Plugando consciências no amplificador! Presente na web desde 2010, A Casa de Vidro é também um ponto-de-cultura focado em artes integradas, sempre catalisando as confluências.
Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Green, dirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).
Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!,Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.
Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”: o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.
A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.
Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.
Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner e Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.
O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.
Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).
Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.
In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)
No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.
O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…
O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”
Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”
Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.
Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.
Supostamente fabricados a partir de planktons, os alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.
Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal.
Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news e marketing.
Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.
O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em Parasita, O Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.
Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)
É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.
O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.
A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.
Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.
Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.
O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.
Conheça o thriller distópico "Soylent Green: À Beira do Fim" (1973), que representa uma catastrófica NYC na década de 2020: https://t.co/XF1mksO057. Via @acasadevidro
Laura Carvalho – As manifestações de Junho de 2013 eclodiram reivindicando direitos ao Estado provedor. Fortaleceram-se com a revolta contra um Estado repressor. Expandiram-se com protestos contra um Estado corrupto. E, em alguma medida, dissiparam-se pela contradição entre os clamores por mais Estado, de um lado, e sua completa rejeição, de outro. Afinal, que Estado merece ser demonizado?
Para além da corrupção ou da ineficiência, três são as características do Estado brasileiro que deveriam ser rejeitadas por uma sociedade que ainda tem alguma pretensão de desenvolver-se de forma democrática. A primeira e mais urgente é a do Estado opressor, um verdadeiro serial killer de assentados rurais, índios e jovens negros e pobres das favelas e periferias urbanas. A segunda é o do Estado penitenciário, que encarcera em massa e leva à superlotação de nosso sistema prisional. A terceira é a do Estado concentrador de renda. Além de pagar juros altos para os detentores de títulos da dívida pública, de tributar muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio e de tolerar a sonegação e a elisão fiscal de empresas privadas, o Estado brasileiro ainda paga supersalários a uma parte dos seus funcionários.
(…) Se o PIB brasileiro crescer nos próximos 20 anos no ritmo dos anos 1980 e 1990, a PEC do teto de gastos, se mantida, nos levará de um percentual de gastos públicos em relação ao PIB da ordem de 40% para 25%, patamar semelhante ao verificado em Burkina Faso ou no Afeganistão. E, se crescermos às taxas mais altas que vigoraram nos anos 2000, o percentual será ainda menor, da ordem de 19%, o que nos aproximará de países como Camboja e Camarães.
“A Constituição não cabe no Orçamento”, argumentam os defensores da PEC, na tentativa de transformar em minúcia técnica uma decisão que deveria ser democrática. De fato, há uma contradição evidente entre desejar a qualidades dos serviços públicos da Dinamarca e pagar impostos da Guiné Equatorial. O que os advogados da austeridade esquecem de ressaltar é que, no Brasil, os que pagam mais impostos são os que têm menos condições de pagá-los. O pagamento de juros escorchantes sobre a dívida pública não é sequer discutido, mas as despesas com os sistemas de saúde e educação são tratadas como responsáveis pela falta de margem de manobra para a política fiscal. A democracia caberia no Orçamento. O que parece não caber é nossa plutocracia oligárquica.
Além disso, conforme sugere o estudo empírico dos sociólogos Katherine Beckett e Bruce Western, que utiliza dados dos estados norte-americanos entre 1975 e 1995, a taxa de encarceramento costuma ser maior onde o Estado de bem-estar social é mais fraco. A conclusão dos autores é que a redução dos programas sociais nos EUA durante os anos 1980 e 1990 refletiu a emergência de um novo sistema de administração do que chamam de ‘a marginalidade social’.
O achado vai na linha do que havia exposto o sociólogo Loïc Wacquant em “As Prisões da Miséria”. Em vez da redução da intervenção estatal na sociedade, a opção por “menos Estado” econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva nos vários países, leva à necessidade de “mais Estado” policial e penitenciário.
(…) Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem exclusivista e punitivista da marginalidade social.
A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie.
CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico. Editora todavia, 2018. Pg. 157 a 159.
Laura Carvalho é doutora em economia pela New School for Social Research e professora da Faculdade de Economia e Administração da USP – Universidade de São Paulo. Este é seu primeiro livro. Entrevistas com a autora:
Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos
por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro
I. ENSAIO SOBRE A INVISIBILIDADE E SUA SUPERAÇÃO
Eliane Brum devota-se a visibilizar os invisíveis. É uma professora do olhar que ensina a enxergar aquilo que cotidianamente passa desapercebido. Apesar de escrever sempre em prosa, dá a sensação de ser uma poetisa de mão cheia, com similaridades de percepção e visão de mundo com um Manoel de Barros (1916 – 2014), o “apanhador de desperdícios” e autor do Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo.
Ambos, Brum e Barros, buscam dar importância ao desimportante, transvendo o mundo, em uma operação que supera as saramaguianas cegueiras que nos cobrem de cataratas a mente, tornando invisíveis os mistérios e maravilhas do cotidiano. Fazendo-nos cegos às unicidades irrepetíveis dos destinos de cada um e de todos.
Encantadora em seu uso da palavra pois capaz de encantar-se com tudo o que de extraordinário pode-se descobrir por trás das névoas da cotidianidade cinza, esta é Eliane Brum, uma das escritoras em atividade que melhor consegue conjugar a sensibilidade mais apurada com o senso crítico mais mordaz.
Ela parece ter também como mantra algo semelhante ao “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, célebre canto do poeta Vinícius de Moraes. Cada reportagem de Eliane Brum é toda uma universidade do encontro, toda uma aula magna sobre a aventura de conhecer o outro. E ela tem o dom da contadora de histórias, que conquista o interesse do leitor-ouvinte com firmes garras, talento desenvolvido por um longo e fecundo convívio com os livros, desde a primeira infância como devoradora de Monteiro Lobato.
Eliane Brum têm revolucionado o jornalismo justamente pois subverte seus cânones, recusa seus clichês, revolta-se contra os estereótipos e realiza uma nova aventura no campo daquilo que convencionou-se chamar de jornalismo literário. Ela não refaz caminhos já pisados por um Gay Talese, um Tom Wolfe, um Eduardo Galeano, um Eric Nepomuceno, mas forja uma travessia própria, refulgente de originalidade.
Em seus textos, ainda que nunca percamos a sensação forte de que aquilo que está escrito tem forte ancoragem e enraizamento em um real vivenciado de corpo e alma, é vigorosa também a presença de um ímpeto de honestidade, de boa-fé, de autenticidade, que torna explícito novamente aquilo que o jornalismo institucionalizado, carcomido pelo capitalismo emporcalhante, esforça-se em esquecer: jornalismo é compromisso com a verdade.
Eliane Brum é alguém que se recusa a mentir, a dourar a pílula, a semear ilusões. Tem pacto de compromisso com a realidade que ela desvela mas não inventa, que ela descreve mas não falsifica, que ela poetiza mas não transforma em quimera. Alguém que caminha pelo mundo em busca do avesso da lenda– nome, aliás, de seu livro-reportagem realizado ao seguir os rastros da Coluna Prestes.
Como relembra Marcelo Rech, uma das vivências de maturação mais cruciais na travessia da talentosa repórter gaúcha deu-se em 1993:
“Eliane havia ensaiado sua vida que ninguém vê numa histórica série de reportagens sobre a Coluna Prestes – ou melhor, sobre a Coluna Prestes que ninguém via. Ao percorrer 25 mil quilômetros empoeirados do Brasil, Eliane nutriu suas anotações com a matéria-prima das melhores reportagens: a gente comum. Das testemunhas anciãs da passagem da Coluna, a quem passou chamar de “o povo do caminho”, obteve o mais surpreendente e fiel relato sobre a marcha de homens que a parte do país com voz – 70 anos depois – considerava heroica mas que, na verdade da repórter, se delineava também como uma procissão de roubos e atrocidades. Ao contrapor seu “povo do caminho” à história oficial da esquerda, Eliane despertou a ira de quem erguia mitos com pés de barro, mas fez deitar em paz o maior patrimônio de um jornalista: sua própria consciência.” (RECH, prefácio à A Vida Que Ninguém Vê) [1]
A empatia que emana de Eliane Brum como uma aura invisível, nestes tempos em que é vigente uma persistente e onipenetrante crisis of perception (Fritjof Capra), é preciosa e inestimável para acelerarmos rumo ao ponto de mutaçãocom alguma chance de que, desta vez, mutemos rumo ao melhor. Que mutemos na direção alguma possível evolução, ao invés de degringolarmos mais uma vez na fossa coletiva do pesadelo e do desespero, da discórdia e da guerra, da incompreensão e da incapacidade de diálogo e encontro.
A inestimável escola de humanidade que são os textos de Brum é uma que muito bem faríamos em frequentar mais e mais, em peregrino e perene aprendizado, aprendendo com esta aprendiz – ela que nunca se recusa a deixar-se ensinar por alguém (nem mesmo por um bicho detrás das grades de uma jaula de zoo).
Pois Eliane vê a miséria e a glória da vida, qualquer que esta seja, que com frequência demasiada não enxergamos. Ela vê o que pra quase todo mundo passa batido, e por isso ela – sua obra e sua práxis – é tão socialmente imprescindível quanto os médicos que operam cataratas e devolvem a visão aos olhos doentes. Aonde qualquer um de nós, num dia banal, no dissabor da sobriedade e do tédio, encontra somente um macaco na jaula ou um pedinte na rua, Brum encontra muito mais: encontra destinos. Entretecidos com outros destinos. Numa teia de acachapante complexidade – e beleza, e horror, e fascínio, e asco…
Há muita sabedoria a colher, como um néctar, nos textos de Brum. Ela parece veicular uma sophia que diz: apesar de todo o horror e injustiça que macula a vida humana em todas as latitudes e longitudes, algo reluz de sublime e misterioso nas vidas, até na mais aparentemente mísera; até um filhote de barata tem sua dignidade ontológica, por exemplo, como aquela baratinha que a criança Eliane matou e que lhe deu tais tormentos internos que ela precisou exorcizá-los escrevendo sua micro-versão d’A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector (como narrado no posfácio de A Vida Que Ninguém Vê).
“Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico. Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal. Esse é o encanto de A vida que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisseia.” – ELIANE BRUM [2]
Leiam, por exemplo, “O Cativeiro” e “O Sapo”: no primeiro, ela transforma uma reportagem sobre os bichos no zoológico em uma profunda reflexão sobre o ser humano em sua relação com o restante do reino animal; na segunda, revela quem é aquele pedinte, sempre grudado ao chão da rua como um sapo (o que rendeu-lhe o apelido), por quem os transeuntes passam, com ligeiros olhares de pena ou desdenhosas desatenções, alguns deixando cair alguns moedinhas de esmola, restituído pela reportagem à dignidade intrínseca e à unicidade de destino que, de verdade, são dons de nossa comum humanidade, tão espezinhadas por nós humanos…
“Celebradas pelo Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de 1999, Eliane e suas A vida que ninguém vê foram como o encontro do cálice com o vinho. Fenômeno de percepção jornalística, Eliane iluminou um mundo recluso, obscurecido pela emergência da notícia ou pela máxima de que, em jornalismo, a história só existe quando o homem é quem morde o cachorro. A série provou o contrário. Ao extrair reportagens antológicas de onde outros só enxergariam a mesmice, Eliane deu a zés e marias do sul do Brasil a envergadura de personagens de literatura tolstoiana e reverteu um dos mais arraigados dogmas da imprensa. Um dia, quem sabe, algum desses acadêmicos da comunicação que se debruçam sobre aquelas teses herméticas deslocadas da vida real das redações também encare a tarefa de trazer à luz como Eliane traçou uma parte da história do jornalismo brasileiro ao escrever notáveis reportagens (ou seriam crônicas?) extirpadas das ruas anônimas.” (MARCELO RECH, prefácio.) [3]
Eliane Brum, nestas magistrais reportagens que perfazem as páginas deste papador-de-Esso-e-Jabuti que é A Vida Que Ninguém Vê, escritas em Porto Alegre, em 1999, para coluna homônima do Zero Hora, foi atrás de conhecer aqueles que não costumamos julgar dignos de ser conhecidos. Descobriu tesouros de humanidade e humor, de resiliência e resistência, de tragédia e drama, nas vidas que nunca aparecem na TV. F
az-nos conhecer o colecionador de refugos urbanos, que infunde beleza àquilo que outros legaram à lixeira. Expõe trabalhadores em situações bizarras, como o funcionário do aeroporto, carregador de malas por mais de 3 décadas, mas que nunca havia voado – até que, enfim, perde a virgindade em matéria de avião (“Alair Quer Voar”).
Também vai perseguir histórias reais bem longe dos palácios e das coletivas de imprensa, vai aos fossos, vê as crianças saindo do poço do esgoto, frequenta os velórios e as UTIs. Em sua obra não há escassez de reflexões forjadas em cemitérios ou diante de cadáveres. Extraí daí não a morbidez, algum tipo de niilismo de desistente, mas sim a lição de que até diante da morte a multiplicidade de manifestações da vida humana embasbaca quem não é babaca e sabe abrir o olho pra enxergar. Ver a maravilhosa reflexão filosófica que vai de contrabando com a narrativa sobre o chorador profissional da aldeia ou no pungente Enterro de Pobre(click e leia na íntegra).
Nada nem ninguém lhe parece indigno de atenção. Histórias de vida dignas de serem contadas pululam por aí como pequeninos grilos saltitantes que não notamos pois estamos demasiado afundados, como avestruzes, na areia de nossos celulares e telas de PC. Eliane Brum, animada por sua estrela-guia íntima, sua irrefreável curiosidade em relação à multiplicidade da vida, habita um mundo polvilhado de prodígios narráveis que encontram-se largados pelo pó dos caminhos.
Mas não é só isso: seu olhar é tão penetrante, profundo, revelador, pois é um olhar todo mergulhado na história. E sua pena não é a de alguém que registra o presente, mas de alguém que sabe conectar-se ao passado, ao percurso transcorrido, de modo que sua prosa é a de uma memorialista. Isto é, de um combatente em franca insurgência contra as potências do esquecimento. Por isso, sua obra alinha-se ao formidável esforço jornalístico-memorialístico da Dani Arbex no livro Holocausto Brasileiro (click e saiba muito mais).
Ela está ciente de que muita glória, que pôde um dia ter parecido imorredoura, revela-se com o andar da carruagem do tempo como perecedoura, mera vanitas que se desfaz em névoa: diante da estátua do Conde de Porto Alegre, ela evoca alguém que foi glorioso outrora, alguém que quis ser celebrado em epopéias como um Aquiles ou Ulisses, reduzido a limada pedra onde mijam os mendigos e de quem às vezes comenta-se: “quem foi esse cara?!? o que será que ele fez na vida?”
Eliane Brum, ao invés de fazer-se memorialista dos grandes e privilegiados, parece sempre preferir aproximar-se daqueles de destino mais vulnerável, justamente aqueles que estão mais ameaçados por um olvido que não demora. Um olvido que chega a preceder a morte. Um olvido que se confunde com suas vidas. São as vidas que ninguém vê, as vidas dos esquecidos, cada um deles uma manifestação irrepetível e única da vida neste universo.
* * * * *
Eliane Brum em território Ianomâmi, em Roraima, em 2001. A reportagem é “A Guerra do Começo do Mundo”, está em O Olho da Rua.
II. JORNALIRISMO REVELADOR DA POESIA POR TRÁS DA POEIRA COTIDIANA
O jornalismo e o lirismo dançam tão juntos no palco dos escritos de Eliane Brum que estes talvez mereçam o título de inauguradores do “Jornalirismo” brasileiro. Um professor ensinou-lhe que “jornalista era o homem (ou mulher) que estava lá, pessoalmente (e não por telefone ou por e-mail), com os dois pés enfiados na lama dos acontecimentos.” [4] A discípula seguiu a receita à risca: sem pudores, pôs seus pés nas agruras da realidade, na convicção de que “repórter de verdade atravessa a rua de si mesmo para olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo. Só assim pode chegar mais perto da verdade – ou das verdades – da história que se propôs a contar.” [5]
Jornalista não é o papagaio de uma ideologia que a empresa que lhe emprega manda-lhe disseminar (e que ele, como cão amestrado e submisso, acata). Jornalista não é também aquele que brada “eu! eu! eu!” e quer ser a estrela da reportagem (argumento anti-gonzo que a obra de Brum discute e problematiza, já que ela também tem um texto que às vezes carrega alta carga confessional e “subjetivista”).
Jornalista é um bicho que, tal como Brum compreende este ofício (que ela hoje exerce no Brasil com raro e refulgente brilhantismo!), deve servir às verdades plurais, pôr-se a serviço daqueles que não são ouvidos, amplificar as vozes que são esmagadas ou silenciadas pelos poderes hegemônicos. Eliane Brum escuta a sinfonia da vida em todo seu desconcerto e polifonia; depois pinta em suas páginas alguns retratos, profundamente humanos, de gente que briga para criar sentido e graça em meio ao tsunami de nonsense, violência e descalabro.
Eliane Brum vai buscar seus personagens nas periferias, nos presídios, nas aldeias indígenas, nas estradas de terra distantes dos grandes centros urbanos, nas florestas repletas de bichos exóticos e parteiras xamânicas. Seu interesse etnográfico e sua disposição para escutar as diferenças torna-a assemelhada a Eduardo Coutinho, falecido documentarista brasileiro, que sabia fazer cinema – vejam Edifício Master, Jogo de Cena ou O Fim e o Princípio – com um lirismo que também encontramos às mancheias nas palavras de Brum.
Escritora de talento comparável ao de Rubem Alves ou Lya Luft em seu manejo audaz do dom expressivo, Eliane Brum sabe pôr chama no verbo. Aquilo que ela escreve está simultaneamente animado com emoções intensas e diversas, de um lado, e ao mesmo tempo dotado de lucidez e clareza em seus diagnósticos críticos, de outro. Para o Brasil traz muito benefício ler, compreender, digerir, disseminar a obra (em processo, atualíssima!) de Eliane Brum. Eis um “remédio” – pharmakon de primeira qualidade! – que sugiro a todos que experimentem: serve para curar cataratas psíquicas, cegueiras do cérebro, preconceitos arraigados, dogmas imobilizantes. Oswald de Andrade recomendava “ver com olhos livres”. A obra de Brum indica o rumo para os que querem ver com olhos livres, e sem prescindir da indignação e da força criadora da união e da compaixão.
Além de repórter de rara capacidade de escuta, além de descomunais poderes de expressão verbal, Eliane Brum é uma pensadora – apesar d’eu suspeitar que ela talvez prefira um termo um tanto mais lúdico, como pensadeira. Seu texto carrega reflexões que a tornam digníssima de ser considerada uma das melhores filósofas brasileiras em atividade (na companhia de Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Maria Cristina Franco Ferraz, Viviane Mosé, dentre outras).
Brum é uma buscadora de respostas para alguns dos problemas que mais a solicitam e empolgam: em especial, ela busca descobrir, em cada pessoa que ela ouve e conhece, a maneira através da qual a pessoa tenta criar sentido para sua vida. Pois Eliane é intensamente consciente da mortalidade que nos constitui, inescapavelmente, e sobre a qual realiza tantas de suas reportagens e investigações. Um de seus “nortes” na existência é conseguir o dom búdico de, diante de dores e prazeres, possuir a “serenidade de quem sabe que é efêmero.” [6] No trecho seguinte, ela revela alguns detalhes do que pesquisou sobre o tema do morte, citando o historiador Philippe Ariès, além do grande Rubem Alves:
“A história humana pode ser contada pela maneira como cada sociedade, em diferentes períodos, lidou com a morte. O historiador francês Philippe Ariès escreveu uma das obras mais completas sobre o tema, primeiro num pequeno livro chamado História da Morte no Ocidente e depois em 2 volumes intitulados O Homem Diante da Morte. ‘A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras’, afirmou.
Rubem Alves
O psicanalista Rubem Alves deu um tom confessional à impotência do homem contemporâneo diante da medicalização da morte: ‘Tenho muito medo de morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte. Muitos dos chamados ‘recursos heroicos’ para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da ‘reverência pela vida’, Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: ‘Liberta-me’.
Começamos a morrer no exato instante em que começamos a viver. E hoje estamos mais mortos do que estávamos ontem. Mas, neste momento, mais que em qualquer outro período histórico, nós, homens e mulheres do Ocidente, vivemos a morte como uma experiência marginal. Ela se passa, de preferência, oculta dentro do hospital. E, quando perdemos alguém, nossa dor deve ser superada rapidamente, de forma asséptica como um procedimento cirúrgico, sem muito barulho e sem perturbar os amigos.
Pela lei, se perdemos um parente direto, temos direito a nos ausentar por 3 dias do trabalho. Quem casa, tem 5. Quando nasce um filho, a licença é de 120 dias para a mãe. Como se chegou à conclusão de que três dias de luto é suficiente? Por que dois é pouco e quatro é demasiado? Seria o primeiro dia usado para enterrar o morto, o segundo para limpar os armários e o terceiro para chorar? E, depois, a vida continua?” [BRUM, 7]
Eliane Brum faz coro com outra das maiores pensadoras brasileiras – Maria Rita Kehl, em seu estudo sobre a depressão O Tempo e o Cão – na recusa da “solução medicamentosa”, ou seja, a resolução dos problemas por decreto bioquímico fornecido pela tecnociência hi-tech. Ambas – Brum e Kehl – põem em questão a medicalização excessiva da vida, que tanto agrada à multimilionária indústria farmacêutica. A consciência de nossa mortalidade, a percepção de nossa finitude, as angústias e temores que podem assolar a psiquê diante do reconhecimento pleno de nossa efemeridade, não são fenômenos que mereçam ser tratados como doença, nem “curados” com doses cavalares de Prozac. Um ente querido faleceu e o mundo só nos concede 3 dias de licença no trabalho; pior: “se sofremos além do período considerado socialmente aceitável, tornamo-nos um caso patológico. Os amigos mais queridos nos dão o telefone de um psiquiatra. O que nos falta não é um ombro humano, mas antidepressivo.” [8]
Contra este ideário, Brum fala da morte como de uma escola. Ela nos ensina, a morte, sobre “como lidar com dois fatos intrínsecos à vida humana: impotência e falta de controle. (…) Ela nos lembra do que gostaríamos de esquecer. Em nossa época vende-se a ilusão de que é possível controlar com pílulas sentimentos tão intangíveis como a melancolia e a tristeza, prender a juventude à força de bisturis e cosméticos, prescindir da tradição e construir-se a si mesmo sem dever nada a ninguém. A morte nos lembra que há algo de errado nessa equação. Podemos transformar o corpo, mas não evitamos que ele morra. Podemos decidir entre marcas na prateleira, mas não decidimos deixar de morrer. Podemos fazer nossas próprias regras, mas entre elas não está viver para sempre. A morte nos confronta com a questão fundamental de nossos limites.” [9]
III. A CIDADE PARTIDA
Vivemos em cidades partidas, e o estranho é que nas selvas de concreto tão acostumados estamos a isso que quase nada nos estarrece, que as mais abomináveis injustiças não atiçam nossa “morna rebeldia” (Criolo). Eliane Brum, em A Vida Que Ninguém Vê, fez-se a cronista de uma Porto Alegre toda cindida. Cidade partida entre os privilégios e os andrajos, entre o morro e o asfalto, entre os popstars e os esquecidos. O destino da infância massacrada pela miséria no seio da megalópole – aquilo que o sociólogo José de Souza Martins chamou, em um livro que organizou, de O Massacre dos Inocentes – é um de seus temas recorrentes. Vejam, por exemplo, a reportagem-manifesto “Sinal fechado para Camila”, o tipo de texto que assombra o leitor muito tempo depois dele atingir a última linha. Ei-lo na íntegra:
“Sinal fechado para Camila
– Tio lindo, tia linda do meu coração. Eu pergunto a você se não tem um trocadinho ou uma fichinha pra essa pobre garotinha
Quase com certeza você ouviu esse hino em algum cruzamento de Porto Alegre. Debaixo de um sinal vermelho, o som entrando pelo vidro fechado, ameaçador como um Alien. O som entrando pela janela que você cerrou para se defender do ataque à sua consciência. Você rezando para que o sinal mude de cor, fique verde, não de esperança, mas verde de fuga. Sinal livre para escapar do rosto da menina grudado na janela. Sujando seu patrimônio. Obrigando-o a tomar conhecimento da miséria dela. Você, que paga seus impostos em dia, colabora com a campanha do agasalho, que até é um cara bacana. Subitamente transformado em réu no tribunal do sinal fechado por um rosto ranhento de criança.
Você, quase com certeza, ouviu esse hino. Pois saiba. A menina que o compôs morreu no domingo. Nunca mais ela assombrará a sua janela. A menina se chamava Camila. Camila Velasquez Xavier. Tinha dez anos. Mas os dez anos dela equivalem a cem dos seus. Camila viveu muito, até. No bairro onde ela nasceu, o Bom Jesus, 17 como ela morreram antes de completar um ano em 1997. Camila nasceu na Fátima, uma vila da Grande Bom Jesus. Vila, modo de dizer. Becos e mais becos de barracos amontoados sobre o cimento. Lá, o controle da população é feito ao natural. Só em janeiro, já tombaram quatro. Assassinatos citados em notinhas de canto de página.
Camila nasceu na Fátima, num barraco de uma peça. Quando chovia, havia tanta água fora quanto dentro. Em dez anos a família progrediu. Conseguiu um barraco de duas peças. Camila dormia com os quatro irmãos num sofá esburacado ou no chão de tábuas podres porque não havia lugar para todos. Pai e mãe desempregados, o pai um homem triste, de olhos injetados, que descia o braço sobre a mãe sempre que bebia além da conta.
Aos seis anos Camila foi enviada aos sinais para ganhar a vida da família. Logo descobriu que a concorrência era enorme. Que as janelas dos carros eram a versão moderna das muralhas medievais. Camila começou a embelezar sua tragédia. Inventou versinhos que venciam fossos e arriavam pontes levadiças, arrancando um sorriso perplexo dos motoristas. Eu não posso ficar sem você, meu trocadinho. Essa tia, esse tio queridinho vai me dar um trocadinho. Camila conquistou a sua diferença nos cruzamentos da cidade. Seus hinos se espalharam pelas sinaleiras e, mesmo depois de sua morte, seguem ecoando pela boca de outras Camilas.
Aos seis anos, flagrada na rua, Camila entrou pela primeira vez no prédio sem cor da Febem. Entraria ainda outras duas vezes. Na sexta-feira, 15 de janeiro, ela e outras cinco meninas jogaram suas trouxinhas pela janela do prédio. Um ursinho Puff de segunda mão e algumas camisetas compunham o espólio coletivo. Quando a porta se abriu para brincarem na pracinha – uma ficção de armações de ferro que há muito perdeu os balanços e as gangorras, uma ficção como a infância de todas elas – iniciaram sua jornada rumo à liberdade. Que passou na forma de um ônibus lotado para o centro de Porto Alegre.
No dia seguinte, a direção da casa informou ao plantão do Conselho Tutelar. Que anotou. Estava cumprido o trâmite burocrático. Por todo o final de semana, Camila e suas cúmplices de desamparo vagaram pelas pontes da cidade sem que ninguém as buscasse. Crianças sob a tutela do Estado vagando ao léu sem que ninguém chorasse a sua falta. Fazia calor no domingo, todo mundo lembra. Um calor tão pesado que quase se podia tocá-lo. Às 14h, de calcinha e camiseta, Camila e duas das fugitivas mergulharam no Guaíba na altura do parque Marinha do Brasil. Camila não sabia nadar. Debatendo-se como fez durante toda a vida, Camila, a senhora dos cruzamentos, submergiu.
Às 8h de segunda-feira, a notícia da fuga e da morte de Camila despertou a família. Vai ter que esperar porque ainda não abrimos a menina, informou o funcionário do Departamento Médico Legal à mãe quando ela foi recolher o corpo da filha. Camila foi enterrada na manhã de terça-feira, no caixão branco dos inocentes. A Febem pagou o enterro, pagou até uma capela funerária com ar-condicionado. Que lugar mais lindo, repetiam os familiares, assombrados com o espaço tão grande e tão verde da morte. Acompanhada por um séquito de parentes de rostos derrotados, Camila foi enterrada no Jardim da Paz. No cortejo, um único terno. Puído e manchado, envergado por um homem em quem o sofrimento abriu sulcos no rosto. Um homem tentando agarrar a dignidade que escapava como o cós da calça maior do que ele. No cortejo, nenhuma flor para Camila.
Talvez você lembre de Camila. Talvez não. Sua marca registrada, além da cantoria dos cruzamentos, eram os dedos indicador e médio eternamente na boca. Sua imagem desvalida não voltará a assombrar as janelas sob os sinais. Camila morreu. Mas os versinhos de Camila cruzaram o ar e semearam as esquinas. Não se iluda. Você não vai escapar. Há um exército de Camilas pela cidade. Haverá sempre uma delas tentando arrombar o vidro do carro com a urgência de sua fome. Camila morreu. Você, e eu também, somos cúmplices de sua morte. Nós todos a assassinamos. A questão é saber quantas Camilas precisarão morrer antes de baixarmos o vidro de nossa inconsciência. Você sabe? E agora, tio lindo, tia linda, o que você vai fazer? [23 de janeiro de 1999] [10]
Na “cidade partida”, Eliane busca chaqualhar a apatia dos conformados ao reconstruir um fio narrativo que empreste ao menos farrapo de sentido às vidas destas vidas mutiladas, atropeladas, relegadas, abandonadas, sequeladas, invisibilizadas – e que tudo isso sofreram sem nenhum merecimento, sem nenhuma culpa que justificasse tal via-crúcis. Eliane Brum sabe escrever textos trágicos, pungentes de tragicidade sem açúcar nem consolo. Semelhante à reportagem “Sinal fechado para Camila” é “O Menino do Alto”, que foca a atenção no garoto que mora no topo do morro e acaba perdendo as pernas, tornando-se uma espécie de prisioneiro na torre da favela. Incapaz de transpor o fosso social entre o alto e o asfalto, torna-se protagonista de um texto-revelação, de uma reportagem-poema, onde iluminam-se os claros e escuros de uma existência que parecia destinada ao esconderijo e ao esquecimento.
A insurgência jornalística de Eliane Brum dirige-se contra o destino de serem esquecidos que parece ser imposto por forças superiores aos milhões de esquecidos da Terra – aqueles que Franz Fanon batizou de the wretched of the earth, les damnés de la terre. Dentre eles, Brum descobre um heroísmo secreto e nada ostensivo, lutas invisíveis e sem promessa de glória, de um pai que é um “Hércules subnutrido” e de moradores sofridos de uma comunidade obrigada a ser composta por “alpinistas da miséria”.
Na cidade das iniquidades solidificadas e da solidariedade na UTI, ela atenta para as “massas de crianças desvalidas”, mas sempre busca o delineamento de individualidades, com suas idiossincrasias, nunca decaindo no cinzeiro das abstrações pálidas e descarnadas. Todas as teses sociológicas ou filosóficas, psicológicas e existenciais, que Eliane Brum veicula através de seus escritos, parecem ancoradas firmemente em sua experiência vivida e em seus encontros reais com uma multiplicidade de outros. De cada outro ela constrói um emblema para uma de suas teses essenciais: a da unicidade de destino, ou seja, a noção de que cada um de nós é irrepetível, é uma travessia efêmera ímpar por esta rocha girante no cosmos pluridimensional.
Como aquele garoto, ladrãozinho de cavalos, destemido bandido mirim que parece saído de um faroeste. O menino rouba o pangaré do carroceiro, sai galopando por Porto Alegre em pleno delírio heróico, mas não tardam até que “os cascos da realidade esmaguem os sonhos do menino” (“O Encantador de Cavalos”). Com sua cabeça posta à prêmio por ser ladrão de equinos, poderia ser relegado a uma nota de pé de página no noticiário policial do Zero Hora. Poderia ter sido tratado com manchete de imprensa marrom, Recompensa-se pela cabeça do pequeno vândalo que rouba cavalos.
Mas Eliane Brum nunca contenta-se com o beabá do jornalismo policialesco e proto-fascista que tanto pratica-se no Brasil. Ela quer ir atrás de um passado que ilumine o presente, e assim mergulha no destino do outro, desvelando no reles ladrãozinho um personagem digno de um romance infanto-juvenil de Charles Dickens ou Mark Twin. Após uma tragédia incendiária, em que uma vela acendida para iluminar sua casinha acabou por sepultar em trevas sua vidinha tão jovem, o pequeno perdeu sua companheira de infância, a égua Sabonete. O ladrãozinho, na verdade, era animado por sonhos de re-encontro com o cavalo perdido, e Brum transforma sua saga numa “busca por Pégasus” similar à de Alexandre, o Grande. A odisséia mirim de um audaz e temerário garoto que gostaria de ter asas para transpor o terrível fosso que separa, na cidade partida, o luxo da miséria, a vida fácil da via-crúcis dos esquecidos.
Eliane Brum em ação na reportagem com a Sra Ailce, que acompanhou em seus últimos dias de vida.
Sabe-se também que Eliane Brum é uma das pessoas que melhor reflete sobre a loucura neste país, e não apenas como prefaciadora da magnum opus de Daniela Arbex sobre o hospício de Colônia (MG). Sondando a lucidez que há na loucura, o método que há na fantasia e mesmo a beleza que se esconde por trás de certos crimes, Eliane faz-nos estarrecidos cúmplices de uma reflexão a um só tempo psicológica, sociológica, filosófica, que se fosse resumível em uma frase lapidar talvez pudesse ser esta: “sempre que alguém não se encaixa no mundo da maioria, é logo chamado de maluco.” (“Frida”) Sobre empatia pelos malucos na prosa poética de Eliane Brum, que por vezes até escreve com sabor de humor Raul Seixista (vejam, por exemplo, a divertidíssima crônica “A Voz”).
Os rotulados como loucos, delinquentes, imprestáveis, merecem dela sempre a atitude mais demorada do que a rapidez estúpida dos preconceitos. Ela ensina a ver para além dos rótulos e a acolher a diferença “num mundo que se especializou em esmagar, eliminar e encarcerar a diferença” (“Frida”). Através de sua prosa, multifacetada como o caleidoscópio caótico-cósmico da Vida, ela comunica a revolta contra aqueles que agem como se destinos pudessem ser destinados à lixeira. E solidariza-se com tantas Evas – pobres negras mulheres cheias de cicatrizes – que recusam-se ao destino de meras coitadas.
Uma brilhosa chama de ativo ideário ético anima os escritos de Brum, problematizadora da caridade vendida como panacéia: “a mão da caridade”, escreve ela com pena pontiaguda de provocação, é “irmã da pena, prima da hipocrisia”, e é isto que Eva renega. Em textos que ainda não tiveram toda a sua potência enfatizada pela crítica literária feminista, Eliane Brum inaugura uma galeria de revoltosas que insurgem-se muito além dos limites delineados por Albert Camus. Poderiam integrar um futuro livro chamado La Femme Revolté, a merecer lugar nas livrarias e bibliotecas lado a lado com O Segundo Sexo de Beauvoir.
Brum revela no cerne de todos nós, pulsando junto com as sístoles e diástoles do coração, um pavor que não é somente da morte física, mas da amnésia dos que ficam, os sobreviventes, sempre tão mortais e esquecidiços. Frase emblemática, em “O Exílio”: “temeu que seu mundo fosse sepultado com ela”. Emerge destes escritos a imagem impressionante, pungente, avassaladora, de um mundo que é a um só tempo viveiro e morredouro. Onde nós, viventes-mortais, “seguimos nosso combate silencioso contra o naufrágio da vida.” (“O Exílio”)
De acordo com ela, “a maior de todas as dores” é a “invisibilidade” (“O Homem Que Comia Vidro). E o que ela escreve sobre Venise e seu “talento singular” poderia ser dito da própria Eliane Brum: “tem o dom de dar importância ao desimportante, de dar significado ao insignificante.” (“O Álbum”) Cheia de tanto som e fúria, às vezes parecendo significar nada além de caótica cacofonia, nossa vida até parece fazer um fiapinho de sentido quando tecida na fina tapeçaria verbal desta magistral artista-da-palavra. Com as palavras que ela encerra A Vida Que Ninguém Vê, encerro também este breve percurso, na esperança de que tenha despertado apetite e curiosidade para que mais e mais leitores mergulhem nesta obra tão preciosa de Eliane Brum, alguém que sempre buscou
“estimular um olhar que rompesse com o vício e o automatismo de se enxergar apenas a imagem dada, o que era do senso comum, o que fazia com que se acreditasse que a minha, a sua vida fossem bestas. A hipótese era a de que o nosso olhar fosse sendo cegado, confundido por uma espécie de catarata, causada por camadas de rotinas, decepções e aniquilamentos, que nos impedisse de ver. Vemos o que todos veem e vemos o que nos programaram para ver. Era, com toda a pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários – e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer.
(…) Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter. Só pode ser exercido sem a mediação de máquinas. Não pretendo fazer aqui uma análise sobre as razões dessa mudança que faz com que muitos repórteres só vejam a vida – e os fatos, as pessoas – pela tela do computador. Só diria ainda que aqueles que se dobram à nova regra não-escrita são tão facilmente substituíveis – porque descartáveis – quanto os componentes eletrônicos das máquinas que elegeram para intermediar seu olhar sobre o mundo. E os primeiros a ser deletados numa das cíclicas crises das empresas de comunicação – porque deletaram antes a sua singularidade.
(…) Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver. Quando saio da redação, tenho uma ideia de para onde devo olhar e o que pretendo buscar, mas é uma ideia aberta, suficiente apenas para partir. Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas. Donos apenas da ilusão de que a vida pode ser domesticada, classificada e encaixotada em parágrafos seguros. Tudo o que somos de melhor é resultado do espanto. Como prescindir da possibilidade de se espantar? O melhor de ir para a rua espiar o mundo é que não sabemos o que vamos encontrar. Essa é a graça maior de ser repórter. (Essa é a graça maior de ser gente.)
Se de perto ninguém é normal, de perto ninguém é herói. Essa mania de mitificar gente, alçar fulano ou beltrano ao Olimpo porque supostamente fez algo sobre-humano, empata a vida. Faz com que os supostamente pobres mortais se sintam exatamente isso: pobres mortais. Ou losers, na expressão do que a cultura americana tem de pior. Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. Mesmo os super, dos quadrinhos e do cinema, pode reparar: o Homem-Aranha só consegue duas horas de filme por causa do atrapalhado Peter Parker e até o Super-Homem, que veio de outro planeta, só tem atenção por conta de suas fraquezas bem terráqueas (ou quantas voltas ao redor da Terra ele precisaria dar até todo mundo roncar?). Inclusive demônios como o Hellboy só são interessantes pelo que têm de humano, da ternura ao mau humor. Vou ao limite dos super-heróis para falar de uma obrigação de repórter. Meu professor de jornalismo, um baixinho-gigante chamado Marques Leonam, dizia: “Lei Leonam número um: repórter não tem o direito de ser ingênuo. Lei Leonam número dois: repórter não tem o direito de ser ingênuo…” Acho que ia até o número dez repetindo essa máxima leoniana. Eu faria alguns adendos a essa lei fundamental. Um deles é: desconfie dos heróis, dê uma boa cheirada num mito. Eles só se aproximam da verdade quando virados pelo avesso e promovidos a homens.
Somos todos mais iguais do que gostaríamos. E, ao mesmo tempo, cada um é único, um padrão que não se repete no universo, especialíssimo. Nossa singularidade só pode ser reconhecida no universal. Tudo é um jeito de olhar. Você pode olhar para o infinito, como Carl Sagan, e descobrir que é feito da poeira de estrelas. E pode olhar para o chão e acreditar que é um cocô de cachorro. É o mesmo homem que tem diante de si o infinito e o chão. Mas é nessa decisão que cada um se define. Como olhar para você mesmo é uma escolha. Um exercício da liberdade, da autodeterminação, do livre-arbítrio. Seja generoso. Arrisque. Ouse. Olhe.” – ELIANE BRUM [11]
Eduardo Carli de Moraes Goiânia, Fevereiro de 2017
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] RECH, Marcelo. Prefácio de A Vida Que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2012.
[2] BRUM, Eliane. Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.
[3] RECH, M. Op cit.
[4] BRUM, A Primeira Pessoa Sou Eu?, p. 347. In: O Olho da Rua – Uma Repórter Em Busca da Literatura da Vida Real. São Paulo, Globo: 2008.
[5] Idem nota anterior.
[6] O Inimigo Sou Eu, 2008, p. 333.
[7] A Morte Envergonhada. P. 360.
[8] Op cit, p. 362.
[9] Op cit, p. 363.
[10] Sinal Fechado Para Camila. In: A Vida Que Ninguém Vê. Op cit.
[11] Posfácio de A Vida Que Ninguém Vê.
SIGA VIAGEM:
ELIANE BRUM ENTREVISTADA POR ABUJAMRA NO PROVOCAÇÕES DA TV CULTURA (3 BLOCOS / COMPLETO)
Na tirinha que ilustra o início deste post, o Charb – cartunista assassinado por terroristas na redação do Charlie Hebdo – tece um comentário sagaz sobre a sobrevivência entre nós de Marx.
O autor d’O Capital é visto na charge a dialogar com o ex-presidente francês Sarkozy, e em debate está a pertinência ou não da luta de classes para a descrição da nossa realidade sócio-política.
Com seu brilhante petardo anti-idealista, o filósofo materialista-dialético dá um touché de esgrima retórica e mostra ao adversário Sarkoburguesista: “Não é porque vocês tiraram de moda a descrição da realidade que a realidade não existe mais”!
A batalha entre idealismo e materialismo, que muito além de uma querela filosófica, tem em Marx um dos batalhadores mais contundentes em prol do materialismo, via o comunismo não como um ideal que existe só em “Cucolândia das Nuvens” – uma antecipação dogmática do porvir, uma fantasia totalitária… – mas sim um movimento real e concreto, uma congregação coletiva de forças em luta por sua emancipação.
Marx não é o pregador de uma utopia pré-definida, é o pensador que tem sempre por base a “crítica radical da realidade dada”, como aponta Daniel Bensaïd:
“Não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas, ao contrário, encontrar o novo mundo a partir da crítica do antigo”, escreveu Marx. “O comunismo, enquanto negação da propriedade privada, é a reivindicação da verdadeira vida humana como propriedade do homem.” Até então, os filósofos tinham se contentado em interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa agora é transformá-lo. Para transformá-lo, certamente é preciso continuar a decifrá-lo e interpretá-lo, mas interpretá-lo de outro modo, de maneira crítica e prática. Esgotou-se a crítica da religião e da filosofia especulativa. A ‘crítica da economia política’ vai mobilizar a inteligência de Marx até sua morte.” (BENSAÏD, p. 20 e 25)
Este me parece um bom começo para tentarmos compreender de onde vem o dom da obra Marxiana de permanecer em perene presença no debate político e perseverar como uma das ferramentas mais fecundas para a nossa correta “leitura de mundo”. Marx não se limitou a realizar uma crítica das ideias alheias (como as de Hegel, Feuerbach, Max Stirner, Bruno Bauer…), foi um intenso dialogador com outras vertentes políticas de seu tempo (como as “encarnadas” por movimentos e partidos, agremiações e clubes secretos, que se inspiravam ideologicamente nas doutrinas de Proudhon, Blanqui, Lassalle, Bakunin etc.).
Essa atualidade perene de Marx, me parece, tem a ver com o fato de que a realidade presente, de que somos contemporâneos e co-agentes, manifesta ainda (e manifestará sempre?) indícios às mancheias de que a História tem sim o seu “motor de combustão interna”, por assim dizer, na luta de classes. Como Marx e Engels já diziam na bombástica imagética do Manifesto Comunista:
Nele, um “espectro rondava a Europa” – o comunismo – e nele se expressava não apenas um ideal, alojado no cérebro e nos sonhos subjetivos de certas classes, mas muito mais um movimento social, visivelmente real e objetivo, palpável em sua concretude, nascido da própria refrega interminável entre as classes e da ânsia de libertação dos oprimidos.
Comunismo, pois, como movimento real, e não apenas como ideal estéril. Movimento que lutava em prol da contestação e da tentativa-de-superação de uma (des)ordem social, de uma barbárie institucionalizada, aquilo que Galeano e Ziegler batizaram, em documentário contundente, de “A Ordem Criminosa Do Mundo”.
Mais que sonho, portanto, o comunismo era compreendido como força. Uma força encarnada na classeque lutava contra a injustiça social, a espoliação, a super-exploração, o proletariado fabril que era a vítima cotidiana da opressão e da miséria. Para Marx, a engrenagem do capitalismo, cravejado de contradições, criava necessariamente uma espécie de mecanismo auto-destrutivo. O capitalismo sempre engravida e dá à luz crises cíclicas e recorrentes, no decurso das quais vai gestando o seu coveiro. O proletariado seria a classe que anularia a divisão social em classes, instituindo um mundo onde o monopólio da propriedade privada dos meios de produção não tivesse permissão comunitária para agir como um social killer, na expressão feliz de Bensaid.
A classe que monopoliza os meios de produção – a burguesia industrial e seus financistas, os banqueiros – como um vampiro de mil dentes enfia seus caninos nas carótidas da classe trabalhadora: é o que o Livro 1 de O Capital desvendará, a famosa “mais-valia” que melhor seria compreendida se falássemos em rapinagem de classe, de vampirismo social, de modo que a obra de Marx é excelente aliada no desvendamento da “relação de exploração, a extorsão do mais-valornos porões do mercado, onde se elucida o prodígio do dinheiro que parece fazer dinheiro, fertilizar a si mesmo em mistério tão fantástico quanto a imaculada conceição. Esse fato advém da separação entre o trabalhador e seus meios de produção, entre o camponês e a terra, entre o operário e as máquinas e ferramentas, transformadas em propriedade exclusiva do patrão.” (BENSAÏD, p. 41)
O moinho satânico da mais valia, que o Capital de Marx revela em minúcias, tem suas entranhas expostas também por Karl Polanyi ou Simone Weil, por Paulo Freire ou Frantz Fanon; participa do Patriarcado machista que os ativismos feministas hoje contestam, tem culpa no cartório nas teorias eugenistas e higienistas tão próximas ao fascismo das “Soluções Finais”, além de ter se erguido sobre o escravismo que hoje se mantêm no racismo institucionalizado no sistema penal, policial, penitenciário.
A luta de classes pode até ter saído de moda nos discursos oficiais de chefes-de-Estado em democracias liberais (o neo-liberalismo pretendeu até decretar o “fim da História” e a pacificação total do rebanho humano, descrito como oni-satisfeito e 100% obediente à atual encarnação do capitalismo globalizado: como se fôssemos 8 bilhões de felizes, todos sorridentes e saltitantes no mundo dos shopping centers e dos agrotóxicos!).
A mais recente pesquisa da Oxfam revelou: “1% da população global detém mesma riqueza dos 99% restantes” (manchete da matéria da BBC Brasil). Nas obras de grandes pesquisados contemporâneos, de David Harvey a Thomas Pikkety, o cenário de grotesca desigualdade é exposto à luz do dia, o capitalismo neoliberal em sua assanhada sanha privatizadora, concentradora de capital, produtora de desigualdade, convulsionadora de tensões e antagonismos sociais, é denunciado como o que foi já nos anos 1970, no Chile de Pinochet, debute da Shock Doctrine (N. Klein), a doutrina de uma plutocracia que é avessa à democracia e à qualquer doutrina de coletivismo ou igualitarismo. E que reza de joelhos no culto do Mercado Livre Desregulado.
A luta de classes prossegue dando o tom na base real da sociedade, nas barricadas de rua, nas guerras campais, nos choques de civilização, nas bombas que chovem sobre o Oriente Médio nas guerras do petróleo, nos clashes entre traficantes de narcóticos ilegalizados pelo proibicionismo e esquadrões de policiais militares com licença-para-matar (mesmo em países, como o nosso, onde pena-de-morte inexiste na letra da lei)… Tudo constituindo este assustador, pois profundamente dissonante e caótico, troço que é a História – a real, a profana. O Brasil de 2016 traz inumeráveis evidências disso, o que torna Marx novamente urgente e necessário, dando razão a Jacques Derrida quando disse:
“Será sempre um erro não ler, reler e discutir Marx. Será um erro cada vez maior, uma falta de responsabilidade teórica, filosófica, política.” (DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx)
A cisão da sociedade em classes, efeito conjunto do regime da propriedade privada e da obscena desigualdade na distribuição de capital, advém da “separação entre o trabalhador e seus meios de produção, entre o camponês e a terra, entre o operário e as máquinas e ferramentas, transformadas em propriedade exclusiva do patrão.” (BENSAID, p. 41)
Nas páginas de Marx, analisam-se os labirintos (que depois tanto inspirariam a obra de Cornelius Castoriadis) de uma sociedade cindida, rachada, cravejada de antagonismos, praticante cotidiana de injustiças e barbáries em mega escala. Longe de ser um cientista neutro diante de uma História que supostamente se poderia observar de longe, com sangue-frio e com total desengajamento, Marx refletia na plena união de teoria e práxis, na soma de cabeça e coração, síntese de pensador e ativista (prenunciando nisto Eduardo Galeano ou Arundhati Roy, dois dos mais brilhantes pensadores políticos recentes).
Marx congrega sua análise crítica do capitalismo a um senso ético de indignação recorrente perante a barbárie social que o capitalismo gera, moendo gente em seus “moinhos satânicos” (para lembrar obra seminal de Karl Polanyi, A Grande Transformação). Um aspecto da obra marxista, aliás, que costuma ser sub-representada nas análises economicistas ou politiqueiras, é o enraizamento ético do discurso de Marx, que opera com frequência com conceitos como “fraternidade” e “justiça”, que são do âmbito dos valores e ideais, e não do juízo de fato ontológico.
Lendo Marx, vemos com frequência descortinar-se diante de nossa consciência expandida a noção de um abismo entre o ideal e o real, e do comunismo como força real que procura edificar a ponte. Em Paris, diante dos ouvriers que se unem tendo como meta comum a edificação de um mundo melhor, diz: “a fraternidade não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho.” (MARX, Manuscritos econômico-filosóficos)
Sobre o esmagamento da dignidade que é imposto de cima à classe proletária, História afora, não faltam detalhes minuciosos (sobre a situação francesa no séc. 20, por exemplo, uma obra-prima é a de Simone Weil, A Condição Operária e outros ensaios sobre a opressão; sobre o berço do capitalismo fabril, a Inglaterra, ver Hobsbawn, Thompson, Engels). É boquiaberto de indignação diante disso que Marx formula a teoria da luta de classes, dizendo, do proletariado, que é “uma classe com grilhões radicais” e que “contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência.” (MARX, Crítica da filosofia do Direito de Hegel, p. 156)
Ao sustentar que a História têm por essência a luta de classes, o barbudo filósofo alemão, como aponta com justiça Daniel Bensaïd, queria romper com toda e qualquer teoria da História manchada por mofados ranços teológicos, ou seja, queria chutar para escanteio qualquer visão-de-mundo que postulasse um Deus lá nos céus, Senhor-tirânico e Dono-da-História, que nos utilizasse como peças de seu divino xadrez ou como bonecos em seu teatro de fantoches:
“A História para Marx não é este personagem todo-poderoso, a História universal, da qual seríamos marionetes. (…) A história presente e aquela por vir não são a meta da história passada. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esclarecem que ‘a história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas’ , à diferença da história religiosa, a história profana não conhece predestinação nem julgamento final. É uma história aberta, que faz no presente a ‘crítica radical de toda a ordem existente, uma luta entre classes, com desfecho incerto.” BENSAID, Daniel, Marx – Manual de Instruções, Boitempo, pgs. 33-34
Ilustração: Charb (falecido, do Charlie Hebdo)
Para citar o gênio punk Joe Strummer, do The Clash (e depois Los Mescaleros), The Future is Unwritten – o futuro histórico ainda não está escrito. Como todo presente histórico, é o nosso também marcado pela luta de classes, não só a atual mas também a que nos foi legada pelas gerações antecedentes. Bensaïd usa a expressão impressionante: misérias herdadas. Destas o Brasil está repleto. Mas isto é tendência histórica geral, segundo o marxismo, já que pesa sobre os vivos o peso das gerações humanas já mortas e de seus pesados legados, “aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa de modos de produção arcaicos e antiquados, com o seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas” (BENSAID, p. 62).
* * * * *
II. OS SENTIDOS DO LULISMO
Para enxergar a dinâmica e a dialética da luta de classes em ação na atualidade brasileira, vale a pena considerar uma das obras mais importantes da ciência política nos últimos anos, Os Sentidos do Lulismo – Reforma gradual e pacto conservador, de André Singer (Editora Companhia das Letras, 2012). Nesta obra, o professor de ciência política da USP “realiza uma arguta radiografia das relações de classe e poder no Brasil contemporâneo”, elucidando o fenômeno sociopolítico que chamou de “lulismo”, consolidado com a eleição e reeleição, em 2002 e 2006, do primeiro presidente operário do Brasil.
Os aspectos biográficos da trajetória de Lula são bem conhecidos – e já foram objeto até do filme, O Filho do Brasil (2009, de Fábio Barreto) – e não é neles que Singer foca sua atenção. De todo modo, é extraordinário o percurso de Luiz Inácio: “a infância miserável no sertão de Pernambuco; a mudança para São Paulo com a mãe os irmãos num pau de arara; a perda de um dedo num acidente de trabalho; o ingresso no movimento operário; a liderança sindical e a perseguição da ditadura militar: reproduzidos em inúmeros discursos, livros e reportagens (e até mesmo no cinema) os quadros mais dramáticos da vida de Lula certamente contribuíram para convertê-lo numa espécie de mito entre seus seguidores mais fervorosos.” (Texto de apresentação da Cia das Letras).
Como procura destacar Singer, os impressionantes 80% de aprovação obtidos por Lula ao final de seu segundo mandato, além dos 20 milhões de votos de diferença sobre os segundos colocados que obteve nos pleitos de 2002 e 2006, demonstram a emergência de algo inédito na história da República, afinal Luiz Inácio “Lula” era o “político de origem mais humilde a ter chegado ao topo do sistema”, “o primeiro presidente da República que sofreu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na Presidência, para a realidade dos miseráveis.” (SINGER, p. 70)
Baseado em dados empíricos e estatísticos, Singer conclui a partir de sua pesquisa que o “lulismo” não apenas “vendeu a imagem”, de modo interesseiro e eleitoreiro, de ser uma época marcada por uma atenção estatal inédita aos miseráveis-da-terra e ao subproletariado. A acusação de populismo, que tantas vezes lhe é lançada à cara como um cuspe, só seria verdadeira caso tudo não passasse de bazófia, de ostentação de falsos feitos, de “propaganda enganosa”. Porém, como Singer demonstra através de seu ensaio lúcido e bem-fundamentado, Lula cumpriu sim uma parte de suas promessas e programas sociais como o Bolsa Família, o Fome Zero, o ProUni, dentre outros, de fato melhoraram materialmente a condição humana para milhões de brasileiros. O discurso “nunca na história dos mais humildes o Estado olhou tanto para eles” tem embasamento na realidade concreta:
“Com efeito, a partir de setembro de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF) inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres. (…) O PBF foi aos poucos convertido, pela quantidade de recursos a ele destinados, uma espécie de pré-renda mínima para as famílias que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004, o programa recebeu verba 64% maior e, em 2005, quando explode o ‘mensalão’, teve um aumento de outros 26%, mais que duplicando em dois anos o número de famílias atendidas. Entre 2003 e 2006, o Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por 13, pulando de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões, e atendia a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006.” (SINGER, p. 64)
“Foi sobretudo a subida na renda de 20 milhões que atravessaram a divisa da pobreza absoluta que despertou o sonho do New Deal brasileiro. Deve-se lembrar que, entre 2003 e 2008, houve uma valorização de 33% no salário mínimo. O tamanho dos indicadores de diminuição da pobreza monetária durante o governo Lula não dever ser, pela sua dimensão, desprezados. O economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, nota que ‘a pobreza caiu 45,5% entre dezembro de 2003 e 2009. (…) De acordo com Marcelo Neri, considerado o intervalo de 2001 a 2009, ‘não há na história brasileira, estatisticamente documentada desde 1960, nada similar à redução da desigualdade de renda observada’, pois segundo os cálculos da FGV-RJ, nesse período ‘a renda dos 10% mais pobres cresceu 456% mais do que a dos 10% mais ricos.'” (SINGER, p. 132 e 181)
É no final do primeiro mandato de Lula, na campanha eleitoral para a re-eleição, lá pelos idos de 2006, que emerge de fato este fenômeno histórico que Singer batiza de lulismo e que está conectado com uma espécie de “revolução eleitoral” no Brasil: o fato de que a vitória de Lula em 2006 deveu-se, em larga medida, ao eleitorado das classes mais desfavorecidas, dada a alta votação de Lula nas regiões Nordeste e Norte, “onde os programas sociais tiveram mais beneficiários”:
“Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita do Bolsa Família, mostrando a repercussão do programa nos chamados grotões, tipicamente o interior do Norte / Nordeste, que sempre fora tradicional território do conservadorismo…. Entre os que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de baixa renda, o público-alvo por excelência do Bolsa Família, pois são as mães que recebem o benefício.(…) O Bolsa Família foi logicamente destinado em maior proporção às regiões pobres e aos municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), pois lá se localizava a maior parte das famílias que a ele faziam jus.” (SINGER, p. 65)
O lulismo, segundo Singer, tem raízes fincadas no “subproletariado brasileiro”, em especial no Nordeste, mas emerge numa época histórica em que o Partido dos Trabalhadores já vivenciava uma contenda íntima entre suas duas “almas”: a originária, mais radical, comprometida com a construção do socialismo, que animava no passado figuras do PT original como Florestan Fernandes e Chico de Oliveira; e a alma mais “recente”, aquela nascida dos pactos em prol da governabilidade e que busca num reformismo gradual e na conciliação de classes uma evitação cuidadosa e prudente do confronto aberto e violento com as elites do capitalismo nacional e internacional.
A estas “duas almas” do PT, responsáveis pelo fenômeno altamente complexo e paradoxal que o Partidos dos Trabalhadores tornou-se hoje, em 2016, no auge de uma das piores crises políticas da República, Singer batizou de “o espírito do Sion” e “o espírito do Anhembi”:
O ESPÍRITO DE SION: “Vindo à luz na crista da onda democrática que varreu o Brasil da segunda metade dos anos 1970 até o fim dos anos 1980, o PT foi embalado pela aspiração de que a volta ao estado de direito representasse também um reinício do país, como se fosse possível começar do zero, proclamando uma verdadeira República em lugar ‘falsa’ promulgada em 1889. Forjada na oposição à ditadura, a proposta de fundação do partido, aprovada em Congresso de Metalúrgicos (janeiro de 1979), falava em criar um partido ‘sem patrões’, que não fosse ‘eleitoreiro’ e que organizasse e mobilizasse ‘os trabalhadores na luta por suas reivindicações e pela construção de uma sociedade justa, sem explorados e exploradores, expressão que significava, na época, uma referência cifrada a socialismo.
(…) A radicalização havia atingido também o meio católico, o qual desenvolveu, nos interstícios da repressão, extensa rede de organismos populares, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ainda durante a vigência da ditadura. Iniciada a transição para a democracia, as CEBs, imbuídas de uma perspectiva crítica ao capitalismo, tiveram destaque na conformação do PT. Foi crucial o papel desenvolvido pelo cristianismo como fonte do sentimento radical que caracterizou o espírito a que, não por acaso, estou chamando ‘do Sion’.
O terceiro e mais decisivo front foram os sindicatos de trabalhadores que cresceram nos recessos da ditadura, representando, em parte, camada operária recente, os quais propunham ruptura com o velho sindicalismo do período populista. Com o vigor típico dos gestos inaugurais, o ‘novo sindicalismo’ pregava a liberdade sindical e a revogação da legislação varguista que, segundo se dizia, inspirada no fascismo italiano, atrelava o movimento operário ao Estado.
A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson, para quem o PT constituiu o único partido de trabalhadores de massas criado no planeta depois da 2ª Guerra Mundial. Cercado pela atmosfera eufórica da redemocratização, sobretudo a partir das greves que eclodiram em 1978 no ABC paulista, o PT despertou a atenção do mundo. Compreende-se: quando em outras partes do planeta a reação neoliberal começava a desmontar o que fora construído no pós-guerra, no Brasil greves de massa pareciam civilizar o que Rosa Luxemburgo chamou de ‘as formas bárbaras de exploração capitalista’.
Da cultura participativa aos direitos cidadãos da Constituição de 1988, o partido cumpriu papel histórico semelhante ao desempenhado por socialistas europeus, a saber, o de generalizar ‘dimensões fundamentais da igualdade’, como escreve Jessé Souza em A construção social da subcidadania. (…) A militância entusiasmada e a autenticidade das propostas fizeram do PT experiência aberta à participação. Fraco do prisma eleitoral, embora em crescimento permanente, extraía vigor de ser a voz de forças sociais vivas… Falando por esse movimento social, o partido se propôs a combater, mesmo que isolado, os vícios e arcaísmos do patrimonialismo nacional. ” (SINGER, p. 90)
Descrita em linhas gerais a “primeira alma do PT” (Sion), ficamos melhor munidos para melhor compreender a mudança que se deu com a emergência da “segunda alma do PT”, o “espírito do Anhembi”. Lembremos que o PT havia disputado a eleição presidencial três vezes, sempre com Lula como candidato, até chegar à sua primeira vitória: em 1989, Lula foi derrotado por Collor, e nos dois próximos pleitos perdeu para FHC. O “espírito do Anhembi” vai amadurecendo com estas derrotas nas urnas, o radicalismo de Sion vai amainando seu ímpeto, até que surja o “Lulinha paz-e-amor”, devidamente perfumado pelos publicitários, que enfim vence as eleições. Em 2001, porém, como Singer enxergou bem, o PT das origens, o PT socialista, o PT que confrontou radicalmente a ditadura, ainda pulsava forte, determinando inclusive a ocorrência do primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre:
Fórum Social Mundial, Porto Alegre, foto de Victor Caivano
“Apesar de fazer concessões eleitorais, o PT continuou a ser um vetor de polarização. As diretrizes aprovadas em dezembro de 2001 afirmavam: ‘A implementação do nosso programa de governo para o Brasil, de caráter democrático e popular, representará a ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado.’
Sem abrir mão da perspectiva de classe, o partido foi relevante para a maior iniciativa anticapitalista do início do século XXI: o Fórum Social Mundial (2001), não por coincidência inaugurado na capital do Rio Grande do Sul, o estado mais importante governado pelo PT na época. É que entre o espírito de Porto Alegre e o do Sion havia continuidade evidente: ambos expressavam insatisfação com o mundo organizado e moldado pelo capital.” (SINGER, p. 95)
Presidente Dilma Roussef discursa durante festa de comemoração dos 10 anos do PT no governo, realizada no hotel do parque Anhembi (SP)
O ESPÍRITO DO ANHEMBI: “Se existe um momento específico que corresponde à irrupção da segunda alma do PT, talvez seja o da divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro”, em junho de 2002. Houve, certamente, uma longa gestação anterior, cujos fios podem ser rastreados no mínimo à derrota de 1989… No entanto, a silenciosa criatura só veio à luz quando já estavam dadas as condições para que, surgindo aparentemente do nada, se fizesse imediatamente dominante dentro do Partido dos Trabalhadores.
Quando a campanha de Lula decidiu fazer as concessões exigidas pelo capital, cujo pavor de um suposto prejuízo a seus interesses com a previsível vitória da esquerda levava à instabilidade nos mercados financeiros, deu-se o sinal de que o velho radicalismo petista havia sido arquivado. Foi, a princípio, uma decisão de campanha, mas cerca de um mês depois o Diretório Nacional, reunido no centro de convenções do Anhembi, em São Paulo, aprovou as propostas antecipadas pela carta, transformando-as em orientações partidárias.
Revista Veja – 04/07/2001
No programa divulgado no final de julho de 2002 pelos partidos que integravam a Coligação Lula Presidente, há um perceptível câmbio de tom em relação ao capital. Em lugar do confronto com os ‘humores do capital financeiro globalizado’, que havia sido aprovado em dezembro de 2001, o documento de campanha afirmava que “o Brasil não deve prescindir das empresas, da tecnologia e do capital estrangeiro”. Para dar garantias aos empresários, o texto assegura que o futuro governo iria “preservar o superávit primário o quanto for necessário”. (…) Enquanto a alma do Sion, poucos meses antes, insistia na necessidade de “operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente”, a do Anhembi toma como suas as “conquistas” do período neoliberal: ‘a estabilidade e o controle das contas públicas e da inflação são, como sempre foram, aspiração de todos os brasileiros’.
Por certo tempo considerada uma ‘tática’ para facilitar a transição, o ideário ali exposto compunha, na realidade, um segundo sistema de crenças, que passaria a residir definitivamente dentro do peito partido, lado a lado com o que o havia precedido. O compromisso com a ‘estabilidade monetária e responsabilidade fiscal’ volta a comparecer no programa presidencial quatro anos depois e ‘a preservação da estabilidade econômica’ continua como diretriz para o governo Dilma Roussef, oito anos mais tarde. A defesa da ordem viera para ficar, e a direção decidida no Anhembi se tornaria programa permanente.”
(SINGER, p. 97. Veja tb: debate entre os professores André Singer (USP) e Marcos Nobre (Unicamp). Imagem e som: Lucas Silveira. Organização: PET Filosofia – FFLCH/USP.
Chega a ser bizarramente incorreta, portanto, a paranóia de boa parte da oposição ao criticar o PT por ser “comunista” e “bolivariano”, quando Lula na Presidência não chegou nem perto de nos “venezuelar” à la Chavez, numa autêntica revolução dedicada a Simon Bolívar e Fidel Castro, seu governo foi muito mais marcado por um certo ideário Keynesiano, de Welfare State, que faz com que André Singer equipare a uma versão brazuca do New Deal de Roosevelt. O Lula de 2002 já não era o esbravejante sindicalista que ajudou a fundar o PT como partido socialista libertário e “sem patrão”, era já alguém predisposto à fazer a paz com o empresariado, forjando uma aliança de classes, investindo menos na fúria das contendas e mais na tentativa conciliatória e civilizatória.
Ao invés de romper com o capitalismo, o PT vinha do espectro ideológico de uma esquerda que começou a abandonar o plano da revolução socialista e embarcou na onda de conviver com o capitalismo e tentar “civilizá-lo”. À Privataria Tucana de FHC, que aplicou o fundamentalismo de mercado de Milton Friedman e dos Chicago Boys, impondo uma economia “modelo Pinochet”, o governo Lula re-afirmou o papel de um Estado regulador, espécie de instância ética e redistributiva que está aí para velar para que a dignidade humana não seja pisoteada pelas “leis do capital”.
Marcado pela “reforma gradual e pelo pacto conservador” – subtítulos de Os Sentidos do Lulismo – o PT na Presidência, no debate perene entre reformismo ou revolução, escolheu amainar seu radicalismo, sentou para negociar com as elites, com os grandes capitalistas, com os interesses financeiros, contra os quais não se constrói “condição de governabilidade”, só para descobrir que estava de mãos sujas pelas alianças espúrias, pela repetição do modelo dos conchavos e propinas, que as castas por ali praticam há décadas, aliás, com o beneplácito de uma Justiça que deixa impunes aos tubarões enquanto pune os esfomeados ladrões de galinha.
Ao estudar as eleições de 2006 (re-eleição de Lula) e 2010 (eleição de Dilma), Singer notou a importância crucial do voto de milhões de brasileiros do Nordeste que melhoraram de vida através das políticas ditas “assistencialistas” do governo PT: “o projeto político de reduzir a pobreza sem contestar a ordem, particularmente nos bolsões de atraso regional em que a pobreza se fixou ao longo da história brasileira, conquistou coração e mentes, tornando plausível a longa duração para o lulismo” (SINGER, p. 175).
Porém, apesar da redução da desigualdade social no governo Lula, com “expressivo aumento de emprego e da renda, na qual a valorização do salário mínimo teve rol crucial”, o PT chegou ao governo federal tendo herdado de governos anteriores um país grotescamente desigual:
“Mesmo tendo havido redução da desigualdade no governo Lula, ela foi insuficiente para tirar o país do quadrante em que estão as nações mais desiguais do mundo. O argumento, no entanto, se aplica menos ao que aconteceu no governo Lula e mais ao que veio antes de Lula. O Brasil permaneceu parado num escalão elevadíssimo de desigualdade, por momentos o mais alto do mundo, durante cerca de duas décadas, desde o fim dos anos 1970 até o começo dos anos 2000. A herança da brutal desigualdade legada pelo século XX foi desembocar no governo Lula, com os 10% mais ricos se apropriando de quase 50% da riqueza e deixando os 40% mais pobres apenas 8%!
Devido ao retardo secular do Brasil, havia a expectativa de que um presidente eleito por partido de orientação socialista tomasse medidas para provocar rápida contração do fosso social, mesmo que ao preço de haver confronto político. Tratar-se-ia da adoção do que poderíamos chamar de ‘reformismo forte’: ‘intensa redistribuição de renda num país obscenamente desigual’, nas palavras de Francisco de Oliveira. Reconheça-se que a plataforma ‘reformista forte’ era a perspectiva original do PT. Desde esse ponto de vista, é secundário estabelecer aqui as distinções entre vertentes petistas oriundas da inspiração revolucionária leninista ou trotskista e aquelas originárias das tradições católicas ou socialistas democráticas. Salvo engano, todas convergiram para um programa ‘reformista forte’ nos anos 1990 e nas propostas do partido até 2001 podem-se encontrar diversas indicações do que seria feito caso a alma do Sion tivesse prevalecido no governo Lula.
Desde a garantia do trabalho agrícola por meio da distribuição de terra até a tributação do patrimônio das grandes empresas e fortunas para criar um Fundo Nacional de Solidariedade que financiasse projetos apresentados por organizações comunitárias, há um conjunto de itens, que passam pela diminuição da jornada de trabalho para 40 horas sem corte de salários, criação de Programa de Garantia de Renda Mínima, revisão das privatizações, convocação dos fóruns das cadeias produtivas etc., que desenham a perspectiva de mudanças fortes.” (SINGER, p. 185)
Dado o sistema eleitoral brasileiro, com o financiamento empresarial de campanhas e a captura do Estado pelos interesses privados e corporativos, nenhum partido tem chance alguma de se eleger com um programa de fato revolucionário, ou mesmo “reformista forte”, de modo que o PT só conseguiu chegar à presidência amainando o ímpeto do socialismo de Sion com o Welfare State da “alma do Anhembi”. Se há de fato um fosso entre o PT governista, praticante do “assistencialismo” aos mais desfavorecidos ao mesmo tempo que ajuda os empresários a seguirem lucrando horrores, e aquele PT originário, socialista e anti-patronal, o que se descortina em 2016 é uma nova fase para a dialética entre “as duas almas do PT”.
Os limites estreitos deste reformismo gradual e deste pacto conservador do PT governista agora estão escancarados: mesmo sem que o PT tenha tentado a via do reformismo forte ou das medidas socialistas, as forças reacionárias de direita têm sabotado sistematicamente o segundo mandato de Dilma Rousseff, aderindo ao golpismo descarado (ainda que não mediado pela força militar), com a ameaça palpável de um governo PMDBista-Tucanóide que prossiga a política da Privataria, desmonte direitos trabalhistas, aniquile programas sociais como Bolsa Família, Fome Zero, Minha Casa Minha Vida, ProUni etc.
Diante deste quadro lastimável do golpismo-de-direita, em 2015/2016, o PT surpreendentemente acaba por encontrar aliados em partidos à esquerda, no PSOL ou no PC do B, e em movimentos sociais como o MST e o MTST, além de frentes como a Brasil Popular e a Povo Sem Medo, de modo a demonstrar que, longe de morto, “o espírito de Sion”, ou o “PT Socialista”, não está tão morto e enterrado assim. Como mostra a resolução do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em 19 de abril de 2016, dias após o “golpe parlamentar” desferido pelo Congresso presidido por Eduardo Cunha:
“A admissão do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados representa um golpe contra a Constituição. Viola a legalidade democrática e abre caminho para o surgimento de um governo ilegítimo. Escancara, também, o caráter conservador, fundamentalista e fisiológico da maioria parlamentar eleita pelo peso do poder econômico e de negociatas impublicáveis.
As forças provisoriamente vitoriosas expressam coalizão antipopular e reacionária. Forjada no atropelo à soberania das urnas, aglutina-se ao redor de um programa para restauração conservadora, marcado por ataques às conquistas dos trabalhadores, cortes nos programas sociais, privatização da Petrobras, achatamento dos salários, entrega das riquezas nacionais, retrocesso nos direitos civis e repressão aos movimentos sociais. O programa neoliberal difundido pela cúpula do PMDB, “Uma Ponte para o Futuro”, estampa com nitidez várias destas propostas.
A coalizão golpista é dirigida pelos chefões da corrupção — trabalhados por setores incrustados nas instituições do Estado, no Judiciário e na Polícia Federal –, da mídia monopolizada e da plutocracia, como deixou clara a votação do último domingo. Presidida por Eduardo Cunha — réu em graves crimes de suborno, lavagem de dinheiro e recebimento de propina — a Câmara dos Deputados foi palco de um espetáculo vexaminoso, ridicularizado inclusive pela imprensa internacional. O Diretório Nacional reitera a orientação da nossa Bancada para prosseguir na luta pelo afastamento imediato do presidente da Câmara dos Deputados.
O circo de horrores exibido no domingo reforça a necessidade de uma reforma política e da democratização dos meios de comunicação.” (PT, Resolução Nacional, 19/04/2016)
Vivemos neste 2016 em um clima de tão aberto complô golpista, de histérico teor anti-petista, que vale a pena refletir com lucidez, cautela e informação detalhada sobre o que estão sendo de fato os anos Lula e Dilma no Brasil, não para idolatrá-los, numa hagiografia populista, como “salvadores da pátria”, mas para reconhecer neles os méritos e falhas de seres humanos falíveis, apesar de sua “estatura histórica” (os livros de História só tem gente cheia de falhas). As esquerdas, abandonando o PT à sanha difamatória e a sabotagem golpista que está em curso, cometeriam o erro de não enxergar um inimigo comum, a classe capitalista e patronal do velho e sempre-novo Marx!
Diante disso, muitos intérpretes políticos, como Ruy Braga, sugerem que a crise política só é compreensível a partir da “perspectiva globalizante da luta de classes” – o que torna Marx, mais que nunca, incontornável, imprescindível, inadiável: “Qualquer análise das estruturas da atual crise política deverá, ao contrário daquele estilo de análise que se concentra na cena política, isto é, nas diatribes parlamentares e nas declarações protocolares dos governantes, o balanço sistemático da era que finda não pode prescindir da perspectiva globalizante da luta de classes.” – RUY BRAGA, Contornos do pós-lulismo, Revista Cult (LEIA: UMA SOCIOLOGIA À ALTURA DE JUNHO)
Paulo Freire já dizia, em À Sombra Desta Mangueira (1995), que não se deve esperar, da esquerda, santidade ou infalibilidade, e nada ganhamos com hagiografias de Che ou Lula, de Lenin ou Mao Tsé-Tung, de Allende ou Fidel, que ignorem os equívocos de seus caminhos, já que só seremos fiéis ao fecundo método de Marx ao não deixarmos de praticar a crítica perene do real-que-se-move (nós e nossas relações embarcados neste fluxo, nesta História, no Tempo que nos carrega a um futuro-em-aberto…):
“É verdade que ninguém de bom-senso poderia pensar em esquerdas cuja militância fosse constituída por santos e anjos. Fazer política é tarefa de mulheres e de homens com suas limitações e qualidades. Mas, não apenas se poderia esperar das esquerdas que se fossem tornando mais coerentes, recusando acordos com antagônicos, como se deveria exigir delas que, em lugar de aprofundar suas diferenças adjetivas ou adverbiais as superasse tendo como base seus pontos de identidade. Não há dúvida nenhuma, porém, de que as posições de esquerda, entre elas principalmente as do PT, têm feito avançar o processo político brasileiro. (…) É preciso, acima de tudo, que enfrentemos, no corpo das próprias esquerdas, algumas de suas ‘enfermidades’ mais daninhas e mais responsáveis pelo desacordo entre elas: o sectarismo, o messianismo autoritário e a arrogância transbordante, de que o PT, por exemplo, se ressente.
Não há partido de esquerda que permaneça fiel a seu sonho democrático se cair na tentação das chamadas palavras de ordem, dos slogans, das prescrições, da indoutrinação, do poder intocável das lideranças. Tentações todas estas inibidoras do surgimento e do desenvolvimento da tolerância sem a qual se faz inviável a democracia. Como inviável se faz também na licenciosidade. Não há partido de esquerda que permaneça fiel a seu sonho democrático se cair na tentação de se reconhecer como o portador da verdade sobre a qual não há salvação. (…) O partido progressista que pretenda preservar-se como tal não pode prescindir da ética, da humildade, da tolerância, da perseverança na luta, da mansidão, do vigor, da curiosidade sempre pronta para aprender e reaprender.
Não se pode defender os interesses das classes populares, seu direito de viver com decência, seu direito de pronunciar o mundo, que implica o de estudar, o de comer, o de trabalhar, o de vestir, o de dormir, o de amar, o de cantar, o de chorar e, ao mesmo tempo, fazer vistas grossas ao roubo dos cofres públicos. (…) É bem verdade que um partido político não é um mosteiro de santos monges, mas deve aspirar-se a tornar-se, cada vez mais, uma agremiação de gente realmente séria e coerente. Gente que diminui mais e mais a distância entre o que diz e o que faz…” (PAULO FREIRE, p. 104 a 106)
Para diminuir o abismo entre teoria e práxis, para não só interpretar mas também transformar o mundo, prossegue sendo inadiável o bom-e-velho Marx. O espectro sempre vivo do marxismo como crítica profana e mordaz da modernidade ressurge a cada geração, em toda sua vivacidade, pela perpetuação problemática dos antagonismos da sociedade capitalista. Sempre cindida em classes que se opõem, cravejada de desigualdades e injustiças, em que a hýbris de uma classe sempre é contestada pela nêmesis organizada da classe oprimida, a História, para o materialismo dialético, é disputa dinâmica em um contexto sempre fluido e revolucionável (“o tempo não pára”, o futuro não está escrito). Será um erro, decerto, como Derrida dizia, passar ao largo de Marx, ignorando a força tremenda de seu inovador percurso, que tem em Bensaïd um de seus melhores esclarecedores, com quem encerro este artigo, convidando à leitura do excelente Marx, Manual de Instruções:
“É preciso libertar Marx dos dogmas que o mantiveram acorrentado. Sua obra aberta, sem limites, revolve em profundidade o espírito de uma época. Crítica em movimento de um sistema dinâmico. O objeto de sua crítica, em perpétuo movimento, sempre o conduzia mais longe.
Pleiadizado, Marx desfruta agora de um reconhecimento acadêmico que se esforça em contê-lo dentro dos limites temporais de seu século: um extraordinário pensador, com certeza, mas datado e fora de moda, bom para arquivos e museus. Economista amador, filósofo digno de figurar no grande afresco da odisseia do Espírito, historiador qualificado para concursos acadêmicos, pioneiro da sociologia? Um pouco de tudo. Um Marx em migalhas, em suma, inofensivo. Intelectual respeitável, se não tivesse tido a infeliz ideia de se envolver com política.
No entanto, é isso que o torna um novo tipo de intelectual, que soube conciliar, nos anos 1860, a redação de O Capital e a organização material, até mesmo a colagem de selos, da Primeira Internacional.
É por isso, escreve Jacques Derrida, que não há “futuro sem Marx”. Para, contra, com, mas não “sem”. E, quando os neoliberais ligados a Hobbes, Locke, Tocqueville o chamam de velho antiquado do século XIX, o espectro sorri discretamente.
A atualidade de Marx é a do próprio capital. Porque, se ele foi um excepcional pensador de sua época, se pensou com seu tempo, também pensou contra o seu tempo e além dele, de maneira intempestiva. Seu corpo a corpo, teórico e prático, com o inimigo irredutível, o poder impessoal do capital, transporta-o até nosso presente.” – BENSAÏD, p. 168
* * * * *
Eduardo Carli de Moraes Goiânia, Abril de 2016
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
BENSAID, Daniel. Marx – Manual de Instruções. Boitempo, 2013. BRAGA, Ruy.Contornos do pós-lulismo. Revista Cult. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. FREIRE, P. À Sombra Desta Mangueira. Ed. Civilização Brasileira, 2012.
MARX,K. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Boitempo, 2010.
MARX, Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri, Boitempo, 2004. POLANYI, K. A Grande Transformação. SINGER, A. Os Sentidos do Lulismo. Companhia das Letras, 2012.
(Documentário, longa‐metragem, 87min, cor, 2014)
Direção: Eugenio Puppo. Produção: Heco Produções. Distribuição: Espaço Filmes. Codistribuição: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
SINOPSE: “Com um cenário crescente de violência urbana é comum na sociedade um discurso punitivo, que clama por penas cada vez mais altas. Nesse contexto há uma evidente incompreensão dos direitos e garantias do outro, afetando sensivelmente o exercício do direito de defesa de acusados de crimes.
O documentário Sem Pena retrata as adversidades vividas pelas pessoas presas e processadas criminalmente e para tanto apresenta vários depoimentos. O filme traz ainda testemunhos de juízes, promotores, advogados e especialistas do sistema de justiça criminal. A partir de imagens impactantes de prisões brasileiras, o documentário pretende estimular uma análise crítica da realidade do sistema de justiça, destacando temas relativos à alta taxa de encarceramento e a falta de acesso à justiça no Brasil.
Nenhuma população carcerária cresce na velocidade da brasileira, que já é a terceira maior do mundo. Sem Pena desce ao inferno da vida nas prisões brasileiras para expor as entranhas do sistema de justiça do país, demonstrando como morosidade, preconceito e a cultura do medo só fazem ampliar a violência e o abismo social existente.”
ALGUNS PERSONAGENS ENTREVISTADOS:
‐ Nilo Batista ‐ Advogado e Professor Titular de Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi Secretário de Estado (Segurança e Justiça), Vice‐governador (1990‐1994) do Estado do Rio de Janeiro, e Governador do Estado entre abril de 1994 e janeiro de 1995. É autor de vários artigos e livros sobre Direito Penal e Criminologia. É fundador do Instituto Carioca de Criminologia sediado no Rio de Janeiro.
‐ Luiz Eduardo Soares ‐ Antropólogo, autor dos livros “Justiça” e “Elite da Tropa”, foi Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública. É um dos maiores especialistas em segurança pública do país.
‐ Alvino Augusto de Sá ‐ professor de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia. Foi, durante 30 anos, psicólogo do sistema penitenciário paulista, chegando a fazer mais de dez mil exames criminológicos na carreira, inclusive de grandes casos retratados pela mídia.
‐ Carlos Dias – Artista plástico. Andava na rua quando foi abordado por dois flanelinhas. Foi espancado e levado de camburão à delegacia. A vítima o “reconheceu” pela janela do camburão, pois estava com a mesma roupa do autor de um estupro que acabara de acontecer. No ambiente hostil da prisão, o rapaz que já era tímido, retraiu‐se ainda mais. Levou mais de um mês para a “confusão” ser esclarecida e a vítima assumir que não tinha visto o rosto do sujeito dentro do carro. A sua vida foi completamente influenciada por este episódio.
‐ Verônica Espíndola – Mulher de 42 anos, ficou presa sete anos e meio e, durante o cumprimento de sua pena, perdeu a guarda de seus filhos. Esse caso mostra o peso da prisão na vida de uma mulher, as consequências, os traumas advindos da perda da guarda de seus três filhos.
Sem Pena foi filmado em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, nos principais locais relacionados à justiça criminal, como Penitenciárias (algumas nunca antes filmadas), Defensorias Públicas, Centros de Ressocialização, Instituto Psiquiátrico, Fórum Criminal e Tribunal de Justiça.
“A terra, nossa casa comum, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.” Papa Francisco, Encíclica Laudato Si, #21
Uma imagem polêmica circulou o mundo e “viralizou” na Internet em Julho de 2015 (veja acima): nela, o Papa Francisco, em visita à Bolívia, recebe do presidente Evo Morales um curioso artefato, mescla da cruz cristã com o supremo símbolo comunista, a foice-e-martelo. Vale lembrar, diante da desinformação que circula por aí, que a foice-e-martelo não é um instrumento de tortura, como alguns acéfalos ideólogos da Direita anti-comunista dizem, mas significa a união entre a classe trabalhadora, a foice representando o campesinato e o martelo servindo como símbolo proletariado, emblema incorporado à bandeira escarlate da URSS.
Promulgada pelo governo de Evo Morales em 2012, como reportado pela Opera Mundi, a formidável Ley de Derechos de la Madre Tierra do Estado Plurinacional da Bolívia (click para ler na íntegra), é uma das mais importantes contribuições políticas da América Latina ao debate global sobre nosso futuro comum. Nesta era geológica nova em que nos encontramos, o Antropoceno, marcada pela crise em curso do aquecimento global e da vasta degradação socioambiental globalizada causadas pelos mais de 7 bilhões que hoje infestam o planeta, os bolivianos inseriram na constituição:
“La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un destino común. (…) Para efectos de la protección y tutela de sus derechos, la Madre Tierra adopta el carácter de sujeto colectivo de interés público.” (Fonte) (Confira também: The Guardian, Al Jazeera)
Muita coragem e ímpeto de renovação ficam manifestam na atitude do líder espiritual supremo da Cristandade ao ousar uma aproximação com uma doutrina ética, política e jurídica que me parece digna de todo respeito e consideração: já consagrada nas legislações de várias nações latino-americanas – como Bolívia, Peru e Equador – aquilo que está sendo chamado de “ecologia dos Andes” afirma-se devotada à salvaguarda de uma entidade conhecida como Pachamama, a “Mãe-Terra”, em homenagem ao mito ameríndio dos Incas.
“Tierra Madre Pacha Mama” – Graffiti
A encíclica papal Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum (Ed. Paulus/Loyola, SP, 2015), escrita na consciência plena da deterioração global do meio ambiente, comunica claramente a possibilidade de uma catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial nos últimos séculos. Francisco frisa de modo recorrente a necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade e também refere-se à Terra como uma espécie de divindade feminina – que tem lá suas similaridades com Pachamama ou Gaia – e que é descrita como
“nossa casa comum, que se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. (…) Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. (…) Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta: o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.” (#1 e #2)
Está em curso o esforço do Papa em questionar a “confiança irracional no progresso” (#19), pondo em dúvida a ideologia da tecnocracia hoje triunfante e que vê a natureza como algo a ser explorada, dominada, espoliada, em prol da modernização, da industrialização e dos fluxos de capitais e mercadorias através do globo. A encíclica faz parte de uma longa jornada de Jorge Bergoglio – nome de batismo do argentino hoje conhecido sob a alcunha de Francisco – em prol da conscientização social. Ele clama por uma “crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza”, com o “objetivo de tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece no mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.” (#19)
Dentre os livros já publicados sobre o engajamento político do Sumo Pontífice, um deles é explícito em apontar a postura “anti-capitalista” daquele que não tem poupado esforços para denunciar a “nova tirania” de um sistema econômico “assassino”: This Economy Kills: Pope Francis on Capitalism and Social Justice, de Andrea Tornielli eGiacomo Galeazzi. Na encíclica, fica explícita a intervenção papal de crítica aos poderes que lançam à nossa casa comum os “poluentes atmosféricos” e “fumos da indústria” que “provocam milhões de mortes prematuras”; ele fustiga também os “fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral”; além das “centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis, altamente tóxicos e radioativos” (#20, 21).
Com sua incisiva crítica ao ecocídio globalizado produzido pelo capitalismo desenfreado, o argentino deu muitos motivos para preocupações daquela facção mais conservadora da Igreja Católica que jamais admitiria uma aproximação ideológica entre Vaticano e a esquerda socialista. Por essas e outras, o Papa tem sido acusado por muitos por sua diabólica postura marxista, inclusive pelo crime de ter sido recebido com clamor popular em Cuba. Por essas e outras, este Papa é um prodígio da Cristandade sem precedentes nas últimas décadas, o que fica ainda mais claro quando lemos sua encíclica “ecológica”, de profundas reverberações anti-capitalistas: Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum,que aqui pretendemos esmiuçar, comentar e criticar.
Alçado ao cargo de Sumo Pontífice após a renúncia do alemão Ratzinger (Bento XVI) em 2013, Bergoglio adotou sua nova alcunha em homenagem a São Francisco de Assis (1182 – 1226) e cometeu desde então toda uma série de atos e falas estarrecedoras em seu compromisso de preferir os pobres, defender os oprimidos e pregar uma verdadeira revolução cultural em prol da sustentabilidade socioambiental. O Papa Chico ousou inovar. Sua visita à Bolívia deixou isto explícito e demonstrou, na prática, que a Igreja Católica não é exatamente um sólido monolito, incapaz de mudança e inovação, esclerosado em dogmas mofados.
Não era mera diplomacia, para o Papa Chico, aceitar o presente curioso da cruz-comunista, doado pelo presidente boliviano Evo Morales, o primeiro presidente latino-americano de raízes indígenas a ser eleito democraticamente para o cargo executivo supremo de uma república. O pensamento ecológico-político de que Evo Morales é um dos mais célebres representantes está muito presente na encíclica papal Laudato Si.
Quem tiver o cuidado de lê-la com atenção encontrará uma notável reverência de Francisco pelas conclusões dos bispos da Bolívia, citados e louvados pelo Papa argentino por terem afirmado: “Os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa de uma enorme emissão de gases com efeito estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram.” (#170)
Emissões de CO2 por país (via Wikipédia)
Este é um dos fatos mais extraordinários, revelados com clareza pela encíclica de Papa Chico: não somente ele está plenamente consciente da degradação socioambiental que vivemos e do tempestuoso futuro climático de nosso planeta, como também está antenado com a vanguarda do movimento ecosocialista, que frisa a questão das responsabilidades diferenciais que decorrem dos diferentes graus de “culpa” na determinação da catástrofe ecológica que vivenciamos.
Ou seja, os países que mais poluíram a atmosfera e que mais determinantes foram para a condição – em constante agravamento – do efeito estufa, agora devem também ser os países que mais arquem com os custos da transição energética rumo às energias renováveis. Os países que foram mais criminosos em sua relação com o meio-ambiente (EUA e China no topo da lista) também teriam de ser aqueles mais responsabilizados para prestar os auxílios humanitários aos atingidos pelas catástrofes que já não podemos evitar.
No aforismo #161 da encíclica, o Papa diz:
“As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio atual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.”
Teses similares podem ser encontradas na obra de alguns dos pesquisadores, ecoativistas, jornalistas e acadêmicos que devotaram-se à compreensão sobre as mudanças climáticas e a degradação socioambiental global, como Naomi Klein, George Monbiot, Bill McKibben, Naomi Oreskes, dentre tantos outros. Outras lideranças políticas, como o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, também falaram em tom bastante semelhante ao do Papa Francisco sobre a insustentabilidade do modo-de-produção-e-consumo hoje vigente, clamando por valores éticos como a temperança e a frugalidade.
A encíclica não poupa pregação contra “a busca egoísta da satisfação imediata”, o “consumo excessivo e míope”, apontando que a deterioração ecológica é resultado de uma crise que é tanto ética-cultural quanto sócio-política: “Esta falta de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de ampliar o horizonte das nossas preocupações e pensar naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento.” (#162)
Um dos filósofos-da-ética mais importantes do século XX, Hans Jonas, também destacava a necessidade urgente de formularmos uma ética que leve em conta não apenas nossas relações interpessoais presentes, mas também o mundo que será legado aos que ainda não nasceram, de modo a somar aos direitos humanos uma espécie de cláusula aditiva que consagra os direitos dos viventes-ainda-por-nascer: os que um dia viverão também têm direito a uma vida digna e isto é nossa responsa, aqui-e-agora. Diante do capitalismo atual, para julgá-lo com lucidez e numa apreciação justa de seu real valor, precisamos também avaliar: que tipo de casa comum será legada às gerações do futuro por nossas ações, aqui e agora?
Não é Che Guevara nem Lula quem disse as próximas palavras de exortação à uma “opção preferencial pelos mais pobres”: “Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres.” (#158)
Por essa não esperávamos: no momento histórico em que a Igreja Católica via-se chafurdando na lama de um escândalo global envolvendo a prática epidêmica de pedofilia por parte dos padres, após o fato inédito de uma renúncia como a de Bento XVI (há várias gerações um Papa não “jogava a toalha”, admitindo que não dá conta do recado!), o novo pontífice supremo da Cristandade não só surge como antenadíssimo às mais importantes lutas sociais de raiz – conhecidas em inglês como grassroots activism – mas mais do que isso: re-aproxima Roma da América Latina, já que flerta abertamente com Pachamama e com a Teologia da Libertação!
Papa Chico defende os direitos indígenas ao criticar os grandes projetos que avançam sobre territórios que são vistos pelos habitantes “não como um bem econômico”, mas sim como uma terra que é “espaço sagrado” onde “descansam os antepassados” e “com a qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.” (#146)
Talvez ele concordasse comigo que os Krenak são gestores da natureza muito mais conscientes e responsáveis do que a corporação Samarco/Vale/BHP, que logrou assassinar o Rio Doce e contaminar todo um ecossistema, como vimos na pior catástrofe socioambiental já ocorrida no Brasil.
O Papa Chico sabe também que há “áreas rurais aonde não chegam os serviços essenciais” e “há trabalhadores reduzidos a situações de escravidão.” (#154) Diante deste quadro catastrófico, ele ousa explicar, no capítulo III da encíclica, qual a “raiz humana da crise ecológica”. Sua acusação recai, de modo bastante similar à argumentação de Fritjof Capra em O Ponto de Mutação, no paradigma do capitalismo tecnocrático dominante, que impõe uma “cultura consumista corrompida”, que consagra a lógica do descarte e acarreta lixo em excesso, aferrando-se ademais às fontes de energia fósseis, não-renováveis (petróleo, carvão e gás natural), ignorando todos os limites na busca egoísta do gozo de curto prazo. O mito do crescimento econômico infinito é desmascarado como ilusão perniciosa:
“Daqui passa-se facilmente à idéia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isso supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a ‘espremê-lo’ até ao limite e para além deste. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (…) Temos um superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora, mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos.” (#106, #110)
Na era da biotecnologia, do DNA, da informática, das redes sociais digitais, dos foguetes e satélites, Papa Chico mostra-se estarrecido com o nosso “poder tremendo” – apesar de não batizar, como fazem boa parte dos geólogos e antropólogos atualmente, nossa era de Antropoceno. Critica incisivamente a “cultura do descarte”: “o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os.” (#22)
Quanto ao “preocupante aquecimento do sistema climático”, “acompanhado de uma elevação constante do nível do mar”, o Papa é digno o bastante para frisar a responsabilidade humana na gênese do problema e de clamar, como tantos cientistas atuais, pelo fim da era dos combustíveis fósseis:“a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases de efeito estufa emitido sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isso é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial.” (#23)
As consequências concretas do aquecimento global incidem “sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. (…) A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades está situada em áreas costeiras.” (#24)
Uma matéria do jornal inglês The Guardian contêm preocupantes previsões sobre a elevação do nível do mar causada pelo aquecimento da temperatura global: mesmo que consiga-se limitar o aumento de calor a 2 graus Celsius, ainda assim 20% da população global seria obrigada a migrar e mega-cidades litorâneas seriam submersas, incluindo Nova York, Londres, Rio de Janeiro, Cairo, Calcutá e Xangai.
“É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante essas tragédias que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante desses dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.” (#25)
Extraordinário é o teor anti-quietista e pró-ativista que Papa Francisco insufla à sua encíclica: não há nenhum sinal do deplorável discurso de muitas autoridades religiosas que pregam, como única solução, a oração… Tanto as causas quanto as soluções estão no âmbito humano e “não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental”, escreve Francisco, se não reconhecermos o fato de que “a deterioração do meio ambiente e da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta” e que “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (#48).
Como exemplo do quanto a encíclica está próxima do pensamento eco-político mais contemporâneo, cito um trecho do artigo de Rebecca Solnit:
“A mudança climática é antropogênica – causada por humanos, alguns mais que outros. Nós sabemos as consequências dessas mudanças: a acidificação dos oceanos e o declínio da maioria das espécies que vivem neles, o lento desaparecimento de ilhas-nações, como é o caso das Maldivas, o aumento de inundações, secas, a quebra na produção agrícola, o que leva ao aumento do preço dos alimentos e à fome, aumento da instabilidade climática. (É só pensar no furacão Sandy e no recente tufão nas Filipinas. Nas ondas de calor que mataram idosos aos milhares). Mudança climática é violência. Portanto, se nós queremos conversar sobre violência e mudanças climáticas – e nós estamos falando sobre isso, depois do informativo aterrador da última semana, vindo dos melhores cientistas climáticos do mundo – então vamos falar sobre mudanças climáticas como violência. Ao invés de nos preocuparmos se os homens e mulheres comuns vão reagir com turbulência à destruição de seus meios de sobrevivência, vamos nos preocupar com essa destruição – e com a sobrevivência. Obviamente a escassez de água, as péssimas colheitas, inundações, entre outras coisas, vão desencadear migrações em massa e refugiados climáticos – eles já existem – e isso vai gerar conflitos. Esses conflitos estão entrando em ação, agora.” (SOLNIT, publicado em A Casa de Vidro, trad. Josemar Vidal Jr)
No contundente capítulo da encíclica intitulado Desigualdade Planetária, não faltam exemplos deste verdadeiro massacre dos pobres que está em curso:
“a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres e nos conflitos gerados pela falta de recursos” (#48).
A natureza anti-capitalista da encíclica se exacerba quando a desigualdade planetária é mencionada:
“uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre. (…) O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos nos rendimentos das cultivações.” (#51)
A conexão entre ecocídio e corporações capitalistas multinacionais também não escapa à análise apresentada pela encíclica, que denuncia “os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento”.
Francisco ergue um dedo acusador contra a “atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital”, de modo que os bispos da Patagônia, na Argentina, expressaram em sua Mensaje de Navidad (2009):
“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar.”
Diante de tal cenário catastrófico, em que o interesse financeiro e o poderio capitalista prevalece sobre o bem comum e os direitos da natureza, a encíclica não é somente a evidência de uma revolucionária “virada ecológica” da Igreja Católica, é também o momento para uma inédita aposta no ativismo social: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.” (#50, grifo meu)
De modo que Papa Francisco aproxima-se bastante da mensagem de todos aqueles movimentos sociais, coletivos de ativismo e fóruns participativos que nos últimos anos estiveram engajados na discussão sobre “um outro mundo possível”, mote do Fórum Social Mundial.
Apesar de um certo apego ao tradicionalismo católico – pois a noção patriarcal-machista de um Deus-Pai, a centralidade da família monogâmica heterossexual, a crítica inflexível de qualquer interrupção da gravidez prosseguem marcando o discurso papal – é notável a aproximação que Francisco realiza com o grassroots activism, com a Teologia da Libertação, com o “levante de Pachamama” nos Andes, com todas as forças contra-hegemônicas que questionam a globalização hegemônica, teorizada pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos:
GLOBALIZAÇÃO HEGEMÔNICA & CONTRA-HEGEMÔNICA
A globalização hegemônica é a nova fase do capitalismo global, constituída pela primazia do princípio do mercado, liberalização do comércio, privatização da economia, desregulação do capital financeiro, precariedade das relações de trabalho, degradação da proteção social, exploração irresponsável dos recursos naturais, especulação com produtos alimentares, mercantilização global da vida social e política. A globalização hegemônica tem ao seu serviço uma institucionalidade diversificada e muito poderosa, dos Estados centrais à União Européia, do Banco Mundial ao Fundo Monetário Internacional, das grandes empresas multinacionais à Organização Mundial do Comércio.
Por outro lado, a globalização contra-hegemônica, ou globalização a partir de baixo, engloba os movimentos sociais e organização não governamentais (ONGs) que, por meio de articulações locais, nacionais e transnacionais, lutam contra o capitalismo e a opressão colonialista, a desigualdade social e a discriminação, a destruição ambiental e de modos de vida decorrente da voracidade da extração dos recursos naturais, a imposição das normais culturais ocidentais e a destruição das não ocidentais causada ou agravada pela globalização hegemônica.
A globalização contra-hegemônica consiste em articulações transnacionais entre movimentos sociais e ONGs, sejam elas o Fórum Social Mundial, a Assembleia Geral dos Movimentos Sociais, a Cúpula dos Povos, a Via Campesina, a Marcha Mundial das Mulheres, o Movimento Indígena Mundial, em conjunto com redes transnacionais de advocacia sobre temas específicos de resistência à globalização hegemônica. A contra-hegemonia resulta de um trabalho organizado de mobilização intelectual e política contra a corrente, destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos credíveis da vida social.” (BOAVENTURA SOUSA SANTOS, p. 32-33)
Acredito – “piamente”? – que Papa Chico tem sim agido como interventor social e cultural de teor contra-hegemônico, manifestando assim uma compreensão lúcida e profunda da figura histórica de Jesus, um cara que foi tão anti-establishment que Roma mandou-lhe crucificar feito um reles bandido quando ele só tinha 33. O poeta Paulo Leminski, na esplêndida biografia de Jesus que escreveu, argumenta que seu biografado merece estar no “time” dos revolucionários vinculados ao socialismo utópico. Evidentemente é um anacronismo, mas poeta tem direito a tudo – e que vivam livres as “licenças poéticas”! Para Leminski, Jesus foi sim um socialista que criticou as classes abastadas e em sermão célebre vaticinou que era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus… (LEIA: Quarteto Vital, de Paulo Leminski)
Papa Francisco reata com uma certa tradição do cristianismo primitivo, ao mesmo tempo que liga-se com o que há de mais vital e pulsante no atual movimento global de resistência à catástrofe ecológica e às mudanças climáticas antropogênicas, fenômeno que Naomi Klein propôs batizar de Blockadia e que analisa em minúcias em This Changes Everything, filme e documentário.
O “emblema” da “nova era” na Igreja Católica parece-me ser o encontro de Bergoglio e Morales, curiosa aliança entre o Vaticano e os Andes, excêntrico sincretismo cultural que re-significou tudo o que pensávamos sobre o Papa e até mesmo sobre Deus: que virada realmente revolucionária caso a Cristandade modifique suas concepções religiosas para a de um Deus menos parecido com Jeová e mais afinado com Pachamama!
Para os mais dogmáticos ou suscetíveis, a cena que envolve o Papa e o presidente Morales pode até ter um cheiro insuportável de heresia: “isso não é”, dirão alguns católicos da velha guarda, grunhindo contra o pontífice, “nem jamais será um comportamento digno de um Papa! Andar por aí, segurando uma cruz subvertida, mas que blasfêmia! Sujar as mãos com um emblema-de-comunista! Bem sabemos (apesar de nada constar sobre isso nem nos Evangelhos nem nos livros de História e Antropologia) que esta cambada de comunistas não são somente canibais, como praticam seu canibalismo sobre criancinhas!”
Ironias à parte, estou impressionado com a capacidade de Papa Francisco de confrontar aqueles setores mais reacionários e tradicionalistas desta “instituição” – a Igreja Católica Apostólica Romana – que com frequência, na história, fez-se cúmplice e co-responsável por atrocidades e horrores, tendo sido, em outras eras, operadora internacional de infâmias éticas e catástrofes humanitárias como a célebre “Santa Inquisição”, que impôs a morte-pelo-fogo a tão incontáveis quantidades de pessoas previamente estigmatizadas como hereges, ateus, pecadores, bruxas, pagãos, feiticeiras etc.
Mais recentemente, a Igreja Católica também viu-se em meio ao escândalo global envolvendo o abuso sexual de crianças perpetrado por seus clérigos. O declínio parecia não ter fim e a renúncia de Ratzinger parecia com alguma espécie estranha de emblema da decadência e do caos. E justamente aí ocorreu essa guinada à esquerda, que trouxe uma certa versão da Teologia da Libertação para o centro polêmico do debate da Cristandade.
Capitalismo em questão: o império das marcas e multinacionais, antes de ser tema da encíclica papal, foi foco de livros como “No Logo” de Naomi Klein
As próximas palavras, do capítulo #195 da encíclica Laudato Si, são emblemáticas deste prodígio que é um papa anticapitalista, capaz de articular uma crítica à doutrina neo-liberal e seu funcionamento na base de benefícios privados e prejuízos públicos:
“O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceptual da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se a derrubada de uma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou aumentar a poluição. Em outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando uma parte ínfima dos custos.” (#195)
O Papa não prega que oremos, ele quer sim é educação que forme para a “cidadania ecológica” e uma revolução cultural que “dê forma a um estilo de vida” baseado na “responsabilidade ambiental” (#123). Para este fim, é evidente, a ética é essencial, sendo que a encíclica é um tratado de ética, de cabo a rabo, que dialoga inclusive com muitas das ideias de Hans Jonas, autor de um dos clássicos tratados da ética no século XX – O Princípio Responsabilidade. Francisco afirma sem pestanejar que o atual sistema capitalista hegemônico globalmente é insustentável e só pode nos conduzir ao esgotamento e à catástrofe. Nossa era demanda uma urgente mudança de rumos.
Em 2000, em Haia, na Carta da Terra, a exortação de Bergoglio clama por um “novo início”: “Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início. Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência adiante da vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida.” (#207)
Não estamos diante de um “profeta do Apocalipse” e nem há nenhum teor, na fala de Francisco, daquele odioso discurso que pretende transformar as catástrofes climáticas em “vinganças de um Deus enfurecido” – não, New Orleans não foi devastada pelo Furacão Katrina por causa dos pecados cometidos por seu habitantes, nem por ser uma nova Sodoma e Gomorra…
A fala de Francisco carrega mais doçura e ternura do que reprovação esbravejante. Decerto é alguém “atento ao futuro”, ou seja, alguém que está plantado no presente em condição de profundo engajamento com o porvir planetário. O Papa Francisco, diria até, integra o grupo de inteligências internacionais que, através de estudos prolongados e pesquisas empíricas cuidadosas, concluíram que existe sim razão para um “catastrofismo esclarecido”.
“Não pensemos só na possibilidade de terríveis fenômenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e de destruição recíproca.” (#204)
Enquanto pensador ético, Francisco insiste num estilo-de-vida que têm elementos do que Nietzsche chamava de “ideal ascético”, recomendando o controle dos impulsos e desejos, que conecta não somente ao pecado como também ao serviço satânico que prestamos às forças ecocidas do consumismo e do descartismo.
Em um livro polêmico, Pascal Bruckner fustigou a nova onda de “ascetismo verde”, aqueles que chamou de Fanáticos do Apocalipse. O escárnio supostamente libertário de Bruckner não me convence, e o compromisso “franciscano” com a sustentabilidade e a solidariedade intergeracional talvez seja mesmo uma das poucas “ideologias” capazes de evitar que sejamos compelidos à era das hecatombes climáticas de escala mega. “As previsões catastróficas”, diz a encíclica, “já não se podem olhar com desprezo e ironia” – e isso vale quase como uma refutação do livro de Bruckner.
Vejo, na encíclica, conexões possíveis do projeto social papal com a pedagogia do oprimido Paulo Freireana: Francisco clama por um “programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.” (#111)
O papa filosofa sobre a liberdade que se encontra “adoecida” em todos àqueles que “se entregam às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (#105). A ética apolínea e ascética preconizada por Chico propõe um “lúcido domínio de si”. Minha impressão é que não se tem necessidade de fé para fundar uma ética assim. Pepe Mujica e sua preconização do mérito pessoal e civilizacional vinculado às virtudes da moderação e da frugalidade parece-me uma encarnação laica e secular do que Papa Francisco representa no âmbito religioso.
No mundo cultural dos gregos havia a noção de que tragédias decorreriam sempre que não soubéssemos respeitar os limites. Aos excessos, de resultadostrágicos e catastróficos, os gregos chamavam hýbris. Malditos eram todos os excessivos, todos aqueles que desrespeitavam um dos princípios básicos e sagrados, entronizado no Oráculo de Apolo em Delfos: “nada em demasia!”. As fúrias viriam assombrar e desgraçar todo aquele que fosse pego em flagrante delito de hýbris. A deusa Nêmesis não perdoa quem despreza os limites.
De certo modo, também sinto no Papa Francisco a presença, ainda que latente, de um senso trágico que compreende o quanto a desmesura / descontrole / deslimite causam como efeitos concretos muito palpáveis e catástrofes reais, dentre elas a tremenda degradação socioambiental que hoje vivenciamos.
Tenho minhas divergências, de natureza filosófica e teológica, com a noção de que estamos “em pecado” pois abusamos e desrespeitamos “os bens que Deus na Terra colocou“: não vejo porque o argumento em prol da sustentabilidade deveria enveredar por esta linha de dependência em relação à fé. Quando se diz que “a natureza deve ser preservada pois é obra de Deus“, o argumento tende a submeter as lutas ecológicas a uma prévia tomada de posição religiosa, um ato-de-fé sobre a proveniência divina daquilo que o ser humano parece tão engajado em destruir.
A proposta da encíclica é igualar “crime contra a natureza” e “pecado contra Deus”, algo que faz com que o argumento caia por terra para todos aqueles que não acreditam, por exemplo, no mito da Criação tal como o narra o livro do Gênesis. Mais inteligente e lúcido me parece Bergoglio quando aposta mais em um conceito “Pachamâmico” de interdependência, aproximando-se assim de cosmologias ameríndias e do web of life do Chief Seattle.
Porém, há vários “deslizes” de Papa Chico em um questionável teocentrismo: no aforismo #33, por exemplo, protestando contra a extinção de espécies causada pela humanidade, o Papa escreve: “por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência.”
Compartilho o lamento pela extinção da biodioversidade, mas não subscrevo o argumento de que a tragédia está na “destruição da obra de Deus” – prefiro falar, simplesmente, num atentado contra a teia-da-vida. Por que ateus e agnósticos, por que ativistas e políticos plenamente fiéis ao valor da laicidade, não poderiam ser entusiásticos ativistas da causa ambiental, mesmo na ausência da crença, tão duvidosa e dogmática, num planeta que supostamente foi criado pelas mãos de um Deus-Pai há 6.000 anos atrás?
À parte esta divergência de teor teológico, aplaudo o teor político e mobilizatório da intervenção de Francisco. Para a nossa geração, para nós-os-vivos-de-agora, é o próprio sentido de nossa passagem pela Terra que está agora em questão. O mundo que legaremos às próximas gerações está visceralmente conectado à questão, quiçá mais psicológica e simbólica, do sentido da vida (ou da descoberta de sua ausência ou inexistência):
“Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que vai nos suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.” (#160)
Que a destruição do próprio sentido da existência da Humanidade possa estar diretamente atrelado à continuação do insustentável sistema global ecocida que hoje devasta o planeta é decerto uma das mais contundentes críticas apresentadas pela encíclica Laudato Si. O texto encontra-se atravessado por inteiro por um ethos de empatia pelo clamor da terra e pelo clamor dos pobres. Francisco não foge de tirar todas as consequências de sua teoria, tão próxima à dos ecossocialistas, tão alinhada à Teologia da Libertação, tão próxima à Pachamama andina, e acaba por claramente defender o fim do direito absoluto à propriedade privada:
“A terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. (…) O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma regra-de-ouro do comportamento social e o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’ (João Paulo II, Laborem exercens, 1981). A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. (…) A Igreja defende sim o direito legítimo à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social… Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos de uma parte da humanidade.” (#93)
Eu não chegaria a dizer, para escândalo de católicos ortodoxos, que Papa Francisco está sendo marxista, mas quem pode negar o forte conteúdo de luta de classes que marca presença na encíclica? Também nela, os maiores ecocidas, os piores poluidores, os causadores de catástrofes, têm classe e endereço.
Também é uma falácia dizer que todos os países têm a mesma responsabilidade – na verdade, são as ações de uma parcela da humanidade que está conduzindo o clima ao caos. Os países mais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa não poderiam legitimamente querer que os miseráveis da Índia ou de Bangladesh arcassem igualmente com os custos da crise. Quem mais destruiu o bem coletivo é que deve – justiça exige! – arcar com a maior parte dos custos, investindo na transição energética para os renováveis, pagando indenizações aos países prejudicados por catástrofes etc.
“O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existências aos outros. Por isso, na Statement on Environmental Issues (2006), os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento ‘não matarás’, quando ‘uns 20% da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver’.” (#95)
O prodigioso papa anticapitalista já percebeu – com Naomi Klein, Rebecca Solnit, George Monbiot, Christian Parenti, dentre outros – que o clamor da terra e o clamor dos pobres integram um mesmo clamor. O que faremos diante deste clamor – ouvi-lo ou ignorá-lo; agir ou padecer; mobilizar simpatia ou adormecer na indiferença; abrir os olhos para enxergar ou fingir que não se vê… – é o que definirá o “sentido de nossa passagem” por este exuberante e biodiverso jardim terrestre onde tece-se, interminável, a teia da vital “interdependência”. “O espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras.” (#86)
Na reciprocidade provinda da percepção lúcida de nossa interdependência, co-laboremos contra as catástrofes acarretadas pelo capital, certos de que o vil metal das finanças nada vale diante da riqueza imensa, inestimável mas tão frágil, desta teia planetária de sociobiodiversidade hoje esgarçada e ameaçada por um Antropocalipse industrial motorizado.
* * * * *
ALGUNS VÍDEOS SUGERIDOS:
Igreja dos Oprimidos – Documentário de Jorge Bodanzsky
Pachamama segundo o History Channel (dublado em português)
* * * * *
ANEXO I
Ley de Derechos de la Madre Tierra
do Estado Plurinacional da Bolívia
La Madre Tierra tiene los siguientes derechos:
1. A la vida:Es el derecho al mantenimiento de la integridad de los sistemas de vida y los procesos naturales que los sustentan, así como las capacidades y condiciones para su regeneración.
2. A la diversidad de la vida:Es el derecho a la preservación de la diferenciación y la variedad de los seres que componen la Madre Tierra, sin ser alterados genéticamente ni modificados en su estructura de manera artificial, de tal forma que se amenace su existencia, funcionamiento y potencial futuro.
3. Al agua: Es el derecho a la preservación de la funcionalidad de los ciclos del agua, de su existencia en la cantidad y calidad necesarias para el sostenimiento de los sistemas de vida, y su protección frente a la contaminación para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
4. Al aire limpio: Es el derecho a la preservación de la calidad y composición del aire para el sostenimiento de los sistemas de vida y suprotección frente a la contaminación, para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
5. Al equilibro: Es el derecho al mantenimiento o restauración de lainterrelación, interdependencia, complementariedad y funcionalidad de los componentes de la Madre Tierra, de forma equilibrada para la continuación desus ciclos y la reproducción de sus procesos vitales.
6. A la restauración: Es el derecho a la restauración oportuna y efectiva de los sistemas de vida afectados por las actividades humanas directa o indirectamente.
7. A vivir libre de contaminación: Es el derecho a la preservación de la Madre Tierra de contaminación de cualquiera de sus componentes, así como deresiduos tóxicos y radioactivos generados por las actividades humanas.
* * * * *
ANEXO II – ARUNDHATI ROY
Pachamama!
“If there is any hope for the world at all, it does not live in climate-change conference rooms or in cities with tall buildings. It lives low down on the ground, with its arms around the people who go to battle every day to protect their forests, their mountains and their rivers because they know that the forests, the mountains and the rivers protect them. The first step towards reimagining a world gone terribly wrong would be to stop the annihilation of those who have a different imagination—an imagination that is outside of capitalism as well as communism. An imagination which has an altogether different understanding of what constitutes happiness and fulfillment. To gain this philosophical space, it is necessary to concede some physical space for the survival of those who may look like the keepers of our past, but who may really be the guides to our future.”
—Arundhati Roy
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003 – PORTO ALEGRE
FALA DE ARUNDHATI ROY:
SINOPSE DO FILME: “O Mundo Global Visto Do Lado de Cá”, documentário do cineasta brasileiro Sílvio Tendler, discute os problemas da globalização sob a perspectiva das periferias (seja o terceiro mundo, seja comunidades carentes). O filme é conduzido por uma entrevista com o geógrafo e intelectual baiano Milton Santos, gravada quatro meses antes de sua morte.
O cineasta conheceu Milton Santos em 1995, e desde então tinha planos para filmar o geógrafo. Os anos foram passando e, somente em 2001 Tendler realizou o que seria a última entrevista de Milton (que viria a morrer cinco meses depois). Baseado nesse ponto de partida o documentário procura explicar, ou até mesmo elucidar, essa tal Globalização de que tanto ouvimos falar.”
* * * *
O livro POR OUTRA GLOBALIZAÇÃO – DO PENSAMENTO ÚNICO À CONSCIÊNCIA UNIVERSAL, de Milton Santos, é uma obra de referência. Nela, o geógrafo defende a idéia de que é preciso uma nova interpretação do mundo contemporâneo, uma análise multidisciplinar, que tenha condições de destacar a ideologia na produção da história, além de mostrar os limites do seu discurso frente à realidade vivida pela maioria dos países do mundo.
A informação e o dinheiro acabaram por se tornar vilões, à medida em que a maior parte da população não tem acesso a ambos. São os pilares de uma situação em que o progresso técnico é aproveitado por um pequeno número de atores globais em seu benefício exclusivo. Resultado: aprofundamento da competitividade, a confusão dos espíritos e o empobrecimento crescente das massas, enquanto os governos não são capazes de regular a vida coletiva.
Apesar disso, Milton Santos reconhece o começo de uma evolução positiva nas pequenas reações que ocorrem na Ásia, África e América Latina. Talvez pode ser este o caminho que conduzirá ao estabelecimento de uma outra globalização. POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO traz uma mensagem de esperança na construção de um novo universalismo, menos excludente.
Milton Santos foi geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência da Universidade de São Paulo (USP) e ganhador do Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud em 1994. Como consultor da ONU, OIT, OEA e UNESCO, trabalhou junto aos governos da Argélia e Guiné Bissau e ao Senado da Venezuela. Milton Santos é autor de mais de 40 livros e teve cerca de 300 artigos publicados em revistas científicas, em português, francês, inglês e espanhol.
Café Filosófico – Invenção do Contemporâneo: Muito além da economia verde | Ricardo Abramovay
“A ideia de uma possível escassez de recursos naturais, além do persistente problema das desigualdades sociais e econômicas entre os povos, colocaram em questão o modelo de desenvolvimento das sociedades contemporâneas. A dificuldade natural de impor limites ao crescimento nos coloca diante de uma reflexão: qual o sentido que queremos imprimir naquilo que fazemos? Produzimos para que e para quem? Neste programa, o sociólogo e economista Ricardo Abramovay aponta para Muito Além da Economia Verde: pensar em novas formas de consumo e em uma ética produtiva que realmente gere benefícios para as sociedades contemporâneas. Fala ainda sobre novas formas de desenvolvimento e a necessidade de se reinventar a economia.”
Conferência gravada no dia 28 de junho de 2012.
Veja também: PROVOCAÇÕES (TV CULTURA)
O Ricardo Abramovay, sociólogo e economista, professor da USP, concedeu uma entrevista muito interessante ao Abujamra no Provocações, onde ele diz muitas coisas extremamente relevantes. Ele deixa muito claro, pra começo de conversa, que é inadmissível – por ser uma rota suicida – que a Humanidade continue a queimar combustíveis fósseis como tem feito e continua a fazer hoje em dia. A Era do Petróleo acaba, ou quem acabará somos nós. A produção de automóveis que rodam à base de combustíveis fósseis é algo a ser urgentemente repensada.
A queima das reservas de “ouro negro” que hoje são patrimônio das empresas petrolíferas, com as emissões de gigatoneladas de gases de efeito estufa na atmosfera (já saturada deles), iria acarretar o caos climático mais exacerbado, com um aumento da temperatura da Terra que alguns avaliam em 6º C ao fim do século 21 de nossa era. Tal aumento de temperatura geraria a possibilidade concreta de aniquilação da civilização humana como a conhecemos, além da queda radical da biodiversidade terrestre, em uma nova era de extinção em massa. O atual modelo econômico, já dizia Terence McKenna, é uma arma carregada apontada contra a cabeça deste planeta. E estamos deixando a hegemonia e o poder nas mãos daqueles que não tem pudores em apertar o gatilho.
“O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir -, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania –moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade–, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios –o semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados.
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais –ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo –amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos…
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro –seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual– como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.”
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis. [Karl Marx, 1845]
Combatendo a distorção e divulgação de notícias e conceitos falsos; Ocupando as redes sociais e denunciando moralistas e interesseiros de ocasião; Dialogando e formando amigos e conhecidos seduzidos por soluções autoritárias; Colaborando com ações e propostas conscientizadoras sobre as liberdades civis; Frequentando e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!