Mix: coelho de Dürer com versos de Whitman (experimente este drink!)

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ALBRECHT DÜRER (1471-1528)  ‘A Young Hare’ – 1502 (watercolor and gouache)

“Eu penso que poderia volver e viver com animais,

tão plácidos e autocontidos,

Eu paro e me ponho a observá-los longamente.

Eles não se exaurem e gemem sobre a sua condição,

Eles não se deitam despertos no escuro

E choram pelos seus pecados,

Eles não me deixam nauseado discutindo

O seu dever perante Deus,

Nenhum deles é insatisfeito,

Nenhum enlouquecido pela mania de possuir coisas,

Nenhum se ajoelha para o outro,

Nem para os que viveram há milhares de anos,

Nenhum deles é respeitável ou infeliz em todo o mundo.”

WALT WHITMAN. Folhas de Relva.

“Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira…” (Nietzsche)

satan

“Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”, “além” são conceitos para os quais nunca dediquei atenção, nem mesmo tempo, inclusive quando era criança – talvez eu jamais tenha sido criança o suficiente para tanto… Estou longe de conhecer o ateísmo na condição de resultado, menos ainda como acontecimento: em mim ele é compreensível na qualidade de instinto. Eu sou demasiado curioso, questionador e animado para poder aceitar uma resposta esbofeteada. Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira, uma indelicadeza contra nós, os pensadores – no fundo apenas uma proibição esbofeteada e grosseira contra nós: “vós não deveis pensar!”

NIETZSCHE (1844-1900)
“Ecce Homo”
Ed. L&PM
Pgs. 45-46

“Tudo o que vive não vive só nem para si” (William Blake)

Tenho sorvido com fascinação, em grandes goles, a embriagante poesia do William Blake. Fiquei sabendo da existência do “visionário” Blake, como tanta gente, através de alguns marcos da contra-cultura do século XX: primeiro Aldous Huxley, que evocava versos e imagens poéticas de Blake com frequência, em especial quando falava sobre estados alterados de consciência e êxtases induzidos pelo consumo de estupefacientes (como a mescalina, o peiote e o LSD).

O autor de A Filosofia Perene e Admirável Mundo Novo ajudou a transformar um dos versos de O Matrimônio do Céu e do Inferno (1790) em um dos emblemas de todo o agito Psicodélico que atravessará as gerações beatnik, hippie e além: “se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria como de fato é: infinito e sagrado”.

Por outro lado, no âmbito da música popular Blake foi reverenciado por muita gente graúda: Patti Smith, uma “Rimbaud de saias poetizando o rock and roll”, compôs uma longa poesia musicada inspirada pelo “Everything that lives is holy” de Blake.

E Jim Morrison e seu The Doors trataram de prestar também seus tributos ao poeta-xamã: o nome da banda homenageava o livro The Doors of Perception, impactante e desnorteante panfleto em que Huxley refletia sobre religião, mitologia, filosofia e misticismo tendo como base as experiências extáticas/místicas que viveu, seja através da leitura das escrituras sagradas das mais variadas culturas, seja através do consumo de substâncias químicas “nirvanizantes”.

“O homem esqueceu que Todas as Deidades residem no peito Humano”, escreve William Blake no encerramento de seus Provérbios do Inferno. Este é um dos poucos emblemas escancaradamente ateus na obra de um poeta que, sob a influência marcante de Milton e seu Paraíso Perdido, povoa sua obra com mitos e criaturas fabulosas e concebe o peito humano como um manancial de onde jorram infindos deuses, demônios, édens, infernos e “imagens poéticas” que procuram decifrar os maiores mistérios.

O mais interessante nestes Provérbios Infernais é que eles não são, como seu nome sugere, diabólicos, imorais, sádicos ou terríveis; pelo contrário, são repletos de sagacidade, inventividade, ousadia – e até mesmo (por que não?) sabedoria.

Toda uma filosofia-de-vida desenha-se nestes provérbios: uma perspectiva existencial que põe o valor na ação e não na passividade (“He who desires but acts not, breeds pestilence”), que desvaloriza a temperança e a contenção em prol de uma “ética do excesso” (“The road of excess leads to the palace of wisdom”), que enxerga saúde e força no lado do dinamismo e sustenta que males emergem de tudo o que decide se estagnar, se fixar, se solidificar em dogma (“Expect poison from the standing water“…).

Uma certa transvaloração de valores, pra falar nos termos da filosofia de Nietzsche, parece estar em jogo no fazer poético Blakeano. Em um dos raros momentos em que ele adquire ares professorais e ousa ser pedagógico e assertivo, William Blake ataca os Erros causados por “todas as Bíblias e códigos sagrados”.

“All Bibles or sacred codes have been the causes of the following Errors.

1. That Man has two real existing principles Viz: a Body & a Soul.

2. That Energy, call’d Evil, is alone from the Body, & that Reason, call’d Good, is alone from the Soul.

3. That God will torment Man in Eternity for following his Energies.

But the following Contraries to these are True

1. Man has no Body distinct from his Soul for that call’d Body is a portion of Soul discern’d by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age.

2. Energy is the only life and is from the Body and Reason is the bound or outward circumference of Energy.

3. Energy is Eternal Delight.”

O poeta herege, promulgando audaz seus conceitos radicais, demolidor de todas as dogmáticas que encerram nosso horizonte na estreiteza, decide-se a reduzir a pó os dogmas e crenças errôneos propagados pelas religiões instituídas: a cisão do homem em Corpo e Alma; a demonização do corpóreo e a idealização do “espiritual”; a promessa de sofrimentos infindos àqueles que “obedecem suas energias”.

Um forte elemento anti-platônico marca presença nestas páginas repletas do que poderíamos chamar de um “misticismo xamanístico” onde a sensibilidade é revalorizada e reconduzida a um pedestal onde possa ser cultuada. As “portas da percepção”, afinal, são “nesta vida as cinco janelas da alma” (“This life’s five windows of the soul”) e se existe alguma “redenção”, ela não está em qualquer transcendência, mas na redenção da imanência – na “purificação” de nossa percepção sensível, num alargamento de nossa consciência corporal.

Enxergo em Blake uma figura que enaltece a abertura e a atentividade [AWARENESS] em relação aos processos colossais que se desenrolam eternidade afora nesta imensa orgia de energias em transa e em conflito que chamamos (ó miséria das palavras!) de Universo, de Tudo ou de Deus.

Em William Blake, a Energia adquire os contornos da divindade. E os seres vivos são como que as miríades de múltiplas encarnações desta Energia Cósmica que Blake diviniza. Uma via muito interessante de interpretação poética seria, por exemplo, a análise de como aparecem os ANIMAIS na poesia de Blake.

No lindíssimo poema “Augúrios de Inocência”, Blake escreve algumas das mais comoventes imagens poéticas em prol do que hoje conhecemos como Libertação Animal: um cachorro faminto, um cavalo maltratado, um pássaro com a asa ferida, uma ovelha diante do facão do açougueiro, uma mosca assassinada por um garoto “que há de sentir a inimizade da aranha”, são todos evocados num mosaico em que Blake defende os direitos dos seres mais ínfimos e critica a arrogância dos humanos em subjugar as outras criaturas.

“A dog starved at his master’s gate
Predicts the ruin of the State.
A horse misus’d upon the road
Calls to Heaven for human blood.
Each outcry of the hunted hare
A fibre from the brain does tear.
A skylark wounded in the wing,
A cherubim does cease to sing.
[…] He who shall hurt the little wren
Shall never be by woman loved.”

Manoel de Barros dizia: “fazer o ínfimo ser prezado me apraz”. Em William Blake também existe este esforço de, através da poesia, realizar na consciência dos homens uma transmutação do ínfimo. O poema “A Mosca”, por exemplo, parte do livro Songs of Experience, traz como eu-lírico um homem que acaba de esmagar um inseto que fazia no ar suas brincadeiras de verão.

Tomado por remorsos por ter aniquilado o pequeno artrópode, ele chega a uma “identificação mística” com o bichinho que não é sem-relação àquela retratada por Clarice Lispector em seu A Paixão Segundo G.H., uma obra-prima da inventividade humana que consegue extrair ouro poético e filosófico da maior das trivialidades: o encontro doméstico entre uma dona-de-casa e uma barata.

“THE FLY

Little Fly,
Thy summer’s play
My thoughtless hand
Has brush’d away.

Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?

For I dance,
And drink, and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing…”

Ao invés de misantropia (“os homens não passam de moscas!”), o que se manifesta nestes versos de Blake é a percepção da fragilidade comum de todos os mortais, humanos ou não. Os processos universais que transcendem o indíviduo, as “energias cósmicas” colossais ao seu redor, são “mãos cegas” que arrancam as asas de moscas e homens.

Mas Blake jamais escreve tentando deprimir seu leitor ou fazê-lo “caluniar a existência”, para usar a expressão de Nietzsche. Há em Blake um convite à reconciliação do homem, filho pródigo, com a natureza da qual as religiões instituídas e as moralidades anti-naturais o afastaram. Vai nesse sentido um dos poemas de Blake que mais me comove, que mais “inesgotável” parece em seu jorrar de exuberâncias e belezas, “The Book of Thel“, publicado em meio aos agitos revolucionários de 1789.

Thel é uma moça virgem, inocente, inexperiente e “cheia de temores que a impedem de se engajar na vida”, como diz Woodcock. William Blake cria então uma série de diálogos entre Thel e alguns elementos da natureza: um lírio, uma nuvem, um verme, que “a encorajam a abandonar seu idílio pastoral nos vales de Har e se comprometer a viver”.

Encarnação da fragilidade, da ansiedade e da melancolia temerosa, Thel, diz Woodcock, “é incapaz de enxergar que a vida individual é parte de um processo mais amplo”. Neste poema, Blake atinge uma eloquência ímpar na arte de despertar nossas consciências para estes “processos mais amplos” que estão a se desenrolar ainda que vivamos, cegos e tolos, na gaiola estreita de nosso egoísmo e de nossa percepção auto-centrada.

O poema se inicia com Thel entristecida, derramando na beira do rio uma “delicada lamentação que cai como o sereno da manhã”: “Why fade these children of the spring, born but to smile and fall?”, pergunta-se a moça para as flores do campo, destinadas a efemeridade comum a todas as crianças da primavera.

Na sequência, conversa com a Nuvem que passa nos céus, também ela cumprindo sua sina de transitoriedade: “O little Cloud, the Virgin said, I charge thee tell to me: Why thou complainest not, when in one hour thou fade away?…” Diante das efemeridades naturais, diante de tudo que nasce e morre sem soltar um pio de reclamação ou um suspiro de angústia, Thel sente-se singularmente aflita ao se descobrir a única que não aprendeu a arte de passar sem reclamar: “I pass away yet I complain…

A melancólica Thel chega ao ponto, enfim, de proclamar sua própria nulidade, de reconhecer sua insignificância cósmica, murmurando queixosa: “Without a use this shining woman lived / Or did she only live to be at death the food of worms?” Thel atinge a noite total no seio da primavera e conclui: não sirvo para nada além de ser, por fim, comida para os vermes.

Mas Blake não é poeta que abandone suas personagens e seus leitores nesta desoladora escuridão. Blake então convoca a Nuvem a responder aos queixumes de Thel e constrói assim alguns de seus versos mais comoventes:

“Everything that lives 
Lives not alone nor for itself.”

Como já dizia outro grande poeta, John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”. O que Blake destaca é que as fronteiras entre o humano e o animal, e mesmo entre o orgânico e o inorgânico, são construtos culturais que nos cegam para a realidade da inter-conexão entre os vivos. 

Nenhum vivo é uma ilha: todos dependem uns dos outros e do ambiente no qual se encontram. Não há um só segundo de nossas vidas que não seja composto por dinamismo e interatividade: o dinamismo da respiração, da circulação, da alimentação, da decomposição, da recombinação – em suma, este constante intercâmbio de matéria que constitui, ao que parece, o passatempo predileto da eternidade.

Sem dúvida, esta é uma visão de mundo em harmonia com a noção, tão cara aos ambientalistas, de eco-sistema. Em Ponto de Mutação, o filme baseado na obra de Fritjof Capra, esta perspectiva é exposta com blakeana beleza.

No poema de Blake, Thel acaba vivendo uma certa “epifania” em que uma nova concepção de Deus emerge:  um Deus que não tem nenhuma “predileção” específica pelos humanos, um Deus que ama (até mesmo) os vermes e pune o pé malévolo que esmaga de propósito um ser indefeso.

Um Deus daquele tipo cultuado por místicos e panteístas e que se manifesta nas miríades de criaturas que, animadas de energias móveis, interagem, compartilham e transmutam-se umas nas outras numa eterna orgia cósmica. O efeito poético é avassalador: toda concepção de mundo solipsista, autista, isolacionista, que concebe um ente separado do Todo, independente do Resto, é explodida. E o que emerge é uma mística da interconexão que poderia ter como emblema este verso profundo e misterioso:

“We live not for ourselves.” 

 

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro


“Ponto de Mutação” (Mindwalk) – baseado no livro de Fritjof Capra
Assista na íntegra 

O Selvagem e o Relógio


O SELVAGEM E O RELÓGIO

(Uma exposição de angústias)

“Quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante.

LEGIÃO URBANA
“Índios”

Era uma vez um índio que nunca havia visto um relógio. Um dia, suas terras são invadidas por conquistadores. Estes, no futuro chamarão esta data de “Dia do Descobrimento”. Eles, os estrangeiros que entram em terra alheia, “descobrindo-a” para colonizá-la, descem de suas caravelas suntuosas carregando cruzes, pólvora, relógios.

 O índio jamais viu nada disso em sua frente e não entende o que há de tão “sagrado” numa cruz, nem com que finalidades aquelas criaturas estrangeiras pretendem usar a pólvora, nem como diabos se faz um relógio. Seria este “selvagem” impulsionado, como sugerem tantos defensores da Teoria do Design Inteligente, a julgar que é obra divina tudo aquilo diante do quê ele se espanta (pois antes desconhecia)? Há de concluir o índio que o relógio é obra do deus dos invasores e que, diante de tal potência tão apta a realizar maravilhas e prodígios, nada resta senão aquiescer e cair de joelhos?…

Não: não acho que baste mostrar ao selvagem um relógio para que ele vire a casaca pro outro time e se apresse a trocar sua nudez desinibida por uma batina. Não é tão fácil assim vencer uma alma “pagã” para o cristianismo, recuperar uma ovelha desgarrada que está “extraviada” longe de Cristo… O índio não se deixa catequisar tão fácil por esta doutrina estranha, autoritária, invasora, que deseja impor seu império à força. Talvez pressinta que há algo de terrificante numa civilização que, cultuando uma cruz, cultua um símbolo da morte, um instrumento de execução, uma ferramenta assassina. Richard Dawkins percebeu bem: o equivalente moderno do hábito sacralizado na Cristandade de usar um crucifixo sobre o peito seria algo como… andar por aí com uma cadeira elétrica em miniatura ornando o peito. E vocês acham que índio têm toda essa vontade de se submeter a potências negadoras da natureza e adoradoras da morte? E vocês acham que índio se impressiona tanto assim com relógios?!?

 Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.” Eis o diagnóstico de Renato Russo. Concordo que uma parte das respostas está por aí: no espelho, no umbigolismo, no egocentrismo. Narcisos inventores de doutrinas inventaram a história de que nós, narcisos, somos o cume absoluto da criação, os predilelos supremos de deus, as únicas criaturas que PRESTAM neste globo inteiro! Ó polegar opositor! Ó tele-encéfalo altamente desenvolvido! Minhoca, barata, porco: tudo bicho escroto. Mas o homem, ah não! O Homem é a Glória da Criação! Feitos à imagem e semelhança de um divino deus, belíssimo e bom! Já boi, frango, peixe: são tudo uns bichos “porcaria” que nem tem alma… “Nem tem alma!”



Narciso inventa-se uma alma e fica se achando muitíssimo importante no esquema geral das coisas. Fica de ego inchado. Ele é, nada mais, nada menos, que o filho predileto da divindade única e toda-poderosa e, se agir direitinho, como manda a cartilha (quero dizer, a Bíblia…), o Papai-do-Céu lhe irá destinar um imenso parque-de-diversões celeste, repleto de infinitas delícias.

Em breve, gostando mais e mais dessa ideia, apegando-se a ela com afinco mais e mais ardoroso, ele chegará um dia a achar muitíssimo conveniente possuir uma alma imortal que ele nega a outros animais (e mesmo a outros humanos!). Ele quer triunfar sobre a morte que cai sobre as bestas, proclamar a si mesmo como a única exceção universal, e pensa tê-lo feito de fato quando imagina seu desejo realizado, quando escreve livros que lhe garantem que a promessa será cumprida!

E é assim que surgem na História humana estes fenômenos tão estranhos e bizarros: que uma religião que prega a fraternidade, como o cristianismo, possa conduzir tantas mentes a romper as relações fraternas com o mundo natural que tantos dos ditos “selvagens” praticam de modo tão espontâneo, fácil e exemplar. Ao invés de se perguntar “o que poderíamos nós aprender com eles?”, o homem que desceu das caravelas com suas bíblias e escopetas, querendo expandir o império de distantes reis europeus, só quis saber de forçar seus dogmas a outros – e a quem se recusasse… o calabouço, o chicote, o fuzil!

Foi assim que a religião que se vende como “fraterna” decidiu convencer seu séquito de fiéis de que índio e negro, como os bois e as minhocas, não tem alma. Os relógios que desceram das caravelas junto com os espelhos e a pólvora calculariam os tempos das jornadas que fariam os navios negreiros, lotados de homens acorrentados e tratados como bestas-sem-alma. Os relógios calculariam também o valor das riquezas que seriam daqui arrancadas, a demora exigida para as caravelas singrarem o Oceano, levando à Europa toda a prata de Potosí, todo o ouro de Vila Rica!

Nós, latino-americanos, não devemos nos esquecer das Veias Abertas da América Latina! Felizmente não tivemos nenhuma experiência histórica sobre fenômenos que nos parecem tão distantes e estranhos quanto as Cruzadas e as Inquisições. Aprendemos o pouco que sabemos sobre o assunto em livros um tanto maçantes, e cuja leitura os padres não nos recomendam. O que nós, aqui na América Latina, pudemos vivenciar, que nossos ancestrais diretos tiveram que encarar na pele, foi o ímpeto imperialista da civilização cristã e protestante européia – que conseguiu não somente impor-se, como também praticar o maior roubo de riquezas da história conhecida das civilizaçãos, e com a utilização dos métodos mais torpes e enojantes, incluindo a escravidão e o genocídio.

À Narciso às vezes agrada muitíssimo a ideia de que ele é capaz de possuir todas as verdades e que um único livro, que ele nem suspeita ter sido escrito por narcisos como ele, contêm tudo o que se precise saber, respostas finais e soluções definitivas para tudo na vida.

O maior perigo do monoteísmo, por isso, me parece ser o seu potencial de tornar o sujeito arrogante, cheio de empáfia, julgando-se absolutamente certo em suas convicções inalabáveis e disposto a degolar os que pensam diferente. O potencial altamente destrutivo do monoteísmo está nesta sua aversão à diversidade que lhe é inerente. Um fiel monoteísta acredita que todo mundo, sem exceções, deve se prostrar diante do mesmo deus. Que deva haver o mesmo culto para 7 bilhões de criaturas. Sonhar que é possível uma tal “unificação” entre os povos, algo que tudo na História nos diz que é absolutamente sem precedentes, me parece mais uma fantasia lunática do que um projeto político realista.

A civilização que inventou o relógio chegou diante dos homens do novo continente com a arrogância autoritária de quem se julga superior. Narciso tinha se convencido que, por ele ter sabido inventar relógios e espelhos, ele tinha direito ao império sobre o resto do mundo natural. E até hoje muito cristão que se julga um excelentíssimo sujeito vai sem um pingo de culpa ao açougue e à churrascaria, plenamente convencido de que bicho não vale tanto quanto um bom cristão e que pode ser tranquilamente tratado como um amontoado de carne sem sentimentos e que os matadouros fazem muito bem em degolar aos milhares.

E até hoje muito sujeito que se considera “santo” e que vai à Igreja todos os domingos apóia que caiam as bombas sobre o Iraque, o Afeganistão e o Irã – afinal de contas, quem crê numa divindade tão falsa como Alá merece mesmo o destino de uma Gomorra ou uma Sodoma. E até hoje muito sujeito que diz professar o cristianismo e ser “pró-vida” espalha por aí que usar camisinha é um pecado e que a AIDS é uma punição divina contra a festa da diversidade sexual e do “permissivismo” – agravando com isso epidemias mortíferas que causam um grau de sofrimento inimaginalvemente grande, impedindo que sejam adotadas medidas racionais e lúcidas contras os males que afligem a humanidade.

Quem espera ajuda dos céus tende a fazer pouco na Terra além de cair de joelhos e rezar, ou pegar em cruzes e pregar, ou agarrar-se em livros supostamente sagrados para tentar convencer toda a humanidade a NÃO LER NADA além dele, o Único Livro Que Presta!

Eu, como amante dos livros, como alguém que se delicia com as orgias que realiza em seu cérebro entre os mais diversos autores, que goza com a combinação sem preconceitos de poetas e músicos, dançarinos e palhaços, romancistas e pensadores, me sinto ofendido por essa gente que prega que só devemos ler um livro. Acho isso um crime contra a cultura humana do passado, que em sua imensa riqueza e diversidade merece ser apropriada o máximo que pudermos. Limitar o nosso horizonte a um único documento, quando as bibliotecas e as locadoras e os sites estão tão repletos de um conteúdo tão fascinantemente diversificado e colorido me parece a mesma coisa que vestir em si mesmo um cabresto. Prender a si mesmo numa jaula. Impedir o próprio cérebro de enxergar mais longe.

No fundo, escrevo este texto sob o impacto do filme Xingu, de Cao Hamburguer, da reação a ele manifestada pela Eliane Blum na Revista Época e por alguns vídeos de YouTube que mostram as tensões sociais em Belo Monte. Sinto uma inquietação vaga diante deste plano faraônico do Brasil de construir uma das maiores hidrelétricas do planeta. Se falei tanto de Narciso, foi por essa inquietação de que possamos estar sofrendo com a doença que um dia foi aquela de nossos invasores europeus e que hoje é a cegueira dos Estados Unidos da América. É arrogância que sobe às nossas cabecinhas narcísicas à ideia de que deixamos a Inglaterra na poeira e somos agora uma das 5 maiores economias do mundo? Não estará o governo federal sendo autoritário em sua imposição de um desenvolvimento econômico que aquelas regiões não solicitaram e que muitos indígenas consideram lesativa à terra e aos ecossistemas?


As questões espinhosas da Eliane Brum ressoam, sem resposta:

“…por que permitimos, pela omissão da maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da democracia, com a nossa cumplicidade? […]

O efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.”

Eu, que não conheço a Amazônia, que só acompanho de longe esses problemas, ainda assim me sinto como que “empurrado” a tentar expressar angústias sobre esse assunto. Tenho medo desse “desenvolvimentismo” que me soa tão… anos 50. A Transamazônica e Belo Monte servem mesmo para “integrar o Brasil”, ou querem mesmo é abrir rotas vantajosas de comércio e possibilidade de enriquecimento infindo para muitas empresas? Precisamos tanto assim de alumínio (que, segundo o Fernando Meirelles, é o deus em glória de quem a hidrelética está sendo construída)? A Amazônia, o pulmão do mundo, peça essencial para sustentar o clima da Terra, para nos livrar de catástrofes naturais hecatômbicas que a insustentabilidade do capitalismo selvagem está nos legando, pode ser tratada, mais uma vez, como um elemento num jogo de capitais ao invés de um ecossistema vivo contendo uma das mais vastas biodiversidades do Universo conhecido? O que o futuro nos reserva: shopping centers pipocando nas margens do Xingu e índios sonhando em vestir tênis Nike e comer no McDonalds?

A minha suspeita é a de que o Brasil possa estar vivendo uma espécie de “imperialismo interno”, em que um modelo de desenvolvimento um tanto tecnocrático e cientificista está sendo imposto a civilizações que, ainda que estejam dentro de nosso território, possuem outros valores, outros estilos-de-vida, outros horizontes. Quiçá possamos, com os horizontes deles, abrindo-nos a eles, ampliar os nossos! Estou convicto de que, se cada bom cristão resolvesse experimentar a Ayahuasca um dia, ao invés de ficar só na hóstia, podia mudar seus parâmetros sobre a “superioridade” da civilização cristã sobre as outras, sobre o “resto”. Quiçá um dia aprendamos a lidar com o diferente num espírito de aprendizado mútuo e não de dominação prepotente. E quiçá um dia os dogmáticos e os fanáticos, os narcisos que se comprazem em crer no que lhes deixa mais contentes, os que só conseguem enxergar um livro e têm os horizontes fechados para todo o resto, possam perceber que relógios não valem muito para aqueles que sabem sentir-se, no presente, como se estivessem na eternidade. E que livros são pouca coisa para aquele que sabe, com as portas da percepção escancaradas, beber com seus sentidos o universo, em grandes goladas, lendo maravilhado o Grande Livro da Natureza!

“To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower
Hold infinity in the palm of your hand
And eternity in an hour.”

WILLIAM BLAKE,
O SELVAGEM 

 

:: Um adeus a Saramago ::

::  UMA QUASE ELEGIA FÚNEBRE ::


Decerto é mais sábio se rejubilar por ele ter vivido do que se entristecer por ter morrido. Mas quem consegue, frente ao desaparecimento de um ente querido, não sentir o buraco que ele deixa ao ir embora, concentrando-se só nas delícias e esmeraldas com que ele nos presenteou em vida? A morte de Saramago (1922-2010) é um furo de ferimento a faca na cultura, um vácuo que fica no pensamento dos vivos. Que um cérebro deste pare de operar, taí a tragédia: o mundo fica toneladas menos lúcido e menos inteligente sem os incríveis processos destes privilegiados miolos e seus frutos suculentos em palavras.

Comunistão, ateu de carteirinha, questionador de todos os dogmatismos e tiranias, Saramago não fugiu da polêmica quando se tratava de sustentar o que acreditava. Os descontentes tem pleno direito de desacordo, parecia dizer, complementando o “no peito dos desafinados também bate um coração”, de João Gilberto. E ele foi um destes nobres descontentes e “ímpios”, levantando-se lá em nossa ex-metrópole, a tão pia Portugal, ela que fincou no Brasil e em suas outras colônias, nos tempos da Coroa, a sangrenta cruz de Cristo, com sua procissão de escravaturas, explorações, pilhagens, revoltas esmagadas a tiro e fome…

Quando imaginou uma epidemia de alguma doença que acometesse a humanidade inteira, fantasiou sobre uma Cegueira Branca que se alastraria como a versão moderna da peste. E o quanto isso não diz! E o belo filme que Fernando Meirelles fez honra ao romance brilhante que o Saramago concebeu.

“A alegria e a tristeza não são como o óleo e a água: elas coexistem”. E ele sabia viver na aceitação desta coexistência, admirador do dito de Pesso:  “Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo”. E que o pôs em prática. E que soube a alquimia que é necessária para fazer com coexistam a alegria de estar no mundo e a crítica ferina dos descalabros que o sujam. Pois, como Bobin, ele sabia que a “aquiescência ao mundo não pode ocorrer sem uma revolta absoluta contra o mal que o acossa de toda parte” (L’Inesperée).

Em Saramago, há essa coexistência do chumbo e da pluma, da acidez e da doçura, da lucidez e da loucura, do vazio e da imensidão. Foi um ironista tão fino quanto Machado, um prosador humorístico tão espirituoso quanto um Sterne ou Fielding, um crítico das cegueiras eclesiásticas tão ousado quanto um Diderot ou um Voltaire, um dos que manteve a chama do Iluminismo acesa no que ela tinha de melhor, um brilhante filósofo do ateísmo que não é menos poderoso e lúcido do que um Nietzsche ou um Feuerbach… E foi amigo precioso de tantos de nós que passamos tão agradáveis tardes entretetidos, fascinados, comovidos, engajados por seus livros!

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei?” No mundo que Saramago enxergava, não: os cegos é que são os reis e senhores do mundo, cegos ditadores entre cegos miseráveis. E quem tem um olho para ver a desgraceira… chora. E faz o que pode para que o suplício pare.

Quem tem visão, como é o caso da personagem de Juliane Moore no filme de Meirelles, a única “vidente” naquela quarentena de “contaminados” pela epidemia, sofre mais que qualquer outro personagem (é a sensação de quase todo espectador) por ter de contemplar a miséria no mundo fabricada pelos desarranjos dos cegos.

Quase impotente, o homem que enxerga tem que se resguardar na cautela para não acabar queimado na fogueira como herege, torresminho do churrasco dos crentes. Quem mostra poder destronar os ídolos dos outros atrai para si a ira daqueles que amam demais estes ídolos e suas próprias cataratas para não odiarem cegamente aqueles que tentam dessacralizá-los e sugerir outras vias.

O filme de Meirelles, que começa numa enfermaria, logo começa a se desenrolar em algum bizarro espaço com características de manicômio, presidiária ou anarquia. É a cegueira trazendo Dogville à tona. Aqueles que tomam controle sobre os recursos naturais necessários para a sobrevivência da “comunidade” preferem, é claro, ao invés da solidariedade e da divisão equânime, faturar em cima da miséria alheia. Deja vu?

Chefiadas pelo “Rei da Ala 3”, tão bem encarnado pelo Gael Garcia Bernal, as auto-nomeadas autoridades exigem os atos moralmente dos mais repugnantes àqueles que estão sob seu jugo. Como no inesquecível episódio em que os “tiranos” daquela monarquia decidem, já que seus servos e súditos já não tinham dinheiro ou ouro algum para fornecer-lhes, usar as mulheres como objetos sexuais, recompensando-as com comida.

O estupro coletivo cometido pelos homens da Ala 3 contra o batalhão de mulheres voluntárias e esfomeadas, que aceitaram sacrificar suas dignidades em troca de algumas migalhas de alimento, é uma das cenas mais chocantes e indignantes que o cinema conseguiu fazer e que a literatura conseguiu nos fazer imaginar com espanto. A “ferida moral” que testemunhar atos assim é capaz de gerar beira o poder das mais fortes cenas de Lars Von Trier em Dogville, Dançando no Escuro ou Ondas do Destino.

E acho que é de encher um brasileiro de orgulho que Fernando Meirelles, em sua incursão pelo cinema americano, tenha levado este frescor do ceticismo questionador, caindo como um sopro benigno numa cultura que privilegia o happy end e que semeia suas cegueiras de shopping center. Ainda que correndo o risco de ser acusado de “misantrópico” ou “pessimista”, Meirelles foi ótimo discípulo de Saramago e se aferrou a sua visão de mundo que eu chamaria muito mais, se fosse preciso etiquetá-la, de “lúcida” e “humanista”. Que é a de Meirelles, a de Saramago, e a de nós que os amamos enquanto viveram e que continuarão amando-os quando se forem.

Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, arrancou lágrimas de Saramago em sua première, fazendo com que Fernando, num ímpeto de doçura, tascasse beijos de filho devoto na careca lustrosa do mestre. A cena é comovedora e não tem um pingo de homoerotismo: é muito mais um beijo de amizade e afeto entre um ancião querido e um jovem aprendiz talentoso. O filme é prova de que os “ensinamentos” do gênio lisboeta, quando ele ainda vivia, já ecoavam por outras artes e artistas, e dando dos mais preciosos frutos…

Saramago foi também um dos mais célebres ateus de nosso mundo. Se alguém nos parasse na rua e nos pedisse o nome de cinco ateus famosos hoje vivos, seu nome teria grandes chances de pipocar rápido na lembrança junto com o de um Richard Dawkins ou de um Salman Rushdie. Como este último, que sofreu violenta repressão do estado teocrático xiita do Irã por causa de seu Os Versículos Satânicos, Saramago também despertou uma onda de indignação em instituições eclesiásticas e pessoas de fé dogmática, especialmente quando da publicação, em 1991, de seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mas não se deixou calar pelos que ameaçaram-no com uma nova Inquisição e prosseguiu, corajoso e obstinado, a nos ofertar, com toda sua maestria literária, seu “banquete de heresias” — como a Gi (je t’aime!!!) muito bem as apelidou quando escreveu sobre Caim, o último romance publicado por Saramago em vida.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou”, professou Saramago poucos dias depois do atentado do terrorismo islâmico contra as Torres Gêmeas da nação que pratica diariamente o terrorismo de mercado. E ele soube ler o 11 de Setembro em todas as suas implicações, não ignorando  o quanto a fé é um móbil poderoso da ação das multidões que a ela aderem, mas enfatizando o quanto isto é bem daninho e perigoso do que digno de elegia.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou. Mas o ‘fator Deus’ está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. (…) E foi o ‘fator Deus’ em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do WTC os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. (…) Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, e esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.”

E não esteve só protestando contra a intolerância do fanatismo; seu apelo à lucidez, à serenidade e à crítica severa de todos os pregadores, de todos os dogmatismos, encontrou quem a ele adicionasse uma voz ao coro dos descontentes. O próprio Rushdie, um dos maiores escritores do século passado na Índia, é bom exemplo. Ele sustenta “saramaguianamente” que…

“É evidente que uma visão de mundo rígida, tacanha e absolutista é a mais fácil de manter; pelo contrário, a imagem fluida, incerta e metamórfica que sempre defendi é bastante mais vulnerável. Todavia, tenho de agarrar-me com todas as forças a esse camaleão, a essa quimera, a esse ser metamórfico da minha alma; devo manter-me fiel a esses instintos irrequietos, iconoclastas e defasados, por mais avassaladora que seja a tempestade. E se isso me mergulhar em contradição e paradoxo, pois que assim seja; toda a minha vida vivi neste oceano confuso. Pesquei nele para a minha arte. Este mar turbulento era o mar que avistava da janela do meu quarto em Bombaim. É o mar pelo qual nasci, e que transporto comigo para onde quer que vá. ‘A liberdade da palavra é uma idéia descabida’, afirma um dos meus oponentes extremistas islâmicos. Não, senhor, não é. A liberdade da palavra é tudo, é todo o jogo. A liberdade da palavra é a própria vida.” [SALMAN RUSHDIE. Pátrias Imaginárias]

Crítico radical da ocupação da Palestina pelos exércitos de Israel, encontrou uma mente afim à sua também num dos grandes escritores israelenses das últimas décadas, Amoz Os, outro espírito saramaguiano tentando enxergar claro no meio do torvelinho.

”O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo. (…) O fanatismo é, com frequência, intimamente relacionado a uma atmosfera de desespero profundo. Num lugar em que as pessoas sintam que não há nada além de derrota, humilhação e indignidade, podem recorrer a várias formas de violência desesperada.” (…) ”O fanatismo está em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também. Conheço bem os antitabagistas que o queimarão vivo, se você acender um cigarro perto deles! Conheço bem os vegetarianos que o comerão vivo por comer carne! Conheço bem os pacifistas dispostos a atirar na minha cabeça só porque advogo uma estratégia ligeiramente diferente sobre como fazer a paz com os palestinos. (…) A semente do fanatismo brota ao se adotar uma atitude de superioridade moral que não busca o compromisso.” [AMOZ OS, Contra o Fanatismo]

Saramago não irá para o céu dos cegos.

Irá, sim, a um posto especial, de amigo venerado, no coração dos lúcidos.

FREUD E A RELIGIÃO: A fé como ilusão e neurose infantilóide || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela Humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira ferida: a perda de nossa ilusão de estarmos em um planeta imóvel que estaria no centro do cosmos, fantasia geocêntrica destroçada pelas descobertas de Copérnico (e também de Bruno, Galileu e Kepler), que ocasionou o reconhecimento pleno do heliocentrismo (apesar de tantos cientistas e suas obras terem perecido nas fogueiras da Inquisição). A segunda ferida: a “degradante” descoberta Darwiniana da evolução das espécies pela seleção natural, que deu a nosso narcisismo a má notíci” de que não somos criaturas saídas já prontas das mãos de um deus (como rezava o mito de Adão e Eva), mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados. A terceira ferida seria a própria psicanálise Freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas e libidinais do que por princípios racionais.

Mas as feridas narcísicas que Freud surgiu para infligir talvez sejam mais profundas e amplas do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que gostariam de continuar a crer que são os “favoritos da Criação”. Colapsa, para quem concorda com Freud, qualquer noção de que haveria um “plano divino” dedicado a construir a excepcionalidade do homo sapiens como animal predileto por seu Criador – que estaria, no fundo, devotado a premiar com a beatitude eterna os bem-comportados humanos de seu divino rebanho. Ao contrário destas fantasias neuróticas e infantilóides que costumeiramente passam pelo normal da fé, diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à la Schopenhauer:  “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”.

A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:

“Os elementos parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)

Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos, ela é indiferente:

“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]

Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Em: Os Pensadores, pg. 96)

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TRÍPLICE MISSÃO

A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.

As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.

“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107).

A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:

“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)

Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)

A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.

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DESEJO E ILUSÃO

Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:

“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)

Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.

Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).

Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse.  É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:

“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)

Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.

A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.

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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI

Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).

Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).

Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):

“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”

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ILUSÃO BENIGNA?

Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?

Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:

“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)

Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):

“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)

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MORALIDADE E IRRELIGIÃO

Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.

Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).

Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!

Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!

Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).

Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.

“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).

Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.

Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).

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A FÉ ASFIXIANDO O PENSAMENTO

A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?

“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)

Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113). Este afastamento em relação às crenças religiosas abre os horizontes humanos para uma reflexão sobre o quanto nossas existências são transitórias e qual sabedoria poderia ser aprendida e vivida a partir do pleno reconhecimento desta transiência, tema de um dos mais belos escritos de Freud:

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SOBRE A TRANSITORIEDADE

“Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vida, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhe estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor – que denominamos de libido – que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, e até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso para muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”

(Sigmund Freud. Obras Completas Volume 14, ed. Imago.)

 

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REFERÊNCIAS
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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.

FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.

FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.

FREUD, S. Sobre a Transitoriedade. Em: Obras Completas Volume 14, ed. Imago.

KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.

LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.