O último filme de Ken Loach faz uma radiografia da pandemia de “Uberização” laboral || A Casa de Vidro

A tragédia da riff-raff britânica na era da Uberização laboral: eis o cerne de Sorry We Missed You (Você Não Estava Aqui), novo filme do mestre Ken Loach (UK, 2019, 100 min), duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Partindo de uma narrativa que foca suas atenções sobre uma família específica, o filme manda seu recado sobre uma situação geral daquela fração da classe trabalhadora, em constante expansão, que inclui aqueles apelidados de infoproletários e de “Precariado” (analisados em minúcias, no Brasil de hoje, por cientistas sociais como Ruy Braga e Ricardo Antunes).

No roteiro escrito por Paul Laverty, o destino da família protagonista serve como emblema para a condição do Precariado na atualidade. Esta classe sofre com a insegurança extremada conectada à informalidade, com o colapso da jornada de trabalho de 8 horas e com a perda de direitos elementares à saúde, à educação e à previdência. Estes trabalhadores precarizados frequentemente são enforcados pelas dívidas, sendo assim algemados a neo-servidões e neo-escravidões.

Conquistas dos movimentos sindicais, sociais e revolucionários do passado vão se perdendo no grande desmonte privatista neoliberal conforme a crueldade capitalista adere às núpcias sinistras com o fascismo. Como ensinou Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio” – hoje, neofascismo e neoliberalismo tem transado em praça pública e sua prole é tenebrosa.

As linhas de montagem não são mais aquelas dos Modern Times de Chaplin (1936). São as linhas de montagem invisíveis do Ubercapitalismo, que cada vez pretende estender seu império a ponto de tornar-se ubíquo. Os prazos a cumprir no delivery de mercadorias são as novas cadências de velocidade brutal, linhas de montagem lançadas para fora das fábricas e adentrando cada vez mais o trânsito caótico dos grandes centros urbanos.

O “novo” patronato vai agindo contra o proletariado com a velha mentalidade escravista que as elites do atraso recusam-se a abandonarno mundo afora e não só no Brasil radiografado por Jessé Souza. O escravismo dá lucro, e por isso tanta adesão a ele por parte de patrões que, em termos éticos, estacionaram na História e desejam sobretudo a continuidade obscena de seu gozo de privilégios excludentes. Elites que agem com a sádica alegria com a desgraça alheia e o senso de superioridade de quem, na relação entre a bota e a face que ela pisa, está do lado de quem é o dono do pé pisoteante.

A rotina massacrante quebra a espinha do trabalhador uberizado e ifoodido. O protagonista de Sorry We Missed You é um emblema do pai de família que não consegue mais sentar direito a bunda na mesa-de-jantar de casa, tamanha a correria de seu trampo. Um trabalhador que atinge no filme um tal grau de exaustão que ele flerta com a auto-destruição. O cara chega a tal fundo de poço que está às beiras de enfiar sua van num muro e morrer no crash, deixando uma viúva e dois órfãos. O protagonista vai sendo lançado, por este sistema insano, a uma situação de nervous breakdown. 

Eis uma sociedade governada por elites econômicas que querem ensinar ao trabalhador que ele não deve crer na sua dignidade intrínseca – e ele muitas vezes interioriza este desrespeito alheio e torna-se auto-depreciativo. Como no diálogo em que o pai elogia a filha dizendo que ela é inteligente e esperta demais, e lhe diz: “com certeza você não herdou meu cérebro”.

Esta auto-derrisão também se manifesta quando ele exorta o filho a ser disciplinado na escola ao invés de pintar grafites pela cidade (ultimamente, inclusive com spray roubado): “não quero que você termine como eu”. O filho, que tem agido com uma atitude punky, num espírito à la Banksy, atua como a consciência crítica da família e despreza a perspectiva de entrar na universidade. Não que ele esteja dominado por um desprezo pelo conhecimento, mas sim sente nojo por toda a condição do universitário pobretão que só consegue estudar afogando-se em dívidas e aniquilando qualquer chance de ter tempo para lazer, cultura, contemplação e descanso.

Pois a realidade educacional anglo-saxã, onde o liberalismo impôs o avanço da escola-empresa e do conhecimento-mercadoria, na esteira das teoria do “capital humano” de Gary Becker, o universitário pobre é obrigado a trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Mesmo depois de formado é obrigado a trabalhar anos para pagar as dívidas contraídas, e durante seu curso é coagido a um sobretrabalho estafante que prejudica a qualidade de seu trabalho intelectual e de sua aprendizagem. Um contexto que lança seu mundo emocional no turbilhão da angústia e da ansiedade constantes, pois sabe que pende sobre sua cabeça a espada de Dâmacles dos credores papa-juros que ameaçam cortar sua cabeça nas guilhotinas do Mercado.

O filme de Loach é também brilhante no retrato contemporâneo do fenômeno da dívida – cuja história nos últimos 5.000 anos foi realizada pelo antropólogo anarquista David Graeber em Debt: The First 5,000 Years. O filho da família sabe que entrar para a universidade, para alguém de sua classe, consiste em botar o pescoço na guilhotina das tuition fees. O garoto sabe que a ascensão social via estudo, para alguém da riff raff, só é algo plausível sob o domínio de um cruel endividamento que iria tornar ainda pior a situação financeira familiar.

Escultura de Cain Motter

O filme de Loach, ultra-realista, faz o retrato de uma classe down’n’out na Grã-Bretanha do Brexit. Uma gente que os banqueiros tratam como arraia-miúda e que interessou a George Orwell – autor do crucial livro de ensaios  Como Morrem Os Pobres (Cia das Letras), que aqui Loach parece querer atualizar para nossos tempos.

O teor trágico de Sorry We Missed You vem da ausência de perspectivas revolucionárias. Nem mesmo algum tímido sindicalismo reformista dá o ar de sua graça no filme (nada do “espírito Norma Rae“, do entusiasmo Martin Rittiano pela mobilização proletária, aparece por aqui). O pai-de-família que protagoniza a obra desce ao inferno-na-terra ao ser alvo de múltiplas opressões cruzadas, apesar de ser um homem, branco e hétero (suposta epítome do estereótipo do opressor).

Cúmulo de seu destino enquanto oprimido desta sociedade de opressões que se interseccionam é aquela série de cenas em que ele é literalmente roubado após ser esmurrado, chutado e encharcado com o próprio mijo. Depois é cobrado pelo patrão pelo prejuízo acarretado ao equipamento da firma pelos assaltantes. Todo quebrado e fodido, no hospital, esperando o resultado do raio-X, ele passa por esta humilhação suplementar. A esposa não aguenta e explode em indignação contra o patrão do esposo pelo telefone.

Em uma cena-chave, o patrão havia se gabado dos índices de produtividade de sua empresa, supostamente “de elite” em toda a Great Britain. As atitudes senhoriais são justificadas com um apelo à ideia de que os clientes só se importam em receber os produtos que encomendam na hora certa – e estão pouco se fodendo em relação ao bem-estar dos que trampam nas vans, motos e bikes deste enxame crescente de “entregadores de aplicativo”.

– Alguém genuinamente já te perguntou como você está, quando você aparece na soleira da porta após tocar a campainha com um pacote em mãos? Acha que os clientes se importariam se você batesse as botas ao chocar a van contra um muro?

Quando um patrão trata seu “sócio” desta maneira podemos ter certeza de que não se trata de uma relação simétrica entre dois “patrões de si mesmos” que estão em negociação. É uma relação assimétrica e injusta onde burguês e proletário seguem existindo, apesar de mascarados pelas novas noções de CEO e “empreendedor”. Um abismo de desigualdade social imensa separa estas duas posições.

Neste mundo de colapso generalizado da empatia, da pandemia duma frieza de coração, empedernida e violenta, a ideologia tóxica do neoliberalismo empreendedorista surge para tentar nos convencer de que o egoísmo é parte da natureza humana. Mas não é, como argumenta o filósofo australiano Roman Krznaric em O Poder da Empatia: o egoísmo não pode ser descrito como intrínseco e inato à natureza humana, como querem muitos liberais, pois sua manifestação atual, enquanto individualismo empreendedor, é produto de uma ideologia inculcada e de um imenso aparato de doutrinação. Nurture, not nature.

O sistema de remuneração por produtividade prejudica a classe trabalhadora pois os detentores do poder sempre podem, na ausência de regulações estatais que coloquem freios no laissez faire do Mercado, puxar as metas para cima, exigindo ritmos e durações laborais incompatíveis com a dignidade humana.

Inculca-se a ilusão, na cabeça do precário-proletário, de que ele seria proprietário de um meio de produção, quando na verdade ele é unicamente o dono de um carro, uma moto ou uma bike. O sujeito quer tratar a si mesmo como empreendedor, um “patrão de si mesmo”, mas na real isso mascara a brutal desproporção entre os donos dos meios de produção e concentradores de capital – o Patronato! – e o enxame dos que não tem nada senão o poder de se deixar explorar por 12 horas ao dia por um salário de miséria ganho com o suor do próprio rosto, enquanto os CEOs de empresas como Uber e Ifoods ficam no bem-bom, vagabundeando em suas jacuzis nas suas mansões de 500 milhões de dólares no Vale do Silício.

Na real, o trabalhador ifoodido não possui direitos trabalhistas, não tem direito a adoecer e se tratar, obviamente não tem direito ao lazer e à cultura – nem mesmo, muitas vezes, tem o direito de mijar no banheiro (o protagonista do filme de Loach é obrigado a fazer xixi numa garrafa). Enquanto  os donos da Uber, da Ifoods ou da Rappi ficam bilionários apenas gerindo sistemas informacionais e logísticos, os empreendedores labutam como condenados, muitas vezes sem direito a fim de semana e férias, para girarem na roda da miséria como nas torturas gregas impostas a Íxion, Sísifo ou Tântalo. Eles são a nova-versão do “homem-boi” de Taylor, satirizado em versão equina, com verve sarcástica, no provocativo filme Sorry To Bother You, de Boots Riley.

Marilena Chauí, em entrevista recente, aponta que a ilusão de independência do moderno precariado acaba sendo bastante difícil de desconstruir. Sempre em trânsito, essa força de trabalho perde o tempo que poderia ser dedicado às conversas com seus iguais. Eles lhe aparecem como competidores, apenas. Sobra-lhes um espaço público degradado por obstáculos que sacrificam o pensamento independente pois exigem constante atenção ora a um buraco na rua, um cachorro a persegui-los ou um guarda indisposto.

Uma rotina que lembra a dos “negros de ganho” do Brasil colonial (que “eram aqueles que trabalhavam e que repassavam todos os seus ganhos a seus donos”). Ao precariado, a posse de um veículo automotivo e a possibilidade de mudar de senhor já são um engodo poderoso o suficiente para estabelecer um líquido sistema de servidão voluntária. Nele, como diz a filósofa Marilena, as pessoas já não se definem pela sua ocupação ou pelo seu contrato de trabalho. Em um mundo liquefeito como lama, ora sou entregador, ora sou garçom, ora sou manobrista, ora trabalho das 7h às 22h, ora das 22h às 7h: isto seria liberdade, ou somente a nova encarnação da servidão voluntária?

Quando possível, os precários caem no desemprego e tentam recuperar-se dessas jornadas exaustivas gastando irrisórios seguros-desemprego (quando a eles tem direito). Quando seguem na informalidade, pulando de trampo precário em trampo precário, como breve bálsamo para suas torturas cotidianas gozam no consumismo com suas parcas economias. Um consumismo frequentemente movido a crédito e financiamento – ou seja, propulsionado a dívida.

Através de seus filmes recentes, Ken Loach faz a crítica de um sistema que quer convencer “as pessoas mais vulneráveis da terra” de que “a pobreza é sua própria culpa”. Ou seja, a ideologia meritocrática, ancorada no racismo estrutural (como argumenta Silvio de Almeida), quer persuadir que os ricos são ricos por seu próprio mérito (e não pelo roubo, exploração e desumanidade que praticam em sua crudelíssima ação de classe).

Despontam muitas perguntas, ainda sem respostas, incitadas pelos filmes deste mestre britânico da 7ª arte: será que o cinema recente praticado de Ken Loach, com sua vibe meio bleak, seria um fator desmotivador das lutas anticapitalistas? Em outras palavras, seus filmes comunicariam um sentimento de desolação que poderia conduzir a uma certa apatia? 

Em certa medida, parece-me que sim: Sorry We Missed You Eu Daniel Blake parecem-me filmes um tanto desanimadores, que parecem se desenrolar sob o signo da derrota de uma certa esquerda. É como se John Lennon, aos 29 anos, quando dizia que “o sonho acabou”, estivesse de fato com a razão – e o octagenário Ken Loach estivesse fazendo o cinema para prová-lo. Um certo clima de there’s no alternative espraia uma energia deprê por estas narrativas.

O sonho utópico não dá o ar de sua graça nestes filmes de Loach – pelo menos não de maneira explícita. No máximo, podemos falar de algum utopismo subliminar, envergonhado de si mesmo, que ousa se manifestar apenas de viés, através do elogio ético da empatia e da solidariedade, mas sem ousar encarnar esta aspiração em algum movimento cidadão ou partido revolucionário.

Sob o signo da derrota, Ken Loach sempre desenvolveu seu poderoso cinema. Os últimos filmes parecem mergulhados na atmosfera da derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbin diante do triunfo dos Brexit-ers à la Boris Johnson. Sob o signo também da derrota dos movimentos sociais que defendem serviços públicos de qualidade e inclusão social, ainda que no horizonte limitado do welfare state. Derrotas às mancheias. Mas será que Ken Loach está nos propondo a resignação? Está nos contaminando com a atmosfera da desistência? Está nos conduzindo à admissão de que perdemos, e à decisão de abandonar a arena de luta?

Não necessariamente, e neste aspecto é preciso colocar sua obra recente no contexto de sua filmografia. O italiano Enzo Traverso, um dos maiores pensadores políticos contemporâneos, que leciona em Cornell (Ithaca, Nova York), dedicou algumas das páginas mais lindas de seu livro Melancolia de Esquerda a este “derrotismo” de Loach. Ali, analisa principalmente o modo como Loach retrata derrotas em seus melhores filmes – como fez em seu retrato da Guerra Civil na Espanha (1936 – 1939) em uma de suas obras-primas, Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), premiado com a Palma de Ouro em Cannes:

“Em Terra e Liberdadeé a revolução em si que se transforma em domínio da memória, evocada e ‘vivida’ com empatia e uma nostalgia dilacerante, ainda que o olhar melancólico de Loach seja o oposto da resignação. Muito além de uma homenagem à revolução espanhola, seu filme queria mexer com o zeitgeist conformista dos anos 1990, além de contestar  a representação convencional da Guerra Civil Espanhola como uma catástrofe humanitária.

Sob esse ponto de vista, Terra e Liberdade surge quase como um antípoda de Soldados de Salamina (2001), o aclamado romance de Javier Cercas em que uma trágica dimensão da guerra não deixa lugar para esperança nem motivo para o engajamento político. (…) Terra e Liberdade descreve uma experiência histórica encerrada que, epítome da derrota das revoluções socialistas do século XX, claramente transcende as fronteiras espanholas.

O protagonista do filme é um jovem proletário de Liverpool, David Carr (interpretado pelo ator Ian Hurt), que vai para a Espanha não para participar de uma conferência internacional em defesa da cultura, mas com o intuito de lutar nas Brigadas Internacionais. Lá David completa sua educação política e sentimental, desenvolvendo valores e convicções que não abandonará pelo resto da vida.

(…) A última cena retrata o enterro do protagonista: a neta lê um poema de William Morris, ‘O dia está próximo’, que reafirma a visão socialista da memória: ‘Vem, junta-te à única batalha onde ninguém pode perder / onde aquele que morre ou desaparece / em seus feitos, porém, prevalece.’ Em seguida, a neta desata o nó do lenço e joga a terra da Espanha no túmulo. Eles foram derrotados, mas outros seguirão lutando e ganharão. Essa conclusão convencional encerra um filme que é um monumento às revoluções do século XX.” (TRAVERSO, Melancolia de Esquerda, Ed. Âyiné, 2018, p. 232)

O cinema de Loach, ao retratar derrotar, não quer nos resignar ao derrotismo, mas nos conduzir àquela lucidez que Gramsci consolidou numa frase lapidar: temos o direito ao pessimismo da inteligência, mas precisamos do otimismo da vontade. Ao pintar a via-crúcis de Daniel Blake ou da família de Sorry We Missed You, este cineasta magistral está querendo nos comover para os destinos que um sistema desumano massacra cotidianamente – não para que nos resignemos a assistir a isso de braços cruzados, mas para que possamos ir à luta em prol da construção difícil e infindável de algo melhor.

 

Por Eduardo Carli de Moraes e Gisele Toassa,
Goiânia – Março de 2020
http://www.acasadevidro.com

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SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

Na gangorra de emoções e obcecada com a mortalidade, Phoebe Bridgers destaca-se no cenário indie-folk

A arte, por vezes, é capaz de proezas espantosas como enfiar a condição humana inteira dentro de uma canção de 3 minutos. É o que faz a artista californiana Phoebe Bridgers – que também integra, na companhia de Conor Oberst, a banda Better Oblivion Community Center – em “Killer”, faixa de seu álbum de estréia “Stranger in the Alps” (lançado em 2017, baixe o disco em Mp3 de alta fidelidade: https://bit.ly/30JgSQK.)

A estilística da canção não difere muito das baladas conduzidas ao piano que fizeram a fama de duas das mais importantes artistas da música norte-americana contemporânea – Tori Amos e Fiona Apple. Porém Phoebe Bridgers traz uma marca própria, uma ousadia lírica toda sua, como prova esta canção que tematiza, com coragem e abertura, o amor diante da morte – e o direito à eutanásia.

Depois de assistir este esplendoroso videoclipe algumas vezes, fiquei impressionado pela capacidade extraordinária de união de vertentes expressivas que se manifestam nestes 3 minutinhos de audiovisualidade em eflorescência: o video-clipe é puro cinema e a letra é pura poesia. E não faltam provocações filosóficas.

“Às vezes penso que sou uma assassina”, começa a canção, evocando um clima de filme de horror, o que a segunda estrofe só sublinha: “Não consigo dormir perto de um cadáver, mesmo que esteja indefeso na morte / E tenho certeza que sentirei tua falta / E de fingir-me adormecida para contar tua respiração…”. A letra inclui uma referência a um notório serial killer (Dahmer) e revela uma artista arriscando-se na expressão de suas obsessões mais sombrias.

“I feel like a lot of my friends, especially artists, are consumed with this idea of the inevitability of death.” Phoebe Bridgers, Interview @ The Line of Best Fit

A canção tem um endereçamento: o eu lírico canta como quem escreve uma carta. Algo do espírito de “When I’m 64” – de Lennon/McCartney, a memorável canção dos Beatles – aparece aqui, pois o eu lírico imagina-se mais velho, questionando-se de modo bem imaginativo sobre seu porvir. Nada evoca, menciona ou fede a morte na canção pop alegrete de McCartney, em que envelhecer ao lado da amada é descrito como a maior das felicidades.

Só que onde Paul McCartney foi jovial, lúdico e solar, Phoebe Bridgers foi dark, melancólica e saturnina. Ela fala assim ao destinatário de sua carta-canção: “Quando eu estiver doente e cansada, e minha mente praticamente não estiver mais lá / Quando uma máquina me mantiver viva e estiver perdendo toda minha cabeleira / Eu espero que você beije minha cabeça apodrecida e tire a máquina da tomada / Sabendo que queimei todas as playlists e dei todo meu amor.” Coube até o amor fati nestes três minutos de esplendorosa canção.

KILLER

Sometimes I think I’m a killer
Scared you in your house
I even scared myself by talking
About Dahmer on your couch

But I can’t sleep next to a body
Even harmless in death
Plus I’m pretty sure I’d miss you
And faking sleep to count your breath.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
Is there nothing left to do for us?

I am sick of the chase
But I’m hungry for blood
And there’s nothing I can do
But when I’m sick and tired
And when my mind is barely there
When a machine keeps me alive
And I’m losing all my hair
I hope you kiss my rotten head
And pull the plug
Know that I’ve burned every playlist
And I’ve given all my love.

Can the killer in me
Tame the fire in you?
I know there’s something waiting for us
I am sick of the chase
But I’m stupid in love
And there’s nothing I can do.

Esta obsessão com a inevitabilidade da morte, enfatizada pela artista nesta pela entrevista, também se manifesta em “Funeral”. A poetisa, distanciando-se da eutanásia que se coloca como bifurcação ética no fim de muitas existências humanas, exigindo a escolha pelo suicídio assistido ou pelo morrer-de-morte-morrida, dedica-se em “Funeral” à morte precoce, começando a canção anunciando: “Vou cantar num funeral amanhã de uma criança um ano mais velha que eu.”

O brilhantismo deste início está no fato de que a narrativa cria de imediato um suspense sobre esta misteriosa morte de criança que será cantada por uma criança ainda mais jovem. A música evoca a falência da razão ao tentar compreender este horror, o sentimento de asfixia diante da tragédia: when I think too much about it I can’t breathe.

Phoebe Bridgers, com sua voz afinadíssima, com seu charme sussurrante, fez em “Funeral” um dos canções mais tristes dos últimos anos, culminando num refrão onde o sentimento que impera é o de estar sempre blue. Emblema musical do que alguns psicanalistas chamariam de uma síndrome maníaco-depressiva é a confissão do eu-lírico de que este sentir-se blue all the time é algo que “sempre foi assim e sempre será”. Não é verdade que isto captura à perfeição o mood depressivo, que consiste num presente triste em que tanto passado quanto futuro aparecem dominados por uma tristeza que se espraia para todos os lados?

O quadro fica ainda mais forte quando a poetisa evoca, de maneira impressionante, uma imagem onírica: “tenho um sonho em que estou gritando debaixo da água / enquanto meus amigos estão me acenando da margem”. O sarcasmo de Phoebe ergue-se mesmo em meio à desolação deprê deste funeral sônico e ela pede, como Rebecca Solnit: “não preciso que você me explique o que isso quer dizer…”

É evidente que há hipérbole e exagero nesta expressão da tristeza, estar blue todo o tempo, sempre foi assim e sempre será – mas é através deste recurso expressivo que ela atinge algo muito significativo sobre a experiência humana. Às vezes levamos muito a sério nossos próprios sofrimentos, sem nos lembrar que eles são ninharia diante de pais e mães que neste momento estão chorando a morte precoce de seus filhos.

Phoebe deixa no mistério a causa mortis e seu vínculo com o falecido, mas tudo indica que, já que foi convidada a cantar no funeral, trata-se de um conhecido, alguém quase de sua idade, que nunca estará mais aqui, situação que a afunda temporariamente nesta asfixia emocional onde os moods deprês parecem destinados a ficar para sempre. A boa notícia é que na vida tudo acaba, até a nossa dor de viver, sempre temporária.

Outro destaque deste disco de estréia da Phoebe é “Motion Sickness”, que também ganhou um belo videoclipe que já ultrapassou 2 milhões de visualizações. O teor “confessional” que se mostra nas composições dela é repleta de uma auto-ironia mordaz. Ela confessa que sofre de “emotional motion sickness“, que já tentou curá-la com grana emprestada em um “hypnotherapist”.

Difícil de traduzir – ela mesma fala da escassez de termos na língua inglesa para “afogar” o problema -, este “mal-estar do movimento emocional” evoca uma condição que talvez se caracterize por algo parecido com “ficar doente com a gangorra de afetos”. Os primeiros versos já evocam uma mistura de raiva e de saudade, de autenticidade e de fingimento, em que Phoebe entrega-se como um belo buquê de contradições ambulante. Indo de patinete até o karaokê, a moça do clipe estabelece uma jornada da frieza à catarse, mas sempre solitária. O crescendo catártico do clipe nos conduz à revelação da terapia que ela vem tentando para sua auto-cura: surrender to the sound. 

O tom afetivo da música de Phoebe Bridgers evoca o folk-triste de figuras lendárias do sadcore como Eliott Smith, Cat Power, Nick Drake etc. No encerramento de seu disco de estréia, Phoebe homenageia um desses luminares da melancolia musicada no alt-folk norte-americano: Mark Kozelek (que além de prolífica carreira-solo, foi o líder das bandas Sun Kil Moon e Red House Painters), realizando sua interpretação de “You Missed My Heart”.

Phoebe Bridgers também vem se destacando em projetos colaborativos – caso do trio de mulheres Boygenius  e da dupla de folk-rock alternativo que integra junto com Conor Oberst (o Bright Eyes), o Better Oblivion Community Center. A colaboração Oberst e Bridgers começou no álbum de estréia da cantora, em que Mr. Bright Eyes cantou na faixa “Would You Rather”.

A banda – cujo nome se traduz como algo semelhante a “Centro Comunitário Melhor o Esquecimento” – é uma das novidades mais interessantes do cenário musical indie recente, tendo lançado seu álbum de estréia em 2019 pela gravadora Dead Oceans (a mesma que publicou Stranger in the Alps). Em sua resenha para a AMG All Music Guide, Fred Thomas destacou o quanto Phoebe e Conor são espíritos em sintonia:

“It’s evident that indie songwriters Phoebe Bridgers and Conor Oberst are kindred spirits from a brief sampling of any cross-section of their catalogs. Both deal in folk-inflected storytelling that tends to slowly curdle from introspection to darkness and both have deftly balanced approaches to their songcraft that keep their hooks from being swallowed by that darkness. (…) Along with her unhurried vocals, Bridgers’ signature styles gel nicely with Oberst’s trademark shaky croon and stark lyrical perspectives. While both performers are too iconic for Better Oblivion Community Center to truly feel separate from their respective bodies of work, there’s still a strange magic that comes from the combination.

O disco foi eleito um dos melhores do ano em publicações como Exclaim! e Stereogum. Confira já o belo clipe da canção magistral “Dylan Thomas”, que inclui uma homenagem ao poeta galês:

It was quite early one morning
Hit me without warning
I went to hear the general speak
I was standing for the anthem
Banners all around him
Confetti made it hard to see
Put my footsteps on the pavement
Starved for entertainment
Four seasons of revolving doors
So sick of being honest
I’ll die like Dylan Thomas
A seizure on the barroom floor
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well
These cats are scared and feral
The flag pins on their lapels
The truth is anybody’s guess
These talking heads are saying
“The king is only playing a game of four dimensional chess”
There’s flowers in the rubble
The weeds are gonna tumble
I’m lucid but I still can’t think
I’m strapped into a corset
Climbed into your corvette
I’m thirsty for another drink
If it’s advertised, we’ll try it
And buy some peace and quiet
And shut up at the silent retreat
They say you’ve gotta fake it
At least until you make it
That ghost is just a kid in a sheet
I’m getting used to these dizzy spells
I’m taking a shower at the Bates Motel
I’m getting greedy with this private hell
I’ll go it alone, but that’s just as well.

Siga antenado em A Casa de Vidro para expandir horizontes musicais!
Por Eduardo Carli de Moraes. Acesse a página com todos os artigos sobre música.

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SIGA VIAGEM – VÍDEOS E DISCOS PARA BAIXAR

SARCÓFAGO ESPACIAL: Em “Aniara”, sci-fi distópico sueco, o pesadelo do ‘modus operandi’ capitalista e consumista exportado para o espaço sideral

O filme sueco de ficção científica distópica Aniara (2018) revela o que ocorre quando grandes catástrofes sócio-ambientais – tsunamis, furacões e mega-incêndios – acabam com a aventura humana neste planeta. O que restou da Humanidade tenta emigrar para Marte deixando para trás uma Terra devastada.

Ao assisti-lo, fiquei pensando no quanto a Suécia, talvez pelo impacto duradouro de Ingmar Bergman sobre a Sétima Arte do país, consegue levar a depressão pós-apocalíptica a novos níveis de desespero sem saída. Na espaço-nave Aniara (do grego “aniarós”, que significa tristeza e desespero), uma viagem que deveria durar 23 dias acaba se estendendo por vários anos em que esperanças se convertem em miragens enquanto os índices de suicídios alçam vôo como foguetes. É a Suécia nos mostrando como se faz cinema esmagador de ingenuidades com este poderoso tema do Sarcófago Espacial.

À semelhança de “Melancolia” de Lars von Trier e de “Snowpiercer – O Expresso do Amanhã” de Bong Joon-ho, “Aniara” retrata o futuro humano com cores bem sombrias. Seu tema, no fundo, é a extinção da Humanidade, ou o retrato de nosso suicídio coletivo. Pode também ser descrito como um “Wall-E” (de Andrew Stanton) bem mais deprê.

Se na animação da Pixar já se retratava uma estação espacial onde os humanos gastavam seu tempo a alienar-se diante de uma torrente de entretenimentos a serem consumido com muita Coca-Cola e marshmallows por uma população obesa e emburrecida, em “Aniara” a espaçonave também está equipada com escadas rolantes que dão acesso a shopping centers, centrais de entretenimento digital e esportivo, entre outras distrações.

Deixamos pra trás um planeta todo fudido e sem vida, mas não se preocupe: jogue baseball com uma robô que atira bolas pra que você se delicie fingindo que o estádio inteiro comemora seu home run. Sente numa falsa motocicleta e dirija em alta velocidade diante de uma tela que te faz delirar que está ziguezagueando pelas estradas de asfalto de uma Terra cada vez mais distante. Encha o bucho com hambúrguer de alga produzido a bordo pela nova versão do McDonalds.

Dirigido por Pella Kagerman e Hugo Lilja, o filme é baseado em um longo poema épico homônimo, de 1956, do prêmio Nobel de Literatura Harry Martinson (1904 – 1978).

A atriz protagonista, Emelie Jonsson, trabalha muito bem no papel de gestora de uma interessante entidade, dentro da espaçonave, chamava MIMA. Trata-se de uma espécie de Fábrica de Sonhos, um equipamento de Simulação Onírica, que permite aos seus usuários, deitados de bruços no chão abaixo de uma nuvem catódica, terem acesso a imagens bucólicas e idílicas de uma Terra esverdejante, cheia de florestas e cachoeiras, com equilíbrio ecosistêmico preservado. Mima permite que a Humanidade, saudosa de seu habitat antigo, fissure-se em fantasias do que perdeu irremediavelmente.

Mima é um símbolo poderoso que o filme ergue para que nós, humanos, olhemos nele como num espelho de verdades intragáveis. Mima poderia estar dentro de um episódio da série Black Mirror. Através de Mima, a humanidade revela sua vontade indomável de enganar a si mesma e se enfiar de propósito numa simulação enganadora que nos console de um presente onde prepondera a sensação de estarmos “doomed”.

Platão, com a Alegoria da Caverna, no livro “A República”, já havia previsto que o filósofo que se libertasse das correntes e fosse em jornada de descoberta da verdade, uma vez retornado à obscuridade da Caverna, seria rechaçado e ridicularizado por aqueles que já estão acostumados com sua ilusão cotidiana, tão comum quanto o pão. Se tentasse libertar outras pessoas da Caverna, o filósofo seria espancado por aqueles que já adoram demais suas correntes para ver com bons olhos um suposto libertador.

A máquina Mima é cada vez mais solicitada pelas massas, cada vez mais ávidas, naquele cenário de isolamento cósmico desolador, por um pouco de enganação, por ao menos um simulacro da Terra agora destruída. Após a destruição da Teia da Vida e suas finas e refinadas tessituras, os humanos querem ficar delirando com um passado não reconstrutível, plugados na máquina de simulações Mima, máquina de sonhos também imperfeita, consumidora de energias que em Aniara são limitadas. E assim o resto da Humanidade se arrasta para cada vez mais longe de uma Casa que já destruímos.

Como escreveu o crítico no site Flickering Myth, até mesmo o consolo supremo oferecido aos passageiros de Aniara acaba entrando em colapso: “The increased pressure on the Mima – which itself begins to sicken and warp – is just the beginning of a tragic spiral that sees fake news spread, sex cults form and hope become rarer than a raindrop in the Sahara.” (Flickering Myth)

Como bem percebeu também o crítico Wilson Roberto Vieira Ferreira de Cinema Secreto: Cinegnose, ancorado numa reflexão sobre a obra de Daniel Boorstin:

“Aniara é um gigantesco shopping center espacial que leva para o espaço o mesmo ‘modus operandi’ que destruiu econômica e ambientalmente a Terra: a cultura do supérfluo, do consumismo e, principalmente, a necessidade da simulação – parques temáticos e mundos virtuais tecnologicamente desenvolvidos para embalar os passageiros de Aniara no marketing e propaganda. (…) A nave chamada Aniara leva para o espaço sideral, e depois para Marte, o estilo de vida que acabou destruindo o próprio planeta Terra: a dependência humana pelo artificial, supérfluo e o consumo de imagens que simulam uma vida que não mais existe. E o que os espera não é exatamente um paraíso: Marte é um planeta frio, árido e hostil. Mas certamente parques temáticos ao estilo Disneylândia criarão uma estrutura cenográfica de um mundo que deixou de existir.”

As atitudes do capitão da espaçonave, Chefone, revelam a recorrente demagogia de líderes políticos e religiosos em tempos de crise: ele vende esperanças falsas e, quando estas se frustram, tenta curar as frustrações com novas esperanças fraudulentas. Enquanto isso, os suicídios se disseminam. E a própria Inteligência Artificial de Mima, cansada de gerar alucinações idílicas e reconfortantes na mente semiadormecida de seus usuários, parece cometer uma espécie de suicídio maquínico, de auto-extinção amargurada.

Para cúmulo da ironia, a personagem principal, após o colapso de Mima, busca formular uma nova solução envolvendo o sacrossanto Simulacro: ela pensa em impedir que as pessoas olhem, através das janelas, a profunda escuridão cósmica que as rodeia, polvilhada pelo brilho pálido de estrelas distantes, um cenário desolador onde ninguém parece ouvir os gritos de desespero dos últimos humanos.

A solução para uma vida melhor no sarcófago espacial de Aniara seria fazer com que todas as janelas se transformassem em telas onde seriam projetadas imagens agradáveis dos lagos, cachoeiras e florestas biodiversas da Terra (uma Terra, é evidente, que já não existe mais).

Presos naquele espaço exíguo da nave, os humanos não são ameaçados por nenhum alien ou monstro. A monstruosidade é exclusividade nossa. Os inimigos somos nós mesmos, incapazes de romper com o ‘modus operandi’ que destruiu o equilíbrio dos ecosistemas planetários, carregando para o espaço sideral a insanidade auto-destrutiva do capitalismo consumista e perdulário.

Alguns podem argumentar que a “profecia” que o filme faz nunca vai se cumprir, que se trata apenas de uma obra-de-arte nascida de suecos maníaco-depressivos que leram demais as obras do movimento intelectual hoje conhecido como Catastrofismo Esclarecido. Talvez.

Eu responderia que “Aniara” decerto não quer que sua profecia fílmica se cumpra. O filme chega ao mundo com o intento de ser uma “cautionary tale”, um conto que ensina cautela aos ingênuos que hoje tentam lidar com a crise climática planetária com a fantasia perigosa de que seria possível migrarmos mais de 7 bilhões de humanos para outro planeta.

Através de sua sombria pedagogia, “Aniara” ensina que a destruição da biosfera é possível, ou pior: está em curso. O filme pinta um cenário futuro possível para nos conclamar a agir no presente para que pesadelos como este não se consumem. Assim, “Aniara” parece reforçar a mensagem daquela que se tornou, no fim desta década de 2010, uma das mais célebres suecas do planeta: Greta Thunberg, que nos conclama a perder toda a esperança e propõe um novo imperativo categórico: “ajam como se nossa casa estivesse em chamas – pois está.”


Eduardo Carli de Moraes, 14/11/2019, para A Casa de Vidro.

NOS LABIRINTOS DO PASSADO – Sobre o filme de Asghar Farhadi (França / Irã, 2013, 130 min)

O PASSADO, de Asghar Farhadi (França / Irã, 2013, 130 min), é um filme que sonda as profundidades da condição humana de maneira sensível e complexa, relevando-nos como criaturas inextricavelmente conectadas em teias de relações repletas de maus-entendidos e silêncios, com irrupções catárticas que causam reviravoltas emocionais. Que a vida dos animais sociais que somos seja assim se explica parcialmente pelo fato de que o passado de cada qual nunca é totalmente conhecido e desvendado por si mesmo, nem integralmente compartilhado com outrem, o que acarreta que não faltem segredos e zonas de obscuridade que, ao irromperem na cena do presente, demonstram todo o poder disruptivo ou renovador de um pretérito que volta à tona – e com frequência em horários diferentes do previsto nos nossos frágeis calendários subjetivos. A re-emergência de um passado disruptivo não costuma respeitar os planejamentos que fizemos em nossas agendas.

Do mesmo diretor do belíssimo “A Separação” (2011), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “O Passado” é prova inconteste de que Asghar Farhadi já merece um lugar ao sol entre os melhores cineastas na história da escola iraniana de cinema, na companhia de Abbas Kiarostami e de Mohsen Makhmalbaf e sua filha Samira.

Este seu Le Passé se passa na França e novamente tematiza uma separação de casal: após 4 anos em Teerã, Ahmad retorna a Paris, a pedido de sua quase-ex-esposa Marie, para que eles consumem o divórcio em um fórum de Justiça. Caindo de pára-quedas no novo contexto relacional de Marie, Ahmad descobre-se em um contexto difícil: Marie está em um novo relacionamento e em sua casa coabitam suas duas filhas de um casamento prévio e o filho pequeno de seu novo companheiro. Hóspede por alguns dias, Ahmad será arrastado neste turbilhão em que uma enxurrada de segredos virá transtornar o rito jurídico do divórcio, só aparentemente simples, e bagunçar geral com os afetos. 

Em uma atuação magistral, a bela Bérenice Bejo encarnou com esplendor Marie – vencendo o prêmio de atriz do Festival de Cannes por esta interpretação. Soube emprestar a esta mulher toda uma gama de sentimentos complexos e decisões difíceis que fazem com que o espectador se vincule fortemente a seu drama. Grávida de um filho de seu novo companheiro, Samir, Marie pensa, a princípio, que pode seguir em frente com sua vida, pondo um ponto final no relacionamento antigo. Mas nada é tão simples: Samir está ainda “preso” à sua ex-companheira Céline, que está há 8 meses em estado de coma após uma tentativa de suicídio. 

Pra completar o imbróglio quase inextricável destas relações, a filha adolescente de Marie, Lucie, não convive bem com o carrossel de relações de sua mãe – e tem segredos inconfessos envolvendo o estranho suicídio de Céline…

Desenredar este tecido de conflitos e ambiguidades é algo que Farhadi faz com paciência, destreza e empatia. Coloca-se assim na companhia de uma figura como Abdel Kechiche (Azul É A Cor Mais Quente, O Segredo Do Grão) como um dos artistas do cinema contemporâneo que com mais competência é capaz de abordar temas tão difíceis da afetividade humana, sem nunca apelar para simplismos e sempre com coragem para tripudiar sobre tabus.  Assistir aos filmes de Farhadi ou Kechiche equivale a ler um bom tratado de psicologia – com a diferença de que as vivências estão ali, diante de nossos olhos, encarnadas (diria mais: em carne viva!) e por isso mais comovíveis do que costumam ser palavras escritas em um relatório de caso.

O que levou Céline a tentar o suicídio torna-se o grande mistério que o filme, sem pressa, dedica-se a decifrar. Sem nunca esquecer de deixar no ar muitos mistérios – como é do feitio da vida-como-ela-é também fazer. Pois é inútil esperar da vida uma clareza e uma transparência que nosso tumultuado e tortuoso percurso do berço ao túmulo não permite que ela desenvolva. Estamos condenados ao claro-escuro de um conhecimento sempre eclipsado pelos oceanos de nossa ignorância e pelas penumbras de nossa covardia para iluminar aquilo que não desejamos de fato saber. O passado tem tudo a ver com esta misteriosidade obscura da existência. Até mesmo uma criança – como é o caso de Fouad, o filho de Samir e Céline – pode abismar-se no questionamento do passado, perguntando-se porquê a mãe quis morrer e quais as causas pregressas que explicam a decisão extrema.

Todo presente, se é apenas parcialmente conhecido, é pois desvelamos apenas parte de suas causas pretéritas. No labirinto do filme, os personagens avançam nas trevas, com pequenas lanternas em suas mãos trêmulas, na tentativa de decifrar um ato tão extremo: Céline, mãe de um filho de 5 anos, casada com Samir, decide suicidar-se tomando doses cavalares de detergente diante da funcionária da lavanderia gerida pela família… Como explicar este auto-assassínio? E como lidar com esta pessoa reduzida ao estado de “legume”, em coma no hospital, que não se sabe se voltará um dia à vida? E, se ela regressar, não amaldiçoará o mundo por ter sobrevivido? Não clamará por uma eutanásia que complete o que seu suicídio-quase-fiasco começou?

O filme, especulativo como alguns dos melhores filósofos e escritores, foge dos dogmas e prefere sondar hipóteses. Especula-se e investiga-se sobre várias camadas de um passado que é determinante do presente dos personagens. A depressão de Céline é o tema de inúmeras conversas, e procura-se descobrir que tipo de evento poderia ter sido a gota d’água para transformar a depressiva em suicida.

O modo como este passado vai se desvelando demonstra uma maestria dramatúrgica que leva a considerar Farhadi – que além de diretor é também o roteirista – como um aprendiz de talento de grandes teatrólogos, alguém que provavelmente muito aprendeu com as obras de figuras como Henrik Ibsen ou de Tennessee Williams.


Também gostei imensamente da maneira como os personagens secundários são introduzidos no tecido da trama não como meros figurantes, mas como seres humanos completos e complexos, além de determinantes dos destinos dos protagonistas – como é o caso da funcionária da lavanderia. Ela é uma imigrante ilegal que vive no temor e na insegurança, na França atual, onde os estrangeiros árabes e africanos convivem com o fantasma dos Le Pen (e seu amplo eleitorado), passando por todas as dificuldades do estrangeiro estigmatizado em um contexto de ascensão da xenofobia.

A introdução desta funcionária de lavanderia poderia até soar como arbitrária inserção de um pequeno conto que ilustrasse um pouco da vivência dos “sans papiers” na França – os “clandestinos” de que fala Manu Chao. Em poucos minutos na tela, porém, a personagem faz algumas das principais revelações que elucidam o caso de Céline e ainda por cima conecta o filme ao contexto sócio-histórico de modo crível e pungente. A tentativa de suicídio de Céline revela, então, o quanto nossos afetos nunca são apolíticos. Ou, como diz um mote feminista famoso, o pessoal é político.


O modo equívoco e cheio de maus-entendidos em que se dá a ação da Julie, filha adolescente de Marie, torturada pela culpa advinda de seus atos pretéritos, é também uma sondagem interessantíssima da psiquê de uma jovem que, antenada ao Planeta Internet, toma uma decisão radical em que o meio digital serve como ferramenta para um tipo de ação pra lá de questionável. E que atormenta e transtorna a personagem com o aguilhão da culpa e a dificuldade de revelação de seu segredo.

O dilema moral que Julie enfrenta revela outro dos imensos méritos do filme de Farhadi.  A decisão que Julie toma – hackear a conta de e-mail e enviar a correspondência amorosa-erótica da mãe para a esposa do marido traído! – revela as transformações da afetividade na era da digitalização ao mesmo tempo que sublinha a persistência de ciúmes, invejas e sabotagens que participam das rivalidades agonísticas do amor desde tempos imemoriais (tendo no Iago de Shakespeare, que envenenou o idílio de Otelo e Desdêmona, um paradigma memorável).

Ao invés de lidar de modo superficial e ingênuo com as transformações que a interconexão digital vem trazendo à condição humana, o cineasta mergulha numa reflexão implícita sobre a tecnologia que não é menos pertinente que aquelas de Black Mirror, ainda que “O Passado” seja um filme ultra-realista e não tenha nem uma gota de sci-fi distópica.

A adolescente, que encara sua encruzilhada moral e decide-se a denunciar a própria mãe, usando como meios o hacking de e-mail, revela que não há separação estanque entre mundo real e virtual no que diz respeito às teias relacionais que tecemos: Uma pessoa que tem a privacidade de seu correio eletrônico violada, e os conteúdos de seus e-mails pessoais publicados, pode sofrer consequências bem reais e concretas no mundo que hoje foi amplamente modificado e transformado pelas novas tecnologias.

“O Passado” parece sugerir, no entanto, que mesmo o prodigioso avanço tecnológico contrasta radicalmente com algo de muito mais ancestral, arcaico e ardente: as paixões conflitantes e cruciantes dos corações humanos, que muito antes da Internet já sentiam a Conexão como problema e a Desconexão como drama. Decerto que a vida humana seria bem mais simples e bem menos trágica caso um relacionamento pudesse ter sua conexão desligada com o gesto que fazemos ao desligar o modem ou desconectar um cabo; nossas conexões, porém, são muito mais labirínticas e os processos de desconexão podem ser verdadeiras epopéias.

Céline, que tentou desconectar-se da vida através de seu suicídio, acabou re-atada a ela quando, nas profundezas de seu coma, tem seu mundo subjetivo invadido pela perfumância de um amor pretérito. O odor do corpo do ente amado, penetrando até o fundo da inconsciência, triunfa em fazer redespertar ao menos uma centelha de vida cujo sintoma é aquela lágrima furtiva que escapa dos olhos de uma Céline que, ao buscar a morte, descobriu-se incapaz de escapar à teia da vida humana, esta fascinante e cruciante encruzilhada de relações em que o passado aparece como labirinto. E às vezes não temos nenhum fio de Ariadne.

 

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Leia outras críticas e artigos sobre filmes na seção “Cinephilia Compulsiva”: https://bit.ly/1K2KZWZ.

A ONIPERSEGUIDA – “Uma reflexão (histórico-filosófica) sobre a felicidade”(com Camus, Comte-Sponville, Epicuro, Buda, Thoreau e cia)

Foto 1

“Se deveras existe um pecado contra a vida,
talvez não seja tanto o de desesperar com ela,
mas o de esperar por outra vida,
furtando-se assim à implacável grandeza desta.”

ALBERT CAMUS, Núpcias

Originalmente publicado no Glück Project

O DIREITO INALIENÁVEL DE CAÇAR A VIDA FELIZ

Não são só os filósofos que estão sempre em seu encalço. À caça de felicidade vamos todos, embriagados pelo sonho e impelidos pelo coração (que tem razões que a própria razão desconhece, como dizia Pascal). “A felicidade sempre foi e continua sendo um grande fim, se não a finalidade suprema, em nome do qual se justificam escolhas na vida pública e privada” – escreve Eduardo Giannetti (Felicidade, Cia das Letras, p. 68).

Dizer que a felicidade é a finalidade suprema, oniperseguida, deixa subentendido que os meios escolhidos para atingir este fim podem ser fracassados, ineficazes, desastrosos. Pergunto-me se, talvez, para ser feliz, a gente tenha que insistir e persistir na infelicidade, tropeçando nos percalços de que os caminhos do viver estão repletos e aprendendo com as feridas e os tombos?

Dá pra dizer que não há sociedade, contemporânea ou histórica, onde a busca da felicidade inexista – ela é perseguida em toda parte, deveras, mas em diferentes épocas e contextos socioambientais vai adquirindo múltiplas faces. Ademais, adquire sentidos os mais diversos e contraditórios em diferentes bocas: Santo Agostinho, em sua época, contava não menos que 289 opiniões diferentes sobre o tema; e hoje em dia o mercado editorial registra uma enlouquecedora quantidade de tratados filosóficos, livros de auto-ajuda, sermões de gurus, em uma Babel de diferentes receitas para atingir a beatitude.

Da felicidade, pode-se dizer que é a universalmente perseguida, se pelo termo “universal” entendermos não uniformidade, homogeneidade e monotonia, mas presença em todas as latitudes e longitudes. Tanto indivíduos quanto sociedades estão sob o encanto desta busca pela melhor vida e os problemas da ética não estão limitados aos filósofos mas dizem respeito a todo mundo e qualquer um.

Um bom exemplo da ampla gama de diversas manifestações históricas da perseguição à felicidade é a Europa quando o zeitgeist da Idade Média foi revolucionado pelo Iluminismo. Neste ponto-de-mutação, escancararam-se duas visões-de-mundo antagônicas sobre aquilo que a Declaração de Independência dos EUA (1776) declara então ser um direito humano inalienável: “the pursuit of happiness”. A perseguida torna-se então um direito-do-cidadão, a ser respeitado pelas repúblicas democráticas, nada menos que um pilar da pólis. “Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade…”

FELICIDADE: UM PRATO QUE SÓ SE COME QUANDO MORTO?

Na Idade Média, a história era outra: a Cristandade medieval acreditava na pecaminosidade da perseguição aos prazeres e alegrias mundanos; solicitava-se do rebanho de fiéis que carregasse sua própria cruz pelo vale de lágrimas da Terra e que deixasse para depois da morte o gozo de uma paradisíaca felicidade. A tradição judaico-cristã, de seus primórdios até hoje em dia, tende a prometer aos aflitos uma bem-aventurança do além-túmulo, entronando a fé e a esperança como virtudes teologais.

Em radical contraste, a visão de mundo que associamos ao Iluminismo e à Revolução Francesa (e também à Independência dos EUA), tem a ver com uma maré montante de secularismo, de crítica contra as monarquias absolutistas e os pilares teocráticos que as sustentavam. Na França, figuras como Voltaire, Diderot e Holbach ergueram suas vozes, com lábia afiadíssima, para denunciar como farsa a promessa de um paraíso transcendente e criticar como engodo as pregações do ascetismo judaico-cristão, que mandava macerar e torturar a carne para melhor liberar o alma.

Bruckner

Neste ponto-de-mutação, quando a Cristandade Medieval, em sua decadência, vai cedendo lugar aos poucos aos avanços da luz que os Esclarecidos traziam acesa em suas tochas, a felicidade torna-se exigência de algo a ser vivido aqui-e-agora, nesta vida, antes da morte e não mais depois dela. Em seu livro A Euforia Perpétua – Ensaio sobre o Dever de Felicidade, Pascal Bruckner pondera que o cristianismo não negava a aspiração humana à felicidade, mas colocava-a fora de alcance, seja no Éden de antes da Queda, seja no futuro Reino dos Céus, prometido aos fiéis. “O século XVIII iria se contentar em repatriá-la, trazendo-a aqui para baixo.” (Bruckner, pg. 22) De objeto de nostalgia e esperança, a felicidade torna-se agora um imperativo do presente.

Como aponta Eduardo Giannetti, “o século XVIII deslocaria o ponteiro da confiança no progresso e no aumento da felicidade humana ao longo do tempo até o ponto mais extremo de que se tem notícia nos anais da história intelectual. (…) Na aurora do pensamento moderno, sob o efeito inebriante da ‘tripla revolução’ (científica, industrial e francesa), a crença no progresso foi aos céus. A equação fundamental do iluminismo europeu pressupunha a existência de uma espécie de harmonia preestabelecida entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade.” (Giannetti, pg. 22)

As ideologias religiosas monoteístas, em especial judaicas e cristãs, diziam que a felicidade era um prato que a gente só come morto, um banquete a que só tem acesso o espírito depois de liberado do corpo; já o iluminismo instaurou outro regime, uma espécie de “terra prometida da razão secular” (Giannetti, pg. 26), que pretendia conduzir à humanidade à felicidade em vida através do progresso material, da dominação ampla e irrestrita da natureza.

A ideia religiosa de que a felicidade é um prato que só se come morto sofreu sob o impacto de saraivada de críticas (não só dos iluministas, mas também de figuras posteriores como Ludwig Feuerbach e Karl Marx), de modo que essas crenças caem em progressivo descrédito, a ponto de Nietzsche, na segunda metade do séc. XIX, diagnosticar na Europa os sintomas da “morte de Deus” e apontar a necessidade de uma “transvaloração dos valores” que tornasse o ideal ascético, enfim, um item de museu.

Mas também o ideal iluminista é amplamente criticado, como esclarece Eduardo Giannetti:

Eduardo Giannetti, pensador brasileiro, autor de

Eduardo Giannetti, pensador brasileiro, autor de “Auto-Engano” e “Felicidade”

 “O ideal iluminista é criticado por dar livre curso a certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material”; “representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. (…) Desse modo poderíamos recriar pelo engenho e sagacidade um novo jardim das delícias, um paraíso tecnológico de turbinas, robôs, viagras e disneylândias no qual o homem se faria um deus sobre a terra… Vejam no que deu brincar de aprendiz de feiticeiro na manipulação do meio ambiente e no consumo pantagruélico de recursos naturais. A ameaça de uma catástrofe ecológica não deixa de ser um espantoso paradoxo desta civilização que fez da racionalidade e do progressos os seus grandes princípios unificadores.” (Giannetti, Felicidade, pgs 39-40)

No século XX, mesmo após duas guerras mundiais, mesmo após bombas atômicas e campos de extermínio, prosseguiu-se perseguindo a felicidade, ainda que por outras vias: alguns dos movimentos mais importantes da contracultura dos anos 1950 e 1960, por exemplo, buscavam inspiração no misticismo oriental (zen-budismo, hinduísmo, hare-krishna…), reavivavam um hedonismo de sabor dionisíaco (evocando o espírito livre nietzschiano…), lançavam-se à política sob a influência de maoístas, Black Panthers e Ches… Nos grandes levantes da juventude dos anos 60, sob a influência de Marcuse e Debord (dentre outros), as ruas e os festivais ousavam demandar: que os sacerdotes não venham mais nos pregar que somos pecadores só porque exigimos “gozar sem entraves”, como se reivindicava em Maio de 68! E que os poderes tirânicos cessassem de perseguir e pisotear todos aqueles que, à maneira de beatniks e hippies, cantam e dançam em Woodstocks em louvor à paz, ao amor, à justiça – pra já e não pra depois!

O LABIRINTO DA ESPERANÇA E DO TEMOR

Felicidade

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Vicente de Carvalho

A recorrência, na linguagem, de termos como perseguição da felicidade [pursuit of happiness] é um índice da frequência com que a felicidade nos escapa (se não, por que a perseguiríamos?). Vide o filme estrelado por Will Smith, baseado no livro de Chris Gardner, uma saga-da-vida-real que pretende ilustrar-nos sobre o caminho que leva da miséria ao luxo, da pobreza à Wall Street, que chama-se justamente A Busca Pela Felicidade [The Pursuit of Happyness] e é uma epopéia kitsch de sua conquista, ao modo yankee e com propaganda do self-made-man, auto-empreendedor narcísico.

Perseguida sempre pois raramente possuída, a felicidade só parece conceder-nos pequenas fatias de tempo feliz, mas nunca a felicidade duradoura. Não somos poucos aqueles que contam os dias felizes como minoritários, na quantidade total de dias que engloba uma vida de mortal como a nossa. Não somos poucos aqueles que consideram que são mais comuns e frequentes aqueles dias em que padecemos sob o sofrimento, oprimidos por trabalhos estafantes e não-recompensadores, tolhidos por temores e melancolias, incertos quanto ao futuro, insatisfeitos no amor, cegos quanto à significação última de tudo – em especial da nossa função e sentido no conjunto cósmico completo.

Há filósofos que juram que vão chegar ao túmulo sem terem deixado por um único dia de ter coração e mente afligidos por alguma dor, alguma culpa, alguma preocupação, alguma angústia… Da vida, tudo o que se pode dizer é que nela misturam-se e mesclam-se, na imanência concreta do fluxo cósmico, os afetos alegres e os tristes, os prazeres e as dores, os êxtases e as depressões, tudo junto e misturado numa coisa só. Começar a compreender o mundo nestes termos é dar aquele passo que, segundo Nietzsche, é essencial para que a filosofia siga avante: ir além do Bem e do Mal, cindidos em domínios separados, e abraçar a Phýsis e a fate dizendo: “evoé!”. Amor fati. 

Se perseguirmos uma felicidade que fosse só alegrias, uma condição purgada de todos os afetos tristes, um êxtase duradouro e sem desdouro, corremos o risco de estarmos perseguindo uma quimera. E infelizes justamente pois perseguimos o que não existe. Às vezes o abismo que nos separa da felicidade é cavado por nós mesmos: imaginamos algo de quimérico e irrealizável cuja ausência continuada nos dilacera. Talvez convenha, pois, distinguir entre a felicidade como vivência/experiência e como ideal/quimera. A felicidade vivida em carne-e-osso, e a felicidade meramente sonhada e perseguida.

AndreO filósofo francês André Comte-Sponville tem vasta obra dedicada a nos esclarecer sobre este problema: em sua obra O Mito de Ícaro, composta por Tratado do Desespero e da Beatitude e Viver, realiza uma crítica filosófica magistral da esperança, que considera um afeto triste, fruto da impotência e da ignorância, sempre geradora de temores e inquietudes. A esperança é como uma idealização da ausência que nos impede de amar o real em sua presença. Quando a felicidade é apenas uma esperança, e não uma vivência, estamos na infelicidade; quando a felicidade apenas esperamos, sentados com a bunda no sofá, ao invés de agir e amar no sentido de inventá-la, estamos na infelicidade.

“Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos. Não conheço símbolo algum mais emocionante do que este”, escreve Albert Camus em Núpcias.

A esperança, para André Comte-Sponville, é apenas uma das modalidades do desejo – e justamente o desejo como falta, como Platão o definia, ou o desejo como sofrimento, para falar como Schopenhauer e Buda. “O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (Felicidade, Desesperadamente, p. 58). Donde a definição clássica e sintética: “esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”.

“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se…”), não podemos escapar da decepção… É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” (Felicidade, Desesperadamente, p. 37).

Lembrem-se do que diz a canção de Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”. Pois quem sabe e pode, age; quem ignora e não pode é que espera e reza. Quem espera não goza: teme e sofre. A palavra esperança, que carrega a “espera” em seu ventre, indica o suficiente o erro em que incorremos quando esperamos ser felizes. A felicidade não é questão de espera, mas sim de ação, criação, invenção. Não vem de graça, de mão beijada, mas precisa ser construída – e tem quem diga que não é construção passível de ser erguida a sós. Donde a importância fundamental do amor e da amizade: é impossível ser feliz sozinho.

O sábio, pois, não espera nada: vive no presente, impulsionado pela força alegre de seu desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos. Como sintetiza Sponville:

“Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.” (F.D., p. 76)

A receita para a infelicidade é justamente sonhar uma vida radicalmente diferente do que aquela que realmente vivemos. Os infelizes não cessam de projetar no futuro uma utopia pessoal que insatisfaz com o presente que se tem – é o real que nunca está à altura do sonho. Por exemplo: aquele que sonha em ganhar 100 milhões na megasena, e tem esperança de que isso representaria um encontro marcado com a felicidade perpétua, não estaria na ilusão, apostando suas fichas em algo de improvável, condenando-se à frustração perene dos perdedores crônicos na loteria? Ao invés de largar tudo nas mãos da sorte, não seria melhor arregaçar os braços e pôr mãos à obra para a construção e invenção da felicidade, ainda que sob restrições orçamentárias?

OS TESOUROS DE DENTRO

Eis uma das controvérsias que opõe os pensadores quando o tema é a felicidade: a intensidade da ênfase que deve ser dada aos elementos ditos “exteriores” ou “objetivos” na determinação concreta de um bem-estar subjetivo durável. O príncipe Sidarta Gautama, é bem sabido, abandonou o luxo do palácio e todos os confortos da vida principesca, optando com os pés por uma existência de buscador-de-sabedoria, nômade e frugal, que declara através de sua atitude que as riquezas exteriores importam bem menos – quase nada! – em comparação com os tesouros de dentro. O Nirvana importa bem mais que um trono.

A atitude do Buda simboliza a muito comum recomendação de desprendimento e desapego, como se feliz fosse aquele que sabe desprender-se dos vínculos entristecedores e dos desejos insuportáveis (pois insaciáveis) de glória, riqueza e poder.

Sob o nome de “ascetismo” – esse fenômeno que, como Nietzsche bem viu, é comum a muitos credos religiosos, e transcende mesmo o domínio das religiões, instituídas ou místicas, deixando sua marca indelével também em algumas filosofias pretensamente seculares (Schopenhauer, Cioran…) – podemos abarcar as doutrinas que desprezam as “exterioridades”. Digamos, esquematicamente, que há uma rixa entre ascéticos versus sensualistas. Nesta controvérsia, um dos elementos mais interessantes no budismo é seu ponto-de-partida: o sofrimento, indubitavelmente real e concreto, que a condição humana comporta, e isso pelo simples fato de sermos mortais e passíveis de adoecimento, inapelavelmente destinados à tumba (seja pela via do envelhecimento ou pela precoce doença ou acidente fatal). A doutrina búdica nasce para ser remédio para males concretos – Buda fisiologista e psicoterapeuta! – que serve como caminho a ser percorrido no processo de superação da ignorância samsárica. Uma terapêutica da vontade, pois, renovadora dos fluxos energético-existenciais. Buda irmão de Epicuro; Grécia e Índia dão-se as mãos, abraçam-se.

A proposta búdica é vencer a tirania dos desejos brutos e cegos, fazendo com que reine sobre eles uma sábia consciência nirvânica. O ponto-de-partida da busca búdica é a descoberta da dor de existir e a vontade de viver menos mal: desta base de angústia, poderíamos dizer, nasce a árvore Bodhi. A semente da árvore debaixo da qual Sidarta atinge a Iluminação precisou, para germinar e erguer-se em galhos, folhas, frutos e flores, do influxo indispensável de esterco, chuva, minhocas e lágrimas…

Walden

Em figuras como Thoreau, Gandhi e Pepe Mujica encontramos o elogio de uma união entre sabedoria e frugalidade, que é também fundamental no budismo: mais vale uma cabana de madeira às beiras do lago de Walden, habitada por um sábio escritor, do que uma mansão luxuosa em metrópolis poluída e cheia de apartheids, habitada por um milionário ignoramus.

A riqueza, é claro, permite gozar de certos prazeres sensíveis refinados (vinhos caros, carros de luxo, viagens a ilhas tropicais de beleza exuberante, o que seja), mas nunca se pode afirmar com certeza que o bilionário é mais feliz que o pobretão; há príncipes e reis que se suicidam ou agem como psicopatas homicidas (as páginas de Shakespeare estão deles repletas), e há mendigos e ciganos despossuídos, iluminados, que parecem abençoados por uma intensa alegria-de-viver.

O Iluminado, porém, é uma raridade estatística; a multitude é vasta, ignara e sofrente. Para citar Eduardo Giannetti, não é raro que a gente sinta que “a consciência pesa. Em casos extremos, o tormento da vida ciente de si adquire tal força que o animal humano reflete e contempla com amarga nostalgia a perda de sua inocência animal. O que nos aconteceu? De onde a sina de um viver cindido e aflito, expectante do inalcançável e à míngua de explicações?” (Felicidade, pg. 143)

Se não gera grande controvérsia afirmar que a felicidade é a finalidade suprema que indivíduos e coletividades perseguem, a coisa muda quando saltamos para a conclusão de que o dinheiro é o meio supremo para alcançá-la. Neste ponto, multiplicam-se aqueles que afirmam, por experiência ou raciocínio, que dinheiro não compra felicidade (ainda que te leve para sofrer em Paris). A canção de McCartney sintetiza bem o argumento: “money can’t buy me love.” Apesar das lorotas dos publicitários, é preciso sublinhar que a felicidade não é um item à venda em shopping centers e supermercados.

Para conquistar a felicidade, que ele concebia como tranquilidade (eutymia), Sêneca recomendava a parcimônia, a frugalidade, uma vida retirada, “uma cama que não seja adornada de modo exagerado”, “roupas que sejam caseiras e baratas”, “comida comum que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo” (Da Tranquilidade da Alma, L&PM, p. 36-37) – em suma, recomenda que não vivamos uma vida de atribuladas perseguições ao ouro, ao poder, à fama, a tudo aquilo que acende a inveja alheia e provoca distúrbios na placidez da alma. É a maneira estóica de conceber a vida feliz, e que tem certas similaridades com a doutrina epicurista da ataraxia, ou paz-de-espírito, com algumas diferenças importantes: Epicuro – e seu genial discípulo romano Lucrécio – acreditavam que eram também essencial à felicidade o convívio fecundo e mutuamente recompensador entre os amigos seletos que frequentam o Jardim.

Dito isto, podemos apontar ainda que os filósofos podem ser diferenciados em relação à valorização da sociabilidade como meio para uma vida feliz. Não faltaram na história aqueles que supuseram possível um isolamento bem-aventurado, uma feliz auto-suficiência, simbolizada pelo faquir hindu que medita, sereno e imperturbável, quase inteiramente fechado ao contato humano. Em contraposição, o epicurismo, revivido nos últimos tempos por autores como Jean Marie Guyau e Michel Onfray, julga a amizade um elemento indispensável da vida feliz. Bertrand Russell também defendia a necessidade de “eliminar o egocentrismo, o fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais” (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 507).

A controvérsia opõe, portanto, os defensores de um certo ascetismo anti-social que enxerga a felicidade como busca estritamente pessoal àqueles que concebem-na como inconquistável quando desvinculada das relações intersubjetivas. De um lado, a contemplação solitária beatífica, de outro, as delícias da alteridade fecunda.

Será mesmo preciso escolher, ou podemos surfar entre estes dois pólos?

Eduardo Carli de Moraes é filósofo e jornalista e criador dos sites Depredando o Orelhão e A Casa de Vidro

Maria Rita Kehl e Michael Löwy debatem Walter Benjamin e o capitalismo como religião

Walter_Benjamin

O sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, um dos maiores pesquisadores da obra de Walter Benjamin, esteve no Brasil em 2013 para debater “O capitalismo como religião”, livro de ensaios inéditos de Walter Benjamin, organizado e comentado por Löwy.

No dia 25 de outubro, ele se reuniu com a psicanalista Maria Rita Kehl, que assina a orelha do livro, para um debate intitulado “Walter Benjamin, intérprete do capitalismo como religião”, na Livraria Martins Fontes da Av.Paulista.

O livro mais recente de Maria Rita Kehl é “18 crônicas e mais algumas” (http://bit.ly/17BRJtb). Seu livro “O tempo e o cão: a atualidade das depressões” (http://bit.ly/1b6LBEJ) venceu o prêmio Jabuti de melhor livro do ano em 2010.

Leia a orelha do livro, assinada por Maria Rita Kehl:http://bit.ly/1bUpU0B. E também “As armas do futuro”, ensaio inédito de Benjamin extraído do livro e comentado por Michael Löwy: http://bit.ly/16VTdOK.

GERAÇÃO PROZAC – Sobre “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões”, de Maria RIta Kehl

— DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES 
Reflexões sobre O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões
de Maria Rita Kehl

Os dados são estarrecedores:

“A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que os ‘transtornos depressivos’ se tornaram a quarta causa mundial de morbidade e incapacitação, e atingem cerca de 121 milhões de pessoas no planeta – sem contar, evidentemente, as que nunca se fizeram diagnosticar. Até 2020, segundo a OMS, a depressão terá se tornado a segunda principal causa de morbidade no mundo industrializado, atrás apenas das doenças cardiovasculares.” (KEHL, 2009, pg. 51)

Só no Brasil, são 17 milhões de pessoas reconhecidas como depressivas; e a comercialização de Prozac no país vem crescendo numa taxa de 22% ao ano, movimentando anualmente 320 milhões de dólares.

Yves de la Taille, por sua vez, analisa outra estatística alarmante da mesma pesquisa da OMS, de 2000, que indicou que

“o que mais mata no mundo, hoje, é o suicídio. Foram 815 mil suicídios naquele ano, contra 520 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil em guerras. Ou seja, seria preciso somar as mortes decorrentes de crimes e guerras para empatar com o número de suicídios. Naturalmente, isso depende da região. Em alguns países, é a guerra que ocasiona mais mortes – como no Iraque. Em outros, como o Brasil, são os crimes. Portanto,  o mal-estar moral e ético, que pode levar a pessoa ao suicídio, manifesta-se de maneira mais forte no hemisfério norte, justamente aquele cuja cultura costuma ser considerada como a mais avançada e a mais desejável do mundo ocidental.” (DE LA TAILLE, 2009, pg. 9)

Curioso e sintomático que este “aumento assombroso dos diagnósticos de depressão”, desde a década de 70, se dê paralelamente à expansão dos tentáculos do império do consumo e do espetáculo, que exigem de todos nós que gozemos sem entraves (com a condição, é claro, de que gastemos no processo muito dinheiro!). A depressão ganha dimensões de epidemia enquanto a sociedade de consumo consegue cooptar e fazer de slogan seu até mesmo um mote de Maio de 68!

A constatação desta epidemia mundial de depressão, além do aumento significativo de pacientes que se declaram deprimidos e que procuram a clínica psicanalítica, levou Maria Rita Kehl a debruçar-se sobre o tema em seu livro  O Tempo e o Cão (ed. Boitempo). Nele, a depressão é descrita como um “sintoma social”, como a expressão generalizada de um “mal-estar na civilização” muito difundido.

“Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta 1a década do século 21. Por isso, os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber.  ‘Entre nós, hoje em dia, o blues não é compartilhável’, escreve Soler. ‘Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a título de doença do discurso capitalista’.” (22)

Os deprimidos, que apesar de seu imenso número são verdadeiros “proscritos” sociais, cujos discursos ninguém parece a fim de ouvir, são descritos por Maria Rita Kehl como pessoas que estão “desajustadas” em relação ao sistema econômico e cultural imperante, e que por isso são tão incômodos: não suportam o sistema ao qual os outros estão tentando se ajustar e aceitar.

“Não há, entre os discursos hegemônicos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa dos estados de tristeza e da dor de viver, assim como do possível saber a que eles podem conduzir. O mundo contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação” (KEHL, 16).


>>> DE HERÁCLITO A BAUDELAIRE: O BLUES ATRAVESSA OS SÉCULOS

Na Antiguidade, excêntricas teorias, hoje obviamente obsoletas, procuravam explicar a melancolia de modo puramente orgânico: a bile negra seria a causadora destes saturninos estados de espírito. E desde então já se contrastavam grandes personalidades da intelectualidade segundo sua predisposição à gravidade ou à leveza — como no célebre contraponto entre o riso de Demócrito, que “seria uma manifestação da impossibilidade de tudo saber e da falta de sentido do mundo”,  e as lágrimas de seu “antípoda” Heráclito (KEHL, pg. 72). Também muito se sugeriu que haveria uma ligação entre melancolia e criatividade, entre depressão e genialidade, tão numerosos os artistas – de Baudelaire a Pessoa, de Virginia Woolf a Clarice Lispector – que criaram em meio à abatimentos, spleens e desassossegos extremos.

Partindo da interpretação de Benjamin sobre Baudelaire, Maria Rita sustenta que

“o heroísmo de Baudelaire não consiste em se fazer defensor da multidão fascinada e consumida pelas mercadorias e pelo trabalho braçal que a aproxima e afasta do brilho das mercadorias. Consiste apenas, o que já é muito, em descrer de tal fascínio.” (KEHL, pg. 75)

Os depressivos de hoje, pois, são como pequenos Baudelaires, apesar de raramente atingirem seu gênio poético e sua potência expressiva, que também não deixam-se fascinar e conquistar pelo cortejo das coisas a consumir nem pela atração do trabalho mecanizado, monótono e mau-pago.

Por isso, do mesmo modo como há um “sentido político no dandismo” de Baudelaire, há um sentido político nos deprimidos que escondem-se debaixo de suas cobertas, como um modo de retirarem-se de um jogo social que são incapazes de jogar. Isto passa também pela Indústria Cultural, tão severamente esmiuçada e criticada por Adorno e a Escola de Frankfurt, e pela Sociedade do Espetáculo teorizada por Guy Debord —

“imagens que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato”, escreve Maria Rita, “uma nova forma de discurso único, fundado sobre razões de mercado, muito mais eficaz do que a dominação da Igreja na Idade Média – já que a norma contemporânea se impõe pela sedução, não pela interdição.” (KEHL, pg. 92)

Vivemos numa sociedade radicalmente constrastante com a medieval, onde o gozo carnal e sensível era condenado e anatemizado — repressão sexual e hedônica sustentada pelo poderio opressor de uma Igreja toda-poderosa. Hoje, o ascetismo e a moderação saíram completamente de moda frente às centenas de canais de TV, a proliferação da pornografia na Internet e fora dela, as técnicas de obsolescência programada dos produtos e às técnicas publicitárias que nos convidam a consumir sem cessar. Este imperativo de gozo se articula, é claro, com os ideais de eficácia econômica:

“Tal articulação subverteu os ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud, convocados a sacrificar suas modestas possibilidades de prazer em favor da produtividade, no período de consolidação do capitalismo industrial.” (KEHL, pg. 92)

Passamos para a fase do “capitalismo consumista” —  sistema que adora propagandear que devemos perseguir a “felicidade”… obviamente comprando-a no hipermercado e no shopping center. Devemos sim desejar ardentemente o gozo, desde que para gozar procuremos as satisfações enlatadas pela Coca-Cola ou por Hollywood! O problema é que todos aqueles que não conseguem “amar tudo isso” ou “ser um tigre”, como pedem alguns slogan publicitários, nem ter uma família Doriana toda-fofura ou um sorriso Colgate de orelha-a-orelha, sentem-se uns fodidos na vida. E deprimem-se ao não poderem encarnar o ideal do consumidor-satisfeito-sorridente-e-saltitante que o capitalismo-consumista solicita que sejam.

“O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado; sua produção imaginária empobrecida não sustenta as fantasias que deveriam promover a crença na combinação aparentemente infalível entre o espetáculo e o capital. Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.” (KEHL, 104)

São eles que “desafinam o coro dos contentes”, para usar o brilhante verso de Torquato Neto, e que “afundam a nau dos bem adaptados ao século da velocidade”, do entretenimento fútil e do consumo desenfreado.

* * * * *

>>>PROZAC GENERATION!

Outra hipótese que tenta explicar o exponencial crescimento de diagnósticos de depressão é a da ganância da indústria farmacêutica que, estando a fim de faturar milhões no Prozac e demais painkillers, instiga a medicalização de qualquer tristezazinha ou bode passageiro. Mas não será “teoria-da-conspiração” demais julgar que estas empresas multinacionais fabricantes de remédio tem este poder todo? Tão grande oferta de medicação não seria devida à imensa demanda? Ou as multinacionais teriam culpa na própria criação desta demanda? Decerto que já sabemos que ela é capaz de diabólicas maquinarias – escancaradas em filme por Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel, por exemplo, no qual o continente africano serve como fonte de cobaias para o teste de remédios de duvidosas consequências para o organismo humano.

Maria Rita Kehl critica vigorosamente a tendência “medicamentosa” que procura extirpar de modo imediato a depressão (ou algo erroneamente diagnosticado como tal) receitando remédios – sintoma de uma sociedade viciada em soluções rápidas e conflitos quimicamente desfeitos.

“O projeto pseudo-científico de subtrair o sujeito – sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta – a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico – o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana.” (53)

O processo de “cura” da depressão, ao invés do apelo ao imediatismo da farmacopéia, deve ser vagaroso: o deprimido deve aprender a “viver em seu próprio tempo” ao invés de sentir-se fora dos trilhos do tempos dos outros. Isso porque a “experiência subjetiva do tempo” que possuem os depressivos, frisa com insistência Maria Rita Kehl, é extremamente empobrecida. A depressão é vista por Kehl como uma “doença do tempo”, causada por uma certa desarmonia cacofônica entre o tempo subjetivo e o tempo-dos-outros (ou ainda, o tempo imposto pelo sistema econômico atual, frenético e apressado, que não suporta perder os segundos que são centavos…).

Pois se o depressivo sente-se apático, abatido, entediado, como se vivesse num tempo estagnado e onde “nada acontece”, é principalmente devido à sua incapacidade de “distender a temporalidade” — ele encontra-se num presente desvinculado do passado (tanto o pessoal quanto o coletivo) e do futuro (dada a atrofia de sua vontade e de seu desejo). “A duração, para o depressivo, frequentemente adquire a forma insuportável de um tempo estagnado, sem apoio em nenhuma lembrança significativa do passado, sem nenhuma fantasia que torne o futuro desejável.” (KEHL, 140) Lembremos da linda idéia de Virginia Woolf, que dizia que o tempo presente flui como um rio, mas é o passado que confere profundidade às águas…

Neste sentido, a psicanálise representaria uma possibilidade, para o depressivo, de vivenciar uma “temporalidade distendida”, onde o frenêsi e a pressa do “mundo-lá-fora” fossem substituídos pela calmaria e pelo silêncio — um “lugar” onde, mediado pela escuta do analista, a pessoa pode reencontrar sua temporalidade perdida, tanto num mergulho em suas reminiscências quanto na tentativa de construção de objetivos, projetados no futuro, que encham seu horizonte com ilhas cuja conquista pode ser desejada.

“Na duração do tempo diacrônico instaurado por essa ‘magia lenta’ que é a psicanálise, os depressivos se instalam aliviados, sem pressa, seguros de que é dessa temporalidade distendida que eles precisam para se libertar da pressão aniquiladora das demandas do Outro” (KEHL, 119).

Muitas outras explicações e hipóteses sociológicas e psicológicas podem ser arroladas na tentativa de explicar tamanha difusão de depressão e suicídio neste nosso início de século. Eu aqui gostaria de rapidamente sugerir uma, aliás nada original, que a Maria Rita Kehl comenta muito de leve, sem desenvolver a idéia: o fato de que os grandes centros urbanos, além da imposição de um estilo de vida frenético e de imperativos de consumo-feliz que são metralhados de todos os lados, são também formigueiros tão super-lotados que para muitas pessoas o convívio social torna-se um horror.  O inchaço das metrópoles faz com que as pessoas, por serem muitas, acabem por se “chocar” mais, de modos desagradáveis e irritadiços, como os porcos-espinhos de Schopenhauer. Claro que o ser-humano é um animal social, que procura a companhia dos seus, mas nos grandes centros o formigamento é tamanho que a presença dos outros, tornando-se compulsória e invasiva, fere aquela película que protege o que Goethe chamava de nossa “cidadela interior”. O depressivo, se esconde-se no subsolo, como o anti-herói do livro de Dostoiévski, talvez seja para escapar do fardo de pertencer a uma imensa massa, ruidosa e apressada, muitas vezes hostil e irritada, do qual ele não passa de uma ínfima parte… Situação que faz com que ele, ao invés de se sentir “acompanhado” e “acolhido”, sinta uma desagradável anomia e angústia por estar “apagado” em meio aos outros, com um destroço que flutua inotado pelos mares da multidão indiferente… Trancado em seu quarto, ele pelo menos pode ter a revigorante sensação de ser seu próprio centro (ainda que só dor e solidão se irradiem deste centro…).

Como conheço pouquíssimo de sociologia, não posso desenvolver estes argumentos com pesquisas e estatísticas que certamente estão sendo realizadas mundo afora averiguando as relações entre a vida nas grandes metrópoles e as patologias psíquicas como a depressão; mas largo aí estas idéias por sentir que são referendadas pela minha experiência pessoal de 5 anos morando na maior cidade da América Latina, onde eu tantas vezes tenho preferido permanecer no meu “subsolo” assistindo filmes de Bergman ou com um romance russo em mãos a enfrentar este monstro de mais de 15 milhões de cabeças chamado São Paulo…

Para finalizar, deixo uma das conclusões mais marcantes que a Maria Rita tira deste seu longo estudo sobre a relação entre a depressão e nossa cultura, além de uma canção que é uma das melhores expressões de desolação na arte dos últimos anos:

“O que distingue a sociedade de consumo não é o fato de que todos comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a idéia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Dito de outra forma, o que caracteriza a sociedade de consumo é o fato de que o fetiche da mercadoria, acrescido do valor (imaginário) de gozo, seja o verdadeiro organizador do laço social.” (KEHL, 100)