VÍTIMAS & ALGOZES NO CINEMA DE FERNANDO COIMBRA – Sobre “O Lobo Atrás da Porta” (2013) e “Castelo de Areia” (2017)

Chico Buarque, que escreveu a tragédia Gota D’Água em 1975 (em parceria com Paulo Pontes), deu uma ótima resposta à seguinte questão: por que adaptar uma peça trágica grega – a Medéia de Eurípides, no caso – para o contexto brasileiro? “No Rio de Janeiro”, retrucou Chico, “acontecem umas 5 tragédias gregas por dia.”

O longa-metragem de estréia de Fernando Coimbra, O Lobo Atrás da Porta (2013), entrega ao espectador, com pitadas de uma dramaturgia à la Nelson Rodrigues, um thriller que é uma autêntica tragédia carioca. Inspira-se num caso real que chocou o Brasil em Junho de 1960, quando Neyde Maria Maia Lopes, a mulher que ficou conhecida como A Fera da Penha, sequestrou, assassinou e carbonizou o corpo de uma criança de 4 anos, Tânia Maria Coelho Araújo, filha de seu amante Antonio Couto Araujo.

A imprensa marrom debruçou-se intensamente sobre este caso, seguindo os preceitos do jornalismo sensacionalista que tem como lema “espreme que sai sangue!”, e ainda nos anos 1960 o cinema já havia se apropriado da história, com a realização de Crime de Amor (1965), de Rex Endsleigh. Mais do que requentar um enredo de sangue com novos atores, o cineasta e roteirista Coimbra pôde realizar uma obra impactante, memorável, que permite ao espectador fazer profundas reflexões sobre o que leva os seres humanos ao extremo, ou seja, ao mal radical.

O filme O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra, convida a pensar nos complexos meandros das relações humanas que acabam mal, que tem um fim trágico, um desenlace fatal, em que vidas arruinadas são o fruto de um amor cujos efeitos são a ruína e a destruição. Encarnada de maneira muito autêntica por Leandra Leal, a protagonista Rosa envolve-se emocional e sexualmente com Bernardo (interpretado por Milhem Cortaz), homem casado e com filha. Para falar feito um grego: Eros, no caso, cairá em hýbris; e os excessos passionais terão que ser punidos pela Nêmesis que re-estabelece os equilíbrios do mundo, mas com um alto preço a ser pagos pelos humanos desiquilibradores….

Os dois se conhecem em uma estação de trem do Rio e um clima de paquera e tesão logo se instaura, com a aproximação erótica ocorrendo, a princípio, naquela ingênua inconsequência dos amantes que não tem a mínima idéia das consequências futuras daqueles primeiros flertes e encontros. A história tem algo do tempero de Nelson Rodrigues e este caso extraconjugal tem inúmeros análogos nos casos relatados em A Vida Como Ela É. A arte brasileira, aqui, mostra-se novamente afim de sujar de sangue o vestido de noiva…

Já o lobo do título, se inicialmente ficamos tentados a imaginá-lo com figura masculina, como uma figura peluda que quer praticar de seus malefícios e crueldades contra a Chapéuzinho Vermelho (a criança desaparecida / sequestrada), o fluxo narrativo virá embaralhar todas as cartas. Pois se “o homem é o lobo do homem”, na formulação de Hobbes, fica-se tentado a esquecer, pelo próprio masculinismo da frase e pelo vício de linguagem, que a mulher inclui-se dentro do conceito “homem”, e que as mulheres também podem ser lobas – em especial, quando violadas, violentadas, humilhadas, oprimidas, silenciadas, situação existencial propícia para que germine, no solo do ressentimento, a colheita fatal da fúria assassina, da fatal desforra.

A fúria de Bernardo se destrava contra a moça quando ela, ao invés de manter-se na posição submissa e servil da amante eventual, demonstra estar querendo coisa mais séria. Bernardo parece desejar que Rosa se submeta à posição de mera boneca sexual, que aceite seu papel de mulher-secundária. Rosa, porém, não aceita ser posta em segundo plano e começa a tomar medidas para se envolver mais de perto com a família do amante, talvez averiguando a possibilidade de uma intervenção para destruir o casamento e abrir uma brecha para assim fazer de seu amante um marido.

Quando Rosa começa a penetrar perigosamente no lar da família, dando bolas e bonecas para a filha do casal, Bernardo sente-se em risco e precisa impedir a verdade do adultério de vir à tona, por quaisquer meios possíveis. A violência do macho que deseja manter a fachada hipócrita do marido monogâmico fiel, quando sua conduta cotidiana é de um lascivo que deseja se aproveitar de mulheres com as quais não deseja compromissos muito estreitos, irrompe para fora do recalque.

Quando Rosa fica grávida e passa a carregar em seu ventre o filho (ilegítimo) de Bernardo, o macho diante daquele flagrante passa a ver o rebento em potencial como um destruidor de seu Castelo de Areia matrimonial. O feto, futuro filho, não é visto com bons olhos por Bernardo, mas sim como uma evidência perigosa de seu adultério. E é aí que ele comete contra Rosa uma enorme violência: convence-a que deve ir ao médico, fazer uns exames para checar se de fato a gravidez se confirmava. Mas Bernardo estava de conluio com o doutor: ambos já haviam combinado em fingir que tirariam sangue de Rosa, mas na hora H iriam injetar nela uma anestesia geral para consumar, sobre o corpo desacordado da jovem, um aborto forçado.

Em outra uma cena terrível, encarnando o falocentrismo e o patriarcado em suas atitudes repletas de testosterona em excesso e razão em déficit, Bernardo espanca e estapeia Rosa com truculência, de uma maneira que lembra os PMs em seus baculejos contra a juventude pobre-preta-periférica (o filme, aliás, também tem escárnio a despejar sobre os Procedimentos Padrão do delegado de polícia, que ameaça Rosa com a tortura quando a interroga sobre a desaparição da criança).

O machão, para mostrar quem está no comando, ordena com voz grossa que ela tire a calcinha. Com a cinta nas mãos, ameaça Rosa com os punhos levantados, puxa seus cabelos, manda que ela abra as pernas. Rosa chora, treme de pavor, está em pânico diante da besta fera que Bernardo se transformou. O homem delicado e galante dos primeiros encontros agora mostrou-se como lobo que se vestia com pele de cordeiro.

O trauma psíquico, ainda que o estupro não tenha sido consumado, é certamente equivalente a de um estupro concreto, com penetração. Há críticos que evocam, para falar das atitudes de Bernardo com Rosa, o conceito de gaslighting, um estrangeirismo que serve para se referir a táticas de manipulação e humilhação do outro praticadas, em especial, por homens misóginos contra mulheres que são estigmatizadas como loucas.

O termo origina-se numa peça de teatro de Patrick Hamilton, escrita em 1938, depois adaptada pelo menos duas vezes para o cinema, com destaque para o filme Gas Light (1944), dirigido por George Cukor e estrelado por Ingrid Bergman, obra que, segundo o artigo da Vox, é o melhor tratado sobre o gaslighting que temos à disposição. Não faltam, atualmente, críticos do governo de Donald Trump, atual ocupante da Casa Branca, que apontam no presidente-bilionário tendências não só para o racismo, a xenofobia, o elitismo e a misoginia – Trump seria quase um PhD em gaslighting…

Cena do filme “Gaslight” (1944), de George Cukor

No caso de O Lobo Atrás da Porta,  Rosa é penetrada simbolicamente, mas com estragos concretos em sua estrutura psíquica, por uma postura e um discurso machista, de truculência e de apagamento da vontade feminina, um modo de proceder que visa reduzir a mulher a objeto servil e obediente, que abre as pernas quando ordenada pelo chefe da pica grossa.

Quando Bernardo obriga que ela repita a frase que ele ditou – “por favor, eu quero que você me coma pelo resto da minha vida!” -, Rosa só lhe obedece para não tomar mais sopapos, para não pegar um caso grave de olho roxo. Obedece com aquele ódio recalcado com o qual os súditos e oprimidos de todos os tempos obedeceram a seus tiranos, déspotas, reis, imperadores… Rosa, oprimida mas sem poder reagir à altura diante de uma força física que lhe é superior, obedece externamente, mas mantendo dentro de si uma íntima recusa e uma secreta revolta.

Nelson Rodrigues, que como dramaturgo escreveu inúmeras tragédias, volta a ser evocado pelo desfecho de O Lobo Atrás da Porta, em que Rosa comete façanhas dignas de uma heroína trágica como Medéia (uma peça que ganhou um tratamento forte nas mãos de Lars Von Trier). Não se trata, é claro, de uma mãe matando seu próprio filho: Rosa, na verdade, foi privada à fórceps do feto que crescia em sua barriga por uma brutal intrusão do macho, que tratou o bebê-em-potência apenas como prova incriminadora, como índice de seu adultério, e que ignorou completamente o desejo da mulher. O querer de Rosa, nesta relação, é repetidas vezes violado. A vontade da mulher é tida como pouca porcaria pelo Bernardão, que com seu caráter de macho-alfa impõe sua vontade e não aceita tê-la negada.

Vítima de abusos tremendos, Rosa não fica resignada na posição de vítima. Só que seu ressentimento, transbordando com a fúria de uma lava de vulcão artificialmente tampado, acaba vindo à tona como violência vingativa. É da própria natureza do ressentimento que ele se manifeste, tempos depois de uma ofensa que não pode ser respondida na hora (penso no conceito Freudiano de ab-reação); os ofendidos que não puderam levantar-se ou sublevar-se contra seus ofensores, guardam dentro de si uma mágoa que, conforme o tempo passa, contamina a psiquê e espraia-se pelo inconsciente, impulsionando para uma ação tardia, uma ab-reação, um golpe que se dá hoje contra uma ofensa sofrida no passado.

Rosa quer ferir Bernardo, mas ao invés de ir direto a seu corpo, ao crivá-lo de balas ou empurrá-lo em um abismo, ela prefere uma via de sadismo indireto: ferir a filha de Bernardo para que possa feri-lo aonde mais lhe doeria; ela parece querer fazê-lo sentir o próprio terrível ferimento que ela sentiu ao ver-se na situação traumatizante de passar por um aborto importo pela coerção bruta.

O filme de Coimbra consegue, através deste enredo, problematizar o problema do aborto e fornecer muito alimento para debates pós-filme, pois se é perfeitamente legítimo que as mulheres possam ter direito à interrupção da gravidez, caso tenham boas justificativas para isso (como no caso de estarem grávidas por causa de um estupro prévio, ou seja, se são vítimas de uma agressão sexual e não desejam carregar a criança do violador), não conheço vertente do feminismo que justifique a legitimidade de um aborto que possa ser uma decisão de terceiros e não da própria mulher que escolhe interromper sua prenhez.

O Lobo Atrás da Porta concede ao debate público uma espécie de emblema exemplar de um aborto injustificável, pois provêm de uma decisão unilateral e violenta do macho, que impõe à mulher grávida algo que esta, em sua autonomia, não havia escolhido. Que possamos dar às mulheres, como direito cívico, o aborto como escolha, é uma pauta importante, legítima e urgente, mas que seja sempre a partir do máximo de decisão autônoma da mulher sobre seu próprio corpo, e não uma imposição heterônoma e coercitiva que viola a vontade do corpo a sofrer a intervenção…

Bernardo, na perspectiva de Rosa, virou uma espécie de mutilador, uma espécie de besta truculenta que fez uma intervenção horrorosa nas entranhas de seu delicado e complexo corpo de mulher. O crime de Bernardo, para Rosa, beira o imperdoável – e ela talvez nem mesmo saiba como proceder para procurar Justiça nos termos da lei, buscando profissionais do Direito para processarem o infrator. A dor extremada de Rosa a fez atravessar a fronteira fluida entre vítimas e carrascos. Seu trauma psíquico a leva ao mal radical de uma vingança brutal que se realiza sobre uma criança inocente. Ela, vitimada em uma fase de seu relacionamento, em outro momento urde um plano para vitimar seu ofensor. A espiral de decadência moral é chocante: todos vão chafurdando em um mal radical, até que fetos e crianças comecem a ser sacrificados no jogo fatal desses adultos enlouquecidos, que utilizam como armas de seus jogos de tesão e fúria as sacrificáveis vidas dos mais novos e dos ainda não nascidos.

Tudo isso me deixou pensando no seguinte: temos a tendência a pensar em vítimas e algozes como se fossem dois grupos heterogêneos, isolados um do outro, cada um estanque em seu tanque. Porém, a vítima pode tornar-se algoz, e vice-versa, ao sabor das alterações das relações de poder. Lembremos de Adolf Eichmann, que um dia foi um assassino de gabinete a serviço do III Reich, obedecendo à Ordem Hitlerista e sendo um dos operadores da Solução Final: este algoz acabou sendo levado a julgamento e condenado à morte pelo Estado de Israel no Julgamento de Jerusalém (documentado pelo livro-reportagem de Arendt). O mesmo Estado de Israel, nascido após a 2ª Guerra Mundial para acolher os sobreviventes do Holocausto, jamais poderia ser considerado como um Estado de Vítimas, já que tornou-se, por décadas, o cruel algoz do povo palestino, aprisionado e massacrado pelo carrasco sionista em Gaza e na Cisjordânia.

O que me lembra também de uma importante lição de Augusto Boal sobre a opressão: o grande dramaturgo, criador do Teatro do Oprimidosempre disse que um mesmo sujeito pode ser simultaneamente opressor e oprimido, ou seja, algoz e vítima. Um exemplo de fácil compreensão é um pobre operário, explorado e humilhado em seu trabalho pelo patrão burguês, que vivencia todos os dias a condição de oprimido da luta de classes, mas que quando chega em seu lar entra na pose e na postura do Poderoso Chefão, sendo o machista-mandão que oprime a mulher e os filhos.

 Para além de qualquer vitimismo – a noção de que uma vítima é sempre inocente e pura -, o filme de Coimbra desnuda os mecanismos que conduzem Rosa a atravessar situações onde ela é claramente a vítima de um relacionamento abusivo, tornando-se alguém capaz de ser a carrasca de seu antigo amante. Essa assustadora transmutação de vítimas em algozes deveria nos alertar sobre a necessidade de fundar uma ordem social onde multidões de humanos não estejam condenados à cotidiana humilhação, espoliação e exploração, pois esta é a receita da catástrofe e da violência infinita: os ofendidos da terra, em outra configuração de poder, motivados pelo impulso de seu ressentimento e seu ímpeto vingativo, vão à desforra e assim a tragédia não cessa.

Era este um dos ensinamentos de Paulo Freire quando dizia que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor”. Poderíamos parafraseá-lo dizendo que quando a sociedade está repleta de exploradores e algozes, a tendência inevitável dos ofendidos é a brutal vingança que pensa poder equilibrar as balanças ao pagar a maldade com a maldade. É neste lodaçal que repetidas vezes afundamos, são estas as marés cíclicas de violência que derrubam sem piedade aquilo que nossa civilização pretensamente civilizada constrói: nossos Castelos de Areia.

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Convidado pela Netflix a dirigir o filme Sand Castle – Castelo de Areia, o cineasta brasileiro levou para o exterior uma reflexão sobre vítimas e algozes que já era o cerne de O Lobo Atrás da Porta. Após a Invasão do Iraque pelos EUA em 2003, vemos um grupo de soldados do U.S. Army descobrindo as realidades iraquianas transtornadas pela guerra, sendo que nenhum heroísmo patriótico marca os acontecimentos. Mais uma vez, Coimbra inspirou-se em fatos reais: o roteiro foi escrito por Chris Roessner, soldado que esteve lutando em solo iraquiano e relatou experiências autobiográficas.

No centro do enredo, há uma cidade iraquiana cujo sistema de abastecimento de água foi devastado pelos bombardeios dos Yankees. Em uma cena chave, a população está desesperada: com seus galões e garrafas vazias, clamam por água. Com metralhadoras e rifles, os estadunidenses tentam comandar a distribuição de água com caminhões-pipa. Quem assistiu ao filme Até a Chuva (Hasta La Lluvia), de Iciar Bollain, sobre a Guerra da Água de Cochabamba, pode estabelecer os vínculos entre as tragédias hídricas análogas, a do Iraque e a da Bolívia.

O grupo de soldados que protagonizam o filme acabam se envolvendo no trabalho de reconstrução do que acabam de destruir. O protagonista, chamado Soldado Ocre, sente-se um pouco fora-de-lugar naquela conjuntura alucinante e, em meio ao caos das bombas que explodem, busca – em vão – conter sua confusão e seus arroubos de pura fúria irracional.

O diretor brasileiro, Coimbra, estreou bem em sua primeira incursão na carreira gringa – seguindo os passos de outros cineastas brasileiros que tentaram o mesmo, como Fernando Meirelles, que fez O Jardineiro Fiel Ensaio Sobre a Cegueira lá fora, Walter Salles, que cometeu Água Negra Diários de Motocicleta, e José Padilha, que fez o remake de Robocop 7 Days in Entebbe. Coimbra, sem ser panfletário, imprimiu uma sutil veia crítica ao filme, o que o torna bem diferente de uma patriotada que tenderia a justificar a Cruzada dos EUA batizada de “Guerra Contra o Terror”.

Os iraquianos são descritos em seus dramas e urgências, mas só são “humanizados” só até certo ponto, pois são vistos pela ótica deformadora daqueles soldados estadunidenses, brainwashed com o sabão ideológico do militarismo. A empatia é difícil entre estes campos antagônicos, mas ainda assim a experiência direta com os iraquianos concretos faz com que o canto de sereia da ideologia oficial seja soterrado.

Em uma das melhores cenas, um pai tenta atravessar uma estrada com sua filha doente, em busca de uma farmácia, mas é visto como suspeito pelas forças de ocupação. Suspeito não por portar armas ou fazer qualquer coisa ameaçadora, mas sim pela velocidade que imprime ao seu veículo ao acelerar rumo à ajuda médica que tanto precisa. Um pai com pressa para salvar sua filha da doença que a tortura: eis o que é logo convertido, na alucinada “lógica” paranóica dos soldados, em um perigo público, um suspeito de jihadismo… E é por um triz que esse pai aflito não acaba todo estropiado com balas no chão da estrada. É só por pouco que essa criança não testemunha o assassinato de seu pai pelas forças militares de ocupação que dizem estar lá para “ajudar”…

Em outra cena memorável, o diretor de uma escola desespera-se diante da situação insustentável que a guerra trouxe: alunos e equipe de educadores estão sem acesso à água, o que coloca o estabelecimento escolar em estado de colapso humanitário total. Difícil não lembrar dos ensinamentos de Naomi Klein sobre New Orleans devastada pelo Furacão Katrina, quando os business men apaixonados pelas doutrinas dos Chicago Boys viram no desastre… uma oportunidade para uma mega-privatização do sistema público de educação.

“Depois do Furacão Katrina, hordas de prestadores de serviços militares privados chegaram à cidade de New Orleans inundada. Estavam em busca de formas de lucrarem com o desastre, enquanto milhares de habitantes da cidade, abandonados por seu governo, eram tratados como criminosos perigosos apenas por tentarem sobreviver… Com a cidade atordoada e seus residentes espalhados pelo país, incapazes de proteger seus próprios interesses, emergiu um plano para pôr em prática uma lista de desejos corporativos em velocidade máxima. Milton Friedman, então com 93 anos, escreveu um artigo para o Wall Street Journal no qual declarava: ‘A maioria das escolas de New Orleans está em ruínas… É uma tragédia. É também a oportunidade de promover uma reforma radical no sistema educacional.'” (KLEIN, Não Basta Dizer Não, capítulo 8, p. 147 – 171)

A situação que Coimbra escolhe para a sua crônica – esta escola desafortunada, atingida pela guerra, incapaz de seguir seu trabalho educativo, circunstância provavelmente considerada pelo Pentágono como mero Dano Colateral (para lembrar do livro brilhante de Bauman), serve como emblema da estupidez de todo o processo da Guerra Contra Um Terror.

A guerra não constrói porra nenhuma, está lá mesmo é para destruir – com um adendo, um requinte de crueldade: aqueles que destruíram, estarão por perto para oferecer ótimos deals para a reconstrução do que eles aniquilaram. Com excelentes lucros para as empresas norte-americanas, é claro… No Iraque, a própria Zona Verde era administrada pela Halliburton, e as áreas destruídas pelos bombardeios eram depois “rifadas” para empresas interessadas na reconstrução civil ou na construção de penitenciárias privadas…

Por tematizar a questão da educação pública em tempos de guerra, o filme ganha pontos. Em outro momento, um engenheiro mecânico iraquiano estarrece o Soldado Ocre por seu conhecimento técnico e sua maestria no manejo tecno-científico dos equipamentos. É que Ocre sofreu com a lavagem cerebral que o leva ao preconceito dogmático de que os iraquianos são todos os bárbaros, uns selvagens, uns jihadistas medievais, e quando este preconceito desmorona diante das evidências empíricas, ou seja, do testemunho humano do outro, sua mente entra num tilt. Ele percebe que lhe mentiram pra caralho sobre o Iraque e os iraquianos.

Uma das lições mais preciosas que ele tira desta guerra estúpida, neste Novo Vietnã, está nas interações com iraquianos que lhe ensinam algo de bom. O engenheiro mecânico iraquiano, dizendo que aprendeu tudo aquilo estudando de graça na Universidade, estarrece o Soldado Ocre – e o o estadunidense responde com uma síntese da perversão que carcome o cerne de seu país: “In America, nothing’s free.”

A descoberta de que o ensino universitário iraquiano é grátis deixa o soldado em maus lençóis na tentativa de acreditar que os EUA são a Civilização e o Iraque a barbárie. O filme está repleto de alfinetadas na atitude etnocêntrica e narcísica dos Yankees, que vem imbuídos de uma ideologia que conta a lorota suprema: eles estão ali para levar Liberdade e Democracia para um país antes governado pelo doidão-das-armas-de-destruição-em-massa, Saddam Hussein.

Hoje já sabemos que a Coalizão liderada por George W. Bush, apoiada pela Inglaterra e pela Espanha, cometeu alguns dos piores crimes contra a humanidade deste jovem século XXI com o início das agressões ao Iraque em 2003 – já que não havia vínculo demonstrável entre o regime de Hussein e o 11 de Setembro,  e além disso jamais foram encontradas as tais armas de destruição em massa que foram utilizadas para justificar a empreitada militar. De tudo o que já se escreveu sobre o tema, para além de recomendar as análises de Noam Chomsky, considero que Arundhati Roy foi a pensadora-ativista que melhor expressou a verdade sobre o tema.

Em sua estréia como cineasta brasileiro no exterior, Fernando Coimbra soube imprimir uma perspectiva crítica, talvez conectada ao seu status de latino-americano, a esta história em que o protagonista vai deixando de crer na ideologia simplista do “ou você está conosco, ou está com os terroristas”.

É a crônica do colapso da ideologia conexa à Guerra Contra o Terror que Castelo de Areia flagra. As comunidades devastadas pelos bombardeios, sistemas de água e eletricidade destruídos, abastecimento de alimentos caotizado, tudo isso por graça da Intervenção Filantrópica das Forças Armadas dos EUA!

No meio de tal overdose de desespero, crianças iraquianas circundam os tanques made in USA, desprovidas de armas mas fazendo com as mãos o gesto de atirar contra os invasores. Os soldados, por detrás de seu heavy gear militar, protegidos por coletes à prova-de-bala e capacetes anti-choque, às vezes olham para aquilo e tentam se apegar ao discurso oficial: essa criançada não presta, são um bando de jihadistas, não podemos ter piedade!

Para o protagonista Ocre, porém, a máscara da ideologia já está caída no solo, arruinada, rasgada pelas próprias violações constantes e brutais dos direitos humanos cometidas pelo Exército Interventor.

Torna-se impossível crer que os soldados dos EUA estão ali como força filantrópica, para o bem dos iraquianos, pois eles são testemunhas oculares do imenso sofrimento humano acarretado pelo caos bélico instaurado pela invasão. Não se trata de pintar um retrato idílico do Iraque antes de 2003 – o filme destaca que vem de longe, na história, o conflito sangrento entre xiitas e sunitas, com períodos de exacerbamento das rixas que constituem irrupções de guerra civil sectária.

Mas o que Castelo de Areia torna explícito é que os EUA não estavam ali como Anjos da Redenção, mas sim aplicando à risca aquilo que Naomi Klein teorizou sob o conceito de Doutrina do Choque.

Primeiro, uma intervenção militar brutalizante, shock therapy com munição bélica pesada, realizada com todo o poderio de destruição possuído pela nação do mundo de maior orçamento militar do planeta, além de ser a pátria com maior arsenal atômico e a única a já ter utilizado de bombas atômicas contra populações civis (em Hiroshima e Nagasaki). Depois, com o país arruinado pelas bombas, o “Momento da Bondade”: os EUA, delegado pelo próprio Bom Deus misericordioso como agentes de exportação da Freedom and Democracy, oferecem aos Iraquianos umas excelentes oportunidades de negócios na reconstrução do país.

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Junho de 2018


ASSISTA CURTAS-METRAGEM DE F. COIMBRA:

TRÓPICO DAS CABRAS (2007)

POBRES-DIABOS NO PARAÍSO (2005)

O AFROFUTURISMO É POP – Os filmes “Pantera Negra” e o álbum-visual “Dirty Computer” de Janelle Monáe agem como um terremoto cultural que afrofuturiza os rumos da Cultura Pop

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro || Abril de 2018

A Cultura Pop anda recebendo em suas veias várias injeções de altas doses de afrofuturismo. O arrasa-quarteirão Pantera Negra (um filme de Ryan Coogler) já se tornou uma das 3 maiores bilheterias da história do cinema. Somado a isso, pousou entre nós em 2018 o Dirty Computer de Janelle Monáe, um dos projetos musicais mais ambiciosos e impactantes dos últimos anos. Estas duas obras emblemáticas sinalizam que a cultura mainstream nos EUA deu uma forte guinada afro-futurista.

Em uma excelente resgate histórico do afrofuturismo através da história da cultura popular estadunidense, a Vox lembrou os casos emblemáticos do jazzeiro Sun Ra e da banda funky Parliament / Funkadelic (de George Clinton), essenciais na constituição do estilo cultural que busca dar resposta à questão: “What does the future look like for black people?” Se o afrofuturismo pôde ganhar novo impulso através do Movimento Hip Hop, através de figuras como Outkast e Deltron 3030, nos últimos anos talvez não exista artista mais representativa dele do que Janelle Monáe.

Como provou o fenômeno Black Panther, arrasador nos cinemas pelo mundo afora, o afrofuturismo é pop – ainda que possa ser interpretado por pensadores cult como Slavoj Zizek, o ás da intelectualidade que se utiliza de uma vasta caixa de ferramentas que tem Lacan, Hegel, Marx e outros…

Vale lembrar também que, na literatura, ainda que os EUA já possua em Toni Morrison (vencedora do Nobel) e Alice Walker (premiada com o Pulitzer) duas “escritoras afro” das mais reconhecidas e cultuadas, o afrofuturismo não é representado por elas, mas sim por Octavia Butler (1947 – 2006), “a granda dama da ficção científica”, autora de Kindred – Laços de Sangre. As tensões raciais que existirão no futuro, além da luta resiliente por justiça social, fazem do afrofuturismo uma das vertentes da ficção científica que mais cresce mundo afora.

O afro-futurismo já vinha rendendo intensos debates e agora o caldeirão tende a se acirrar com a chegada de Dirty Computer (2018), projeto que já traz no nome uma certa evocação do OK Computer do Radiohead, outro marco histórico para a renovação estética e temática da produção musical no Ocidente contemporâneo. 

Janelle Monáe, após dois álbuns icônicos (ArchAndroid e Electric Lady), onde interpretava a persona de uma Andróide à la Blade Runner, em que punha em cena sua robô humanóide que era um tanto outcast no mundo do futuro, desta vez assume outra persona: a de um ser humano que sofrerá lavagem cerebral hi-tech em um mundo de dominação totalitária, onde memórias podem ser apagadas por métodos que unem a informática, as neurociências e a guerra química.

Em trabalhos anteriores, Janelle Monáe já havia manifestado suas estratosféricas ambições artísticas em álbuns conceituais como o premiadíssimo ArchAndroid (cuja capa evoca o clássico Metrópolis de Fritz Lang) e em video-clipes como “Q.U.E.E.N.”, na companhia de Erykah Badu. Badu e Monáe, neste impressionante videoclipe, agem como artistas rebeldes e freaks de um futuro robotizado, ultra-cibernético, onde o domínio totalitário é contestado pela arte-resistente dessas afro-divas, herdeiras de Nina Simone, munidas das armas do rap, do funk, do r&b, do intenso rebolado:

Exuberante em sua expressão enquanto cantora, dançarina, performer e provocadora, Janelle Monáe gosta de alfinetar a hegemonia do White Power Yankee com decibéis em excesso e muito pansexualismo. Em Dirty Computer, ela explora com ousadia a senda da confluência de mídias: além de ser um álbum musical que pode ser meramente escutado (o que não é o mais recomendado), o Computador Sujo é sobretudo uma obra fílmica, uma Emotion Picture. 

Aliás, o sobrenome Emotion Picture que Monáe deu para o filme foi uma esperta brincadeira em que adicionou um E ao tradicional motion picture, operando uma torção de sentido que o transforma em “pintura emocional”. Não há dúvida de, no ano de 2018, este filme musical seja uma das obras absolutamente cruciais para a compreensão do zeitgeist afrofuturista que atualmente invade o pop norte-americano:

Se, em outras épocas, vivemos um certo boom da ópera-rock, com obras emblemáticas como o Ziggy Stardust de David Bowie, o The Wall do Pink Floyd (adaptado para o cinema por Alan Parker) e o Tommy do The Who, nestas primeiras duas décadas do século XXI d.C. emergiu este híbrido musical-fílmico de que Janelle Monáe é hoje uma das mais expressivas representantes. Trata-se de uma tendência em alta, que teve como precursores os experimentos da Björk, em projetos como Biophiliae do TV On The Radio com seu álbum-filme Nine Types Of Light. No Brasil, quem já trilhou esses caminhos com maestria foi a Luiza Lian, com seu álbum-visual Oyá Tempo.


Dirty Computer é um média-metragem que reúne todas as canções em um mesmo pacote, com um fio narrativo que dialoga com temas cruciais do sci-fi através de sua história, evocando obras como Laranja Mecânica (romance de Antony Burgess, filmado por Kubrick) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (escrito para o cinema por Charlie Kaufman e dirigido por Michel Gondry).

Na excelente resenha publicada pela Rolling Stone, eles nos lembram que, no caso deste último filme, o personagem de Jim Carey contrata uma empresa, a Lacuna Corporation, para apagar todas as lembranças que ele possui de sua ex-namorada Clementine (vivida por Kate Winslet), enquanto no filme de Janelle Monáe o sujeito do deletamento não escolheu estar ali, mas foi capturado por um mecanismo ditatorial.

Encarnando a protagonista do filme, Monáe está aprisionada em um cárcere futurista e é vítima de procedimento de deletamento de memórias que lhe é imposto pelos branquelos que a capturaram e que trazem à mente também a elite gestora de Gilead, a distopia do romance de Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), que tornou-se também uma das mais importantes séries na história recente da teledramaturgia.

A semelhança com The Handmaid’s Tale – que salta aos olhos em “I Like That”, por exemplo – está na presença de um poder autoritário de postura puritana, intolerante. O poder repressor que age em Dirty Computer apaga lembranças pois compara o cérebro da vítima com um computador sujo, cheio de vírus e malware, que precisa ser formatado, tudo em um linguajar justificatório que tem certo teor religioso (é preciso trazer o sujeito “da escuridão à luz”).

Ademais, Dirty Computer está repleto de cenas quentes entre Janelle Monáe e Tessa Thompson, deixando sugerido que o erotismo lésbico é aquilo que o sistema vê como sujo, exterminável. Distopia da homofobia tecnizada.

Com a maré alta do afrofuturismo, na crista da onda do hype, é também oportuno relembrar as obras-primas do passado. É o caso do brilhante Deltron 3030, que marcou para sempre a história do movimento Hip Hop com uma obra conceitual e sci-fi.

Orquestrado e visionário, o complô afrofuturista do Deltron rompeu todas as barreiras: até mesmo o Festival de Jazz de Montréal escalou-os como uma das atrações principais do antológico evento anual no Québec onde usualmente reinam os mestres do blues e do jazz. O Deltron  pôs o rap para refletir sobre o quarto milênio, abrindo caminho para outros artistas significativos que exploraram esta senda, sendo que outro álbum emblemático é o Take Me To Your Leader, do King Geedorah.

O que há de extraordinário em Janelle Monáe, que a torna uma das artistas mais relevantes hoje em atividade? Um dos elementos é o amplo escopo de suas colaborações, em que reúne a velha guarda (“Dirty Computer”, faixa-título do álbum, tem vocais de Brian Wilson dos Beach Boys) à novíssima geração (caso de Grimes, parceira em “Pynk”, e Pharrell Williams, que soma forças a Janelle em “I Got the Juice”).

Além disso, assim como Lauryn Hill, Monáe é uma cantora capaz de rappear com contundência (como em “Django Jane”, uma subversão do Tarantinismo) e soltar a voz feito uma Tina Turner, indo do “falado” ao ultra-cantado com perfeita fluência.

Ela invoca todos os poderes dos beats eletrônicos dançantes, trabalha com DJs que sabem perfeitamente como se fabrica um hit pop, mas ela trafica subversão por debaixo da superfície colorida de suas canções – a ponto de exibir, ao fim do clipe de “Crazy Classic Life” um baile sendo invadido pela polícia e sua Tropa de Choque, com todo mundo sofrendo um baita baculejo.

O poderio de Janelle Monáe é tal que ela parece ser o tipo de pop star que será capaz de sobreviver ao próprio sucesso – ao contrário de Amy Winehouse, que nele naufragou, entrando para o Clube dos 27. Pois tudo indica que Monáe se encaminha para se tornar o equivalente atual do que foram, em outras épocas, figuras como Michael Jackson e Prince. E talvez por ser dotada de auto-ironia, de capacidade não se levar muito a sério, ela pela parece ter estrutura psíquica e amor pela vida suficientes para encarar as barras-pesadas vinculadas ao popstardom.

 Sem medo de dominar tudo na mídia de massas, ela vem deixando outras artistas norte-americanas de muita expressão nos últimos anos, como Cat Power, Saint Vincent e Feist, parecendo artistas independentes de pequena repercussão. Janelle Monáe alça-se vôo rumo ao topo do ringue de competições pelo título de Rainha Negra do Pop, onde digladiará com Beyoncé num afro-confronto em que a indústria da música vai colhendo seus bilhõe$!

Só que não seria justo reduzir artistas deste quilate ao status de marionetes de um sistema cultural caça-níqueis. Sobretudo pois Monaé e Beyoncé estão engajadas no tema da representatividade da mulher negra e vem agindo no sentido de protestar contra o silenciamento que certas forças sociais desejam continuar impondo às expressões culturais afroamericanas.

As duas artistas (e seus poderosos “times” de produção audiovisual) são mestras na utilização do videoclipe como arma para influenciar a consciência das massas, e algumas das obras-primas do gênero foram paridas por elas: caso da primorosa provocação de Beyoncé sobre a New Orleans após o Furacão Katrina em “Formation” (com mais de 100 milhões de views) e a irresistível e infectious “Tightrope” de Monaé (com mais de 23 milhões de views), que merecem um lugar de honra na história da dança e da expressão corporal:

vibe sci-fi já é tradição na obra de Monáe: em “Tightrope”, tudo ocorre em um local chamado The Palace of The Dogs, uma espécie de manicômio. O letreiro inicial nos conta que a dança foi proibida devido a seus “efeitos subversivos” e por sua “tendência a conduzir a práticas de magia ilegais”. Zanzam pelo clipe, enquanto o pessoal dança com tudo, duas sinistras figuras que tem espelhos no lugar da face e parecem Guardiões da Lei e da Ordem. Os dançarinos arrasam, homenageando todos os mestres do breakdance e da arte do bonetics (dança acrobática em que o esqueleto realiza movimentos inacreditáveis).  

Em entrevista no Espaço YouTube, Janelle Monáe disse que inspirou-se, no processo de composição de Dirty Computer, não só na sina das black women, mas nas vidas de pessoas LGBT, de refugiados, de disabled, em suma: mergulhou nas realidade de minorias que não costumam ser tão bem-representadas em um regime midiático ainda patriarcal e racialmente supremacista. Ela se utiliza do conceito, muito produtivo, de erasure (do verbo to erase, apagar ou deletar), para falar do continuado processo de apagamento / silenciamento imposto às minorias que ela visa representar em obras de aclamação majoritária. 

Não sei qual a opinião de Angela Davis sobre Janelle Monáe, mas minha impressão é a de que podemos ler a chegada de Dirty Computer como um momento raro em que o feminismo negro, vestindo-se com a exuberância do sci-fi afrofuturista, chega para demolir a opressão machista e racista com uma obra de peso. Dinamite pop, Dirty Computer quer praticar o bom e velho lema: to speak truth to power.  Janelle Monáe é tão linda, tão expressiva, tão talentosa, tão capaz de despertar nossa admiração por seus dons como cantora, dançarina, performer e comentadora política, que torna qualquer discurso machista ou racista algo ridículo e descerebrado.

Uma das razões pelas quais uma das principais revistas de música dos EUA, a Rolling Stone, celebrou Dirty Computer como uma obra-prima na história do electropop e do sci-fi é a capacidade de Janelle Monáe para colocar em discussão temas graves através de sua música repleta de infectious grooves. O álbum já começa citando a célebre tríade de valores da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em que se institui como “direitos inalienáveis” o “LifeLiberty and the Pursuit of Happiness“. Trindade que define uma Constituição emblemática do liberalismo burguês.

Janelle gosta de clipes repletos de pursuit of happiness, compreendido como hedonismo corporal e relacional que quebra todas as regras: ela gosta de se referir a si mesma como “a free-ass motherfucker” e adora cantar versos do tipo “I just wanna break the rules” (como faz em “Crazy Classic Life”). Mas esta doutrina hedonista, somada à sua apologia do pansexualismo, choca-se com antagonismos sociais, a começar pelo puritanismo enraizado em doutrinas religiosas ascéticas (à la The Handmaid’s Tale), passando pelo reinado da ideologia conhecida como heterossexualidade compulsória, em que se baseiam todos os tipos de homofobia, para finalmente desaguar no velho e nefasto racismo, ainda não extinto mesmo tanto tempo após a Guerra Civil e a Abolição da Escravatura… Os EUA – Ferguson que o diga! – não cessa de inventar novos Jim Crows.

Sinto que a mensagem pró-hedonista pan-sexualista que Monáe dissemina merece ser problematizada, em especial em seus vínculos com um certo neoliberalismo anarcocapitalista que deseja derrubar todos os impedimentos morais ao reinados dos lucros vinculados aos Mercados do Prazer (o mundo do entretenimento e das festas/baladas, além da economia do turismo, sendo aí quintessenciais).

Mas sinto também que Monáe não é simplista no seu trato com o tema: se fica claro que ela preconiza hedonismo, parece-me também que seu culto do prazer tem a ver muito mais com uma expressividade e uma criatividade que não se compram, não se podem consumir, só se podem vivenciar de maneira dionisíaca, na fusão com o grupo, na dança em conjunto, no canto in concert. 

Se os inimigos estão claramente delineados – o puritanismo repressor, a homofobia fanática, a intolerância ao outro, a tecnologia usada para a lavagem cerebral… -, os “amigos” parecem ser muito mais diversificados, o que me parece conectável com a noção de que nossa salvação está na celebração da diversidade. Donde a positiva figura do freak e a apologia do queer, o que faz de Janelle Monáe este terremoto cultural que vai varrendo todas as oposições binárias da sexualidade, todas as dicotomias bestas da afetividade, em um processo que, aqui no Brasil, também vem sendo realizado por figuras como Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira e Rico Dalasam.

Uma canção de Monaé como “Screwed”, neste contexto, é de um brilhantismo fora de série. Sabe-se bem que to screw é um verbo intimamente relacionado com atos sexuais, uma espécie de sinônimo do to fuck. Porém, ambos os termos – screw fuck – são altamente polissêmicos, e para além do sentido sexual podem ser utilizados para se referir a um estado de “estar fodido na vida”, como nas expressões “she’s all fucked-up” ou “his life’s screwed”. Bandas de punk-rock costumam lidar com estes termos – é só mencionar que um dos grupos punk mais ativos no Canadá do século 21 chama-se Fucked Up  (de Toronto) e os Ramones também tem uma canção, do Brain Drain, chamada “All Screwed Up”.

You fucked the world up now,
we’ll fuck it all back down
Let’s get screwed!
I don’t care!
We’ll put water in your guns,
We’ll do it all for fun,
Let’s get screwed!

O que Janelle Monáe fez foi enfatizar a polissemia do screwed, conectando-a com os destinos que lhe importa enfatizar, como se quisesse criar musicalmente a empatia manifestada em movimentos como o Black Lives MatterEm uma canção que evoca bombas caindo, sirenes tocando, guerras acontecendo, os que estão festejando (party hard) nestes dias apocalípticos cantam refrões como “Let’s get screwed!” A ambiguidade é sexy: não se sabe se a vontade dos personagens é transar, ou se eles estão de fato saindo pra rua feito Black Blocs para espalhar subversão e serem “fodidos” pelas Tropas da Ordem, pelos Deletadores de Memória, pelos Guardiões do Estado Totalitário…

 A música pode até parecer, à primeira ouvida, como apenas um pulsante electro-pop, com belos riffs de guitarra, que dialoga inclusive com a sonoridade Madchester dos Stone Roses e Happy Mondays. Mas em termos líricos, a poetisa está embaralhando todas as cartas simplistas, fazendo uma espécie de porn-rock onde explicita os jogos entre sexo e poder. É Janelle Monáe unindo Eros e Tânatos. Na mesma estrofe do rap que finaliza “Screwed”, ela junta a demanda por salários igualitários (“equal pays”), a denúncia dos fakes (pseudo notícias, pseudo peitos, pseudo comida…), arrematando com a provocação de que estamos ainda presos na Matrix e engolindo as pílulas azuis”:

Hundred men telling me to cover up my areolas
While they blocking equal pay, sippin’ on they Coca Colas 
Fake news, fake boobs, fake food — what’s real?
Still in The Matrix eatin’ on the blue pills

São indícios de que, no contexto cultural sacudido pela guinada afrofuturista do Pantera Negra da Marvel, este espantoso fenômeno cinematográfico global, Janelle Monáe chegou com tudo para marcar época em 2018: este será o ano do afrofuturismo, em que ressurgem do fundo dos tempos, soprando seu sexies saxofones o Sun Ra e o Fela Kuti, em que a funkidade se re-politiza e o Black Power dissemina-se com força nas asas do som e da imagem. Love, Power, Unity! Se Janelle Monaé é um computador sujo, resta torcer para que contra ela fracassem todos os anti-vírus e que ela possa continuar nos infectando com seus libertários infectious groovesAfro-futurize-se mergulhando nas entranhas vivas deste Computador Sujo!

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NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO: Obra poética reunida de Ana Cristina César (1952-1983), Companhia das Letras, 2016, 4ª Edição, Posfácio de Viviana Bosi

“Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?”
Ana Cristina César em “Sexta-Feira da Paixão”,
poema do livro A Teus Pés [1982], 2016, p. 111.

[Comprar Poética – Cia das Letras, 2016 @ Livraria A Casa de Vidro]

Homenageada da FLIP 2016, “expoente da literatura marginal brasileira nos anos 70” e “ícone literário de sua geração” (para citar o El País Brasil), Ana Cristina César renasce das cinzas neste livro-antologia, Poética (Cia das Letras, 2013). Lançado 30 anos após seu suicídio, em 1983, quando tinha vivido apenas 31 anos, Poética reúne toda a produção de poesia e prosa da Ana C., incluindo também aos desenhos de próprio punho e alguns facsímiles de seus manuscritos. O livro traz posfácio da professora Viviana Bosi (a filha de Ecléa e Alfredo Bosi), da FFLCH/USP, além de apresentação por Armando Freitas Filho e vários textos anexos, de resenhas publicadas nos jornais sobre seus livros a ensaios de análise biográfica e estética.

Através deste livro, mergulhe a fundo na obra desta poetisa nascida no Rio de Janeiro, em 1952, que formou-se em Letras pela PUC-Rio e depois tornou-se mestre em dose dupla: fez mestrado em comunicação social pela UFRJ e em teoria e prática da tradução literária pela Universidade de Essex (Inglaterra) – onde realizou elogiados trabalhos traduzindo, por exemplo, Bliss de sua adorada Katherine Mansfield (1888-1923). Em 1975, Ana Cristina César despontou integrando a antologia 26 Poetas Hoje (1975), compilada por Heloísa Buarque de Hollanda.

COMPRE "26 POETAS HOJE"

COMPRE “26 POETAS HOJE”. Participaram da antologia os poetas:  Poetas: Francisco Alvim, Carlos Saldanha, Antônio Carlos de Brito, Roberto Piva, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Roberto Schwarz, Zulmira Ribeiro Tavares, Afonso Henriques Neto, Vera Pedrosa, Antonio Carlos Secchin, Flávio Aguiar, Ana Cristina Cesar, Geraldo Eduardo Carneiro, João Carlos Pádua, Luiz Olavo Fontes, Eudoro Augusto, Waly Salomão, Ricardo G. Ramos, Leomar Fróes, Isabel Câmara, Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, Leila Miccolis.

soneto-ana-cristina-cesarSobre Ana Cristina César, Caio Fernando Abreu deixou-nos uma retrato lapidar, publicado na primeira edição de A Teus Pés pela Editora Brasiliense, em 1982: “fascinada por cartas, diários íntimos ou o que ela chama de ‘cadernos terapêuticos’, Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. (…) A Teus Pés revela finalmente, para um grupo maior, um dos escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira.”

Já Italo Moriconi escreve que “os amantes da poesia poderão constatar ao lerem  este livro como era avançada a pesquisa poética de Ana C. naqueles idos dos anos 1970 e início dos 1980, buscando radicalizar e narrativizar a sintaxe do poema conversacional que, se por um lado retomava dicções modernistas (algum Mário, muito Drummond, todo o Bandeira, ecos de T.S. Eliot e Baudelaire), por outro as desviava num sentido pop que não parasitava, e sim fagocitava literariamente, com esperteza e ironia, o rock, o rádio, o sexo, as cenas de cinema, a hiperestesia pós-moderna, os embates de um feminismo inquieto.”


ALGUNS POEMAS:

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QUANDO CHEGAR

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

Julho / 1967
p. 141


aSAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

Do livro “A Teus Pés”, p. 113

Bianca Comparato declama “Samba-Canção”:


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Obra POÉTICA reunida de Ana Cristina César (1952-1983)
Companhia das Letras, 2016, 4ª Edição, Posfácio de Viviana Bosi.

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