geral. Ela tem antipatia por gente. Uma antipatia que engloba os que tem pica e os que tem buceta numa mesma onda de misantropia adolescente. Tanta fúria precisa expressar-se, caso contrário este aquário explodirá pelos ares como uma panela de pressão esquecida por tempo demais no fogão.

Se me permitem uma digressão pela Cultura Pop contemporânea que me parece significativa como chave de leitura do filme, é importante notar a semelhança do nome da protagonista de Fish Tank, Mia, com a artista, de nome bastante semelhante e de imensa repercussão no Reino Unido neste últimos anos: M.I.A., originária do Sri Lanka, hoje uma das mais provocativas artistas britânicas do séc. 21.

Assim como M.I.A. horrorizou muitos – e atraiu processos contra si que quase a levaram à falência – quando mostrou o dedo médio, em cima do palco com Madonna, no famigerado show da NFL, a Mia do filme também gosta de uma cultura que provoque, que confronte, que não seja demasiado “boa-moça”. Com vínculos fortes com a cultura hip hop, seu corpo, quando tem tempo livre, dedica-se a treinar-se nas artes do breakdancing. 

INDIANAPOLIS, IN – FEBRUARY 05: MIA performs during the Bridgestone Super Bowl XLVI Halftime Show at Lucas Oil Stadium on February 5, 2012 in Indianapolis, Indiana. (Photo by Christopher Polk/Getty Images)

Mia está animada pelo sonho deem tornar-se uma dançarina de sucesso, uma artista de renome. Diante da tela da TV onde assiste a videoclipes sacolejantes da black music globalizada, ela sacode o esqueleto nos interstícios desta vida que parece oprimi-la por todos os lados.

Primeiro e sobretudo, a opressão materna, que explode na tela logo nos primeiros momentos de um filme que explora, a fundo e com densidade poética, a metáfora entre a adolescente rebelde de 15 anos, que protagoniza o filme, e um peixe aprisionado num aquário. Um peixe cheio de inquietude, querendo expressar seus encantos de sereia. Mas, assim como M.I.A., radicalizando no confronto com as situações materiais do mundo em que vive, socialmente convulsionado por conflitos e antagonismos que polvilham por toda parte a praga das relações de dominação e subalternidade, de opressor e oprimido, trava suprema para a superação humana da atual nossa fase de fratricidas no labirinto.

O filme não está interessado na vida de quem é pop star, mas sim na vida anônima que sonha em sair dum pântano de anonimato. A filmagem de Andrea Arnold é bastante realista, lembrando o estilo de mestres britânicos do cinema realista sobre a riff raff como Mike Leigh e Ken Loach, mas o olhar atento à juventude de uma mulher em seu aquário de opressões transforma a obra em algo que toca fundo na questão do feminino no mundo contemporâneo. Dificilmente Fish Tank poderia ser considerado feminista, o que não o impede de ter muita food for thought sobre as relações sociais entre mulheres. A começar por mãe e filha, que estiveram um dia em simbiose tão intensa, fundidas num organismo, e que na adolescência são descritas como extremamente arredias.

Algumas vertentes do feminismo, por centrarem a mira de suas críticas no Patriarcado, acabam por pintar o retrato do opressor como sinônimo de macho, o que dificulta a apreensão da realidade inegável que são as mulheres que oprimem mulheres, a começar pelas mães que oprimem suas filhas, irmãs-mais-velha que oprimem suas irmãzinhas, dentre outras manifestações disso que é o avesso da sororidade. A irmãzinha de Tyler, ao despedir-se de Mia que se vai para o País de Gales, diz: “I hate you”, ao que a irmã responde: “I hate you too.” É uma das cenas mais fofas do filme.

Instantes antes, a mãe, ao ser avisada que a filha maior estava de partida, com malas feitas e uma carona para outro país, lança-lhe na cara um “fuck off!” A mãe, cansada de reter no aquário aquela rebeldia indomável, enfim concede a Mia o direito de vazar. Antes, esta mãe era sentida como carcereira, agora transmuta-se de súbito numa mulher, falível como todas, humano demasiado humana, e que tenta driblar com dança as deprês dessa vida. Mãe e filhas entram na dança da despedida e, sem palavras, estão temporariamente em trégua em sua longa guerra doméstica.

O modo como o filme articula o tema da dança no tecido vital da protagonista. Mia parece se identificar com a figura do animal que tem seus movimentos impedidos: é o caso da Égua que ela tantas vezes tenta salvar, e cuja morte lamenta com lágrimas que ela não derruba, através do filme todo, para nenhum humano. A dança parece estruturar sua subjetividade em transformação como uma espécie de espinha dorsal da fantasia que motiva o caminhar-adiante. Ela faz planos de tornar-se alguém no mundo da dança, articula com Connor uma ajuda para que ela possa participar de um teste, consegue uma câmera com ele pra que filme um vídeo (pré-condição para ser uma das candidatas desta audition que passa a servir como isca para esta peixona louca para saltar de seu aquário direto para a vastidão do oceano.

Desde seu título, Fish Tank demonstra um certo desejo de metaforizar sua narrativa através de peixes e éguas, evocados em relações com Mia que vão revelando para nós as características de seu labirinto. Numa cena chave, Connor leva as 3 mulheres para um rolê de carro que termina numa estranha pescaria. Connor entra no lago a fim de catar um peixão com as próprias mãos e Mia é a única a topar o desafio (ainda que não saiba nadar). A captura do peixe, seguida por um quadro em que o animal agoniza no solo, fora de seu habitat aquático, revela a Mia o poder daquele homenzarrão charmoso capaz de carregá-la nas costas, gentilmente, quando ela corta os pés.

A caminho da daquele episódio de queer fishing, Connor toca no carro a sua canção predileta de todos os tempos, “California Dreaming” na voz de Bobby Womack. A canção traz um eu-lírico que, no Inverno, sonha com uma Califórnia ensolarada – semelhante àquela que, na casa de Mia, decora a sala-de-estar como papel de parede. Mia decide escolher esta canção para dançar. Bola uma coreografia. Todos os incentivos de Connor surtem um certo efeito sobre a auto-estima de Mia, ela vai caindo para os encantos daquele cara que há poucos dias era um completo estranho que dançava com a mãe nas festanças domésticas e que ela observava transando, escondida na obscuridade do corredor.

Fish Tank é um filme desprovido de moralina e retrata comportamentos dificilmente aplaudíveis com tanta empatia que a gente é lançado para além do bem e do mal, como queria Nietzsche. É um filme que não quer nem crucificar nem inocentar sua protagonista – quer que viajemos com a vida dela, com empatia ligada no talo, mas sem perder a capacidade crítica. Nem santa, nem puta: Mia apenas. Mia, cheia de tesões, dançando seu caminho para fora do aquário, rompendo certos limites temíveis – como transar com o namorado da mãe…

Com a mãe desmaiada no quarto após um porre, Connor e Mia transam na sala logo após a performance dela de “California Dreaming” (papel de parede todo Californiano servindo de plano de fundo). A vida de Mia é o próprio inverno, e sua dança é a Califórnia. But the fantasy comes crashing down. No clímax dramático do filme, Mia vai atrás de saber mais sobre a vida de Connor, este cara que já esteve com a pica dentro dela e de sua mãe – e que de repente sumiu. Vazou. Escafedeu-se.

Mia invade a casa de Connor saltando o muro dos fundos e penetrando por uma janela. A câmera com filmagens enfim revela a Mia que Connor é casado e tem uma filha, o que inspira a reação instintiva de tacar a câmera longe e depois mijar no tapete da sala. Na sequência, Mia tenta sequestrar a filha de Connor, que a certo momento escapa pela mata. Em uma das cenas que deixa o espectador gasping for breath, após uma briga violenta em que a criança tenta ser libertar de seu cativeiro aos pontapés contra sua carcereira, Mia empurra a criança na água. Aos 15 anos, Mia quase se torna uma sequestradora e uma assassina.

Evocando outros filmes da história sobre rebeldias juvenis, como Vidas em Fuga de Lumet (com Marlon Brando) ou Rebelde sem Causa de Nicholas Ray (com James Dean), Fish Tank é a crônica de várias pequenas rebeliões contra os jugos opressores. Mia se debatendo para escapar da garra de seus estupradores é uma cena análoga à filha de Connor debatendo-se para escapar da fúria vingativa de Mia. Os elos na cadeia da opressão estão bem encadeados. E este filme não vende falsas esperanças – tanto que o caminho do sucesso permanece vedado para Mia. Não se trata de uma ascensão para o estrelato como dançarina – não estamos diante de nenhum fenômeno semelhante ao de M.I.A., de Janelle Monae ou de Flaira Ferro.

O filme nos frustra ao focar no fracasso de Mia na conquista de seu sonho de ser dançarina – chegando na audition, ela descobre que de fato eles estavam selecionado strip dancers, que ela estava no lugar errado, que ali não havia espaço para sua expressão corporal nem como breakdancer, nem como coréografa dos Sonhos de Califórnia. Ela abandona aquele palco onde o corpo da mulher agita-se apenas para instigar o tesão dos machos e parte para outra.

A atitude de Connor, que comete um adultério duplo, com mãe e filha, antes de abandoná-las e voltar para sua “família tradicional britânica” numa “Safe European Home” (The Clash), é retratada sem panfletagem feminista, mas a mensagem da narrativa é clara: Mia não aceita calada ser comida e depois jogada de lado como uma casca de banana. Mia está disposta a uma irrupção no cenário proibido da família feliz de Connor, para demarcar com seu mijo e sua presença disruptiva aquele território de que está segregada. A área proibida, que Connor impede que ela acesse, temeroso da revelação da verdade, instiga Mia a cometer seu “crime” de sequestro e quase assassinato da filha de Connor.

A cena em que Mia é apedrejada pela criança que dela busca fugir, essa cena que ressoa fortemente na memória pois ali Mia está em full throttle na posição de “opressora” vingativa, é uma das cenas-chave que mostra a disposição do filme em sublinhar o Inferno não é exclusivamente masculino. Quero dizer, com isso, que uma vertente reducionista do feminismo torna-se incapaz de ir mais profundo à raiz dos antagonismos das relações humanas quando culpabiliza unicamente o Patriarcado e “o Macho” por todos os males do mundo, quando é óbvio que também as mulheres são capazes de serem maléficas e opressoras umas com as outras, em diferentes situações onde diferenças de poder propiciem oportunidades para os abusos de autoridade – seja na relação mãe e filha, professora e aluna, médica e paciente, adolescente e criança etc.

Através de seu cinema do fluxo, da transmutação, Andrea Arnold inaugura novos horizontes para a senda dos filmes problematizadores da Juventude na sociedade contemporânea. Há algo de Larry Clark ou de Gus Van Sant em seu cinema, mas algo também singular – e que ela seguirá explorando com maestria em seu próximo filme, Docinho da América. Um Oceano Atlântico inteiro separa EUA e U.K., mas as semelhanças entre eles ainda sobressaem devido ao mesmo caldo de cultura anglo-saxã, protestante e “liberal”. Em seus filmes, Andrea Arnold registra o movimento de reinvenção da juventude nas sociedades contemporâneas através de um cinema de alta intensidade, rica rítmica, montagem de dinamismo videoclíptico e capacidade de propor metáforas de largo alcance.

Ainda sobre o tema da revolta, ou do comportamento revoltado desta figura feminina inconformada e agressiva que é Mia, vale lembrar aos espectadores mais apressados que o filme não está nos convocando para um tribunal, não interessa julgar se Mia é do bem ou do mal, se é uma menina-bandida ou se podemos adorá-la sem culpa. Mia é uma vida complexa que nos oferece seu labirinto para que possamos tentar decifrá-la, e aí percebemos, como fez Jon Savage em seus estudos sobre a Youth, que o individual é indissociável do social. Mia é assim por causa do Patriarcado, da masculinidade tóxica, da cultura do estupro, sim, é possível, mas ela não é redutível a isto, pois estes elementos da cultura, disponíveis a todos os sujeitos que compartilham desta mesma cultura, será “sintetizado” por ela de maneira específica, singular e única.

Seja reproduzindo explosões de agressividade e de dispêndio de força física contra o outro que ela provavelmente aprendeu com os machos da espécie, de certo praticando a mimese das atitudes machomen, seja criando maneiras de empoderamento feminino para sobreviver na selva de intentos de estupro e de irresponsabilidades gerais, tanto masculinas quanto femininas. A ausência completa da figura do pai na família de Mia dá também o que pensar sobre o tema das “famílias desestruturadas” pela falta daquilo que supostamente deveria ser, desta família, a “espinha dorsal”, o pai.

De todo modo, o filme não convida à abstração, não fala sobre o geral, não pretende ser um tratado sobre a família britânica na era contemporânea, é muito mais um dispositivo de ativação de afetos. Mia ativa justamente nossos afetos ativos, nossos afetos que conduzem a ações, nossos afetos que tem um ímpeto inerente de predileção pelo ritmo, pelo movimento, pela mudança, pelo fluxo.

Eis um cinema com alto teor de corporalidade, um cinema que flagra o corpo de Mia movendo-se e agindo-se com uma espécie de volúpia libertária pela captura de imagens onde os gestos falam mais que as palavras. Um filme digno de estudo para quem quer que se interesse por expressão corporal danças contemporâneas. Na esteira de Paul Gilroy e seu livro abre-horizontes O Atlântico Negro, o filme de Andrea Arnold fala também sobre uma Inglaterra das culturas híbridas, que inclui uma forte expressividade da cultura hip hop, esse fruto tardio e hiper contemporâneo da diáspora dos africanos escravizados que pelo mundo se espalharam, sempre criando e recriando a cultura humana em seus movimentos, mesclas, miscigenações e aventuras de fuga.

Com a sabedoria de William Blake já pulsando em seu corpo de 25 anos, Mia sabe: “He who desires but acts not, breeds pestilence.” (“Aquele que deseja e não age gera uma prole de pestilência.”) Não sei se o que pesou foi a sinapse que conectou a personagem Mia à rapper real M.I.A., mas fiquei com a impressão de que o filme sugeria, para além dos créditos finais, que a protagonista não ficaria presa ao pântano. Que esta peixona estava destinada, num futuro que o filme não conta, a arrasar nas artes.

Mina-rebelde na Inglaterra no future forjada pelo neoliberalismo econômico somado ao puritanismo moral, a Mia encarnada por Katie Jarvis é uma força feminina exuberante, quebra-correntes, como que a anunciar ao mundo, com seus gestos e suas danças, a relevância deste episódio supremo na história da linguagem humana que são os Provérbios do Inferno de Blake:

In seed time learn, in harvest teach, in winter enjoy.
Drive your cart and your plow over the bones of the dead.
The road of excess leads to the palace of wisdom.
Prudence is a rich ugly old maid courted by Incapacity.
He who desires but acts not, breeds pestilence.
The cut worm forgives the plow.
Dip him in the river who loves water.
A fool sees not the same tree that a wise man sees.
He whose face gives no light, shall never become a star.
Eternity is in love with the productions of time.
The busy bee has no time for sorrow.
The hours of folly are measur’d by the clock, but of wis­dom: no clock can measure.
All wholsom food is caught without a net or a trap.
Bring out number weight & measure in a year of dearth.
No bird soars too high, if he soars with his own wings.
A dead body, revenges not injuries.
The most sublime act is to set another before you.
If the fool would persist in his folly he would become wise.
Folly is the cloke of knavery.
Shame is Prides cloke.

WILLIAM BLAKE

 

O pavor das vilanias viralizáveis na recepção do filme “Coringa” (Joker), de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro em Veneza

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

1. OS FILMES VOLTARAM A SER PERIGOSOS?

Durante a insurreição parisiense de Maio de 1968, muitos muros pixados gritavam: “O que queremos de fato é que as idéias voltem a ser perigosas.” Esta frase-tijolada, de autoria atribuída a Guy Debord mas viralizada por anônimos, poderia ser adaptada pra falar sobre certos filmes contemporâneos e sobre os enfants terribles que ousam realizá-los, de Lars Von Trier a Gaspar Noé: são figuras que querem que o cinema volte a ser perigoso.

Um filme pode pôr um sistema em perigo, ou isto é só fantasia de grandeza dos artistas cinematográficos que exageram seu próprio poder de subverter o status quo? Uma obra fílmica subversiva pode se transformar em blockbuster e fazer sucesso popular a ponto de preocupar as elites plutocratas? É possível que um filme represente um perigo que leve as elites a perderem o sono e fundirem a cuca de preocupação diante das provocadoras perturbações da ordem que tomam de assalto as salas de exibição?

Como fã de filmes perigosos, provocativos e anti-conformistas, afirmo que precisamos sim de uma arte cinematográfica que jamais se renda a considerar uma sala de cinema como mero templo de consumo, repleta de poltronas confortáveis onde a passividade dos alienados vai pastar seu conformismo após encher de grana o cu das corporações dos Kinoplexes dentro de shopping centers. Aliás, o preço-facada deste ingresso, e este combo pipoca-com-Coca-Cola a 30 reais, não têm nenhuma graça.

 Queremos um cinema que mobilize afetos anti-sistêmicos, anti-capitalistas, sabotando o insustentável business as usual que atua na atual Máquina do Apocalipse conhecida como capitalismo neoliberal globalizado.

 O mínimo que se pode dizer sobre o ano de 2019 é que esta vontade está sendo muito bem atendida: Bacurau, Marighella e Espero Tua (Re)Volta fizeram isto lindamente pelo cinema brasileiro, com força descomunal e grande beleza expressiva; e no cenário do cinema-pop internacional é Joker, de Todd Phillips, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, quem cumpre com esmero a função de re-lançar a arte do cinema ao campo do risco, do perigo, da confrontação aberta, sem medo da polêmica. Exemplo disso é o “pânico moral” que tem se tornado um dos grandes temas de debate sobre as repercussões do mais novo filme do Coringa.

Na Jacobin Brasil, o artigo de Eileen Jones pontua:

“O pânico moral sobre filmes provocantes como “Coringa” é tão antigo quanto o próprio cinema. Filmes de Spike Lee, Oliver Stone, Luís Buñuel e Jean Renoir já sofreram a mesma acusação pela direita liberal. Na maioria das vezes são apenas mais uma prova do mérito de um filme – e de uma classe com medo de se reconhecer nas telas. (…) O número de vezes na história em que filmes criaram um alvoroço que levou à violência é surpreendentemente pequeno, tornando as recentes previsões sombrias de que Coringa provavelmente inspirará caos em massa uma aposta ruim.”

Um filme seria capaz de “inspirar caos em massa”? A pergunta não é absurda e já está em discussão há muito tempo na sociologia da arte – pelo menos desde que Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, inspirou muitos suicídios entre jovens alemães que mimetizavam Werther. O medo dos críticos, noiados com a força do personagem Coringa, é que vejamos uma epidemia de mímesis das atitudes psicopatas e sangrentas do Joker da telona. Questiona-se na imprensa liberal-burguesa sobre todos aqueles que poderiam se ver tentados a imitar o exemplo do Coringa e que se lançassem a explodir cabeças de âncoras televisivos ou confrontar diretamente tubarões corporativos como o Sr. Wayne.

Eis um temor razoavelmente justificado quando se considera que o grau de identificação com o protagonista é grande o bastante para que seja um ótimo negócio para Warner e D.C. Comics lançarem este filme para colherem centenas de milhões de dólares em lucro de bilheteria. Tem gente pra cacete querendo ver Coringa, e dentre esta multidão decerto não vão faltar aqueles que se identificam com ele e enxergam no personagem muito mais um herói, um soulbrother, do que apenas um psicopata doidão que mereceria ser trancado num hospício com as chaves de sua cela jogadas no fundo do oceano.

Um fenômeno semelhante é a identificação positiva com o Tyler Durden de Clube da Luta (Fight Club), o filme de David Fincher baseado no livro de Palahniuk. Temeu-se que pudessem surgir, no mundo real, “movimentos sociais” assemelhados aos Space Monkeys que Tyler Durden (Brad Pitt / Edward Norton) encabeça em um enredo que termina com um atentado terrorista contra empresas de cartão de crédito. Temeu-se que se viralizasse a atitude de revolta contra este sistema nojento em que trabalhamos em trampos que odiamos para poder comprar lixo que não precisamos, em que “as coisas que você possui acabam por ter possuir”.

O curioso no caso Coringa é a excelente recepção que o filme tem recebido em festivais internacionais e em boa parte da crítica especializada – a começar pela consagração em Veneza. O filme, propulsionado pela interpretação magistral de Joaquin Phoenix (magistral em sua performance do personagem já vivido em filmes anteriores por Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto). O filme tem sido debatido por seus supostos “perigos” em despertar o “caos em massa”, mas seus méritos artísticos não estão sendo negados nem pelo mais paranóico dos críticos liberais fanáticos por law & order.

Joker rapta o Leão de Ouro em Veneza: filme de Todd Phillips, protagonizado por Joaquin Phoenix, vence o prêmio máximo da 76ª edição do festival – Público

O furor em torno do novo filme Coringa começou não de uma sessão desastrosa, mas de uma estreia extremamente bem sucedida: foi ovacionado durante oito minutos no Festival de Veneza, e em sequência ganhou o prestigiado prêmio Leão de Ouro. Apenas para contextualizar, o Leão de Ouro vai para filmes como “Rashomon”, “O Ano Passado em Marienbad”, “A Infância de Ivan”, “A Batalha de Argel”, “Os Renegados”, “Adeus Meninos”, “The Story of Qiu Ju”, “O Segredo de Vera Drake”, “Brokeback Mountain” e “Roma”. Apenas esperando que alguém esteja se divertindo em algum lugar, gosto de pensar que os europeus que votaram no Festival de Cannes estavam apenas nos trolando, antecipando o surto moral e estético entre os guardiões da cultura estadunidense na elevação de Coringa a padrões significativos de filmes de arte. Eu os imagino bebendo tanto até que o vinho saia pelo nariz.

No entanto, na verdade eles provavelmente foram sinceros, e sua reverência ao filme foi, para dizer o mínimo, inesperada para mais um filme com o Coringa, o gargalhante e amado vilão psicopata da DC Comics, um personagem que já foi interpretado três vezes em filmes de super-heróis, por Jack Nickolson (Batman,1989), Heath Ledger (Batman: O Cavaleiro das Trevas, 2008), e Jared Leto (Esquadrão Suicida, 2016). Mas com o altamente respeitado ator Joaquin Phoenix reconcebendo o papel como um raivoso e isolado incel branco da classe trabalhadora levado ao limite, esse aplauso chocou e irritou críticos de cinema e jornalistas de entretenimento. Houve uma enxurrada de comentários alarmistas desde então, incluindo especulações nervosas sobre a possibilidade de violência imediata como uma aparente resposta ao filme, como na crítica de Sarah Hagi na Jezebel: ‘A pergunta na mente de todos quando assistirem Coringa é e será: o quão perigoso é isso? O público alvo de jovens homens brancos será inspirado por Coringa?’ – JACOBIN

2. A VIRALIZAÇÃO DA VILANIA: PARANÓIA JUSTIFICADA?

Esta histeria paranóica dos liberais tem suas razões: de fato, Joker é um filme fascinado pelo tema da viralização. O filme descreve a cidade de Gotham tomada por riots em que os clowns protestam violentamente nas ruas, botando fogo em carros, confrontando ousadamente a polícia feito Black Blocs e destravando processos anárquicos que um dia, no futuro não muito distante, irão justificar as ações extralegais de um playboy metido a vigilante que limpará a escória das ruas fantasiado de morcego.

Por isto o filme dialoga fortemente com V de Vingançaoutra obra fortemente marcada pelo fascínio com a viralização. A máscara de Guy Fawkes se torna viral no enredo forjado por Alan Moore em V de Vingança, e depois transbordou para o mundo real e histórico, tendo sido utilizada por manifestantes em protestos. As máscaras, saindo da arte para a vida, inspirando também movimentos hackers digitais como o Anonymous, é um fenômeno que certamente interessa à sociologia fílmica de Joker.

Este contexto social repercute na viralização dos palhaços revoltados que constitui um Exército de Coringas, emblemático na cena em que o metrô de Gotham está lotado por figuras à la Coringa, levanto os policiais ao completo desnorteio. É isso que tem colocado tantas pulgas nas cuecas das elites liberais.

Estas, acostumadas à paranóia pois costumam viver em ilhas de privilégios que mais se parecem bunkers militares do novo apartheid, tem o temor de que aquela Gotham caótica e em chamas seja algo muito diferente de apenas uma fantasia distópica. O medo é o de que seja a imagem-espelho de nosso futuro próximo.

O medo se aprofunda nestas elites quando pensam que filmes assim podem acelerar este processo de convulsão social que o filme expressa em seu momento mais emblemático: sobre a viatura destruída por um crash, acordando de seu desmaio, Arthur Fleck, dentro da sua persona de Joker, tem seus “15 minutos de fama” diante da horda de clowns que o considera alguma espécie de inspirador do movimento. Após os 15 minutos de fama, o “famosinho” estará imobilizado numa camisa de força e sendo moído vivo no Cemitério dos Vivos (como dizia Lima Barreto) que é o sistema prisional-manicomial.

Arthur Fleck começou o movimento, a despeito de quaisquer intenções suas: ele garante que não é um sujeito politizado e nunca pretendeu começar um movimento. Mas o assassinato triplo que comete no metrô contra três funcionários da Corporação Wayne mudam seu destino pessoal para sempre, e no processo destravam processos que mudam também os destinos coletivos.

Arthur era um zé-ninguém, um invisível, uma destas pessoas anônimas que, se morrem e caem na calçada, os transeuntes seguem andando como se nada tivesse acontecido, desviando-se do corpo como se fosse um pacote de arroz caído no chão. O assassinato triplo, por ser também efeito de uma cultura de hegemonia do armamentismo e da masculinidade tóxica, faz emergir, como um monstro do pântano que se ergue causando rebuliço na superfície da lagoa, o Coringa que não é mais zé-ninguém nem invisível: agora, Arthur Fleck sente o sabor da fama através de seu alter-ego: o Coringa é famoso, é o cara na capa dos jornais. Este gostinho de sucesso, ainda que seja através da notoriedade de um crime, é essencial para a compreensão do filme.

Em muitos aspectos, Joker lembra Réquiem Para um Sonho de Darren Aronofsky. Neste, a senhora interpretada por Ellen Burstyn é viciada em TV e anfetaminas, entrando em vários delírios alucinados diante de seus programas de TV prediletos. O filme de Todd Phillips se apropria de uma estrutura muito semelhante ao descrever as fantasias de Arthur Fleck diante da TV: ele sonha em ser uma estrela de TV, não se recusa a participar do programa de entrevistas que bomba no Ibope, mas tudo dá errado em seus planos de se transformar num pop star pois sua esquisitice, seu fracasso em sua tentativa de tornar-se um bem-sucedido stand-up comedian, o conduzem a ser ridicularizado na televisão onde ele desejou ser entronado.

Deste modo, tanto Joker quanto Réquiem exploram as neuroses decorrentes de um star system em que viralizam-se os sonhos de fama televisada, mas onde há um verdadeiro apartheid operando: os estranhos, os feios, os loucos, os maltrapilhos, tudo que é queer e inadaptado aos padrões normóticos vigentes, ficará apartado da fama, por mais que sonhe e delire com ela. Arthur Fleck faz parte do exército dos que deliram em um dia serem famosos na TV, mas que nunca o será – e que fica muito puto da vida quando o descobre. Na catártica cena em que ele finalmente está ao vivo na TV, diante do entrevistador encarnado por Robert De Niro, ele dirá algumas verdades inconvenientes que também evocam o clássico Network – Rede de Intrigas, de Sidney Lumet.

3. GOTHAM: LIXO, RATOS, PLAYBOYS, RIOTS E INCELS

Logo em suas primeiras cenas, o filme Joker lança o espectador a uma Gotham afundada no caos com uma grave greve dos lixeiros. As ratazanas infestam uma Gotham que está há semanas sem o devido recolhimento de lixo. O todo-poderoso playboy Wayne – pai daquele Bruce Wayne que um dia se transmutará no Homem-Marcego, O Cavaleiro das Trevas – está se candidatando a prefeito.

O filme deixa no escuro as causas da greve e as demandas dos grevistas, mas em outra cena joga mais luz sobre as causas subjacentes do caos em que Gotham está mergulhada: diante de uma assistente social, Arthur Fleck, sedado com mais 7 medicamentos psicotrópicos, ouve uma má notícia. O Estado resolveu cortar investimentos para aquele serviço de assistência social para os mentalmente instáveis das classes subprivilegiadas.

Tanto a social worker quanto o altamente medicalizado Artur Fleck são tratados como lixo pelos governantes de Gotham. Estes aplicam políticas de austeridade que fazem colapsar os serviços públicos mais importantes – da coleta de lixo à assistência social concedida às multidões de adoecidos psíquicos.

É um filme na tradição de thrillers como O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs), de Jonathan Demme, e O Iluminado (The Shining), de Stanley Kubrick. Tanto Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins, quanto Jack Torrance, encarnado por Jack Nicholson, eram personagens afligidos pela doença mental (mental illness) e seus atos eram manifestações sintomáticas de suas condições “clínicas”. São obras onde o mal tenta ser compreendido a partir de princípios psicológicos (como a psicose) e não teológicos (como o pecado).

É por aí que Joker segue: na trilha da exploração psicológica da gênese de um psicopata. Velhas figuras, que bordejam o clichê, levantam suas cabeças no roteiro: o abandono do pai, a infância cheia de traumas, uma relação pouco sadia de dependência mútua em relação à mãe, uma fobia do contato social decorrente da condição de risada compulsiva etc. Esta infância problemática, com o pai ausente, a mãe delirante, o padrasto abusador, frisa aquela velha tese: todo adulto com psicose foi um dia uma criança traumatizada por circunstâncias que não escolheu.

Somam-se aos “males da infância” de Arthur sua situação presente de homem solteiro, celibatário, que mora com a mãe, incapaz de estabelecer vínculos afetivos significativos, sexualmente inativo, capaz apenas de fantasiar o amor com sua vizinha, mas nunca de viver na carne as conjunções carnais e os arrebatamentos orgásticos. Inúmeras críticas e artigos sobre Joker apontam a proximidade entre o caráter do protagonista e os homens “incel” (celibatários involuntários), recentemente celebrizados após o atentado de Toronto:

BBC – Quando o canadense Alek Minassian atropelou um grupo de pedestres com uma van, matando dez pessoas em Toronto, no Canadá, a notícia correu rapidamente em um grupo muito específico na internet: fóruns de discussão dos autodenominados “incels” – homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas e culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso. O termo “incel” é um diminutivo da expressão “involuntary celibates”, ou celibatários involuntários. A notícia de que Minassian se autodeclarava “incel” virou o assunto principal dos fóruns de conversa desses homens na internet.

Se pode haver uma certa graça na própria expressão “celibatários involuntários”, decerto que não tem graça nenhuma as ondas de spree killings praticados por estes auto-denominados incels. Podemos descrevê-los como os caras que são virgens revoltados contra as mulheres – não transaram nunca, não é por não desejarem, mas por não conseguirem, e a culpa é toda das malditas mulheres. Incapazes de criticarem doenças sociais do Patriarcado, como a masculinidade tóxica que lhes impede qualquer manifestação de afeto mais delicada, qualquer enlevo carinhoso, qualquer “derretimento” afetivo que aproxime do “sexo oposto”, eles projetam sua libido insatisfeita, represada e mau sublimada em uma agressividade destrutiva e misógina que muitas vezes explode em serial killing. 

Tanto que o incel de Toronto, assassino de 10 concidadãos, antes de pisar no acelerador e atropelar dez vidas, escreveu, segundo a reportagem da BBC: “A rebelião ‘incel’ já começou! Vamos derrotar todos os Chads (homens atraentes e sexualmente ativos) e Stacys (mulheres sexualmente ativas). Todos saúdem o cavalheiro supremo Elliot Rodger!”

“Em 2014, Elliot Rodger matou seis pessoas a tiros e facadas, na Califórnia, se matando em seguida. Ele tinha várias publicações em redes sociais falando sobre sua frustração por ser rejeitado e pregando ódio às mulheres. Num vídeo que postou no YouTube, Rodger reclamou de ainda ser virgem aos 22 anos e revelou nunca ter ao menos beijado uma menina. Ele disse ainda que era o “ideal e magnífico cavalheiro” e que não compreendia porque as mulheres não queriam ter relações sexuais com ele.” (BBC)

O personagem vivido por Phoenix, Leto, Ledger e Nicholson de fato assemelha-se a um celibatário involuntário: nunca é descrito amando uma mulher que consente com ele nas delícias do amor físico. Wilhelm Reich talvez o diagnosticaria como alguém tristemente enjaulado na couraça de um caráter que impede a manifestação vital da potência orgástica. Aquele risinho nervoso, que ao invés de disseminar alegria causa uma epidemia de mal-estar, é sintoma neurótico mais do que espontânea explosão de hilariedade. O Coringa ri sozinho, nunca em coro com os outros. E quando ele ri, sem ser acompanhado, sua solidão é sublinhada.

A todo momento, ele se refere à sua mãe que teria em sua infância lhe ensinado a sempre usar uma cara sorridente. Este “vestir um sorriso”, ainda que artificial e forçado, erguido a imperativo ético, trafegando entre as gerações, de mãe para filho, parece ter gerado uma neurose que fica muito emblematicamente representada pelo gesto de forças os músculos da cara e da boca para cima, com a força mecânica impositiva dos dedos da mão.

Por detrás da maquiagem ou da máscara do Coringa, não há jovialidade, mas sofrimento que beira o intolerável. Quando ele ri, não é de alegria, é muito mais como um soluço afetivo que lhe prende ao trauma ainda não superável. Riso triste, nada zaratustriano, o avesso daquele riso dionisíaco que Nietzsche propôs em sua obra magistral e que o próprio Fritz, em carne-e-osso, talvez nunca alcançou. Não tenho notícia de nenhuma foto em que os longos bigodes de Fritz Nietzsche estivessem iluminados por um sorriso que lhes brilhasse por debaixo.

Se há um fascínio em figuras como Arthur Fleck / O Coringa, isto talvez se deva à expressividade excêntrica com que manifestam suas contradições íntimas mais profundas e dilacerantes, em ruptura com a normose, com o politicamente correto e com padrões aceitáveis de conduta segundo o Ser Humano Careta e Medíocre. Interessante notar, neste contexto, que o diretor Todd Phillips, em início de carreira, em um filme estudantil que causou muito rebuliço, manifestou interesse por uma das figuras mais extremas e controversas do movimento punk, G. G. Allin:

Até aqui ninguém parece intrigado pelo início da carreira de Phillips, que inclui alguns anos estudando na Tysch School of the Arts da Universidade de Nova York, onde ele fez o documentário “Hated: GG Allin and the Murder Junkies” (algo como “Odiados: GG Allin e os Drogados Assassinos”), um retrato de um escabroso roqueiro punk que teve lançamento nos cinemas e em DVD – algo quase inédito para filmes estudantis. Abandonando a faculdade para terminar “Hated”, ele trabalhou na lendária, decadente e abrangente “Kim’s Video and Music”, uma locadora especializada em filmes raros e voltados a iniciados, que “graduou” seu próprio grupo ilustre de notáveis ex-funcionários, que se tornaram cineastas, músicos e artistas.

Ele co-dirigiu seu segundo documentário, “Frat House“, que trouxe uma sombria visão crítica da vida em uma fraternidade na faculdade e que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance, mas que afundou logo na estreia por causa de alegações de que membros da fraternidade teriam sido pagos para reencenar eventos. Seu terceiro filme, o “rockumentário” “Bittersweet Motel” (algo como “Hotel Agridoce”), levou Phillips em uma turné com a banda Phish, onde ele conheceu o diretor Ivan Reitman, e o resto, como se costuma dizer, é história. – Jacobin

G. G. Allin seria o equivalente musical do Coringa fílmico. O simplismo dos lemas do cantor punk, morto numa overdose de heroína em 1993, como “kill the police, smash the system” tem eco nas frases que os clowns levam aos riots de Gotham, demandando “kill the rich” ou coisa assim. De fato, um dos clowns performa o dito literalmente e assassina num beco o todo-poderoso Wayne, em um assassinato testemunhado pelo jovem Bruce Wayne, criança traumatizada que logo se tornará o riquinho que se transmuta em vigilante noturno, The Batman.

4. O ÚNICO ANIMAL QUE RI – E A MULTIPLICIDADE DOS RISOS POSSÍVEIS

Joker, um filme complexo, multifacetado, abordável por múltiplas perspectivas, é também um tratado sobre o riso, a comicidade, o lúdico. Sobre como a sociedade estadunidense lida com o entretenimento de comédia, sobre como este instiga sonhos e fantasias naqueles que gostariam de ser os novos Chaplins.

Pode até ser verdade que o homo sapiens é o único animal terráqueo que ri, mas há risos de uma imensa variedade de tipos. O riso neurótico do Coringa, descrito neste filme em seu próprio processo de devir-personagem (similar ao Batman Begins que dá início à Trilogia Cavaleiro das Trevas de Nolan), é bem diferente do riso cheio de escárnio e desdém que manifesta o personagem de Robert De Niro. Este último manifesta um humor arrogante, que rebaixa o outro, é o humor daquele privilegiado, cheio da grana, que pisa em alguém para ridicularizá-lo. Este humor repleto de desdém e crueldade, que menospreza os alvos de seu riso-machucante, recebe no filme uma sangrante “desforra” na cena em que o Coringa enfim adquire sua fama suprema e comete um homicídio live on TV.

O Coringa mata aquele cujo serviço é rir, na TV, seu riso elitista e escarninho. Revolta-se, assim, contra os abusos sem-graça que muitas figuras do star system cometem ao colocar sua comicidade a serviço do racismo, da misoginia, do elitismo. Jair Bolsonaro é um desses palhaços sem graça, que pensa estar sendo um gênio da stand-up comedy quando sobe num palanque para dizer que vai limpar a Pátria do Cocô (um “cô” de comunista, um “cô” de corrupto). Quem podia imaginar que o Brasil teria um chefe de Estado que um dia usaria seu Twitter para divulgação de fake news, goldenshower e demagogia anti-cocô? Apesar da horda Bolsominion urrar nas caixas de comentários seus kkks diante do “Mito”, fica óbvio que ele não passa de um macho tóxico da supremacia branca que, além de péssimo comediante, é um cara escroto, mucho escroto.

Recentemente, tivemos outro exemplo deste riso que fere o outro, e que é uma espécie de adaga pontiaguda manejada pela crueldade, na figura do Sr. Abraham Weintraub. Em seu Twitter, colhendo os “kkk”s da horda bolsonarista, o Ministro da Educação, depois que encontraram 39kg de cocaína em um avião da FAB que ia na comitiva de Jair Bolsonaro, disse: “Avião já transportou drogas em maior quantidade. Qual o peso de Lula e Dilma?” Não vi graça, mas não duvido que houve uma horda de hienas que tenha se regozijado com a tiradinha “esperta” de Weintraub, que ao invés de cuidar das atribuições de seu cargo resolveu comparar ex-presidentes petistas a “drogas bem piores” que “39 kg de cocaína”. Segundo Veja, o Ministro será alvo de processo movido pela Comissão de Ética Pública por sua piada infeliz.

Não posso terminar sem antes falar um pouco sobre as reflexões de Slavoj Zizek sobre o riso enlatado, que voltaram à minha cabeça durante e depois da projeção do filme. A tragicomédia do único animal que ri ganhou um novo capítulo com a invenção das sitcoms com riso enlatado (canned laughter): o espectador de Seinfeld ou Friends não precisa nem se dar ao trabalho de acompanhar com atenção os diálogos destas comédias-de-situação.

Você não precisa gastar neurônio tentando “pescar” a comicidade das falas para rir na hora oportuna. O estouro de risos gravados faz o serviço por você – é como se a TV desse risada por você. Ou então, caso você não queira a passividade extrema de ficar “pastando” diante da teletela enquanto seus ouvidos são inundados por torrentes de risos artificiais, você pode rir junto, sentindo-se parte daquele jovial auditório que se diverte junto. Basta que você siga a manada e ria junto – caso não esteja com preguiça. Caso esteja cansado demais após uma jornada fatigante de trabalho, simplesmente permita que os risos enlatados, inseridos na banda sonora da série, façam por você uma espécie de hahaha por procuração.

Este fenômeno da jovialidade artificial, ou seja, a comercialização de mercadorias cômicas que a indústria cultural “recheia” com risadas pré-fabricadas, é comparado por Zizek com outro fenômeno presente em sociedades tradicionais (ditas “primitivas”): o das mulheres especializadas em chorar nos funerais:

“A rich man can hire them to cry and mourn on his behalf while he attends to a more lucrative business (like negotiating for the fortune of the deceased). This role can be played not only by another human being, but by a machine, as in the case of Tibetan prayer wheels: I put a written prayer into a wheel and mechanically turn it (or, even better, link the wheel to a mill that turns it). It prays for me—or, more precisely, I “objectively” pray through it, while my mind can be occupied with the dirtiest of sexual thoughts.” ZIZEK, In These Times

Ora, o filme Joker também manifesta um desconforto Zizekiano com estes fenômenos das risadas falsas, dos risos enlatados, da ideologia don’t worry be happy. O “perigo” tão temido por muitos críticos talvez esteja na atitude de Arthur Fleck / Coringa de recusa do status quo que nos pede um risonho conformismo diante do estado das coisas. Na Gotham onde se acumula o lixo, onde grassam as ratazanas, onde playboys querem ser prefeitos, onde mega-corporações mandam e desmandam, onde na TV reinam riquinhos escrotos especialistas no riso escarninho, onde as redes de proteção colapsam diante das políticas neoliberais de austeridade, ergue-se o riso dissonante e perturbador do Coringa.

A perturbação ocasionada pelo lançamento deste filme se deve a seu potencial viralizatório, pela sua capacidade de conexão com um amplo “exército” de insatisfeitos que já está se cansando de usar a máscara dos sorrisos falsos. Tem muita gente que, como Arthur Fleck, não está achando graça em perder seu emprego, ser lançado ao precariado ou ao lumpenproletariado, numa sociedade de selvageria competitiva normalizada como se fosse o fim e o suprasumo da História. Assim como Tyler Durden, após dar um tiro na cabeça, assiste de camarote à demolição dos prédios das empresas de credit card ao som de “Where’s My Mind” dos Pixies ao fim de Fight Club, o personagem do Coringa amedronta o sistema pois ele cada vez parece mais pervasivo em nossa cultura.

O Coringa serve hoje como símbolo de uma “horda de bárbaros” que ameaça a pseudo-civilização capitalista-liberal de seu próprio interior. Presente em todo jogo de baralho, o Coringa é aquele que se recusa a ser um mero peão, just a pawn in their game, e que decide fazer a performance pública de sua própria loucura socialmente determinada. Ele é o espelho sombrio de uma sociedade doente e carcomida. É o Black Mirror encarnado em emblema de uma sociedade adoecida de armamentismo, encarceramento em massa, masculinidade tóxica, incels misóginos, spree killings.

O Coringa é um personagem que está entre as possibilidades de cada um de nós neste enlouquecedor mundo de predomínio do capital desumanizador, perigoso pelo convite que faz ao destravamento das anarquias incendiárias com as quais muitos crêem que podem fabricar um outro mundo a partir das cinzas do velho. O verdadeiro perigo, no entanto, consiste em acreditar na transformação social pela via individual, pela performance midiática de um, pelo efeito viral de alguém que devêm-famoso, quando toda transformação coletiva será sempre obra coletiva.

Não está descartada, porém, em nossa realidade profundamente marcada pela cultura pop, onde o cinema é uma indústria poderosa, que existam irrupções coletivas de um devir-Coringa de pessoas irritadas com uma opressão que, de tão comprida, já não tem nenhuma graça. É o temor das elites diante das vilanias viralizáveis dos oprimidos, cansados de tomarem porrada e dispostos a dar o troco (“dá neles, Damião!”, como no samba de Douglas Germano), o que explica este senso de perigo que envolve a recepção deste filmaço, provocativo e performativo, que é Joker. 

 

SIGA VIAGEM:

JESSÉ SOUZA

CHRISTIAN DUNKER

SLAVOJ ZIZEK

* * * *

P.S. MUSICAL

“THAT’S LIFE” – Frank Sinatra

That’s life (that’s life) that’s what people say
You’re riding high in April
Shot down in May
But I know I’m gonna change that tune
When I’m back on top, back on top in June
I said, that’s life (that’s life) and as funny as it may seem
Some people get their kicks
Stompin’ on a dream
But I don’t let it, let it get me down
‘Cause this fine old world it keeps spinnin’ around
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself flat on my face
I pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) I tell ya, I can’t deny it
I thought of quitting, baby
But my heart just ain’t gonna buy it
And if I didn’t think it was worth one single try
I’d jump right on a big bird and then I’d fly
I’ve been a puppet, a pauper, a pirate
A poet, a pawn and a king
I’ve been up and down and over and out
And I know one thing
Each time I find myself layin’ flat on my face
I just pick myself up and get back in the race
That’s life (that’s life) that’s life
And I can’t deny it
Many times I thought of cuttin’ out but my heart won’t buy it
But if there’s nothing shakin’ come here this July
I’m gonna roll myself up in a big ball and die
My, my

Dá neles, Damião!
Dá sem dó nem piedade
E agradece a bondade e o cuidado
De quem te matou

Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma.
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não

Sangue e suor pelo vão.
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão

Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação

Sangue e suor pelo vão
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Bate até cansar, e quando cansar…
Me chama.

(Douglas Germano)

Artvismo feminista negro e interseccional cintila no álbum de estréia da Bia Ferreira, “Igreja Lesbiteriana” (2019) [Download e Crítica]

A música é uma arma, ensinava Fela Kuti, e Bia Ferreira foi boa aprendiz: ela funde seu ativismo com sua arte, propulsionando um mix explosivo de produção cultural e engajamento político em seu primeiro disco. Na Noize, Brenda Vidal percebeu bem que “na cena musical independente e contemporânea, Bia parece ser a voz e a mente que mais traduz a filosofia Kutiana em seu trabalho”:

Multi-instrumentista, compositora e cantora, ela faz da sua arte o ponto de fusão com seu ativismo. Ou, como ela mesma conceitua: faz artivismo. Das dores e das alegrias, dos medos e das coragens, Bia faz da sua composição escrevivência – conceito da escritora Conceição Evaristo – e faz do seu disco de estreia Igreja Lesbiteriana: Um Chamado (2019) um manifesto de seu propósito de vida: nunca se calar, principalmente frente à opressão.

A fenomenal Bia Ferreira lança seu álbum de estréia após uma trajetória repleta de repercussões significativas no cenário cultural e político através de seus vídeos-virais. Em contraste com a viralização das fake news e da masculinidade tóxica que hoje hegemoniza o rolê dito mainstream, Bia despontou viralizando uma das grandes canções de protesto brasileiras do século 21 (com mais 8 milhões de visualizações do vídeo da So Far):

“Cota Não É Esmola”, uma das forças propulsionadoras do debut da Bia, já merece estar no cânone do que se produziu de melhor cá na música popular de Pindorama nos últimos anos. Híbrido de folk com rap, este hino feminista-negro é um manifesto completo em defesa da inclusão social através de uma educação autenticamente democrática. É também a denúncia, que Bezerra da Silva já fazia com seus sambas subversivos, do “Preconceito de Cor”– assim cantado por Bia:

Experimenta nascer preto na favela pra você ver!
O que rola com preto e pobre não aparece na TV!
Opressão, humilhação, preconceito.
A gente sabe como termina, quando começa desse jeito.

Na melhor tradição da trova narrativa, Bia evoca uma garotinha, talvez seu alter-ego lírico, que chega atrasada na escola não por preguiça ou negligência, mas por estar “desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais”:

Cuida de criança, limpa casa, outras coisas mais
Deu meio dia, toma banho vai pra escola a pé
Não tem dinheiro pro busão
Sua mãe usou mais cedo pra poder comprar o pão
E já que tá cansada quer carona no busão
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: não!
E essa é só a primeira porta que se fecha…

A lírica de Bia, nesta sessão nada nostálgica de relembrança e catarse de traumas passados, está calcada na sensação de portas que se fecham. O apartheid racista é repleto destas portas batendo nos narizes daqueles que insistem em afirmar sua dignidade humana, seu direito ao tratamento como cidadãos e não párias. Diante deste batalhão de portas que se fecham, Bia reabre os portais da igualdade com a força descomunal de seu canto, com o vendaval de seus versos.

Saltando, com sua lábia hábil, do individual para o coletivo, Bia Ferreira solta as mãos da menininha que evocou em sua narrativa e alça sua poesia àquelas alturas habitadas por Bob Marley, Gilberto Gil, Manu Chao: artistas capazes de expressar a “alma” de um povo que protesta contra seu próprio silenciamento e extermínio. Se ela afirma e reafirma que cotas raciais nas universidades não consistem em mimimi dos movimentos negros – “nem venha me dizer que isso é vitimismo! não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo!”, é devido a toda uma ancestralidade sangrenta, toda uma antiquíssima história de injustiça, abuso de poder, espoliação colonial, que projeta as trevas de seu domínio tirânico sobre o nosso presente:

São nações escravizadas
E culturas assassinadas
É a voz que ecoa do tambor
Chega junto, venha cá
Você também pode lutar, ei!
E aprender a respeitar
Porque o povo preto veio para revolucionar…

Tudo eclode com um “não deixe calar a nossa voz não!” que tem tudo pra se tornar um dos lemas propulsores do movimento anti-censura à que já estamos condenados, enquanto agentes culturais “subversivos” e inquietos, no Brazzzil da ditadura BolsoNerus. Aguerrida, combativa, mas essencialmente pacífica, Bia levanta as armas de suas canções com a força de quem nas raízes sabe se nutrir com os cadáveres de heroínas caídas. Não é difícil lembrar de Marielle Franco – e do luto dolorido vivenciado não só por Mônica Benício, mas por milhões de mulheres que engrossaram o caldo do #EleNão, maior movimento cívico a se manifestar em 2018 no Brasil – ao ouvir Bia cantar: “Nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai.”

Bia Ferreira, assim como Talíria Petrone na política, assim como Mel Duarte na poesia, são sintomas deste Florescer da Voz, força que também vem desta semente replicável em que Marielle Franco se transformou. A História dirá se Marielle desempenhará, por aqui, papel semelhante ao ícone (cooptado ou não pelo consumismo capitalista) Che Guevara, transformado após sua morte num símbolo mobilizador de força inaudita.

O “chamado” de Bia, ecoando o de Marielle, consiste em nos convencer a “levantar a bandeira do amor” – contra todas as igrejas e seitas que enxergam pecado e lançam os anátemas (ou coisa pior) contra os amores considerados ilícitos. A exemplo do amor lésbico que Bia canta, celebratória, esfregando na cara dos homofóbicos a beleza sedutora, quase irresistível, de sua música de mulher livre, voadora, que “não mede amor em conta-gotas” (para lembrar uma linda canção do Adriel Vinícius, “Longe Daqui”).

Quem foi que definiu o certo e o errado?
O careta e o descolado?
A beleza e o horror?
Quem foi que definiu o preto e o branco?
O que é mal e o que é santo?
O ódio e o amor?
Cada um é dono da sua história
Quantos gigas de memória
Você separa pra sua dor, hein?

É assim esta Igreja Lesbiteriana – Um Chamado: um templo erguido para os questionamentos ácidos, para as questões bem colocadas, para a arte de pôr os pontos de interrogação bem no fundo (como recomendava Wittgenstein). Mas, para além do tom interrogativo, cáustico e crítico, Bia Ferreira também é muito exclamativa. Uma mulher-exclamação, cintilando chamados à luta em prol do amor celebrado em todas as suas formas e manifestações, para além das cercas binárias dos caretas e dos autoritarismos abusivos impostos pela masculinidade tóxica e pela heterossexualidade compulsória:

Então ame, e que ninguém se meta no meio!
O belo definiu o feio pra se beneficiar!
Ame e que ninguém se meta no meio!
Por que amar não é feio neguinho, o feio é não amar!
Levante a bandeira do amor, neguinhô-oh-oh!

Exclamativa ao extremo, “Diga Não” – que não entrou no disco, mas foi sucesso no vídeos que pavimentaram o caminho de Bia – nos convoca para todas as potências dos nãos: não ao “racismo, ao preconceito, ao genocídio do povo negro”:

Diga não à polícia racista
Diga não à essa militarização fascista
Diga não
Não fique só assistindo
Muita gente chora irmão enquanto você tá rindo
Diga não! Diga não!

O álbum de Bia, evitando o caminho da explicitação política logo de cara, inicia-se com a cantora a capella fazendo uma espécie de evocação dos orixás, convocando ancestralidades que a guiem: “Brilha Minha Guia”, música que abre o disco, tem sintonia e sinergia com o álbum póstumo de Serena Assumpção, Ascensão.

Convocados os orixás, Bia embarca no reggae pesadão de “Não Precisa Ser Amélia”. Eis uma obra-prima da canção de protesto em que a trovadora decide tomar as dores de suas irmãs, num espírito de sororidade, ofertando sua canção a várias mulheres sofridas que em nossa sociedade estão oprimidas por variadas explorações, espoliações e abusos:

Canto pela tia que é silenciada
Dizem que só a pia é seu lugar
Pela mina que é de quebrada
Que é violentada e não pode estudar
Canto pela preta objetificada
Gostosa, sarada, que tem que sambar
Dona de casa que limpa, lava e passa
Mas fora do lar não pode trabalhar.

Uma multidão de mulheres é evocada na canção que termina filosofando, com Simone de Beauvoir, sobre a diversidade intrínseca ao feminino e o processo de trânsito que faz com que alguém não nasça mas se torne mulher: “Seja preta, indígena, trans, nordestina / Não se nasce feminina, torna-se mulher.”

Nesta peça, Bia está em diálogo com o clássico samba “Ai, Que Saudade da Amélia!”, de Ataufo Alves e Mário Lago. “Lançada pela primeira vez em 1942 e considerada uma obra-prima pelo historiador da música brasileira Jairo Severiano“.

Esta música (ouça na voz de Ataufo)  foi inspirada na figura da empregada de Aracy de Almeida e consagrou na sociedade um conceito de “amélia” como sendo a mulher submissa e companheira do homem em todas as dificuldades, a tal ponto que foi integrada ao vocabulário no Dicionário Aurélio com o seguinte conceito: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”. (Wiki)

“Her first place”, de G. D. Leslie

Em “De Dentro do Ap”, o clima de sororidade e de sisterhood que despontara em “Não Precisa Ser Amélia” é preterido em prol de algo muito mais treta. Bia Ferreira, fazendo-se porta-voz do feminismo negro, lança os dardos de seus argumentos contra o feminismo branco, liberal, privilegiado. Seu discurso torna-se cáustico, corrosivo, de alta provocatividade, atacando a hipocrisia das mulheres privilegiadas envolvidas em certas vertentes do movimento feminista:

De dentro do apê,
Com ar condicionado, Macbook, você vai dizer:
Que é de esquerda, feminista, defende as muié.
Posta lá que é vadia, que pode chamar de puta.
Sua fala não condiz com a sua conduta!

Vai pro rolê com o carro que ganhou do pai
Pra você vê, não sabe o que é trabai
E quer ir lá dizer
Que entende sobre a luta de classe
Eu só sugiro que cê se abaixe
Porque meu tiro certo, vai chegar direto
Na sua hipocrisia…

É Bia exercitando através da arte uma espécie de Pedagogia pro Opressor, ou A Oprimida Empoderada Ensina: evocando várias experiências vividas das mulheres negras, ela quer educar a “branquitude” arrogante dos que nunca viveram nenhum dos seguintes cenários:

Quantas vezes você correu atrás de um busão
Pra não perder a entrevista?
Chegou lá e ouviu um “não”?
– Não insista,
A vaga já foi preenchida, viu?
Você não se encaixa no nosso perfil!

Quantas vezes você você saiu do seu apartamento
E chegou no térreo com um prato de alimento
Pra tia que tava trampando no sinal?
Pra sustentar os quatro filhos
que já tá passando mal de fome?
Quantas vezes cê parou pra perguntar o nome
E pra falar sobre seu ativismo?
Quando foi que cê pisou na minha quebrada,
pra falar sobre o seu Fe-mi-nis-mo?

Sempre deixando pra amanhã
Deixando pra amanhã
A miliano que cês tão queimando sutiã…

O clima vai esquentando até que Bia dispara a sua farpa mais afiada: “sua vó não hesitou quando mandou a minha lá pro tronco”. A acusação, à mulher branca privilegiada de hoje, estende-se às gerações passadas: a “vó” da patricinha, feminista de Macbook, esteve ao lado dos escravocratas, enquanto a vó da mina-de-quebrada penou nos troncos sob os açoites dos capatazes após o brutal desenraizamento que os sequestrou do seu lar africano.

Eis, portanto, uma compositora que, apesar de sua juventude, tem realizado uma arte com consciência histórica, buscando conexão com a ancestralidade, exercendo uma crítica social inter-geracional e interseccional, o que também se manifesta em “Mandela” (“Mandela, Mandela: mudou o mundo numa cela / Lutou pela liberdade, terminou sem ela”). Canção que não entrou no álbum, mas é um exemplo icônico da capacidade de Bia em escrever canções políticas, manifestos cantados, que se alçam contra o “maldito apartheid” em composições de densa tessitura histórica.

Na Europa, cuja sanha imperialista ela tanto denuncia, Bia Ferreira ensaiou uma recente Invasão Portuguesa. Em seus shows nas terras de Camões, chamou a atenção do Jornal Público: “Ela vem espalhar a palavra: não é soul, r&b, rap nem reggae. É tudo isso, é MMP – Música de Mulher Preta.” O caderno de cultura Ípsilon, apelidando-a de “missionária da revolução”, forneceu talvez uma das melhores definições desta artivista “para quem cantar é educar”.

Em 2018, Bia Ferreira viu a sua canção Cota Não É Esmola tornar-se viral nas redes sociais. Nela, a cantora, compositora e activista brasileira de 25 anos fala em defesa do sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva, que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros, pardos e indígenas de classes mais baixas. Por causa dela, Caetano Veloso diz ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira”. E de certa forma, é isso que ela quer: chegar ao máximo de pessoas possível para “passar informação e educação”.

Cota Não É Esmola” é uma explicação didáctica para pessoas brancas que são contra as quotas e é também uma música em que as pessoas pretas, pobres e indígenas podem ver a sua história contada ali e contá-la a outras pessoas. É isso que faz a informação circular”, diz Bia Ferreira em conversa com o PÚBLICO, um dia depois de o Ministro da Educação do novo governo de Jair Bolsonaro ter declarado que a “ideia de universidade para todos não existe” e que ela “deve ser ocupada por elites intelectuais”, lembra a compositora. “Corre-se o risco de retroceder mais do que conseguimos evoluir, daí a necessidade de falar sobre isso sempre que tivermos oportunidade”, assinala…

Lado a lado com sua companheira Doralyce,unida com outras artistas também fortalecendo-se na atualidade como Silvia Duffrayer ou Nina Oliveira, Bia Ferreira consolida-se como uma das mais potentes expressões da Música Popular Brasileira na atualidade, sempre contestando os estereótipos – como fizeram em “Miss Beleza Universal”.

Cintilam no álbum de Bia canções libertárias, cantadas com alta expressividade, propulsionadas por um lirismo aguerrido, cheias de groove e charme, epidêmicos convites a entrar dançando na luta até que o Patriarcado caia. Depois, a festa começa de fato, tendo a História cessado o pesadelo da opressão para se tornar, oxalá, nossa colaborativa construção coletiva.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Outubro de 2019
Ponto de Cultura A Casa de Vidro


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MANOS E MINAS – Completo

CURTA TAMBÉM:

“MULHERES” – SAMBA DE SILVIA DUFFRAYER E DORALYCE

 

“Nós somos Mulheres de todas as cores
De várias idades, de muitos amores
Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei
De Elza Soares, mulher fora da lei
Lembro Marielle, valente, guerreira
De Chica da Silva, toda mulher brasileira
Crescendo oprimida pelo patriarcado
Meu corpo, minhas regras
Agora mudou o quadro

Mulheres cabeça e muito equilibradas
Ninguém tá confusa, não te perguntei nada
São elas por elas
Escuta esse samba que eu vou te cantar:

Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade
Não sou sua projeção, você é que se baste
Meu bem, amor assim quero longe de mim
Sou mulher, sou dona do meu corpo
E da minha vontade
Fui eu que descobri Poder e Liberdade
Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim…”

Doralyce Gonzaga e Silvia Duffrayer
Rio de Janeiro, 2018

Versão paródica do samba do Martinho da Vila
Reblogado de Samba Que Elas Querem
https://www.youtube.com/watch?v=B5YJqc-rK-A

NÃO HÁ REVOLUÇÃO SEM INDIGNAÇÃO MORAL – Reflexões sobre “O Jardineiro Fiel” (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles, na companhia de Jankélévitch

“Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral.”  JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em “O Paradoxo da Moral” (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

 

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), lançado em 2005 e dirigido por Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a Cegueira), é um belíssimo filme que nos impulsiona a refletir as multiformes injustiças de que o mundo está repleto e, em meio a tanto caos e fúria, o florescimento desta força material ainda misteriosa e mal compreendida: a indignação moral. O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle…

Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia… que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância…”, p. 21). “As montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal… só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)? O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).

É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência…” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador – e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este “ponto de vista de Terceiro Mundo” que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante – e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental… E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar… Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população…), que escondem interesses e atos repugnantes.

A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem… o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. “Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito”, ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas – cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas… – na eventualidade de uma grande epidemia global. 

Virando pelo avesso o hino utópico “Imagine” de John Lennon, vamos fazer um exercício de compor um quadro de uma “Imagine” distópica. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, se uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. 

Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem diante das políticas impostas pelas empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres… Que formidável ferramenta de “limpeza étnica” não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica… 

É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn’t be so sure. Gosto que “O Jardineiro Fiel”  seja uma “escola da suspeita” e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won’t get fooled again…

Há razões bem mais “pessoais” que explicam porque este filme de Meirelles é pra mim tão querido, altamente prezado: ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia a um só tempo moral e física. Um filme que eu ousaria chamar até mesmo de “sábio”, por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Leio nele, latentes, estas mensagens de sophia: o excesso de prudência não nos deve impedir de ousar coragens. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades – armadas até os dentes! – que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados… 

Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, da indignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência, é uma mulher sábia em um mundo transtornado por injustiças multiformes.

 A tragicidade do filme está no fato de que o “jardineiro fiel” vivido por Fiennes é o sobrevivente de uma catástrofe pessoal e coletiva – a exclusão violenta de Tessa deste mundo dos vivos, que não deixa de evocar exemplos concretos, que atravessam a história, como Flora Tristán, Rosa Luxemburgo ou Marielle Franco. A fidelidade que ele deve a Tessa transcende a própria coexistência dele entre os vivos: é lealdade a uma morta, ao legado, à chama moral que a animou enquanto vivia.

É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, como formigas bradando contra elefantes e sendo por eles esmagadas. Ou como pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. 

Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” [“Não há refúgio contra a mudança no universo”], ensinava Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto. Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas..

Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não tenham percebido que o céu de Deus está vazio – apesar de estar repleto de estrelas. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! 

“Platão, num diálogo intitulado Teeteto, faz Sócrates falar sobre o sábio Tales: ‘Somente o corpo do sábio tem localização e morada na cidade. Seu pensamento voa por toda parte, sondando os abismos da terra e seguindo a caminhada dos astros […] sem nunca se deixar descer de volta ao que está imediatamente próximo. Assim, Tales observava os astros e, olhos fixos no céu, caía num poço. Uma trácia, criada viva e trocista, caçoa de seu zelo em saber o que acontece no céu, logo ele, que não sabia ver o que tinha diante de si, a seus pés. Essa caçoada vale contra todos os que passam a vida filosofando.’ (174 a-b) Esse exemplo mostra portanto que um sábio não deve olhar unicamente para o seu modelo ideal e racional, mas deve igualmente manter um olhar na terra firme, isto é, na realidade.” – JANKÉLÉVITCH, Vladimir.  Curso de Filosofia Moral.  Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 110. Trad. Eduardo Brandão

Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação, é desperdiçar tempo precioso no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa… E que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de uma heroína sem deus, uma heroína que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade. Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair com toda a vida na estrada da alteridade? Por que não ousar este mergulho na realidade, inclusive na mais dura, na mais amarga, na mais letal das realidades?

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme, auxiliado pelo talento e pela beleza descomunais de Rachel Weisz.

 Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante… 

Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neoliberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, aliás, que é outro nome para o velho capitalismo selvagem que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações transnacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis… são criminosos! 

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou nem porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? 

Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não nos satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com as injustiças grotescas que maculam o planeta? E o que pode o cinema, como mobilizador de afetos, para inspirar a fazermos juntos uma outra realidade possível, menos sórdida, mais camarada, transcendendo a atual condição em que tantas mortes imerecidas e tantas dores desnecessárias ainda imperam?

Se o filósofo Jankélevitch tem razão ao vincular a revolução à necessidade de uma indignação moral que a instigue – “para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral”, escreve o grande pensador -, então não se pode desprezar o cinema como força que difunde, através da nossa identificação com personagens representados na telona, a possibilidade de incandescência destas indignações sublimes e revoltas magníficas sem as quais a nossa vida coletiva chafurda no lodaçal dos imobilismos cretinos ou dos retrocessos bárbaros.

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – http://www.acasadevidro.com

 

“A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” – Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo francês, professor da Sorbonne (de 1951 a 1979), em seus Cursos de Filosofia Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.

Lágrimas pela democracia que despenca no abismo: Petra Costa e a crônica sensível e reflexiva do Golpe de Estado no Brasil

“Eu sou o próprio Josef K“, ironiza Dilma Rousseff, comparando-se ao personagem de Franz Kafka em O Processo. “Mas com a diferença de que pelo menos tenho um bom advogado”, complementa a ex-presidenta, em elogio a José Eduardo Cardozo. São cenas poderosas como esta que tecem os fios de Ariadne deste impactante documentário Democracia em Vertigemde Petra Costa (disponível no Netflix), essencial para que possamos decifrar a atualidade e traçar altos planos pra contra-atacar o atual predomínio do MinoTaurus.

O filme pode ser considerado como a terceira crônica cinematográfica que se debruça sobre o Golpe de Estado parlamentar-jurídico-midiático que culminou com destituição de Dilma Rousseff em 2016 e preparou o terreno para a fraude jurídica montada para o encarceramento de Lula em 2018. Antes dele, já haviam sido lançados (e já foram resenhados aqui n’A Casa de Vidro) as produções O Processo de Maria Augusta Ramos (de uma imersão exaustiva nas entranhas da Besta-Fera que é nosso Congresso e seus sinistros kafkianismos) e O Muro de Lula Buarque de Holanda (interessado sobretudo numa reflexão sobre a segregação ou apartheid que se explicita na polarização política que nos últimos anos vimos exacerbar-se). Os três filmes são importantíssimos para que possamos decifrar melhor as verdades, muitas delas tristes e intragáveis, sobre esta nação com fratura exposta.

Após realizar dois filmes repletos de poesia visual e delicadeza investigativa (Elena e O Olmo e a Gaivota), a talentosa jovem cineasta Petra quis se debruçar sobre nosso infortúnio coletivo, sobre a distopia real desta terra brasilis “com um longo passado pela frente”, pra relembrar a boutade do Millôr Fernandes. O modo como ela termina seu filme,  deixando no ar as questões relevantes e sem resposta, é um bom indicativo do tom da obra, também impregnada pelo violão afrosambante de Baden Powell e Vinícius de Moraes:

Cineasta Petra Costa

“Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos?”

A máscara da civilidade caiu totalmente com a eleição de Bolsonaro e sua necropolítica que parece ter um mandamento único: “matai-vos uns aos outros!”. O mito do “homem cordial”, mais do que nunca, revelou-se uma farsa edulcorada, um conto-de-fadas enganador. O Brasil é território de ultraviolência e ultrainjustiça, situação piorada agora que estamos sob o (des)governo de um ultradireitista obcecado com armas de fogo e seriamente adoecido por uma psicose falocêntrica altamente perversa. Como lidar com essa vertigem de ver as ratazanas dos porões da Ditadura re-vomitados no nosso presente e ocupando posições de altíssima responsabilidade?

O tema da vertigem, para além das evocações que pode ocasionar com clássicos do cinema que já o exploraram (notavelmente Vertigo – Um Corpo Que Caia obra-prima de Alfred Hitchcock), é também a maneira que Petra encontra para fugir dos dogmatismos e adentrar o campo em que é mestra: o do “filme-ensaio” repleto de insights subjetivos, percepções que iluminam com uma luz toda pessoal o âmbito da coletividade que compartilhamos. Petra mostra-se assim uma poetisa da imagem e um espírito livre e nada dogmático, sem temor de expor suas teses.

Teses, por exemplo, sobre Brasília, a “Cidade do Futuro”, o sonho de Juscelino, a fantasia da Modernidade, com toda a majestade arquitetônica de Niemeyer, que de utopia converteu-se em distopia: não poderia ter sido de outro modo, já que construíram a capital no Planalto Central, num vaziozão no meio de Goiás, bem longe do fuzuê e do escarcéu das massas populares que acossavam de muito perto o poder em Salvador ou no Rio de Janeiro, nossas duas primeiras capitais. No filme de Petra, a própria localização geográfica de Brasília, este colosso artificial erguido no “nada” goiano, impede a democracia plena e direta pois o poder se distancia dos representados.

Por estar “isolada” da população brasileira, dificilmente alcançável pela maioria dos habitantes da pátria, Brasília constitui-se como metrópole dos privilegiados, QG da Elite do Atraso. Assim caímos mais profundamente no pântano de uma corrupção endêmica e sistêmica em que a casta de políticos eleitos, encastelados na Brasília feita para os carros e não para as gentes, tece tenebrosas transações com os capitalistas, os banqueiros, os empresários. A Ditadura Militar, por exemplo, foi época de intensa corrupção, revelada por ex. pelo livro Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, de Pedro Henrique Pedreira Campos:

“A análise crítica identifica na ditadura civil-militar brasileira do período 1964-1988 a origem da inserção, contaminação e subordinação do tecido orgânico do Estado aos interesses do segmento dos empreiteiros. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Economia, Administração, Negócios, Turismo, Hotelaria e Lazer”. Em foco, o crescimento e consolidação das principais empresas do setor de construção pesada no Brasil, numa articulação que, segundo o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a modernização capitalista e a internacionalização das “gigantes do setor”. Ao demonstrar as injunções políticas, estratégias e práticas que permeiam as relações da iniciativa privada e poder público e sua legitimação por “intelectuais orgânicos”, a publicação constata e fornece elementos de compreensão acerca de “Estado, Poder e Classes Sociais no Brasil”, conforme  o prefácio, assinado pela historiadora Virgínia Fontes.

Tenho quase a mesma idade que Petra: nasci em 1984, vigésimo ano da Ditadura Militar, que estava então em seus estertores. O bebê que fui não pôde estar atento e alerta para as imensas massas que tomavam as ruas naquele ano, demandando em alto e bom som por “Diretas Já!”, só para sofrerem a derrota de ter sua reivindicação recusada pelo Congresso Nacional. Esta sensação de “ter a mesma idade que a Democracia” brasileira anima o projeto de Petra, dá a ele um teor de manifesto geracional que pretende expressar uma percepção compartilhada por muita gente que está hoje na faixa dos 35 anos de idade.

Ao recuperar imagens históricas de Lula quando um jovem sindicalista, de 33 anos de idade, pernambucano aguerrido imigrado para São Paulo, onde lideraria as históricas greves da indústria automobilística no ABC do fim dos anos 1970, Petra Costa acerta na mosca: seu filme ganha com interlocuções e ressonâncias com obras pregressas que marcaram o cinema brasileiro, em especial o magistral ABC da Greve de Leon Hirzsman e várias obras de Renato Tapajós. Além disso, dá à nossa percepção de Lula o devido grau de densidade histórica que ele merece, já que não se trata de pessoa anônima ou esquecível, mas alguém sobre quem escreverão os historiadores do futuro quando quiserem abordar as grandes personalidades globais da época que ora atravessamos.

O fato desde filme ser a produção de uma cineasta nascida nos anos 1980 só torna mais interessante outra de suas teses: a de a Democracia brasileira tem mais ou menos 3 décadas de vida, e talvez fosse uma ilusão que cada vez mais vai caindo em descrédito, para nós que temos 30 e poucos anos, acreditar que a tal democracia era robusta, madura, indestrutível. O filme de Petra faz chorar pois a democracia que ela retrata não é um colosso, uma fortaleza, um Hulk, mas sim a fragilidade encarnada – e nós os que temos a responsabilidade de fortalecê-la. Juntos. Destacando isso, a revista Marie Claire, que entrevistou a cineasta, fez um bom prefácio ao filme:

“A cineasta Petra Costa tem quase a mesma idade da democracia brasileira. A primeira nasceu em 1983 e a segunda voltou a respirar em 1984, com o fim da Ditadura Militar. Por isso, Petra explica, faz parte de uma geração que cresceu confiante nas instituições do país e com a certeza de que a democracia amadurecia e se fortalecia em um movimento paralelo ao de sua vida. (…) Ao longo de três anos, Petra entrevistou dezenas de políticos de todo o espectro ideológico. Constam no filme tanto um entusiasmado Jair Bolsonaro mostrando seu gabinete de deputado e os quadros que possuía dos generais do governo militar; como uma resiliente Dilma Rousseff pós-impeachment. Com acesso privilegiado aos bastidores do poder, Petra contou também com cenas registrada por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da presidência nos anos de governo Lula e que o acompanhou até sua prisão, inclusive quando deixou o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo rumo ao aeroporto de Congonhas para entregar-se à Polícia Federal.

Em entrevista à Marie Claire, Petra conta como foi o processo de criação e captação das imagens do filme e analisa o cenário político brasileiro atual.

Marie Claire – Quando nos falamos em 2016, sua intenção era filmar os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff. Como tomou a decisão de ampliar o filme e terminar com a eleição de Jair Bolsonaro?

Petra Costa – Minha sensação é de um dia ter ido filmar uma manifestação e no meio dela tropecei e caí no buraco de um coelho que me levou numa jornada de 1001 noites. O filme pra mim não nasceu do desejo de filmar o impeachment, mas da sensação vertiginosa que o chão da democracia brasileira estava se abrindo embaixo dos meus pés. O chão que, desde que eu nasci, era uma das poucas coisas que eu tomava como certeza. Que a democracia brasileira e eu tínhamos a mesma idade e que estávamos amadurecendo e nos fortalecendo juntas. Em 2016, ao ver pessoas pedindo pela volta da ditadura militar, outros pela volta monarquia, percebi que essa tal democracia era muito mais frágil do que eu imaginava. O filme surgiu do desejo de documentar esse processo de permanente crise política. E o processo claramente não se encerra no impeachment. Acredito que seu primeiro ciclo comece em 2013 e termine com a última eleição. Claramente no entanto a vertigem não CTG acabou e entra agora na sua segunda temporada.

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA: https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2019/06/em-democracia-em-vertigem-petra-costa-questiona-os-limites-da-democracia-brasileira.html

Petra fez um filme comovedor, em que entretece sua biografia pessoal com a história nacional. Ao mesmo tempo que rememora a vida de seus pais, ativistas de esquerda que combateram a Ditadura, revela também alguns de seus laços familiares com Aécio Neves e com os fundadores da construtora Andrade Gutierrez. Partindo do passado distante, lembra-nos que essa terra foi batizada pelos colonizadores portugueses com o nome de uma planta cuja tintura vermelha foi a primeira commodity explorada pelos invasores – uma exploração que levou o pau-brasil às beiras da extinção.

O filme é magistral no retrato dos nexos e vínculos entre o golpeachment contra Dilma e a farsa jurídica montada por Sérgio Moro, em conluio com a mídia corporativa e os procuradores da Lava Jato (Dallagnol e companhia), para aprisionar Lula e evitar assim que o PT vencesse as eleições presidenciais pela 5ª vez consecutiva. O filme lança ao mundo as evidências concretas de que o processo contra Lula é parte do Golpe de Estado e ychega em momento extremamente oportuno, coincidindo com a Operação #VazaJato e com o alto impacto dos leaks recentemente disponibilizados a The Intercept por whistleblowers. 

Petra expõe, no filme, aquele ridículo Power Point de Dallagnol que, à semelhança de um processo medieval, tenta fazer de Lula uma espécie de Satanás, centro e líder do maior esquema de corrupção da história do mundo. O que contrasta com a inexistência de provas e com a argumentação pífia, beirando o ridículo, de um dos acusadores-inquisidores: não podendo provar a posse do imóvel no Guarujá, os procuradores inventaram a noção absurda de que a falta de escritura provaria o intento de ocultação de propriedade por parte de Lula.

Incapaz de comprovar qualquer vantagem ilícita que Lula pudesse ter auferido, como a atribuída reforma no triplex, condenaram o ex-presidente por “atos de ofício indeterminados”, uma bizarrice jurídica que envergonha todo o Judiciário nacional. É lawfare, e foi mal ocultada – tanto que já afloraram 1.700 páginas de evidência de que este julgamento fraudulento merece cair na nulidade – e Lula deve ser libertado e ter direito a novo julgamento, desta vez com um juiz mais justo do que o canalha Moro.

Lúcido quanto a este processo, o ex-presidente Lula revela, no filme, estar plenamente consciente de que o Golpe não estaria consumado apenas com a deposição de Dilma. Eles não queriam somente tirar a primeira mulher eleita presidenta, com o pretexto das manobras contábeis conhecidas como “pedaladas fiscais”: depois disso, a corja que desrespeitou o voto de 54 milhões de eleitores em 2014 não iria simplesmente permitir que Lula, líder disparado nas intenções de voto para 2018, voltasse ao poder.

“Não adianta tentar parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar eu sonharei pela cabeça de vocês!” – esta é uma das comoventes frases de Luiz Inácio Lula da Silva, discursando no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, alguns instantes antes de se tornar um preso político no conflagrado Brasil de 2018 (recentemente biografado por Mário Magalhães em seu Entre Lutas e Lágrimas). A crônica daqueles tensos instantes que precederam a prisão de Lula é certamente um dos pontos altos do filme e o primeiro registro histórico que chega ao cinema daquele evento em que vimos uma prisão impossível. 

Como escreve Maringoni, “a sensação de estupefação e entorpecimento de espectador no final da fita pouco a pouco se desvanece quando atentamos para o som ao redor e percebemos que o admirável mundo novo dos milicianos de toga, farda e terno começa a apresentar rombos no casco.”

Por concentrar-se na crônica, muito bem concatenada, do processo golpista que tirou o PT do poder, desrespeitando violentamente a vontade soberana do povo que se expressou nas urnas em 2014 e que voltaria a se expressar em 2018, caso tivesse havido um processo eleitoral legítimo (que não houve!), o filme não se dedica muito a investigar o que eu chamaria de psicose-de-massas que conduziu Bolsonaro ao poder.

Para explicar esta outra bizarrice histórica do Bolsonarismo – o fato de um deputado há quase 30 anos no poder, claramente parte de uma classe política parasitária, de pífia ou nula contribuição para o bem público, que enriqueceu sua própria família ao inserir 3 de seus filhos no jogo de alta lucratividade do Estado (visto como balcão de negócios da Burguesia), pudesse conquistar, na exclusão de Lula, 57 milhões de votos que o elegeram… -, Democracia em Vertigem não vai fundo. O filme não menciona nem a fraude das fake news pagas com caixa 2, nem as tenebrosas transações com os magnatas evangélicos. Ainda sobrou muito tema para outros documentários que explorem a Marcha de nossa democracia para o abismo, e as razões que explicam que seu algoz seja esta execrável figura que, no feriado de Corpus Christi de 2019, foi flagrado fazendo arminha na Marcha Para Jesus.

 

Avalio que os mercadores da fé, vendedores de ilusões alienantes, como Malafaia e Edir Macedo, dentre tantos outros pastores canalhas, foram diretamente responsáveis pela construção do “mito” Bolsonaro. Não se entende a “canonização” deste político medíocre, irresponsável e violento sem todo um processo de manipulação teocrática das consciências populares capturadas na teia do neopentecostalismo evangélico e sua Teologia da Prosperidade.

É verdade que a história do cristianismo está repleta de episódios lamentáveis, de cruzadas e inquisições, de bruxas e hereges reduzidos a cinzas, de cientistas silenciados e perseguidos, de violência assassina contra os transviados e dissidentes que discordaram dos dogmas, de censura e perseguição a ateus e agnósticos, de preconceito e discriminação contra minorias sexuais, de intolerâncias contra outras crenças, de papas acobertando escândalos de pedofilia e dando apoio para regimes cristofascistas – horrores de tal monta que não cabem num meme (mas estão lá nos livros de Saramago, Diderot, Nietzsche, Voltaire, Onfray etc.). Apesar desta história pregressa nada louvável, a instrumentalização da fé por parte da extrema-direita Rambonazista, em especial o conluio entre igrejas evangélicas neopentecostais e o sujeito que adora Tortura, Grupos de Extermínio, Milícias e Armas, é um dos episódios que mais me enche de nojo em todo o trôpego caminhar desta religião sobre a face da Terra.

Acredito que Jesus estaria hoje vomitando de repugnância diante daquilo que fazem em seu nome – o nazareno pode até ter sido um cara com ensinamentos éticos interessantes, mas o seu fã-clube está fazendo um péssimo serviço com sua reputação póstuma. Como pode ter gente que se diz cristã e idolatra este malévolo Capetão, este mito-fake explicitamente racista, este Machão Tóxico homofóbico e misógino, este estrupício ético e cognitivo, como se fosse um enviado de Deus? Deus, se existisse e fosse bom e justo como O pintam os seus crentes, jamais se utilizaria de tal instrumento ignóbil pra seus fins.

Tristes tempos de “cristofascismo” em que pseudo cristãos idolatram um Mi(c)to covardão, incapaz de encarar os debates nas eleições, com a idade mental de um bully de 12 anos que quer construir seu próprio senso de superioridade através da humilhação dos outros. O atoleiro em que caiu nossa democracia tem muito a ver com um tema que o filme de Petra deixa sem mencionar: o obscurantismo conexo à hegemonia desses teocratas evangélicos (a exemplo da Ministra Damares Alves e de escrotões como Marco Feliciano, Magno Malta etc.).

Um capetão na Marcha pra Jesus

Os eleitores do Coiso constituem, em amplas manadas, o rebanho desses teocratas corruptos, oportunistas e milionários, da laia de Malafaia ou de Edir Macedo. Jesus Cristo foi torturado e morto por aqueles que, na época, faziam apologia da tortura como vem fazendo entre nós o Capetão fã do Ustra. Jesus jamais compareceria a esta marcha feita em seu nome senão para cuspir na cara dos interesseiros organizadores desta mega manipulação demagógica e que fede a fanatismo religioso.

Foi Paulo Freire, grande mestre hoje demonizado pela extrema-direita Bozorâmbica e pelos pastores delirantes em seus templos-shopping, quem ensinou que a democracia necessita visceralmente de uma educação libertadora, que faça com que os oprimidos possam superar a consciência ingênua e mistificada, rumo à consciência crítica, condição necessária para sua plena atividade cívica. Sem educação pública, gratuita, laica, de qualidade, que forme para o senso crítico e para que sejamos sujeitos históricos, sempre voltaremos a sentir vertigem diante das beiras-de-abismos em que voltamos a estar prestes a despencar.

Pode-se explicar bem que um grupo político sabidamente canalha, como o clã Bolsonaro, faça uso em sua campanha eleitoral de táticas calhordas de difamação do adversário, de caixa 2, de burla à lei eleitoral, de sensacionalismo midiático – ou seja, que esses caras joguem sujo é esperado. Ingenuidade seria esperar fair play democrático de quem sempre odiou a democracia e que, uma vez no poder, tem feito tudo para miná-la e destrui-la ainda mais, rumo à autocracia dos idiotas.

Porém, a canalhice de um grupo político como o PSL (Partido Suco de Laranja) é mais compreensível do que a adesão massiva a este projeto de país elitista, machista, racista, homofóbico, ecocida e desumano. Só se compreende os mais de 57 milhões de votos no Capetão com uma análise da psicologia de massas que tente compreender como se deu a produção massificada de consciências em que se somam a ingenuidade, a credulidade, a alienação, o analfabetismo histórico-político e, last but not least, uma espécie de perversão sádica – o gozo com o sofrimento alheio. Bolsonaro explora os piores demônios de nossa Natureza e encontrou eco e guarida em grupos sociais como  os evangélicos, acostumados ao espírito de manada e à credulidade cega a líderes inquestionáveis apesar de seus comportamentos altamente obscenos, além é claro do pessoal do agronegócio, do agrotóxico e da hecatombe organizada contra indígenas e quilombolas.

Por melhor que seja o filme de Petra, que de fato é inteligente e sensível, comovedor e relevante para a atualidade e para a História, ele passa ao largo do tema da educação – e da falta dela. Se a pedagogia de Paulo Freire fosse de fato aplicada em larga escala neste país, teria gerado uma população muito mais capaz de crítica e autonomia, que jamais se deixaria engambelar por um macho tóxico escroto e incompetente como o palhaço fascista Rambozo. Sua eleição é por si só um sintoma do quão defasados estamos em matéria de uma educação para o senso crítico que fosse de fato massiva e democrática.

Todo o processo de Golpe de Estado que se desenrolou entre 2016 e 2019, e que prossegue enquanto escrevo estas linhas, está intimamente conectado com nosso fracasso em disseminar as práticas e ideais da Pedagogia do Oprimido no país: acabamos com imensas hordas de analfabetos políticos e de idiotas privatistas, presas fáceis para a demagogia pastoral e politiqueira dos que querem ser os velhos donos do poder. Se quisermos uma Democracia forte, ela precisará ser construída com muito trabalho e suor, e para isto é indispensável que ensinemos cidadania ativa e participação social efetiva àqueles oprimidos que estão acostumados demais a serem objetos de história, rebanhos de pastores, fantoches de políticos, espectadores de espetáculos e manipuláveis títeres dos podres poderes que hoje botaram nossa democracia num cadafalso. Retirá-la de lá é nossa responsabilidade histórica, e o trabalho será infindável.

Democracia em Vertigem é prova de que o cinema pode estar aliado àqueles que tem a coragem da verdade de que nos fala Foucault – e prova também de que o documentário, quando vem em hora oportuna e explora bem o célebre kairós dos gregos, pode tornar-se uma força histórica, speaking truth to Power e denunciando golpes e opressões que intentam nos lançar no abismo de uma nova Ditadura. É abraçados com filmes pungentes e comoventes como o de Petra que podemos haurir força e ânimo para seguir dizendo que ninguém solta a mão de ninguém e que “fascistas, machistas, racistas, não passarão!”

Eduardo Carli de Moraes
22 de julho de 2019

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