A ERA DA PÓS-VERDADE – A ascensão do poderio político da mentira organizada e viralizável

Em 2016, a Universidade de Oxford elegeu como a Palavra do Ano, destinada a entrar no prestigioso Dicionário Oxford, o neologismo “pós-verdade” (em inglês: post-truth). Foi um evento sócio-linguístico amplamente noticiado (vejam as matérias do G1 e do Nexo) e que colocou de vez no epicentro do debate público a questão das notícias falsas e das ressonâncias sócio-políticas da disseminação massiva de falsidades interesseiras.

A definição deste termo recém-chegado ao glossário do idioma de Shakespeare é muito interessante do ponto-de-vista filosófico e psicológico: post-truth (pós-verdade) é um conceito, explana o pessoal de Oxford, que se refere a “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes na conformação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. 

Ou seja, a pós-verdade tem a ver com uma comunicação social que privilegia o emocional e não o racional dos receptores. Que apela para a e não para o raciocínio lógico. Que estimula a credulidade cega ao invés de um ceticismo salutar. 

Muitos dos conteúdos que circulam nas mídias digitalizadas nesta era da pós-verdade tendem muito mais ao sensacionalismo imediatista do que à reflexão prolongada; desejam produzir efeitos práticos que muitas vezes nada tem a ver com averiguar e divulgar verdades apuradas; ao contrário, a mentira, a calúnia, a distorção e a desinformação são tidas como ferramentas aceitáveis para produzir os efeitos desejados.

Com a viralização de uma comunicação que desdenha da verdade em prol da eficácia demagógica das mensagens, exacerba-se a produção massiva de subjetividades incapazes de senso crítico. Imbecilizadas por uma torrente desastrosa de mentiras organizadas, destinadas a manipular as massas em prol de interesses de cúpulas, os cidadãos ultra-conectados tornam-se prisioneiras de “bolhas” onde mentiras são celebradas como dogmas dificilmente abaláveis. E os que visam furar a bolha com o alfinete da crítica são estigmatizados como os hereges e bruxas de outrora – que merecem queimar nas fogueiras de uma nova inquisição.

Estamos em pleno processo de concretização da distopia Orwelliana de 1984: naquele livro visionário escrito nos anos 1940, o escritor inglês colocou seu protagonista, Winston Smith, como funcionário público do Estado Totalitário chefiado pelo Big Brother. Smith trabalha no “Ministério da Verdade” e seu serviço cotidiano é adulterar notícias e livros de história, adaptando o passado ao que o presente ordena. 

Após as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além do referendo do Brexit (que acarretou que o Reino Unido saísse da União Européia), entramos inegavelmente na era da hegemonia da pós-verdade. O jornalista inglês Matthew D’Ancona, colunista do The Guardian, escreveu uma das principais obras sobre o assunto: Pós-Verdade – A Nova Guerra Contra os Fatos Em Tempos de Fake News (Faro Editorial).

Para este autor,  “a mentira é parte integrante da política desde que os primeiros seres humanos se organizaram em tribos. Platão atribuiu a Sócrates a noção de nobre mentira [pia fraus], um mito que inspira a harmonia social e a devoção cívica. No Capítulo 18 de O Príncipe, Maquiavel recomenda ao governante ser ‘um grande fingidor e dissimulador.'” (D’ANCONA, p. 32)

 

 

Não há como evitar escolher como “emblema” da Era Post-Truth o empresário-presidente Donald Trump: “de acordo com o site de fact-checking PolitiFact, que checa informações e é ganhador do prêmio Pulitzer, 69% das declarações de Trump são ‘predominantemente falsas’, ‘falsas’ ou ‘mentirosas’. No Reino Unido, a campanha a favor da saída da União Européia triunfou com slogans que eram comprovadamente não verdadeiros ou enganosos, mas também comprovadamente ressonantes.” (D’ANCONA: p 20)

Após Trump e Brexit, não surpreende tanto o “triunfo” da extrema-direita no Brasil no pleito de 2018. Fugindo de todos os debates, o candidato que idolatra Ustra e Duque de Caxias baseou sua campanha em fake news: haveria um complô das feminazis abortistas com os petralhas corruPTos para transformar as inocentes criancinhas do Brasil em monstros homossexuais e sodomitas, através de um kit gay idealizado por Haddad e sua fiel escudeira, Manuela D’Ávila, aquela que veste camisetas “Jesus é Travesti”. O impressionante não é que houve quem acreditasse – idiotas crédulos e otários úteis sempre existiram. O impressionante é o número desses patriotários e suicidadãos que caíram nestas lorotas.

SAIBA MAIS NA MATÉRIA DE “THE INTERCEPT BR”

Elegeram um sujeito que chamam de mito mas não passa de um mitomaníaco, um mentiroso compulsivo. Que fugirá dos debates e diálogos democráticos, para fazer “lives” na Internet onde pode exercer com gozo aquele privilégio dos tiranos: monologar diante de seus servos, ordenar ditames estapafúrdios para seus obedientes rebanhos. Sigam o Messias, ele é a Verdade e a Vida… e a “Ponte para o Futuro” dele é a ditadura militar neoliberal, fundamentalista, elitista, brutalmente truculenta. O excelente jornalismo que está sendo praticado pela filial brasileira do The Intercept tem se devotado a mostrar a quantidade de mentiras em que se enreda o Bolsonarismo (leia aqui).

Assim como o processo golpista (2016 – 2018) só triunfou ao convencer boa parte da população das mentiras do aparato de lawfare (Dilma teria cometido um crime de responsabilidade, Lula seria culpado por corrupção passiva e lavagem de direitos devido a um apê no Guarujá que nunca foi dele… mentiras de eficácia que serviram à consumação do Golpe, a campanha de Bolsonaro, embarcando nesta onda de mentiras úteis e cruéis, jogou sujo nas Eleições. Que só ganhou pois mentiu descaradamente, em escala industrial, com milhões de reais investidos ilegalmente, via caixa 2, em disparos de propaganda fascista-antipetista nas mídias sociais.

Em um brilhante artigo publicado na Folha De São Paulo, Fernanda Torres enfatizou um exemplo da máquina de mentira Bolsonarista: as mega-manifestações #EleNão, que tiveram fake-videos disseminados amplamente para deslegitimar e demonizar o movimento:

“Quem esteve presente na manifestação do #EleNão vivenciou uma multidão pacífica de senhoras, senhores, crianças e militantes feministas. Os que não foram às ruas viram versões distorcidas de meninas de peito de fora, enfiando crucifixos no meio das pernas, fumando maconha e clamando pela volta de Satanás.” LEIA NA ÍNTEGRA: “BOLHA: WhatsApp, fake news e engajamento dos cultos evangélicos ganharam de lavada as eleições”. Por Fernanda Torres​ em Folha de S.Paulo​: https://bit.ly/2QXVIfb.

Hoje, o poderio do conglomerado empresarial Facebook-Instagram-Whatzapp (na prática, a mesma superempresa), está sendo hackeado por uma extrema-direita inescrupulosa e atroz em seus ataques aos direitos humanos mais elementares. E as forças de esquerda precisam admitir que estão perdendo de lavada no jogo do empoderamento midiático da apropriação coletiva das novas tecnologias. 

Não digo que a esquerda deva aderir aos mesmos métodos sujos de nossos adversários fascistas, pelo contrário: devemos ser sempre aqueles who speak Truth to power, que usam a Verdade como sua maior arma. Mas Verdade que não circula, que não se ouve, é frágil e precária. Nossa missão: to make Truth powerful again…

Quem estuda jornalismo em uma boa universidade aprende a criticar o sensacionalismo da imprensa dita “marrom” (lá fora, yellow press). Aquela que não se preocupa com a investigação e divulgação dos fatos, apurados com o rigor de um profissional que se norteia pelo valor supremo que é a verdade. Aquela que está focada em causar sensação, obviamente para vender muitas cópias do jornal ou revista que é veículo de escândalos e denúncias muitas vezes descolados brutalmente do campo do concreto-factual.

O tema é tão quente que sites como o Descomplica, na série “Redação Nota 1000”, que ajuda estudantes a arrasarem no ENEM, já dedicaram-se ao assunto que tende a ser muito cobrado pelo Exame Nacional do Ensino Médio em nossos tempos:

* * * * *

PARTE 2 – FAKE NEWS NÃO É NADA DE NOVO

No entanto, não há nada de novo na atitude de desprezo pela verdade objetiva na História humana, como provam os seguintes exemplos em ordem cronológica invertida (do mais recente ao mais antigo):

  • após o 11 de Setembro de 2001, em cujo aftermath foi desenvolvida a interminável Guerra Contra o Terror, os EUA já gastou mais de 3 trilhões de dólares em conflitos bélicos que custaram a vida de mais de 500.000 pessoas, como reporta a Newsweek; um dos pontos altos desta escalada se deu com a invasão do Iraque em 2003, realizada a despeito do desacordo do Comitê de Segurança da ONU, que não autorizou a ação pois concluiu que eram mentiras as justificativas apresentadas pelo Governo Bush e pelo Pentágono: as armas de destruição em massa que supostamente possuía o regime de Sadam Hussein eram só um mito, uma fantasia paranóica. Era fake news que Sadam tinha bombas atômicas.

    Tampouco haviam indícios confiáveis de qualquer vínculo da cúpula do governo de Hussein com a Al-Qaeda ou os Taleban do Afeganistão, os artífices do atentado contra as torres gêmeas. Como Arundhati Roy escreveu em seus livros, esta foi uma das fake news de maior impacto do século 21, contribuindo para a guerra contra o terror – imperialismo papa-petróleo strikes again. Bush foi em frente com a farsa apesar dos 15 milhões de cidadãos que saíram às ruas para protestar, numa manifestação global de gigantismo tamanho que não se compara a nada que tenha sido feito pelo movimento hippie, contracultural, pró-Direitos Civis, contra a Guerra do Vietnã, anteriormente. 

  • o nazismo alemão, no processo de instaurar as estruturas para a realização da Solução Final, ou seja, o genocídio da Shoah (Holocausto), justificou o massacre sistemático de mais de 6 milhões de judeus europeus com base em um documento falso, Os Protocolos dos Sábios de Sião . Este panfleto antisemita, baseado numa obra de ficção chamada Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu,   tornou-se um caso de histeria em massa provocado por um pseudo-complô inexistente. Hitler parecia idolatrar Os Protocolos com uma credulidade digna de um fanático religioso. “O jornal The Times revelou em um artigo de 1921, escrito pelo jornalista Philip Graves, que o texto apresentava diversas passagens plagiadas de Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, obra satírica do escritor francês Maurice Joly.” (Wikipedia) A premiada graphic novel de Will Eisner explora esta monumental fake news na história dos movimentos antisemitas como foi o “arianismo-nazi”.

  • Na história da arte no séc. XX, tornou-se lendária a transmissão de Orson Welles em que ele interpretava A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, no rádio; não faltaram os crédulos que acreditaram que, de fato, estava rolando uma invasão alienígena, já que na rádio isto estava sendo “informado”… O pânico com os falsos aliens de Orson Welles marcariam para sempre a nossa percepção do poder de produzir delírios em massa dos novos meios de comunicação de multidão. O genial cineasta depois exploraria temas sobre manipulação de massas pela mídia e falsificação interesseira em obras primas como Cidadão Kane F For Fake.

Exemplos não faltam para evidenciar que as fake news não são nada de novo. Não são apenas os noticiários que estão sujeitos à serem hackeados por Pinóquios, ideólogos mentirosos. Também a escrita da História (da vida humana pregressa) está no olho-do-furacão dos antagonismos contemporâneos. Poucos filmes do cinema atual revelam isso melhor que Denial – um filme maravilhosamente interpretado por Rachel Weisz, Tom Wilkinson e Timothy Spall.

Emory Professor Deborah Lipstadt on Denial, working with Rachel Weisz, and the “post-factual era”

O filme Denial realiza uma reconstrução de um julgamento que marcou época na Inglaterra: “em 2000, David Irving processou a acadêmica norte-americana Deborah Lipstadt e sua editora, a Penguin Books, na Suprema Corte britânica, por causa da descrição que ela fez dele em seu livro Denying the Holocaust”, em que Lipstadt afirma: “Irving é um dos porta-vozes mais perigosos da negação do Holocausto. Familiarizado com a evidência histórica, ele a adapta até ela se adequar às suas inclinações ideológicas e agenda política.” (D’ANCONA, 2018, p. 75).

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Em uma cena notável, a Deborah Lipstadt sai para correr por Londres e, por duas vezes, pára diante da estátua da rainha celta Boadiceia (saiba mais). É o modo que o filme encontrou para comunicar a dimensão épica da batalha que opõe Deborah e seu adversário Irving no tribunal. O que está em jogo dentro do tribunal, em Denial, é uma espécie de batalha épica entre o-que-realmente-aconteceu e um historiador de extrema-direita que mente-sobre-o-de-fato-se-passou. 

Para além da arte, o filme incide sobre o real, de maneira performativa, ao tornar-se uma espécie de ferramenta ativista para demolir quaisquer movimentos de “Negadores do Holocausto” (Holocaust Deniers). Um filme que deve estar no revolutionary toolkit também dos ecologistas e ecolsocialistas, pois terá serventia para confrontar os negacionistas que hoje são mais perigosos: os que negam o fato do Aquecimento Global causado por ação humana devido ao excesso de emissões de gases de efeito estufa.

 Já passou da hora de derrubarmos todos os pedestais onde malignamente se mantêm os produtores-do-apocalipse-capitalista através do extrativismo-sem-fim somado à queima de combustíveis fósseis sem-freios. Aquele endinheirados ecocidas que Naomi Oreskes e Eric Conway batizaram, num livro salutar, de Merchants of Doubt. Os mercadores da dúvid querem lançar descrédito sobre um consenso científico que envolve cerca de 97% da comunidade global de cientistas que dizem em uníssono: sim, a chapa está esquentando pra toda a vida sobre o planeta, global warming is fuckin’ real!)

As fake news evidenciam os antagonismos sociais na disputa inclemente por hegemonia ideológica, controle político, poderio econômico, privilégios privados. Mas, para além dos dramas contemporâneos, estudar esse fenômeno leva-nos ao questionamento do andar-da-carruagem chamada Humanidade e sobre o papel que nela jogou o apego emocional ao falso, o abraço voluntário do erro, o auto-engano do crédulo que é cego por não querer ver, surdo por não querer ouvir, ignorante por não querer saber.

Denial mostra, assim como fez um outro excelente drama épico de tribunal Inherit the Wind (O Vento Será Sua Herança, de Stanley Kramer, 1960), O que o passado é um território em disputa. Diferentes historiadores se digladiam num campo de batalha, muitas vezes querendo impor versões antagônicas do que realmente se passou. É este um dos grandes temas tratados no instigante livro de Caroline Silveira Bauer, Como Será o Passado?, que foca sua atenção na relação entre historiadores e Comissão Nacional da Verdade (CNV) durante o governo Dilma Rousseff.

 

Outro elemento crucial no debate sobre fake news e falsificação da História são as famosas “Bolhas”, criadas por algoritmos e filtros invisíveis, que nos prendem nas ilhas muradas de nossas próprias seitas (sem que, muitas vezes, tenhamos plena consciência disso). Eli Pariser ensina:

“Com o Goole personalizado para todos, a consulta ‘CÉLULAS TRONCO’ pode trazer resultados totalmente opostos para cientistas que apoiam pesquisas com células-tronco e ativistas que se opõem a elas. ‘PROVAS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS’ podem trazer resultados diferentes para um ativista ambiental e um executivo de petroleira.

Segundo pesquisas, a grande maioria das pessoas acredita que os mecanismos de busca são imparciais. Mas isso pode ser apenas porque eles estão cada vez mais inclinados a mostrar nossa própria visão. O monitor do computador é, cada vez mais, uma espécie de espelho unidirecional, refletindo seus próprios interesses,  enquanto os algoritmos observam no que você clica.

“Se os algoritmos vão ser os curadores do mundo, se decidirão o que vamos ver e o que não vamos, então precisamos nos certificar de que eles não sejam determinados apenas pela relevância, mas que também nos mostrem coisas desconfortáveis, desafiadoras ou importantes, outros pontos de vista.”

ELI PARISER – “O Filtro Invisível” (Zahar)

Citado por KAKUTANI, “A Morte da Verdade”, Intrínseca, p. 144-145.

Walter Benjamin já alertava, em suas reflexões sobre a História: “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.”

A verdade, além de simplesmente ser, precisa vencer. E só o fará com a coragem unida dos verazes. A arte-de-viver que Foucault chamou de coragem da verdade segue nos interpelando e nos solicitando, o que significa, em linguajar ético-filosófico, que a parresía ainda é uma indispensável virtude, que devemos sempre coletivamente cultivar. Caso contrário, será a regressão à barbárie e ao triunfo grotesco dos falsos e dos mentirosos, dos imperadores do pseudo, dos profetas do fake, dos ídolos de pés de barro.

 

 

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Dezembro de 2018

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LEIA TAMBÉM: 

E O SEXO SE FEZ VERBO… Aforismos sobre “A História da Sexualidade” de Michel Foucault (Parte 1)

AFORISMOS SOBRE “A HISTÓRIA DA SEXUALIDADE”
DE MICHEL FOUCAULT

#1) O MITO DO SANGUE AZUL

Há uma curiosa expressão: “ter sangue azul”. Normalmente aplicamos o termo a uma figura prepotente, aristocrática, suntuosa, cheia de pompa, uma dessas autoridades que tem a pretensão de escapar ao destino comum dos mortais. “Ter sangue vermelho é coisa de plebeu, de ralé, de proleta… já eu tenho sangue superior!”, assim arrazoa a zuada racionalidade autoritária.

Foucault diz que o mito do “eu tenho sangue azul!”, tão papagueado pelas classes sociais economicamente privilegiadas, foi “um dos procedimentos utilizados pela nobreza para marcar e manter sua distinção de casta; pois a aristocracia nobiliárquica afirmara a especificidade do seu próprio corpo na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 117).

O nobre, em seu narcisismo irrefreável, quer acreditar na superioridade de seu próprio corpo, no maior valor de seu próprio sangue, na sua maior proximidade ao trono de Deus, aquele mesmo que supostamente elegeu sua raça como a eleita.

O direito divino dos reis, artigo teocrático que foi aniquilado pela secularização, na esteira das Revoluções moderna, estava conectado com a tácita suposição narcísica, por parte das classes dirigentes, de que Deus havia elegido a eles, esta elite “santa”, como dominadores legítimos. Não só apontados do céu, os poderosos diziam que pertenciam a uma super-raça, de uma sanguinidade pia, viril, sem máculas genéticas, arianamente magnífica… Sim, este tipo de pensamento é um perigo! E iria desaguar no nazismo.

A leitura de A História da Sexualidade, de Foucault, convida a pensar que o III Reich alemão (1933-1945) também merece ser lido a partir de uma perspectiva sexual, pois ali manifestou-se um bio-poder altamente controlador, disciplinador, autoritário, todo calcado e fundamentado em uma metafísica do sangue superior. E a transmissão entre as gerações dos entes de sangue superior se daria pelo controle estatal totalitário dos processos reprodutivos – com a proibição, por exemplo, dos casamentos entre judeus e arianos. Uma antessala da Solução Final.

O mito do ariano, o contraste da pureza ariana com a sujidade de raças supostamente inferiores, tudo isto acaba constituindo uma forma de racismo institucionalizado que, com a cortesia dos avanços tecno-científicos, pôde transformar-se na fábrica de cadáveres, produzidos em massa nos campos de extermínio, que marcou o século XX, A Era dos Extremos (Hobsbawn).

O racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante […], recebeu cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Sem dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar. Uma ordenação eugênica da sociedade, uma estatização ilimitada, acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior; esta implicava, ao mesmo tempo, o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total. E a história quis que a política hitlerista do sexo tenha se tornado irrisória, enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens, por enquanto, tenham lembrança.” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 140).

#2) A HONRA HISTÓRICA DA PSICANÁLISE.

Foucault tem certos elogios a dirigir à Psicanálise freudiana, a começar por uma “honra política”, isto é, o fato de ter estado, “no essencial”, “em oposição teórica e prática ao fascismo.” (pg. 141)

Sigmund Freud, na sua condição de judeu em meio a uma Europa endoidecida por delírios anti-semitas que estavam então em plena em ascensão, nunca compactuou com doutrinas ou práticas dos nazis. Freud inclusive inaugurou, através de suas incursões na psicologia de massas, as vertentes mais sociológicas do movimento psicanalítico representados pelas obras, perturbadoras e valiosas, de Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, Ernest Becker, Stanley Milgram, Otto Rank, Erich Fromm, dentre outros.

Freud foi contemporâneo de uma época na história européia de grande crescimento do racismo institucionalizado e genocida, mas segundo Foucault o Pai da Psicanálise rompeu com a “neuropsiquiatria da degenerescência”:

“A posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente ao grande sistema da degenerescência: ela remontou ao projeto de uma tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os racismos e os eugenismos. (…) Na grande família das tecnologias do sexo, que recua tanto na história do Ocidente Cristão, (…) ela foi até os anos 1940 a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência.”(O Dispositivo de Sexualidade, pg. 112-113)

A filósofa e militante feminista Marcia Tiburi concorda com Foucault e reconhece certos méritos em Freud e em seus feitos históricos: para começo de conversa, Freud dispôs-se a escutar aquelas pessoas que, por tradição, estavam reduzidas ao silêncio. Prestou atenção àquelas que outros talvez desprezassem e depreciassem como se não passassem de “doidas varridas de Viena”, histéricas só dignas de um bom hospício.

Não se deve subestimar a importância de mulheres como Anna O, dentre outras que eram tratadas sob o diagnóstico de histeria, para a elaboração das teorias do grande clínico vienense: Freud percebeu, após escuta atenta e reflexão ponderada, que muitos dos conflitos psíquicos vivenciados por aquelas mulheres diziam respeito à gestão da sexualidade e que o próprio fato de pesar um tabu sobre a expressão feminina a respeito de questões sexuais acabava por produzir como efeito colateral uma série de conflitos psíquicos e sintomas psicosomáticos.

Em palavras mais simples: com aquelas mulheres, Freud aprendeu que não poder falar de sexo, ou estar proibido de praticá-lo fora dos estreitos limites do casamento burguês monogâmico, é muitas vezes um fator forte para o adoecimento psíquico. A repressão sexual imposta pela sociedade tinha que ser discutida seriamente, Freud bem o sabia, sendo que os velhos e tradicionais esquemas autoritários, como a imposição de regras ascéticas e um estilo-de-vida de “beatice” assexuada, tinham que ser postos em questão, submetendo-se ao escalpelo clínico-crítico do cientista.

Para Foucault, a Psicanálise freudiana revoluciona o estatuto da confissão, esta instituição antes tão ligada ao ambiente religioso, às práticas eclesiásticas, à exortação que as autoridades em matéria de fé faziam aos devotos para que contassem seus pecados e se colocassem à disposição das penitências.

Com Freud, a confissão vê-se radicalmente secularizada, laicizada, extraída à fórceps de seu tradicional envoltório religioso. “Em torno da Psicanálise, a grande exigência da confissão, que se formara há tanto tempo, assume novo sentido, o de uma injunção para eliminar o recalque. A tarefa da verdade vincula-se, agora, ao questionamento da interdição.” (p. 123)

#3) E O SEXO FEZ-SE VERBO

Como competente historiador que foi, Foucault sabe muito bem como contrastar diferentes períodos históricos: claramente não estamos mais “em um tempo de longa e dura repressão – o tempo de um ascetismo cristão prolongado, desviado, avaramente, impertinentemente, utilizado pelos imperativos da economia burguesa.” (pg. 148)

Foucault, diante do mundo de que foi contemporâneo, percebe uma certa queda na repressividade, uma liberação dos costumes, que manifesta-se, por exemplo, nos brados libertários de Reich e Marcuse, que tanto encontraram eco nas rebeliões políticas anti-establishment de 1968, por exemplo.

O que Foucault questiona é o aparelho social que tomou a hegemonia, vencendo a velha repressividade ascética, e que agora converte-nos em obcecados por transformar o sexo em verbo, em imagem, em signo. Imaginem um humano do futuro, que olhe para trás e observe as práticas e discursos de nós aqui-e-agora; ele talvez caia na risada e…

“…sorria lembrando que esses homens, que teremos sido, acreditavam que houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra, nas estrelas e nas formas puras do pensamento; talvez cause suprema surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade que tudo – nossos discursos, nossos hábitos, nossas instituições, nossos regulamentos, nossos saberes – trazia à plena luz e refletia com estrépito. E se perguntará por que quisemos tanto suspender a lei do silêncio sobre o que era a mais ruidosa de nossas preocupações.” (pg. 148)

O que nos caracteriza, em contraste com a austeridade de épocas históricas anteriores, é o imperativo de falar do sexo, dedicar a ele atenção e preocupação, reconhecer nele algo de essencial na definição de nossas identidades, conceder a ele o direito de escolher os horizontes intersubjetivos em que vamos nos aventurar. A importância de Freud neste processo de lançar luz sobre o sexo não pode ser subestimada, e Foucault foi um dos que melhor reconheceu isto, apontando que

“Freud relançou com admirável eficácia, digna dos maiores líderes espirituais e diretores da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá-lo em discurso. Evoca-se com frequência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo, tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito… Incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade… E nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por tanto tempo… Os ardis da sexualidade, e do poder que sustêm seu dispositivo, conseguiram submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras.” (pg. 149)

Somos os contemporâneos, nisto, de grandes espíritos liberadores que ousaram falar abertamente sobre a sexualidade, como Stendhal, D. H. Lawrence, Anais Nin, Henry Miller, Simone de Beauvoir, Nathaniel Hawthorne, Emma Goldman, Marquês de Sade, George Bataille, Robert Crumb, dentre outros luminares do sexo que se fez verbo nas letras e nas artes em geral.

Pregações de São Paulo em Atenas, em pintura de Rafael

#4) A INVENÇÃO DA AUSTERIDADE SEXUAL

Não é simples nem fácil descobrir o culpado original pela invenção daquilo que Nietzsche chamou de ideal ascético. Certas obras valiosas já procuraram desvendar tais mistérios, dentre elas Repressão Sexual – Esta Nossa (Des) Conhecida, de Marilena Chauí. Em Michel Foucault podemos encontrar também uma genealogia detalhada sobre os processos históricos em que foi sendo gerada a austeridade sexual e os dispositivos para sua implantação e propagação.

No início do segundo livro d’A História da Sexualidade, Foucault problematiza um certo clichê dos historiadores, aquele que consiste em contrastar a moral sexual do cristianismo com a do paganismo, como se não houvesse entra uma e outra nenhuma continuidade, mas só uma série de rupturas.

Ora, parece-me que há claramente um fio condutor que une os órficos, os pitagóricos, os socráticos, os platônicos, à história do advento dum cristianismo puritano, repressor dos prazeres sexuais, que pretende gerir as condutas e impor a necessidade de obediência aos valores da austeridade, supostamente purificadora e meritória.

Foucault pretende ir além das 4 oposições costumeiras estabelecidas entre a ética cristã e aquela que a precedeu, hoje conhecida sob o rótulo depreciativo de paganismo. Trata-se, para Foucault, de problematizar o contraste entre Antiguidade e Cristandade, apontar que os contrastes e as similaridades são bem mais complexos do que o tradicional esquema, abaixo relembrado, procura nos pintar:

      1. Quanto ao valor do ato sexual, “o cristianismo o teria associado ao mal, ao pecado, à queda, à morte, ao passo que a Antiguidade o teria dotado de significações positivas”;

      2. Quanto à delimitação dos parceiros legítimos, “o cristianismo só teria aceito o sexo no casamento monogâmico e, no interior dessa conjugalidade, lhe teria imposto o princípio de uma finalidade exclusivamente procriadora”;

      3. Quanto à homossexualidade, “o cristianismo teria excluído rigorosamente as relações entre indivíduos do mesmo sexo, ao passo que a Grécia as teria exaltado – e Roma, aceito – pelo menos entre homens”;

      4. Quanto ao mérito que há na recusa às práticas sexuais, “o cristianismo teria atribuído alto valor moral e espiritual, diferentemente da moral pagã, à abstinência rigorosa, à castidade permanente e à virgindade.”

(FOUCAULT. O Uso dos Prazeres. Pg. 20)

Ora, Foucault percebe “continuidades muito estreitas que se pode constatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral da Antiguidade” (Pg. 22), o que talvez dê razão à Nietzsche que, em uma sentença lapidar, afirmou ser o cristianismo equivalente a “platonismo para o povo”. Na chamada “filosofia pagã”, ou seja, no pensamento greco-romano da Antiguidade,

“já encontramos ali uma certa associação entre a atividade sexual e o mal, a regra de uma monogamia procriadora, a condenação das relações de mesmo sexo, a exaltação da continência. Não é só: em uma escala histórica bem mais longa, poder-se-ia acompanhar a permanência de temas, inquietações e exigências, que sem dúvida marcaram a ética cristã e a moral das sociedades europeias modernas, mas que já estavam claramente presentes no cerne do pensamento grego-romano.” (pg. 22)

Veja-se o caso de um sermão célebre na história da Cristandade, a extravagante pregação de São Francisco de Sales, exortando os fiéis a imitarem os elefantes, já que estes grandes animais, cheios de dignidade e bom senso, nunca trocam de fêmea e só acasalam a cada três anos, sempre realizando o ato sexual de modo reservado e secreto, para na sequência irem banhar-se em um rio, purificando-se antes de retornar ao bando (p. 24).

Ora, Foucault mostra que esta prédica, que pede aos devotos que tomem os elefantes por modelo, não é criação cristã, mas sua formulação já se encontrava em Plínio em sua Introdução à Vida Devota. O elogio aos elefantes, que não conhecem o adultério e são assim modelos para os humanos, que deveriam imitar a constância conjugal dos trombudos, não é mera extravagância de dois sujeitos isolados, um literato romano e um santo cristão, mas sim um sintoma de um certo zeitgeist, de um certo espírito-de-época que teimou em sobreviver, século após século, como Foucault bem enxerga:

“Plínio não pretendia, certamente, propor um esquema tão explicitamente didático como o de São Francisco de Sales; entretanto, referia-se a um modelo de conduta visivelmente valorizado. Isso não significa que a fidelidade recíproca dos cônjuges tenha sido um imperativo geralmente recebido e aceito pelos gregos e romanos. Mas ela constituía também um ensinamento dado com insistência em certas correntes filosóficas, como o estoicismo tardio; constituía também um comportamento apreciado como manifestação de virtude, de firmeza da alma e de domínio de si. (…) A fidelidade sexual do marido com relação à sua esposa legítima não era exigida pelas leis nem pelos costumes; não deixava de ser, contudo, uma questão que se colocava e uma forma de austeridade a que certos moralistas conferiam grande valor.” (p. 25)

Este louvor à fidelidade ainda não se tornou completamente ultrapassado e demodée no século 21 d.C. O ideal ascético ainda prossegue firme e forte entre nós, defendido a unhas e dentes pelo conservadorismo tradicionalista que ainda possui tanto poder político entre nós. É mais uma razão para nos interessarmos pelo processo de constituição destes dispositivos de transformação da sexualidade em algo ao qual deveria ser aplicada a severa terapia da austeridade e das repressões. Estamos soterrados debaixo de relatos onde os heróis são aqueles que sabem dizer não ao sexo, e somos assim solicitados a identificar a virtude, digna de nos heroicizar, como inseparável do ideal ascético:

“O herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, como uma tentação na qual ele sabe não cair, é uma figura familiar ao cristianismo, como foi corrente a ideia de que essa renúncia é capaz de dar acesso a uma experiência espiritual da verdade e do amor, a qual seria excluída pela atividade sexual. Mas é igualmente conhecida pela Antiguidade pagã a figura desses atletas da temperança que são suficientemente senhores de si e de suas concupiscências para renunciar ao prazer sexual…

Para alguns essa abstenção estava ligada diretamente a uma forma de sabedoria que os colocava imediatamente em contato com algum elemento superior à natureza humana, e que lhes dava acesso ao próprio ser da verdade: tal era o caso do Sócrates do Banquete do qual todos queriam se aproximar, do qual todos se enamoravam, de cuja sabedoria todos buscavam se apropriar – sabedoria essa que se manifestava e se experimentava, justamente, pelo fato de que ele próprio era capaz de não tocar na beleza provocadora de Alcebíades. A temática de uma relação entre a abstinência sexual e o acesso à verdade já estava fortemente marcada.” (pg. 28)

Diógenes e Alexandre – Pintura de Edwin Henry

IV) SER REI DE SI PARA REINAR SOBRE OS OUTROS

As éticas da Antiguidade clássica, que pretendiam ensinar as artes da existência, prescreviam uma série de virtudes que deveriam ser praticadas em nossa conduta sexual: a sabedoria é inseparável de um sábio uso dos prazeres.

“Um princípio geralmente admitido é o de que quanto mais se for visado, mais se tiver ou se quiser ter autoridade sobre os outros, mais se buscar fazer de sua vida uma obra resplandecente, cuja reputação se estenderá longe e por muito tempo, mais será preciso se impor, por escolha e vontade, princípios rigorosos de conduta sexual.” (H.S., II, pg. 75)

Para ser digno de estima social, tornando-se um cidadão respeitável e decente, o sujeito não deve nunca ser escravo de seus desejos e prazeres, mas deve mantê-los sob domínio. A virtude da temperança (sophrosyne) adquire então vasta importância e “é representada com grande regularidade entre as qualidades que pertencem – ou que pelo menos deveriam pertencer – não a todos e a qualquer um, mas, de forma privilegiada, àqueles que têm posição, status e responsabilidade na cidade.” (op cit, pg. 76)

Platão recomenda à elite que seja temperante, o que torna legítima sua autoridade sobre a República, constituída infelizmente por uma multidão viciosa, incapaz de auto-controle, dominada pelas paixões e pelos sentidos. A utopia de cidade concebida por Platão é explicitamente elitista, aristocrática, onde uma minoria que exercitou-se na ascese é considerada digna de reinar sobre a multitude. O filósofo-rei tem como base de sua autoridade a afirmação de sua maior aptidão para o auto-controle, o que lhe daria a prerrogativa de controlar os outros. Os que dominam a si mesmos devem ter o direito de dominar os outros.

Foucault aponta que há toda uma “relação agonística”, de combate, de disputa, que estabele-se entre o sujeito e seus próprios desejos, o que é particularmente explícito em toda a tradição ascética, na qual estão incluídos como dois dos mais ilustres representantes Sócrates e Platão.

Neste contexto dos filósofos ascetas gregos, os aphrodisia são um perigo a ser combatido, a ser resistido, a ser dominado. E isso porque, de acordo com a bipartição hierárquica entre alma (boa) e corpo (ruim), é necessário fazer a guerra contra os desejos e prazeres carnais “porque se trata de apetites inferiores que nós compartilhamos – como a fome e a sede – com os animais; mas essa inferioridade natural não seria em si mesma uma razão para combatê-la se não fosse o perigo de que, predominando sobre todo o resto, elas estendessem sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o, finalmente, à escravidão.” (pg. 83)

Será que aqui encontramos nossa velha conhecida, a repressão sexual, travestida com as vestes suntuosas de uma suposta sabedoria? O temor em relação ao corpo e suas energias, os arroubos puritanos contra os prazeres da carne, tudo isso manifesta-se nesta atitude, que muitos filósofos recomendam, de uma ascese que entra em guerra contra tudo aquilo que é tido como manifestação de animalidade. Dizer sim, sem freios, aos ímpetos sexuais, será insistentemente descrito, através da história da ética ascética, como conduta indigna do ser humano. Os hedonai, os aphrodisia, tornam-se então os inimigos, os adversários:

“Isso traduz-se em uma série de expressões empregadas tradicionalmente para caracterizar a temperança e a intemperança: opor-se aos prazeres e aos desejos, não ceder a eles, resistir às suas investidas ou, ao contrário, deixar-se levar por eles, vencê-los ou ser vencido por eles, estar armado ou equipado contra eles. Ela também se traduz por metáforas como a da batalha a ser travada contra adversários armados, ou como a da alma-acrópole, atacada por uma tropa hostil, e que deveria se defender graças a um sólido destacamento… Também se exprime através de temas como o das forças selvagens do desejo que invadem a alma durante o sono.” (pg. 83)

A cisão dualista entre corpo e alma, e além disso sua hierarquização, conduz à noção fundamental para a ética socrática-platônica de que o melhor deve dominar o pior, o superior deve reinar sobre o inferior, a alma deve ter supremacia sobre o corpo – como faz um cocheiro que traz seus cavalos sob rédeas e nunca permite as rebeldias eqüinas. Foucault pondera:

“A assimilação dos desejos a um povo inferior que se agita e que sempre está procurando se revoltar se não se lhes mantém a rédea, é um tema conhecido em Platão. (…) No final do penúltimo livro da República, após construir o modelo da cidade, Platão reconhece que o filósofo terá muito pouca oportunidade de encontrar nesse mundo Estados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretanto, o ‘paradigma’ da cidade se encontra no céu para quem quiser contemplá-lo; e o filósofo, olhando-o, poderá ‘dirigir seu governo particular’: ‘Pouco importa que esse Estado esteja realizado em alguma parte ou que esteja ainda por se realizar: é desse Estado e de nenhum outro que ele seguirá as leis.’” (Pg. 89)

Como profundo conhecedor do pensamento grego clássico, Foucault sabe reconhecer, em especial na tradição proveniente de Sócrates, “o tema insistente e importante da askesis, como preparação prática indispensável para que o indivíduo se constitua como sujeito moral” (pg. 95). Nas Memoráveis de Xenofonte, por exemplo, encontramos ditos de Sócrates como: “em que o homem intemperante supera o mais estúpido dos animais?” (pg. 99) Em Platão, de modo similar, critica-se os “fracos” que “não podem comandar as suas feras interiores”:

“Ora, o que fazer se quisermos que esse homem seja regido por um princípio racional como aquele que ‘governa o homem superior’? O único meio é colocá-lo sob a autoridade e o poder desse homem superior: ‘Que ele se faça escravo daquele em quem o elemento divino comanda’. Quem deve comandar os outros é aquele que deve ser capaz de exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo. (…) A temperança entendida como um dos aspectos de soberania sobre si é, não menos do que a justiça, a coragem ou a prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer domínio sobre os outros.” (p. 100)

O platonismo tem algo de teocracia e totalitarismo: só os homens “superiores”, ou seja, aqueles capazes de exercer a ascética da auto-dominação, devotando-se ao conhecimento puro e reprimindo os desejos carnais, têm o direito legítimo de dominar a gestão da cidade. Quem reina sobre si deve reinar sobre os outros. O mau tirano é aquele que não domina as próprias paixões, abusando do próprio poder e causando violências a seus súditos. O bom tirano é aquele que, dominando seus próprios tesões, mantendo sob rígidas rédeas as suas luxúrias e ganâncias, ganharia sim o direito de mandar na multitude.

Porém, a tirania platônica do filósofo-rei é intragável para qualquer um que ame a liberdade, a autonomia, a participação coletiva na determinação dos destinos coletivos, a democracia. Pois do proto-totalitarismo de A República (Politeia) até o imperialismo alexandrino (típico de quem mamou nas tetas de Aristóteles, o célebre discípulo de Platão) há um fio conector. E nós, como Foucault em seu Coragem da Verdade, desejamos estar não entre aqueles que caem de joelhos e fazem apologias tolas ao poderio de Alexandre, mas entre aqueles que, como Diógenes, ousaram viver diferente – e disseram verdades ao poder (to speak truth to power é a nova encarnação da parrusía grega).

Trata-se, para nós, como Foucault nos ensina, de destronar este “bom tirano” platônico-aristotélico, esta velha justificação da tirania e do imperialismo, e ir em direção a uma outra sociedade possível, pós-ascética e pós-autoritária, cultivadora de um sábio cultivo dos prazeres relacionais que tem no Jardim de Epicuro uma de suas mais significativas prefigurações utópicas. Tenho a convicção de que não a construiremos juntos sem a sabedoria que pode nos propiciar o aprendizado na companhia da obra e vida de Michel Foucault, este grande iluminador da sexualidade e suas adjacências.

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro

GUIAS NA ARTE DE BEM VIVER – Montaigne, Epicuro e a questão do Carpe Diem

VIVER MELHOR: se a filosofia não nos ajudasse em nada nessa arte, já teria sido extinta. Se sobrevive há mais de 26 séculos, com uma resiliência que não seria concebível para algo irrelevante para a existência humana, é pois há quem encontre na filosofia uma VITAL SERVENTIA. Pois que boa vida, que felicidade humana, que plenitude emocional ou serenidade anímica seria possível sem sabedoria? E que frase existe de mais anti-filosófica, de mais estúpida e inaceitável, do que “ignorance is bliss”?

Será que o filósofo não é aquele que está nas antípodas de qualquer discurso de apologia à ignorância como via sacra para a beatitude (como ocorre inclusive em escrituras ditas “sagradas”)? Que vida valeria a pena ser vivida sem ação refletida e convívio norteado por sábios princípios? E como amar uma filosofia que fosse apenas uma teorização infrutífera, que fosse mero papaguear de conceitos abstratos, que fosse pensamento desplugado da ação?

Só uma filosofia que é frutífera em felicidade e em incremento de sabedoria, só uma filosofia que proporciona melhoria da nossa capacidade de bem viver (o que inclui, é claro, o con-viver!), faz jus àquilo que tantos filósofos viam como suas metas existenciais – propor uma maneira de viver, o que inclui aprender a morrer. A finitude obriga todo buscador de sabedoria ao aprendizado de sua própria efemeridade, de sua fugacidade, descritível como similar a de uma vela na brisa em meio às ventanias cósmicas.

Na viagem do tempo, a longo prazo, dizem-nos os cientistas, acabam por se apagar até mesmo as estrelas. Mortais são até as coisas que julgávamos as mais indestrutíveis de todas – ainda que a incandescência cósmica geral dê seu jeito de sobreviver a cada morte – de bichos, das gentes, de sóis. Que a filosofia tenha existencial serventia é o mínimo que dela se exige. Os filósofos, no processo de buscar sabedoria – eles são os “The Seekers” de que fala a canção explosiva do The Who! – devem ser como árvores de rica seiva que fazem jorrar com exuberância os frutos que devem alimentar esta arte suprema que é o bem viver.

Em seu delicioso livro Como Viver, a Sarah Bakewell foi brilhante em mostrar o quanto “Montaigne costumava demonstrar desdém pelos filósofos acadêmicos, sendo avesso a seu pedantismo e a suas abstrações. Mas evidenciava perene fascínio por outra tradição filosófica, a das grandes escolas pragmáticas que exploravam questões como a maneira de enfrentar a morte de um amigo, desenvolver a coragem, agir com correção em situações moralmente delicadas ou aproveitar o melhor possível a vida. (…) Os três sistemas de pensamento mais conhecidos dessa tendência eram o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo: as filosofias conhecidas como helenísticas, por terem sua origem na era em que o pensamento e a cultura gregos se espraiaram até Roma e outras regiões mediterrâneas, a partir do 3º século a.C.” (BAKEWELL: p. 120)

O alvo, meta ou télos da filosofia – e seu próprio nome já diz muito: amor (Philia) à sabedoria (sophia) – foi visto como intensamente prático ou pragmático nestas escolas helenísticas. Além do epicurismo, do estoicismo e do ceticismo, mencionados por Bakewell, podemos também elencar o cinismo como uma importante vertente de uma filosofia da práxis, nada interessada em debates teóricos ociosos, toda voltada para atitudes existenciais e comportamentos provocativos e didáticos (o que aproxima Diógenes de Sínope do Oriente, por exemplo da figura do mestre-zen budista…). Trata-se, para o filósofo cínico, de levar ao extremo um ethos contra-hegemônico onde tem primazia a noção de parresia, traduzida por Foucault como “a coragem da verdade”.

“Todas essas escolas tinham o mesmo objetivo: alcançar um modo de vida conhecido na língua grega como eudaimonia, termo que costuma ser traduzido como ‘felicidade’, ‘alegria’ ou ‘desabrochar humano’. Isto queria dizer viver bem em todos os sentidos: desenvolver-se, desfrutar a vida, ser uma boa pessoa. Elas também consideravam que o melhor caminho para a eudaimonia era a ataraxia, que poderia ser traduzida como ‘imperturbabilidade’ ou ‘estar livre de ansiedade’. Ataraxia significa equilíbrio: a arte de manter o prumo, sem exultar quando as coisas vão bem nem mergulhar no desespero quando vão mal. Alcançar esse estado é exercer controle sobre as emoções, para não ser golpeado e arrastado por elas como um osso disputado por uma matilha de cães.” (BAKEWELL, p. 120)

A filosofia, em sua busca pela felicidade, soube distinguir entre o efêmero e o duradouro. Um êxtase fugaz não configura eudaimonia, somente um bem-estar com a vida que seja resiliente, seguro e sólido – na medida do possível neste mundo de mutações e liquidez – merece a qualificação de eudaimonia. Donde a importância da ataraxia, esta serenidade alegre e constante daquele nem exulta, nem se deprime – e que André Comte-Sponville costuma descrever com a expressão “prazer em repouso”.

Se a serenidade da ataraxia é essencial à felicidade da eudaimonia é pois qualquer sábio não pode ser descrito como alguém que fica oscilando na gangorra dos prazeres e das dores, incapaz de gozar de qualquer duradoura satisfação. A felicidade filosófica que se anseia está nas antípodas daquele estado-de-espírito inquieto, ansioso, insatisfeitíssimo com tudo, retratado em belas pedradas do rock’n’roll como “Satisfaction” dos Rolling Stones ou “Unsatisfied” dos Replacements. Em contraste, o Tim Maia ofereceu uma boa expressão, cheia de soul, da ataraxia eudemônica quando propôs o estado anímico bem-aventurado do “numa relax, numa tranquila, numa boa”.

“Foi sobre a questão de como alcançar essa tranquilidade que os filósofos começaram a discordar. Cada um deles tinha uma concepção diferente, por exemplo, do quanto deveríamos ceder ao mundo real. A comunidade epicurista original, fundada por Epicuro no século IV a.C., pregava o afastamento da família, para que os seguidores vivessem como membros de um culto num ‘jardim’ particular. Os céticos preferiam continuar mergulhados no alvoroço da vida comum, mas assumindo uma atitude mental radicalmente diferente. Os estoicos se posicionavam mais ou menos entre as duas opiniões. Os estoicos e os epicuristas também compartilhavam boa parte de suas respectivas teorias. Consideravam que a capacidade de desfrutar a vida pode ser comprometida por duas grandes fraquezas: falta de controle das emoções e tendência a dar muito pouca atenção ao presente. ” (BAKEWELL, p. 121)

Um filósofo como Pierre Hadot, que esforçou-se por realizar obras sobre A Filosofia Como Maneira de Viver, também frisa com frequência “o sentimento da importância do instante, incessantemente expresso por estoicos e epicuristas (é o verdadeiro sentido do carpe diem do epicurista Horácio), mas também por modernos como Montaigne e Goethe. Só o presente é nossa felicidade; a essa riqueza do instante está ligada o que Pierre Hadot denomina ‘a pura felicidade de existir’, maravilhamento, mas também, entre os modernos, angústia e até temor diante do enigma da existência.” (CALLIER, Jeannie, apud HADOT, 2016, p. 12)

No caso de Hadot, a importância de imersão no instante, de mergulho pleno no presente, está conectada à experiência mística, àquilo que Romain Rolland chamou de “sentimento oceânico”. Hadot diz que “ao falar de sentimento oceânico, Rolland quis expressar um matiz muito particular, a impressão de ser uma onda num oceano sem limites, de ser uma parte de uma realidade misteriosa e infinita. Michel Hulin, em seu livro admirável intitulado La Mystique Sauvage [A Mística Selvagem], caracteriza essa experiência pelo ‘sentimento de estar presente aqui e agora no meio de um mundo, ele próprio, intensamente existente’, e fala também de um ‘sentimento de copertencimento essencial entre mim mesmo e o universo ambiente’. É capital, aqui, a impressão de imersão, de dilatação do eu num Outro ao qual o eu não é estranho, visto que é parte dele.” (HADOT, p. 23)

Hadot, grande estudioso da filosofia antiga, sabe que há uma ampla literatura que se dedica à descrição do sábio, tal como ele deveria ser – “na Antiguidade, a figura do sábio era uma norma, um ideal transcendente”. Sobre esta visão das características do sábio, na escola epicurista podemos colher muitos frutos saborosos da árvore de Lucrécio: em seu poema Da Natureza das Coisas, ele “faz o elogio de Epicuro, que os discípulos consideravam um sábio, descrevendo a realidade do filósofo ideal. Quais são, então, as qualidades que Lucrécio admirava nele? A primeira é seu amor aos seres humanos. Quando ele ensinou sua doutrina, quis socorrer o gênero humano, assolado pelo terror da superstição e pelas tormentas da paixão. Um segundo traço característico de sua sabedoria é a ousadia de sua visão cósmica: pelo espírito, diz Lucrécio, ele foi além das barreiras inflamadas que limitam o universo e percorreu o Todo imenso. Um terceiro traço, enfim: ele é livre, destemido, desfruta de uma paz interior análoga à dos deuses, dos quais se pode dizer precisamente, segundo sua doutrina, que a alma deles não é agitada por nenhuma perturbação.” (HADOT, p. 149)

Este ideal ético da imperturbabilidade – não deixar o ânimo ser arrastado para os extremos da exultação ou da depressão, como um barco à vela em meio a mares de tempestade – manifesta-se de maneiras diferentes nas escolas filosóficas, de modo que o estoicismo parece propugnar muito mais uma vida da ascese apática, uma apologia da apatheia, enquanto o epicurismo dito “hedonista” não irá pregar um não à paixão, mas sim uma hierarquização dos desejos e prazeres. Hadot é preciso ao dizer que “a maneira de viver dos epicuristas consistia principalmente em certa ascese dos desejos, destinada a manter a mais perfeita tranquilidade da alma. Era preciso limitar os próprios desejos para ser feliz. Os epicuristas faziam uma distinção – esse ponto é bem conhecido – entre os desejos naturais e necessários (beber, comer, dormir), os desejos naturais e não necessários (o desejo sexual) e os desejos não naturais e não necessários (desejos de glória, de riqueza). Excluíam, ao menos em princípio, a ação política. Mantinham-se, tanto quanto possível, afastados dos assuntos da cidade… No fim das contas, os epicuristas buscam desfrutar da simples alegria de existir.” (p. 129)

A calúnia difamatória de que foram vítimas os epicuristas fabricava a imagem, falsa e enganadora, de que no Jardim de Epicuro vigiam os piores excessos, que ali perseguia-se o prazer com um furor satânico, que ali não paravam as orgias sexuais monstruosas, as bebedeiras e comedeiras resultando em vômito e indigestão – enfim, a imagem de um puteiro de licenciosidade completa, uma anarco-área para a Vontade refestelar-se a seu bel-prazer, algo que prenunciaria o Marquês de Sade e suas narrativas repletas de atrocidades perpetradas por indivíduos que dizem sim à sua vontade individual, em desdém total pelo outro. Nada mais distante do autêntico epicurismo, da verdadeira comuna alternativa fundada por Epicuro na cidade de Atenas e que atravessaria os séculos como espaço de convivência, centro cultural e foco de irradiação de uma sabedoria de potencial disseminação universal. Epicuro vivia de maneira sóbria e frugal, devotado às amizades, em busca da serenidade de ânimo, esforçado pesquisador do Grande Livro da Natureza que teria gerado a escrita de um tratado de física em 30 volumes (todos hoje perdidos).

carpe diem que o poeta romano Horácio propõe e que tornou-se emblema epicurista, citado em tatuagens e camisetas, em canções e filmes, não tinha muito em comum com um certo imediatismo consumista hoje tão em voga. O ethos hegemônico do consumidor imediatista em nossas sociedades de consumo – o tipo de figura que pode até levar consigo no peito o lema you only live once, mas que busca suprir seu ímpeto hedonista somente através da compra de mercadorias e do consumo de itens geradores de prestígio e status – está nas antípodas do ethos epicurista, no qual “aproveitar o dia” tinha a ver com a busca pela sabedoria por meio do convívio entre amigos que amam a verdade. A verdade não se consome, não se vende, não se compra, é o alvo da busca do sábio e, segundo Epicuro, a compreensão da natureza das coisas tem efeito terapêutico e liberador. Colher o dia também significa aproveitá-lo ao máximo para expandir o conhecimento sobre a natureza, a realidade – um carpe diem que aproxima-se ao sentido em que Mary Wollstonecraft utiliza o conceito de exertion, uma espécie de esforço bem-aventurado na direção do auto-aprimoramento.

Epicuro, grande guia na arte do bem viver, é igualmente um mestre na arte análoga do bem morrer. Muito se cita a frase de Platão segundo a qual “a filosofia é um exercício da morte”. Montaigne se apropria de uma ancestral tradição quando, em um de seus mais magistrais Ensaios, propõe que filosofar é “aprender a morrer”. Ora, o platonismo e o epicurismo, neste ponto, são radicalmente antagônicos, irreconciliáveis, propõe duas sabedorias diferentes. Para Platão – ou melhor, para o Sócrates que fala no Fédon diante da iminência da morte pela cicuta – sabedoria consiste em separar a alma do corpo, desprender o elemento imaterial e imortal de sua gaiola somática perecível. O dualismo socrático-platônico exige a fé na alma imortal e na capacidade desta de se alçar a um domínio transcendente, um outro mundo sobrenatural. Para Epicuro, tais crenças não passam de nefastas superstições. Lucrécio celebra em Epicuro justamente o audaz pensador subversivo que denuncia as falácias religiosas, libertando assim a humanidade de dois males terríveis: o temor da morte e o temor aos deuses.

Como Hadot lembra, esta constante reflexão sobre a morte, a finitude, a vida que finda, é algo que congrega muitas escolas filosóficas. Os estóicos, por exemplo, “também falaram muito no exercício da morte, dentro de uma perspectiva de um exercício de preparação para as dificuldades da vida. Os estoicos sempre diziam que é preciso pensar que a morte é iminente; mas era menos para se preparar para a morte e mais para descobrir a seriedade da vida. Marco Aurélio dizia, por exemplo, na qualidade de estóico: é preciso realizar cada ação como se fosse a última, ou ainda: é preciso viver cada dia como se fosse o último. Trata-se de se conscientizar de que o momento que ainda está sendo vivido tem um valor infinito, de que, como a morte talvez o interrompa, trata-se de viver de maneira extremamente intensa enquanto a morte não chegou.

Segundo Sêneca, Epicuro dizia ‘pensa na morte’, mas também não era em absoluto como uma preparação para a morte, mas, ao contrário, exatamente como entre os estóicos, para aguçar a consciência do valor do instante presente. É o famoso carpe diem de Horácio: colhe hoje, sem pensar no amanhã. Além disso, pensar na morte, pela perspectiva epicurista, visava a fazer compreender em profundidade a ausência de qualquer relação entre a morte e o ser vivo que somos: ‘a morte não é nada para nós’. Não existe passagem alguma do ser ao nada. A morte não é um acontecimento da vida, dirá Wittgenstein. Para os epicuristas, havia também a idéia, comum aos estóicos, de que é preciso viver cada dia como se houvéssemos concluído nossa vida. (…) Existem aí dois aspectos: por essa perspectiva o dia foi vivido em toda a sua intensidade, mas ao mesmo tempo, quando vier o dia de amanhã, este será considerado uma oportunidade inesperada. ” (HADOT: p. 135)

Tudo isso conduz à noção de que o carpe diem provêm de uma conscientização do valor da existência que não é separável de uma tomada de consciência em relação à finitude. É preciso saber que se vai morrer para que se possa colher o dia, ou seja, aproveitá-lo como se fosse nossa última oportunidade entre os vivos sobre a face da Terra. Poucas canções expressam melhor este processo de “realização” ou de conscientização do que a bela e melancólica balada do The Flaming Lips, “Do You Realize?”, que começa por perguntar ao ouvinte: “você se dá conta de que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?”

Hadot lembra inclusive que “a antecipação ou adiantamento da morte representa, em Heidegger, uma condição da existência autêntica. A consciência da finitude deve levar o homem a assumir a existência como ela é.” (p. 136) Logo, aqueles que vivem em estado psíquico de Negação da Morte, para lembrar do magistral estudo de Ernest Becker premiado com o Pulitzer, estão afogados na inautenticidade, incapazes por isso de vivenciar a vida mortal em sua plenitude. Só o mortal que se sabe mortal seria, portanto, capaz de sabedoria – já que é inconcebível um sábio que esteja tão profundamente iludido sobre a condição humana que se imagine indestrutível como se conta nos mitos que são os olímpicos comedores de néctar e ambrosia.

Sabemos que Lucrécio tinha vários exercícios espirituais destinados a curar a angústia da finitude, o mais famoso deles sendo a proposta de que, das duas uma: se você amava a vida, pode deixá-la como um conviva saciado que deixa um banquete satisfeito, na certeza de que a morte não deixará ninguém vivo para sentir saudade do que foi perdido; se você não amava viver, então por que reclamar por se ver privado de algo que você não sentia como um bem? A sabedoria epicurista também ensinava que todo bem e todo mal são dependentes da sensibilidade, e que a morte é o fim da sensibilidade, portanto não implica nada de bom ou mau. Enquanto estamos vivos, a morte não é; quando a morte for, já não estaremos mais vivos para “experenciá-la”. Nenhum sujeito vivencia a morte como um mal, o mal está na angústia que provêm de sua antecipação e em especial de sua não-aceitação.

Um problema digno de debate, no âmbito do epicurismo, consiste em pensar para além da morte-de-si: a morte-do-outro, em especial o outro que amamos, é sim uma vivência para aquele que lhe sobrevive. As amizades entre Montaigne e La Boétie, de um lado, e entre Epicuro e Metrodoro, de outro, fornecem um rico manancial de reflexões sobre como lidar com este outro que morre e que deixa ao vivente o vazio angustioso e dolorido do luto. Sobre este tema, já escrevi em outra ocasião este artigo sobre a Amizade como Ideal Ético e Cívico em Epicuro e Montaigne.

No caso de Montaigne, um pensador extremamente eclético, que produz uma miscelânea com as sabedorias epicurista, estóica e cética (dentre outras), podemos seguramente afirmar que ele é um principais responsáveis pela re-ativação do pensamento de Epicuro e Lucrécio na época da Renascença. Stephen Greenblatt, em A Virada, já contou de maneira insuperável toda a história inacreditável envolvendo o destino do poema lucreciano De Rerum Natura – Da Natureza das Coisas, que só não se perdeu por um triz. Renascendo em plena Renascença, esta obra-prima da filosofia epicurista escrita com ímpar maestria pelo poeta Lucrécio terá significativo impacto no parto da chamada Modernidade – como atestam figuras como Petrarca e Erasmo, mas sobretudo Montaigne, que recheia os Ensaios com copiosas citações de Lucrécio e que possuía um volume do De Rerum Natura extensamente grifado e anotado.

A relação entre a ética existencial dita hedonista, expressa no carpe diem horaciano, e a atenção à nossa finitude, que também os cristãos praticavam com seus memento mori, conduz à noção de que a sabedoria nunca esteve desvinculada de uma percepção de que nós, sendo mortais, temos a necessidade urgente de aproveitar a vida ao máximo enquanto ela dura, já que o amanhã nunca é garantido e o túmulo é o ponto final na sentença do viver que a todos nós está prometido – e que é sempre, pelas leis férreas do universo, cumprido.

Em um livro recente (que ainda não tive a oportunidade de ler na íntegra), Carpe Diem Regained – The Vanishing Art of Seizing the Day, Roman Krznaric propõe a atualização deste debate ao fazer a crítica de uma certa apropriação indébita do conceito de carpe diem que foi realizada na atualidade pela sociedade capitalista de consumo. Para Krznaric, o carpe diem foi “sequestrado” (hijacked) por uma ideologia tóxica que propõe que “colher o dia” significa, na ignorância voluntária das verdades amargas sobre nossa condição mortal, refestelar-se no imediatismo das compras no shopping center ou no entretenimento fornecido pelas mídias de massas estupidificantes e corroídas por dentro pelos cupins do capEtalismo marqueteiro. Daí a importância de recuperarmos, na história da filosofia, o autêntico sentido do carpe diem epicurista – consciência da finitude, foco na preciosidade do presente, desejo de que a vida seja uma árvore frutífera a ser cultivada em um jardim de amigos unidos pela busca comum pela sabedoria.

É interessante notar que o termo carpe diem é profundamente poético: evoca a figura do cultivo, da agricultura, dos processos realizados no solo para que este faça a semente desabrochar em flores e frutos, e depois coliga isto com a figura do dia. “Cultivar o dia” é um tipo de expressão que só poderia ter nascido da mente visionária de um poeta como Horácio, todo imbuído com a sabedoria epicurista tão fortemente presente na Roma de seu tempo. O dia, se é “cultivável”, talvez seja pois é um Jardim onde podemos, juntos, coligar esforços para plantar frutíferas sementes. Há uma belíssima canção do Wilco que explora senda poética semelhante e nos convida a “ficar do lado das sementes”:

Neste sentido, parece-me inconcebível que Horácio pudesse forjar esta pérola sem todo o contexto cultural envolvendo a fundação da comunidade epicurista em Atenas. É significativo, por exemplo, que Epicuro não era um ateniense, mas sim natural da ilha de Samos (a mesma terra natal de Pitágoras), de modo que era uma espécie de “estrangeiro” em Atenas – e até onde sei isso acarretava necessariamente que ele não teria direitos políticos ali. Repete-se muito que Epicuro era a-político, mas tendo a ver a questão por outro prisma: como forasteiro, desprovido de direitos cívicos, Epicuro decide fundar uma espécie de “Sociedade Alternativa” (Raul Seixas pensava no Jardim, talvez, ao compor sua canção? Ou muito mais nas comunas beatniks e hippies?).

No Jardim, a hospitalidade com a alteridade em sua diversidade era muito mais intensa do que na Academia platônica, espaço de elite, forjada desde sua entrada com a lógica excludente da segregação (“quem não souber de geometria, não entra aqui!”). O Jardim epicurista acolhia a diversidade humana, abria-se ao cosmopolitismo inicialmente proposto por Diógenes, o Cão (arauto da ética cínica).

Ao contrário do que alguns imaginam ao ouvir a palavra Jardim, não se tratava ali de ficar à toa, de pernas pro ar, só na sombra e água fresca. Muito menos se tratava de um ambiente de festa rave, regado aos equivalentes da época para o êcstasy e os beats do trance. O Jardim era uma comunidade filosófica unisex – as mulheres também eram bem-vindas – onde sabedoria e amizade eram vistos como unidas por um cordão umbilical que não se poderia romper senão com o risco de um atentado letal contra a própria essência da filosofia.

Colher o dia, nesse sentido, consistia em viver cada um dos dias com a máxima devoção ao esforço conjunto de compreensão da verdade e de coligação de esforços para a melhor realização possível da arte das artes – o bem-viver, ou aquilo que os franceses chamam tão lindamente de savoir-vivre. eudaimonia grega tinha um sentido também conectado ao cultivo, à jardinagem: era o estado daquele ser humano que está em processo de florescimento.

Carpe diem, logo, é uma afirmação de que, por finitas que sejam nossas vidas, é possível cultivar em comum cada dia no sentido de nele plantar e colher frutos e flores que tornem nossa estadia entre os vivos algo de deleitoso, extraordinário, irrepetível, sublime, a ponto de conseguirmos, como aconselhava Lucrécio, chegar às beiras do túmulo com a serenidade de ânimo e a felicidade interior daquele que deixa seu quinhão no espaço-tempo como um “conviva saciado” que contribuiu com o cultivo do comum jardim da amigável sabedoria.


 

LEITURA SUGERIDA:

“It is one of the oldest pieces of life advice in Western history: carpe diem, seize the day. First uttered by the Roman poet Horace over two thousand years ago, it has become our cultural inheritance, reflected in mottos from ‘live as if you might die tomorrow’ to ‘be in the moment’, from the iconic advertising slogan ‘Just do it’ to the Twitter hashtag #yolo (‘you only live once’).

Why is the call to seize the day so compelling to us? Because it promises a remedy for that instinctive – but often fleeting – awareness so many of us have that life is short and our time is running out. It asks us to live with greater passion, consciousness and intention, so we don’t reach the end of our days and look back on life with regret, viewing it as a series of paths not taken.

But here’s the problem: the spirit of carpe diem has been hijacked and we have barely noticed. It’s been hijacked by consumer culture, which has transformed seizing the day into impulsive shopping sprees and the instant hit of one-click online buying. It’s also been hijacked by 24/7 digital entertainment that is replacing lived experience with vicarious second-hand pleasures and an era of proxy living. And now it’s being hijacked by the mindfulness movement, which reduces seizing the day simply to living in the here and now.

This book is about how we can take on the cultural hijackers and reclaim the power of carpe diem. It explores five very different ways humankind has discovered over the centuries to seize the day, which we urgently need to revive. These include the art of grasping windows of opportunity, hedonistic experimenting, immersing ourselves in the present, becoming more spontaneous in daily life, and the forgotten realm of carpe diem politics.

It tells the stories of great carpe diem adventurers, from Oscar Wilde to Maya Angelou, and delves into everything from medieval carnival to the neuroscience of procrastination. At the same time, it looks at whether we can overdose on seizing the day, and how it may be used and abused.

This book is the first ever cultural biography of carpe diem. But it goes further, with a call to arms: the time has come to seize back seize the day, and recover it for the art of living and social change.” – UNBOUND


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BIBLIOGRAFIA

BAKEWELL, Sarah.  Como Viver – Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta. Objetiva, 2012.

HADOT, Pierre. A Filosofia Como Maneira de Viver. É Realizações, 2016.

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Pessoal, neste último Domingo, 12 de Novembro, participei com muita satisfação do Café Filosófico com Will Goya, 94ª edição, no Bolshoi Pub, em Goiânia, em que conversamos livremente sobre a sabedoria epicurista. Confiram aí o vídeo completo deste bate-papo sobre os prazeres, a felicidade, os deuses, a morte, o carpe diem, o tetrapharmakon, a filosofia como terapêutica psicosomática, dentre outros temas conexos:

(OBS – Infelizmente os slides que projetei no telão não estão com boa visibilidade na filmagem. Vou disponibilizar em breve toda a apresentação em PDF para quem se interessar.)

Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, Novembro de 2017

A CORAGEM DA VERDADE: A relevância da arte-de-viver de Diógenes, o “Cão”, segundo Michel Foucault, Emil Cioran e Luis Navia

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Diógenes de Sínope (413 – 323 a.C.), Pintura de Jean-Léon Gérôme

Se viver é uma arte, Diógenes certamente merece ser reconhecido como um dos mais radicais experimentadores neste campo, o da estética da existência.

 

O lendário filósofo que morava em um tonel e confrontava todos os valores vigentes com atitudes excêntricas e bizarras tornou-se uma das figuras mais memoráveis da cultura grega no período posterior à execução de Sócrates. É o tataravô de todos os hippies, de todos os punks, de todos os anarquistas, de toda sorte de comportamentos e doutrinas contraculturais, que vão na contracorrente de seu tempo, expandindo os limites do que é possível realizar com nossas liberdades.

Conta-se que “a ideia de um tonel como residência ocorreu-lhe depois de observar caracóis carregando suas casas – as conchas – nas costas”, como lembra Navia em seu livro Diógenes – O Cínico (Ed. Odysseus, p. 49). Célebre por seu despojamento material que o tornava parecido com um mendigo seminu, que mendigava seu sustento, Diógenes tornou-se famigerado por praticar tudo às claras, sem pudor algum, inclusive aquilo que o comum das gentes já faz nos recessos escondidos de um banheiro ou quarto.

Ao aliviar-se em público dos seus dejetos corporais, foi comparado com os cães, que não tem pudicícia alguma em mijar e cagar em público; ao invés de sentir-se ofendido com a designação de cão, assumiu o termo como apelido. Teria se apresentado ao próprio Alexandre o Grande como “Diógenes, o cão”, deixando sempre claro que não tinha nenhuma subserviência diante dos poderosos deste mundo, nem tinha a demência da ganância desenfreada por riqueza ou poder. Só queria que os imperadores deste mundo deixassem-no em paz, banhando-se ao sol do universo do qual sentia-se parte e cidadão. O primeiro dos cosmopolitas, costumava perambular pela pólis com sua lanterna, em busca de um ser humano de verdade – mas sem sucesso.

Autores como Foucault, Cioran e Luis E. Navia esforçaram-se por reavaliar sua relevância, às vezes menosprezada, inserindo-o em lugar de destaque entre aqueles que pensaram e praticaram uma ética com um radicalismo e uma coerência que puderam fazer de sua vida uma autêntica obra-de-arte – e das mais polêmicas. Representante máximo da escola filosófica cínica, Diógenes foi discípulo de Antístenes de Atenas e seria o mestre de Crates de Tebas, tríade que constitui o cerne mais importante do cinismo clássico, ainda muito pouco estudado em contraste com as montanhas de atenção devotadas ao platonismo, ao estoicismo e ao epicurismo.

Seria um equívoco querer reduzir Diógenes a um homem que buscou reduzir tudo ao elementar, um primitivista que teria assumido o compromisso de retroceder até a animalidade e à preocupação única com a subsistência. Retrato falso, que ignora o quanto Diógenes buscou agir movido por intentos didáticos, apesar da bizarria de seus métodos de ensino. Com ele, a sabedoria (sophia) ganha novos contornos, aparece transfigurada em algo inovador e desafiador. Para Diógenes, parece-me claro, existir é mais que sobreviver: é dar estilo e valor a este fluxo que nos arrasta do útero ao túmulo, é fabricar um sentido imanente para esta teia vital em que estamos visceralmente implicados.

Ao transformar a própria vida em obra-de-arte, aberta às discussões e mesmo aos deboches, o que ele fez foi abolir o abismo entre teoria e práxis, unir em indissolúvel aliança o pensar e o fazer, propondo um ethos onde a liberdade de expressão mais extrema (a parrhesía que tanto interessou a Foucault) e as noções de soberania, autonomia, autarquia e cosmopolitismo ganham o primeiro plano. Vejamos com mais vagar e detalhe o que Diógenes propôs com sua existência-obra, hoje transformada em lenda, e que a tantos de nós pode servir de espelho: mirem-se no exemplo do mendigo-rei e reflitam: o que ele nos reflete sobre nós mesmos? Do que nos acusa? Que chamado nos faz? Que metamorfoses nos propõe?

“Diógenes e sua Lanterna”, pintura de Jacob Jordaens,
1593 – 1678

“O cinismo clássico, cujo melhor representante é Diógenes, é um fascinante fenômeno filosófico e cultural dos tempos da Grécia e de Roma. Por mais de 800 anos, os filósofos que se autodenominavam cínicos (em sua língua, literalmente “cães” [kýnikos]), pregaram e praticaram um conjunto de convicções e um estilo de vida que desafiou, muitas vezes de modo estarrecedor, as normas e convenções de sua sociedade. Do ponto de vista deles, o mundo dos homens estava em um estado de bancarrota moral e vacuidade intelectual que requeria uma desfiguração sistemática de seus valores.

(…) Alguns têm visto nele, mais do que em qualquer outro filósofo do mundo ocidental, o epítome de uma longa lista de dons e traços intelectuais e de personalidade dignos de louvor: um comprometimento absoluto com a honestidade, uma notável independência de julgamento, uma inquebrantável decisão de viver uma vida simples e despojada, uma devoção afincada à autossuficiência, um vínculo sem paralelos com a liberdade de expressão, um desdém saudável pela estupidez e pelo obscurantismo humanos, um nível incomum de lucidez intelectual e, acima de tudo, uma tremenda coragem de viver segundo suas convicções. Desse ponto de vista, Diógenes emerge como um gigante na história da humanidade em geral… ” (NAVIA: 2009, p. 10-18).

A filosofia tem de suas figuras heróicas e lendárias, cujas vidas reais hoje estão envoltas pela névoa mistificante dos discursos tecidos pró contra eles. Cultuado e defenestrado de maneira igualmente exacerbada, Diógenes de Sínope tornou-se uma dessas emblemáticas vidas que parecem propor um perene desafio ao pensamento e à ação. Lucidez, coragem e liberdade:  eis os valores que ela pede que se exerçam com a energia que Héracles devotou a seus 12 Trabalhos.

Depois de Diógenes, a filosofia possui sempre um cão vigilante que rosna e late quando, tirando os pés do chão, alienando-se do concreto, desvinculando-se do ontológico, dando asas à fantasia para os vôos metafísicos e religiosos, perdem-se os pensadores nas nuvens confusas e falaciosas de suas próprias abstrações.

Foi o que Foucault viu tão bem, dedicando tanta atenção ao estudo do cinismo clássico em seu último curso no Collège de France, no ano de sua morte (1984), publicado como A Coragem da Verdade (Editora Martins Fontes):

“Desde a origem da filosofia, o Ocidente sempre admitiu que a filosofia não é dissociável de uma existência filosófica, que a prática filosófica deve sempre ser uma espécie de exercício de vida. É nisso que a filosofia se distingue da ciência. Mas ao mesmo tempo que coloca com estardalhaço, em seu princípio, que filosofar não é simplesmente uma forma de discurso, mas também uma modalidade de vida, a filosofia ocidental – essa foi sua história e talvez seu destino – eliminou progressivamente, ou pelo menos negligenciou e manteve sob tutela, o problema da vida filosófica em seu vínculo essencial com a prática do dizer-a-verdade (parrhesía). ” (FOUCAULT, pg. 206)

Se Diógenes é tão essencial para a análise de Foucault sobre as figuras históricas da parrhesía, da coragem de dizer tudo o que acreditamos ser verdade, é pois o filósofo originário de Sínope (atual Turquia) pôs-se em risco e perigo para desempenhar sua missão de veridicção. Se a expressão daquilo que acreditamos ser a verdade demanda do sujeito tanta coragem é porque implica que nos coloquemos como alvos, no espaço público, de críticas, reproches e ofensas – ou algo pior. No limite, aquele que fala demais, em especial se ousa meter o bedelho nas práticas e doutrinas  das autoridades e sumidades públicas, arrisca-se a tornar-se vítima de processos de marginalização, estigmatização ou aniquilação.

A filosofia, quando se torna força crítica e contestatória, cria muita inimizade para seu praticante, pois não faltam forças sociais que não desejam que suas vidas e decisões políticas sejam objeto de diálogo, muito menos de contestação. O língua-solta pode acabar a vida como tagarela decepado, com a cabeça numa bandeja… A língua de Sócrates, demasiado impertinente, que agia como o ferrão de uma abelha irritante e que morde seus concidadãos para despertar o pensamento de sua letargia, acabou sendo calada com a cicuta.

Diógenes, por sua vez, conquista com sua fala franca uma considerável fama, que não pereceu nestes 23 séculos transcorridos desde sua morte, mas esta fama é em vasta medida constituída também pela infâmia. Diógenes foi alvo da peçonha furibunda de vários detratores, como Hegel, que xingava os cínicos de “porcalhões” e coisas piores. Hegel, ao propor em sua História da Filosofia, que não havia sequer razão para desperdiçar tempo com o estudo de Diógenes e dos cínicos, talvez tenha cometido um de seus equívocos mais crassos, devidamente retificado por Foucault, um dos pensadores do século XX que, na companhia de Emil Cioran, fez para re-avaliar a relevância de Diógenes na história da ética e no panorama das artes de existir:

Waterhouse

“O cinismo pode se relacionar à questão das práticas e das artes da existência, pois foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a questão dessa forma particular de vida que é a vida filosófica… Diógenes se espantava com ver os gramáticos estudar tanto os modos de Ulisses e negligenciar os próprios, ver os músicos afinar tão bem sua lira e esquecer a afinação da própria alma, ver os matemáticos estudar o sol e a lua e esquecer o que têm sob os pés, ver os oradores cheios de zelo pelo bem falar mas nunca preocupados com o bem fazer… Segundo Diógenes Laércio, Diógenes o Cínico criticava as pessoas que desprezam as riquezas mas invejam os ricos, criticava os que oferecem sacrifícios aos deuses para obter saúde mas se entopem de porcarias… Só pode haver verdadeiro cuidado de si se os princípios formulados como princípios verdadeiros foram ao mesmo tempo garantidos e autenticados pela maneira como se vive.” (FOUCAULT, pgs. 208 – 210.)

Faz parte da lenda de Diógenes a sua contestação rebelde às figuras de autoridade, como o imperador Alexandre, e aos signos de poder das classes imperantes. O dinheiro, por exemplo, é aquilo que Diógenes, na maturidade, acaba por rejeitar em bloco, pulando fora de uma vida que tivesse a grana como deus supremo ao qual sacrificamos nosso tempo.

Em Sínope, tendo na sua mocidade participado,  em conluio com o pai, de práticas de adulteração das moedas, provavelmente o filósofo foi expulso da sua terra natal. As informações históricas não nos permitem concluir se Diógenes era um falsificador de dinheiro que visava o enriquecimento próprio, ou se tinha outras intenções, como a sabotagem do mercado financeiro, através de suas ações.

Sabe-se que, partindo para o exílio, refugia-se em Atenas e em Corinto, mas não deixa o seu passado totalmente para trás: o subversor da moeda vigente em Sínope, ainda que agora não esteja mais em um cargo que o permita seguir falsificando moeda, torna-se um super-mendigo que tratará de continuar seu trabalho de subversão. Expulso de Sínope por crimes contra os nómisma, as moedas, Diógenes tratará de seguir em lida transgressora, desta vez atacando um sentido mais amplo da palavra nómisma,  o de “costumes”, “instituições”, “valores aceitos”:

Nómisma indica a moeda física tanto quanto costumes e valores. Diógenes, então, despojou-se do primeiro destes significados e agarrou-se ao último. Concluiu que o oráculo o orientava a transfigurar ou desprestigiar os valores em vista dos quais as pessoas vivem… Fica claro que houve dois estágios em sua vida: um em que foi como a maior parte das pessoas (ganancioso, desajuizado e pleno de confusão) e outro em que, tendo rompido com o mundo dos valores ordinários, não mais precisaria adulterar ou falsificar o dinheiro que, na forma de moedas, circula entre as pessoas.” (NAVIA, p. 42)

Diógenes, sinônimo subversão. O que Nietzsche chamaria de transvaloração de todos os valores têm em Diógenes um de seus precursores mais importantes. Esta forma-de-vida que Diógenes encarna será vista por Foucault como algo que prenuncia certas formas da ascese cristã – “os franciscanos, com seu despojamento, sua errância, sua pobreza, sua mendicidade, são até certo ponto os cínicos da cristandade medieval” (p. 160) -, mas que ao mesmo tempo inspira a “prática revolucionária e as formas assumidas pelos movimentos revolucionários ao longo do século XIX” através da “ideia de um modo de vida que seria a manifestação irruptiva, violenta, escandalosa, de verdade” (p. 161).

Cioran (1911 – 1995) enxergou muito bem a afronta que a existência de Diógenes representou, celebrizando-o nas páginas de Breviário da Decomposição como um “cão celestial” e um “santo da chacota”:

“Diógenes, o homem que enfrentou Alexandre e Platão, que se masturbava em praça pública (“Quem dera que bastasse também esfregar a barriga para não ter mais fome!”), o homem do célebre tonel e da famosa lanterna, e que em sua juventude foi falsificador de moeda (há dignidade mais bela para um cínico?), que experiência teve de seus semelhantes? O homem foi o único tema de sua reflexão e de seu desprezo. Sem sofrer as falsificações de nenhuma moral nem de nenhuma metafísica, dedicou-se a desnudá-lo para nos mostrá-lo mais despojado e mais abominável do que o fizeram as comédias e os apocalipses.

‘Sócrates enlouquecido’, chamava-o Platão. ‘Sócrates sincero’, é assim que devia tê-lo chamado. Sócrates renunciando ao Bem, às fórmulas e à Cidade, transformado, enfim, unicamente em psicólogo. Mas Sócrates – mesmo sublime – ainda é convencional; permanece sendo mestre, modelo edificante. Só Diógenes não propõe nada; o fundo de sua atitude – e a essência do cinismo – está determinado por um horror testicular do ridículo de ser homem…” (CIORAN, Breviário de Decomposição)

Não é incomum que se associe Diógenes a Schopenhauer: ambos seriam os campeões do pessimismo na história da filosofia. Não faltam evidências de Diógenes como alguém que, de fato, beirava a misantropia, aconselhando boa porte de seus concidadãos a praticarem um benefício ao universo: o de enforcarem-se. O mais estranho de tudo é que também não é incomum que se atribua a Diógenes uma atitude de filantropia, um desejo sincero de melhorar o próximo através de uma espécie de bizarra intervenção médica e psicoterapêutica, que utiliza-se de métodos às vezes estranhos e bizarros – como faz o Mestre Zen do budismo heterodoxo-criativo.

Quanto mais me informo sobre Diógenes, parece-me que ele está longe de ser um niilista, alguém que nega a existência de qualquer valor; o que ele deseja é uma transvaloração dos valores que não deixa de evocar a todo momento a figura de Nietzsche e seu Zaratustra. Uma das evidências mais translúcidas de que Diógenes tinha ideais alternativos, que não era meramente um demolidor das moedas e valores vigentes, mas o propositor de outro mundo possível, de uma vida outra, está em seu cosmopolitismo. 

A própria palavra cosmopolita [kosmopolítes], segundo o professor Luis Navia, possivelmente foi criada por Diógenes, que viveu como praticante deste ideal do  cidadão-do-cosmo, desplugado de qualquer tóxico apego ao nacionalismo ou ao etnocentrismo. Segundo Dión Crisóstomo, Diógenes “passava todo o seu tempo em lugares públicos e nos templos de deuses, e a terra inteira foi sua morada – a terra, isto é, a morada e a fonte de alimentos para todos os seres humanos.” (apud Navia, p. 48) É neste sentido que deve-se interpretar sua decisão de morar em um tonel, nunca demasiado escondido do cosmos, sempre capaz de mudar facilmente seu local de residência, abdicando do espaço privado e cheio de segredos onde vicejam as pragas que são os idiotes (indivíduos que fecham-se no âmbito dos interesses privados estreitos).

Diógenes, ao observar os caracóis que carregavam suas casas nas costas, decidiu imitá-los e viver uma vida com bagagem leve, aberta às aventuras da errância e da movência. Segundo São Jerônimo, “seu lar eram os arcos e os pórticos da cidade, e quando se esgueirava para fora de seu tonel, ria-se do que chamava sua casa móvel, porquanto ela se adaptava às estações; quando o tempo estava frio, podia mover a boca do tonel para o sul e, se quente, para o norte e, assim, para qual fosse a direção em que o sol calhasse de estar, o palácio de Diógenes o encararia.” (p. 49)

Esta residência móvel e adaptável consistia em um grande vaso de cerâmica, que podia ter serventia como lugar de abrigo contra as intempéries do clima, e não era assim tão incomum na época: “tonéis grandes eram usados como morada para pessoas refugiadas ou deslocadas durante a Guerra do Peloponeso” (Navia, p. 49). Diógenes pode ser lido nesta chave: a do exilado, do refugiado, que rejeita todo e qualquer nacionalismo, que recusa-se a ser súdito de qualquer Estado. Quando é expulso de Sínope pelo crime de falsificar moeda, conta-se que disse: “Não são vocês que me condenam a ir embora, sou eu que condeno vocês a ficar!”

Diógenes ficou famoso também por dizer àqueles que o acusavam de ser louco que tinha apenas uma cabeça diferente da deles. Esta diferença existencial, este jeito-de-ser alternativo, fica evidente em seu atitudes em que demonstra imenso desdém por aquilo que as pessoas julgam, iludidas por falsos valores e ideologias, serem as necessidades da vida. Este cidadão do mundo

“se concebia como pertencente a qualquer lugar em que calhasse de estar num momento qualquer, um cidadão de cidade nenhuma, nem ateniense, nem coríntio, nem sinopense, nem tampouco grego, um homem sujeito ao engajamento de país nenhum e rejeitando a simples ideia de nacionalidade – apenas um ser humano. Essa independência vinha, em parte, de sua condição de exilado, forçado a viver em solo estrangeiro, e, em parte, de sua convicção de que as coisas que uma pessoa precisa para sobreviver são bem poucas… O apreço de Diógenes por independência e autossuficiência foi muito bem compreendido por Máximo de Tiro, que nos traçou este retrato dele:

‘o homem despiu-se de todas as coisas desnecessárias, partiu em pedaços os grilhões que dantes lhe haviam aprisionado o espírito e se dedicou a uma erradia vida de liberdade, ao modo de um pássaro, sem medo de tiranos ou governantes, nem constrangido por nenhuma lei humana, nem perturbado por política, livre do estorvo de filhos ou de uma esposa, sem disposição para trabalhar os frutos da terra no campo, rejeitando até mesmo o pensamento de servir o exército e desdenhoso das atividades mercantis que absorvem a maior parte das pessoas.’

A descrição inclui as notáveis características associadas a Diógenes: um completo abandono do supérfluo; um inquebrantável compromisso em rebentar os ferros que, sob a forma de convenções e normas, acorrentam e incapacitam os seres humanos; uma inextinguível sede de liberdade; coragem para desprezar governos e governantes; relutância em servir de peão nas guerras forjadas e manipuladas pelas oligarquias…” (NAVIA, p. 51)

Pode-se ler Diógenes como precursor do anarquismo, com atitudes que evocam uma figura como Max Stirner (1806 – 1856), autor de O Único e Sua Propriedade, debatido de maneira acirrada por Marx e Engels em A Ideologia Alemã. Diógenes também é um emblemático filósofo da práxis que, através de várias anedotas, pôs em questão a luta de classes que o Manifesto Comunista (1848) anunciava com trombetas como aquilo que havia movido a História desde tempos imemoriais.

Cioran rememora anedotas contadas por D. Laércio que tornam Diógenes o autêntico protótipo tanto do Bob Cuspe de Angeli quanto da persona punk espevitada de Johnny Rotten nos Sex Pistols:

“Um dia um homem o fez entrar em uma casa ricamente mobiliada e disse-lhe: ‘Principalmente não cuspa no chão’. Diógenes, que tinha vontade de cuspir, jogou-lhe o cuspe na cara, gritando-lhe que era o único lugar sujo que havia encontrado para poder fazê-lo.” (Diógenes Laércio)

Quem, depois de haver sido recebido por um rico, não lamentou não dispor de oceanos de saliva para derramá-los sobre todos os proprietários da terra? E quem não tornou a engolir seu cuspezinho por medo de lançá-lo na cara de um ladrão respeitado e barrigudo? Somos todos ridiculamente prudentes e tímidos…” (CIORAN, Breviário de Decomposição)

Há quem hoje faça de Diógenes, pois, um inovador crítico de um capitalismo avant la lettre. Diógenes teria tecido uma transgressora denúncia do que viria a ser a sociedade de consumo, repleta de vitrines que ostentam mercadorias supérfluas, desnecessárias, mas que escravizam aqueles que se deixam enfeitiçar pelas iscas da propaganda. Uma civilização, ademais, cada vez mais afogada no lodaçal de seus detritos ecocidas, incapaz de libertar-se de uma doutrina tóxica que detona com a phýsis em nome de um nómos demencial. Nestor Luis Cordero, em seu livro A Invenção da Filosofia, escreve:

“Os cínicos representam fielmente o sentido que teve a filosofia desde suas origens: assentar as bases de um modo de vida. Privilegiando uma didática provocativa, o cínico quer despertar a consciência da massa globalizada vítima de necessidades impostas por falsos valores. O credo cínico proclamava: necessário é aquilo que satisfaz a vida do ser humano; o supérfluo, ao contrário, faz dele um escravo que destrói a natureza e que termina por acabar com os recursos naturais.” (CORDERO)

A mais famosa anedota que serve de emblema para o levante de Diógenes contra as mercadorias supérfluas conta que ele teria lançado fora sua única peça de louça, uma pequena cuia para líquidos, ao testemunhar um garoto que, num riacho, bebia água com as próprias mãos em concha.

“A pobreza voluntária de Diógenes e de vários outros cínicos procurava sempre novos despojamentos possíveis. É uma pobreza que sempre se esforça por alcançar novos limites, até atingir o chão do absolutamente indispensável. Temos sobre esse tema uma série de anedotas, a mais célebre é esta: Diógenes, que tinha como única louça uma cuia, uma tigelinha em que tomava água, vê perto de uma fonte um garotinho que junta as mãos em forma de cuia e bebe nelas. Nesse momento Diógenes joga fora sua cuia, dizendo que é uma riqueza inútil.”MICHEL FOUCAULT, 1984 – A Coragem da Verdade, p. 228

despojamento de Diógenes, vinculado ao valores éticos da frugalidade, da temperança, do auto-controle, serve para pensar sobre figuras políticas e eminências éticas como Mahatma Gandhi ou José Pepe Mujica, além de ser relevante para a análise dos protagonistas de obras da literatura e do cinema, como Into the Wild – Na Natureza Selvagem (livro-reportagem de Krakauer filmado por Sean Penn) e Capitão Fantástico (filme estrelado por Viggo Mortensen). Diógenes e seu estilo-de-vida também faz pensar em certos ensinamentos do guru indiano Krishnamurti, famoso por dizer que “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente.”

Na história da filosofia, Diógenes é normalmente classificado como discípulo de Antístenes de Atenas, que por sua vez foi discípulo de Sócrates. O cinismo, portanto, pode ser considerado como nascido da árvore socrática, constituindo-se como uma espécie de fruto proibido desta, em contraste com o fruto oficial e hegemônico que é o platonismo. Platão acusa Diógenes de ser um “Sócrates ensandecido”, tentando assim denegri-lo, mas Diógenes pode ser visto como alguém que radicaliza o projeto socrático e que contesta as vias errôneas tomadas por Platão com seu idealismo metafísico. 

“Na Academia, depois que Platão chegou a definir o homem como um bípede sem plumas, Diógenes acorreu com uma galinha depenada, bradando: ‘Eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!’ Depois de uma preleção sobre as idéias, disse: ‘A mesa e a taça de vinho eu vejo, Platão, mas tua mesidade e tacidade não vejo de forma alguma!'” (SANTORO, p. 71). Constrangido com a intervenção do antagonista, conta-se que Platão teria melhorado sua definição geral de homem para: um bípede sem plumas, dotado de unhas…

Diógenes rejeita a torre de marfim em que pretende viver o filósofo-acadêmico no sistema de aristocratismo elitista de Platão. Diógenes escolhe o convívio aberto com a diversidade humana e com a alteridade natural, como legítimo cosmopolita e livre-pensador busca fazer de sua existência uma encarnação de seu pensamento e seus valores. Ao invés de esconder-se detrás de um palácio, vive a céu aberto, debaixo de Sol e estrelas, sempre entre-outros. Para os gregos, a pessoa que fechava-se em seu espaço privado e só tinha interesses pessoais era chamada de idiotes, e é esta idiotia que Diógenes rejeita, como Foucault viu tão bem. O cínico faz a escolha de viver diante do olhar dos outros, numa sem-vergonhice extremada, morando simbolicamente numa casa de vidro. Trata-se de uma “vida não dissimulada, fisicamente pública”:

“Diógenes não tem casa, ou seja, o lugar do segredo, do isolamento, da proteção ao olhar dos outros. Ausência até mesmo de roupas: o cínico Diógenes está quase nu. Diógenes escolhe ir com frequência a Corinto, grande cidade em que se podia viver em público e encontrar nas esquinas e nos templos os marinheiros, viajantes, gente vinda de todos os cantos do mundo. É diante desse olhar que Diógenes havia decidido viver… É preciso viver sem ter de se envergonhar do que se faz, viver por conseguinte diante do olhar dos outros e sob a caução da presença destes… A vida cínica pôs pelo ares o código de pudor, é a vida impudica, desavergonhada, libera de todos os princípios convencionais…” – FOUCAULT, 223-224.

Diógenes e Alexandre, por Edwin Henry

Uma das anedotas mais célebres evoca o encontro – ou deveríamos dizer o the clash? – entre Diógenes, o auto-denominado “cão”, e Alexandre, imperador da Macedônia, aluno de Aristóteles, lendário domador do cavalo Bucéfalo. Diógenes, nesta ocasião, demonstrou toda a sua irreverência, impertinência e insubmissão. Primeiro, ao ser acordado a pontapés por Alexandre, retruca que ele pode até ser um conquistador de cidades temível,  mas que no fundo mais se parece com um asno que dá coices:

– A conquista de cidades não pode ser usada contra os reis, mas dar coices como um asno, sim! – disse Diógenes ao ser despertado pelo jovem imperador com um pontapé. (Navia, p. 170)

Conta a lenda, referendada por Plutarco nas Vidas Paralelas (livro Alexandre e César), que este encontro se passou de fato e ocorre em um período histórico em que as cidades-Estado grega perdem sua relativa independência e estão no processo de serem engolfadas pelo império macedônico. Em um belo dia estava Diógenes, dormindo em seu barril, totalmente despreocupado em relação aos seus trajes (ou falta deles), andrajoso e negligente com sua aparência a ponto de ter o visual de um velho mendigo pulguento, quando recebe a visita do super-poderoso imperador Alexandre.

O filho do rei Felipe da Macedônia aparece ricamente paramentado, bem-vestido e bem perfumado, acompanhado pelos soldados de sua guarda pessoal, na pompa e na pose alguém que caminha sobre o mundo na empáfia de quem deseja Império Universal. Segundo Navia,

“sustenta-se frequentemente que a derradeira meta das campanhas de Alexandre incluía a criação de um Estado Universal, que açambarcaria todas as nações e raças sob um governo e minimizaria, se não obliterasse, as distinções de raça ou étnicas. Submeter a espécie humana inteira a um processo de homogeneização (homonóia) era a diretriz que o motivava quando marchou com suas falanges gregas e macedônias através do Egito e da Pérsia até o interior da Índia, e o resultado de sua empresa hercúlea era a emergência do Homem Universal…

Não haveria nem atenienses, nem espartanos, nem egípcios, nem judeus, nem persas, nem indianos, mas apenas seres humanos falando a mesma linguagem e conservando as mesmas leis… Que desígnio colossal e ambicioso! (…) Alexandre em suas campanhas como jovem imperador pilhava cidade após cidade, crucificando e passando no fio da espada tantas miríades de pessoas, firmando desse modo um exemplo para incontáveis governantes, ditadores e políticos de épocas posteriores…” (Navia, p. 181)

O todo-poderosismo de Alexandre, que age na arrogância excessiva de um autêntico genocida, a todo momento rompendo os limites legítimos através de sua hýbris guerreira, não podia de modo algum ser reverenciada ou respeitada por Diógenes. A pompa e a pose de Alexandre é logo reduzido a escombros por Diógenes e seu soberano desdém. Conta-se que, quando o imperador lhe oferece como iscas um cargo político importante, repleto de honras e riquezas, o filósofo-cão teria respondido: tudo o que quero, senhor, é que você saia da frente do meu sol.

Para além da anedota, que é memorável, o encontro destas figuras tão antagônicas mostra Diógenes no papel de outcast outsider, de exilado e refugiado, que utiliza seu cosmopolitismo como arma de resistência contra o avanço do imperialismo alexandrino. Segundo Navia,

“seu cosmopolitismo é, no limite, uma reação negativa ao espetáculo tétrico que via à sua roda: nações em guerra umas com as outras, cidades destruindo cidades, monarquias e oligarquias satisfazendo seus caprichos às expensas das massas, gente comum permitindo-se tapear por ideologias e slogans políticos e nacionalistas, leis criadas e impostas apenas em favor dos poderosos, filósofos e teólogos trançando, a partir de suas cabeças perturbadas e perturbadoras, teias de especulação e fantasia arquitetadas para entorpecer e mistificar as massas, geralmente vivendo de acordo com as demandas de seus desejos ou paixões: em uma palavra, a atmosfera manicomial que em toda parte discernia.” (Navia, p. 187)

Há algo de similar na atitude de Sócrates, talvez: sua agressão constante contra os sofistas estava baseada numa convicção de que eles eram nada menos do que agentes da demagogia, ou seja, vendiam as técnicas retóricas capazes de fazer com que certos discursos falsos ganhassem poder de convencimento na ágora; Sócrates não quis ser, em Atenas, ser uma figura pública como um Sólon ou um Péricles. Porém, não se trata, nem no caso de Sócrates, nem naquele de Diógenes, de uma recusa completa da política, mas sim de modos diferentes de agir politicamente.

Sócrates não quer escrever livros complexos e ser lido apenas pela minoria minúscula de aristocratas letrados; pelo contrário, Sócrates é um filósofo da fala, um tagarela incansável, um questionador oral, agindo na cidade como a também lendária “mosca” que irrita os cidadãos, picando-os com o ferrão de sua crítica e assim acordando-os para a tarefa mais importante da vida: o cuidado de si, compreendido como indissoluvelmente ligado a uma ética ascética, onde a busca da verdade e a prática das virtudes devem ter primazia sobre a ânsia de ir atrás dos objetos de nossos desejos carnais.

Decerto que há como ingrediente essencial, na arte-de-viver como a compreendem Sócrates e Diógenes, a ascese [askesis], compreendida como um exercício-sobre-si que envolve também uma auto-vigilância constante. A ascese de Diógenes, porém, não repete ou imita a socrática. Diógenes abre os caminhos que depois serão seguidos por filósofos estóicos, como Zenon, Epiteto ou Sêneca. Mas também é visto como precursor de um certo modus vivendi comum a revolucionários e livre-pensadores como Henry David Thoreau (1817-1872), autor de Walden A Desobediência Civil. 

Por sua proverbial capacidade de lidar com o infortúnio de um modo criativo e contestatório, exuberante em sua audácia de cão que late verdades inconvenientes aos poderosos e abastados do mundo, “Diógenes tem sido visto como o precursor do espírito revolucionário que mais de 2.000 anos depois teria ocasionado o levante e a revolução do proletariado no mundo ocidental”, como explora Luis Navia:

“Tem sido sugerido que, como um Espártaco da filosofia (o gladiador trácio que conduziu, em 73 a.C., um exército de escravos contra o poderio militar romano), também Diógenes ergueu a bandeira da revolta em favor das multidões escamoteadas e privadas de seus direitos – escravos, estrangeiros, bastardos, homens pobres -, que constituíam a maior parte da população do período clássico. Não com as espadas e os escudos do exército de Espártaco, mas com palavras condenatórias e bufonarias chocantes (“o Exército do Cão”, como chamou Luciano o séquito de Diógenes), lutou contra a injustiça e a crueldade das oligarquias governantes… Desse ponto de vista, a ideologia e as preocupações de Diógenes têm sido interpretadas como a antecipação da ideologia e das preocupações do comunismo moderno. Diógenes, um proscrito desafortunado, viu-se lançado em meio ao tumulto da vida ateniense, em que as restrições e limitações impostas pela lei e pelas convenções eram designadas para manter excêntricos e pobres à margem da sociedade…” (NAVIA, p. 117)

Pensador outsider, Diógenes seria um daqueles merecedor de figurar nas galerias de O Homem Revoltado, de Albert Camus, como alguém que denunciou sem cessar tudo o que julgava errôneo, ilusório e nefasto no comportamento daqueles com quem convivia. Usando às vezes de uma retórica exacerbada, agressiva, repleta de teatralidade, fez de seu próprio corpo o quadro-negro onde visava ensinar, através de comportamentos destinados à condição de emblemas, o que significa viver às claras, com o máximo de clarividência e lucidez, sem um pingo de subserviência aos abastados e poderosos Alexandrasnos deste mundo.

Após termos sido ensinados, por Hannah Arendt e seu conceito de banalidade do mal, por Stanley Milgram e suas pesquisas empíricas sobre a psicologia da obediência à autoridade, por Theodor Adorno e seus alertas para a construção de uma educação após Auschwitz, podemos voltar a Diógenes para re-aprender com ele o valor ético da desobediência lúcida aos ditames e imposições de indignas e criminosas autoridades políticas, civis, religiosas etc.

Este filósofo-cão, ladrando e mordendo contra um mundo que lhe parece um imenso manicômio gerido por idiotas e sacripantas, é essencial a todos os séculos, como sugeriu o iluminista francês D’Alembert: “Todo século precisa da figura de um Diógenes”. A lendária lanterna, com a qual Diógenes ia em busca de um ser humano de verdade sem nunca encontrá-lo, talvez não esteja tão longe assim da Luz com que forjou seus ideais o Iluminismo…

Os estudos atualmente disponíveis sobre Diógenes e sobre o cinismo clássico não nos permitem mais menosprezar a importância destes pensadores para a história da filosofia, em especial no que tange às artes-de-viver de que Foucault tanto falou. Segundo Navia,

Michel Foucault

“o retorno de Foucault a Diógenes manifesta a necessidade dos que por si atingiram um certo grau de lucidez intelectual, que têm fome de honestidade existencial a ponto de ressuscitarem o homem que insistia em chamar as coisas por seu nome correto e que praticou de modo tão inabalável a arte de dizer tudo, a qual recebeu o nome de parrhesía, um conceito fundamental para o cinismo… Afinal de contas, em Diógenes, teoria e prática estavam intimamente imbricadas e eram quase indissociáveis.” (Navia, p. 155)

Em Diógenes, deparamos não com um demônio irracional que em seu niilismo deseja demolir todos os valores e ideais, mas, pelo contrário, estamos diante de alguém que inova no debate sobre a felicidade, a eudaimonia, sugerindo caminhos diferentes daqueles procurados tanto pela turbulenta massa popular quanto pelos abastados tiranos, ambos vítimas da hýbris. Segundo Sêneca, o ethos de despojamento e de pobreza voluntária de Diógenes estava sim vinculado a uma sabedoria efetiva: “É preciso considerar quão menos doloroso é não ter nada a perder e é preciso compreender que o pobre terá menos a sofrer se tiver menos a perder.” (SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma, 8)

Atribui-se a Diógenes também a noção de que a liberdade significa “não ter mais nada a perder”, o que tem tudo a ver com aquele hino da Geração Hippie, composto por K. Kristofferson e que ganhou expressão sublime na voz de Janis Joplin, onde ouve-se que “freedom’s just a word for nothing left to lose”. As expressões da sabedoria de Diógenes na música também incluem figuras como Tom Zé (“quem perde o telhado, em troca ganha as estrelas” é um verso que poderia ter sido cantado pelo filósofo de Sínope) e John Lennon (famoso por dizer que “vivemos em um mundo onde as pessoas se escondem para fazer amor, enquanto a guerra e a violência são cometidas explicitamente in broad daylight”).

“We live in a world where we have to hide to make love, while violence is practiced in broad daylight.” ― John Lennon

Brincando de tecer um discurso como se fosse o próprio Diógenes, Luis Navia oferece uma súmula das atitudes e convicções do filósofo que, com sua vida transformada em obra pública e aberta ao debate infindável, teria sido como um cantor que, no coro trágico, entoa a nota mais alta possível, convidando o resto do coro a afinar-se segundo seu modelo:

Estátua em Sínope

“Olhai-me, seus tolos e salafrários, sou um homem que parece ter abandonado a natureza humana e a capacidade de raciocinar e que, a propósito, parece ter-se tornado um cão. O que pensais de mim agora? Vós, que afirmais serdes humanos, sois piores que bichos, já que também vós abandonastes vossa natureza humana, mas de uma maneira muito mais formidável e real do que eu. Vós permitistes que vossas mentes se tornassem atrofiadas e debilitadas pelo fumo produzido em vossa diligência em serdes algo que, por natureza, não sois. Eu vos observei por muitos anos, dia após dia, e tenho sido testemunha de vossas depravações, enganos, idiotices e falta de juízo.  Vi como cada um de vós  cuida em obter vantagens uns dos outros e o quanto estais escravizados por vossos desejos e apetites antinaturais. Vi como vossos monarcas e governos usam e abusam do povo e como isso que chamais de Estado funciona apenas em favor dos ricos e poderosos.

Contemplei o triste espetáculo de vosso acúmulo de bens e vossa cobiça de fama, como se essas coisas vos adicionassem ao menos um mínimo de dignidade humana. A natureza vos deu um par de pés que bem podeis proteger com um par de sandálias, porém, ainda assim, alguns dentre vós pareceis não estar felizes sem seus próprios três mil pares de sapatos. Com efeito, que tristeza! Em vão busquei entre vós um ser humano, um ser humano de verdade, mas encontrei apenas patifes e salafrários… Por tudo isso, não mais vos falo, lato.

Talvez, pensei, chocando-vos com minha sem-vergonhice, enxovalhando de lama o capacho dos opulentos e pretensiosos, convertendo-me a mim mesmo em um clown intolerável que se autodenomina cão e está sempre disposto a tudo dizer, possais vós, enfim, verdes em que vos tornastes, a saber, lamentáveis negações do que a natureza vos destinara a ser. Por isso, também, vive em meio a vós como uma refutação ambulante de praticamente tudo quanto sois… Agindo como o líder de um coro, entoei a nota tão alta quanto possível, esperando que, eventualmente, alguns dentre vós pudesse atingir a nota correta, já que tenho me agarrado à convicção de que não sois nenhuma matéria assim tão estúpida e opaca…” (Navia, p. 170 – 171)

Se Foucault fascina-se tanto com Diógenes, é pois ele encarna à perfeição o que significa a parrhésia, a coragem da verdade. O filósofo, assim, emerge como alguém cujo estilo-de-vida manifesta sua convicção de que, no âmbito das artes-de-viver, há valor e mérito, há virtude e excelência, há potência e felicidade, na atitude daquele que busca a expressão de tudo “sem ambiguidades, sem eufemismos, sem significados ocultos, sem nuances de linguagem enganadoras e, sobretudo, sem a intenção de velar linguisticamente o jeito de as coisas serem”. A própria palavra parrhésia é composta por pas, que significa tudo, rhêsis, que significa fala ou expressão. “Como afirmou certa feita um cínico, pela parrhésia vomitamos a verdade…” (Navia, p. 209)

É bastante significativo que Foucault, nos derradeiros momentos de sua existência, já no processo de ser vencido pelo vírus HIV, tenha se devotado tanto a Diógenes. Como posfácio ao livro A Coragem da Verdade, Frédéric Gros, professor de filosofia política na universidade de Paris, escreveu que, para Foucault, o fascínio de Diógenes estava no escândalo de uma verdadeira vida, de uma vida outra, “em posição de ruptura com todas as formas habituais de existência”, uma “vida inquietante, uma vida outra, imediatamente rejeitada, marginalizada”:

“A ascese pela qual o cínico força sua vida à exposição permanente, ao despojamento radical, à animalidade selvagem e à soberania ilimitada não tem vocação a simplesmente garantir uma tranquilidade interior que constitui um fim em si, ao mesmo tempo que permanece edificante. O cínico se esforça para a verdadeira vida a fim de provocar os outros a ouvir que se enganam, se extraviam, e de detonar a hipocrisia dos valores recebidos. Por essa irrupção dissonante da verdadeira vida no meio do concerto das mentiras e das falsas aparências, das injustiças aceitas e das iniquidades dissimuladas, o cínico faz surgir o horizonte de um ‘mundo outro’, cujo advento suporia a transformação do mundo presente. Essa crítica, supondo um trabalho contínuo sobre si e uma intimação insistente dos outros, deve ser interpretada como uma tarefa política. E essa ‘militância filosófica’, como Foucault a chamou, constitui inclusive a mais nobre e mais elevada das políticas.” (GROS, p. 311 – 312)

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Professor de Filosofia do IFG – Câmpus Anápolis
Escrito em Goiânia, Julho de 2017
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BIBLIOGRAFIA

CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. 

CORDERO, Nestor Luis. A Invenção da Filosofia. São Paulo: Odysseus.

GROS, Frederich. Posfácio à A Coragem da Verdade de Foucault.

LAÉRCIO, Diógenes. Vida Dos Filósofos Ilustres. 

FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade (Curso no Collège de France, 1984). São Paulo, Martins Fontes.

NAVIA, Luis E. Diógenes, O Cínico. São Paulo: Odysseus, 2009.

SANTORO, Fernado. Arqueologia dos Prazeres. 

SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma.

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A SABEDORIA NO PODER: O caso Pepe Mujica e a expansão dos horizontes da política possível

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

A vida extraordinária de José “Pepe” Mujica é garantia que ele, ao deixar pra trás a vida, será um daqueles mortais que não só entrará para a História, mas será transmutado em mito? Quem viver, verá.

O ex-presidente uruguaio, uma das figuras mais notáveis e excêntricas na geopolítica desta década (2010s), marcou época com sua governança que ousou avançar transformações pertinentes em áreas-tabu: a legalização do aborto, a união civil de casais homo-afetivos, a regulamentação da maconha, dentre outras medidas.

A mídia, sempre à caça de manchetes bombásticas, chegou a descrevê-lo como “o presidente mais pobre do mundo”, rótulo que ele recusa: Mujica destaca sempre que não é pobre, mas sim sóbrio, humilde, moderado. Alguém que pratica o desapego em relação a tudo que é supérfluo, inessencial, pois sabe que não é na posse de coisas ou de símbolos de status que reside a autêntica liberdade.

Confrontando o consumismo e a ostentação, Mujica pratica e apregoa um estilo de vida frugal, sóbrio, sem luxos, evocando a ética estóica de Sêneca: “Pobres são os que me descrevem”, disparou em entrevista à Al Jazeera em 2013, declarando-se rico no “ouro de dentro” (para evocar uma expressão da poetisa Hilda Hilst):

“minha definição é a de Sêneca: pobres são os que necessitam de muito; se você precisa de muita coisa, é insaciável. Eu sou sóbrio, não pobre. Com a bagagem leve. Viver com pouco, com o imprescindível. E não estar muito amarrado a questões materiais. Por quê? Para ter mais tempo livre… A liberdade é ter tempo para viver.” (MUJICA. Via Rabufetti, A Revolução Tranquila, Leya, 2014, p. 43)

Descreve-se um cidadão de classe média, um uruguaio comum, sem empregados domésticos, que não viu motivos para mudar-se para uma torre de marfim ao ser eleito presidente da república: recusou-se a morar na suntuosidade do palácio presidencial pois, afinal, não precisava de tanta mordomia… Preferiu prosseguir morando, entre flores e árvores, com sua esposa ex-guerrilheira e seus cães queridos, em um sítio bucólico na periferia rural de Montevideo. Para se locomover até o trabalho, não precisava de helicóptero nem caranga blindada – podia dirigir seu Fusquinha 78…

Recusando o terno-e-gravata que muitos consideram como vestuário sine qua non para chefes-de-Estado e seus séquitos, sempre tão engomadinhos, Mujica é uma figura que chuta o balde da ortodoxia: foi visto em reuniões importantes vestindo sandálias e  camisas confortáveis que se esperaria de um velho senhor que estivesse indo caminhar à beira da praia. É uma pessoa de “impressionante aspecto desleixado”, como o caracterizou o jornalista Jonathan Watts, em artigo para o The Guardian, onde Mujica foi comparado como “um velho hobbit saindo de sua toca” (p. 47).

Mujica explica seu modus vivendi, suas escolhas de vestuário e de gestos, como conectadas intimamente à sua visão crítica e contestadora do que hoje é hegemônico na vida política do ocidente:

“Perdemos a confiança de nossos povos, que não nos entendem por causa de nossos gestos, às vezes inúteis, porque também pertencemos a uma cultura invasora, agressiva; temos que nos vestir como gentlemen ingleses porque esse é o traje da industrialização que se impôs no mundo, e até os japoneses tiveram que abandonar seus quimonos para ter prestígio no mundo; tivemos que nos disfarçar todos de macacos com gravata”, disparou, em Cuba, em Janeiro de 2014, durante a II Cúpula Presidencial da CELAC (Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe) (p. 47).

Outra imagem circulou o mundo, estampou capas de jornais e revistas em vários continentes, gerou tirinhas e memes: o excêntrico presidente do Uruguai locomovia-se dentro de um Fusca, azul-celeste, ano 1987, recusando qualquer limusine blindada e com vidros-fumê, dentro da qual costumam defender-se os chefes-de-Estado.

Mujica em seu Fuscão é um símbolo de que é possível pensar a política institucional, o sistema democrático de representação, a conexão entre a filosofia e a governança, dentre outros temas, expandindo os atuais horizontes do possível.  Assim como seu conterrâneo Eduardo Galeano, José Mujica ajuda-nos enxergar além dos limites confinantes em que tantos poderes semi-cegos e pseudo-democráticos pretendem confinar-nos, mantendo-nos prisioneiros da estreiteza da doutrina hoje hegemônica: o neo-liberalismo individualista, competitivista, excludente, segregacionista e ecocida que Naomi Klein batizou de A Doutrina do Choque (The Shock Doctrine) e que auscultou e criticou no livro homônimo, neo-clássico da literatura política deste século.

Onde já se ouviu falar de um presidente que doava 87% dos seus rendimentos como presidente? Cristão em ética mas sem fé, campeão da generosidade atéia, Mujica punha, todos os meses, quase 90% de seu polpudo salário presidencial em causas que acreditava, como o programa habitacional Juntos, análogo ao Minha Casa Minha Vida brasileiro. Não é raro um exemplo destes em uma era de políticos-empresários, frequentemente de ímpetos elitistas e fascistas (de Donald Trump a João Dória), que parecem abocanhar todas as chances que encontram, as lícitas e ilícitas, para faturarem um enriquecimento pessoal sempre insaciável?

Em seu texto Um Líder Necessário, prefácio ao edição brasileira do livro A Revolução Tranquila de Rabuffetti, Ricardo Boechat pontua que

“para os brasileiros, como para a quase totalidade dos povos, conhecer Mujica permite constatar o quanto estamos submetidos a deformações de poder que transformaram nossos governantes em semi-deuses perdulários e insinceros, cercados de aparatos e ostentação, como se estivessem em outra esfera humana, cumprindo (?) missões além de nossa compreensão. Brasília, com seus palácios e séquitos majestosos, jatos e mansões oficiais, dá a dolorosa visão dessa realidade, que a comparação com o estoico vizinho torna ainda mais ridícula e anacrônica. A lista de condutas que diferencia Mujica dos demais governantes é mais do que uma questão de temperamento, de estilo; Trata-se de escolha política e didática. Fosse outro seu comportamento e a mística seria pó.” (p. 11)

Hoje, alçado a ícone político de fama planetária, objeto de vários livros e centenas de reportagens, Mujica é uma ovelha negra no establishment político e tem também o mérito de recolocar em pauta a questão das relações entre sabedoria e poder. Sua abnegação pessoal não parece conectada com nenhum tipo de doutrina ascética auto-mortificante, mas sim vinculada ao seu louvor às práticas sociais “cooperativistas” (pgs. 50) e seu culto à uma sábia simplicidade, também encontrável nas atitudes do argentino Jorge Bergoglio, vulto Papa Francisco, aquele que ousou colocar a ecologia na crista da onda das preocupações da Cristandade (p. 53)

Há algo de profundamente socrático nesta sabedoria que ele manifesta: Mujica é uma das provas vivas da pertinência de um ethos que põe a virtude da moderação, da temperança, da justa medida – aquilo que os gregos chamavam de sophrosyne e opunham ao excesso precipitador de catástrofes da hýbris – em posição de valor fundamental, imprescindível, sem o qual o convívio social degringola em toda uma série de tenebrosas injustiças, desigualdades e violências. O “nada em demasia” que o Templo de Apolo em Delfos trazia entre suas inscrições poderia estar agora escrito em Montevidéu toda, por efeito da Mujicamania.

Da boca de Mujica flui o mel da filosofia como unidade indissolúvel entre visão-de-mundo e comportamento prático. Algo em seu ethos remete ao célebre desleixo do filósofo Diógenes, o cínico, com a diferença de que este jamais quis assumir nenhum cargo político, recusando qualquer oferta do imperador Alexandre (“só quero que saias da frente do meu Sol”). Muitas de suas atitudes também remetem aos ideais de Henry David Thoreau, o autor de A Desobediência Civil: o sítio de Mujica em Rincón Del Cerro seria o equivalente latino-americano de Walden.

Porém, Mujica não recusa a política institucional, como Diógenes e Thoreau, mas buscou agir, em seus anos como presidente, como figura de inspiração para outros mundos possíveis. Frisando os valores da frugalidade, da pobreza voluntária, foi na esteira de Sócrates e Gandhi. Mas também propôs algo análogo ao radicalismo cyber-punk dos Space Monkeys chefiados por Tyler Durden em Fight Club (romance de Palahniuk, adaptado ao cinema por David Fincher) ou às condutas de Christopher McCandless, vulgo Alexander Supertramp, na estória real que inspirou Into The Wild – Na Natureza Selvagem, livro-reportagem de Kracauer filmado por Sean Penn.

Alguém que, como eu, contesta e recusa muitos dos elementos da sociedade ideal proposta por Sócrates através dos diálogos d’A República, não quer por isso lançar totalmente à lata de lixo da História a noção de que o governante, a autoridade política soberana, o gestor público, o profissional de cargo estatal, deve sim, preferencialmente, ser dotado de uma certa sophia. Resta defini-la em outros termos que não as do “filósofo-rei” da fantasia platônica, tão perigosamente próxima de uma monarquia de puritanismo idealista, imposta de maneira totalitária e proto-fascista, como ocorre sob a pena teológico-política de Platão.

Mujica não é nem remotamente parecido ao “filósofo-rei”, mas foi certamente o mais próximo que tivemos nos últimos tempos de um “presidente-filósofo”. Muitos de seus ensinamentos parecem-me bem próximos, por exemplo, ao que enuncia Hans Jonas em O Princípio Responsabilidade, um dos mais pertinentes livros de filosofia das últimas décadas; presente à Rio +20, duas décadas após a Eco 1992, Mujica defenestrou o fracasso geral em construirmos uma civilização que respeite os limites da Natureza e que não acarrete devastações sócio-ambientais como seus necessários acompanhantes. Disse que “a civilização do use e jogue fora” constitui círculos viciosos que lançam a humanidade a um clima de contagem regressiva para o descontrole catastrófico do clima e para a hecatombe ecológica cada vez mais plausível (com os EUA, maior poluidor do planeta, pulando fora dos Acordos de Paris, como fez outrora com o Protocolo de Kyoto…).

Os ideais e condutas de Pepe Mujica aproximam-no de movimentos como o Occupy Wall Street, de iniciativas midiáticas como o Adbusters, do pensamento de Stéphane Hessel e seu manifesto Indignai-vos! (2010), uma das inspirações para a emergência d’Os Indignados na Espanha…  Já no âmbito das lutas globais pela legalização da maconha e pelo fim da Guerra às Drogas movida à intolerância proibicionista contra o cânhamo e a cannabis, Mujica tornou-se também um símbolo, quase um rock ou reaggae star entre os maconheiros, assim representado pelo cartunista Carlos Latuff:

Ousando encarar o desafio de confrontar a política de drogas proibicionista, de encarceramento em massa e de alta brutalidade policial-carcerária, Mujica “enfrentou sua própria guerra ao propor uma regulação do mercado da maconha que estava muito além de qualquer outra medida aplicada no planeta, já que envolvia o Estado como fiador da produção e distribuição da erva. (…) Mujica levou o projeto de lei ao Parlamento e conseguiu a aprovação da regulamentação da maconha em dezembro de 2013. O Uruguai, mais uma vez, foi pioneiro…

A lei uruguaia sobre a cannabis é a única no mundo que outorga ao Estado o poder de controlar a distribuição da maconha entre os consumidores. De fato, de acordo com a iniciativa, quem quer consumir a droga terá dois caminhos de acesso legal, isto é, sem passar por um traficante. A primeira opção é se registrar como consumidor e comprar nas farmácias uma quantidade limitada, por mês, de no máximo 40 gramas por pessoa. No total, cada usuário está autorizado a adquirir 480 gramas por ano. A segunda possibilidade é obter a maconha a partir do plantio doméstico de, no máximo, 6 plantas por residência. Também é permitido o cultivo de forma cooperativa em ‘clubes canábicos’ ou clubes de cultivadores.” (RABUFFETTI, p. 161, 167)

“Uruguay President Jose Mujica’s face illustrates a T-shirt supporting his new law legalizing marijuana.” 

Em uma entrevista à TV pública holandesa, em 2014, Mujica explicou sua visão sobre a lei cannábica e seus benefícios sociais: “o narcotráfico é muito pior que o vício da droga, porque o vício destrói as pessoas, mas o narcotráfico destrói ética e moralmente as sociedades, começando pelos aparatos de controle do Estado. Está cada vez pior. E então? Vamos continuar fazendo a mesma coisas quando há cem anos estão nos mostrando que a repressão não leva a lugar algum?” (p. 168)

A repressão truculenta da Guerra às Drogas, ademais, desrespeita os direitos de usuários medicinais e auto-cultivadores uruguaios, que antes da lei corriam o risco de ir para a cadeia simplesmente pois tinham alguns pés da planta em seus jardins (vide caso Juan Vaz, em 2007-2008). Estima-se em mais de 300.000 o número de usuários de maconha no Uruguai e a lei de Regulação do Mercado cannábico chegou como um “experimento de vanguarda no mundo inteiro”; como disse Mujica, “o Uruguai tenta experimentar em favor do mundo, sem ofender ninguém” (p. 169).

Certamente, Mujica enfrentou muita oposição conservadora ao propor esta transformação na legislação – ela “deixou de cabelo em pé alguns partidários da luta armada contra o narcotráfico e revoltou os burocratas da Junta Internacional de Fiscalização de Narcóticos da ONU” (p. 52) – porém também foi muito louvado por sua coragem de inovar. A revista Time, em abril de 2014, incluiu Mujica em sua lista anual de 100 personalidades mais influentes no mundo. Além disso, Mujica foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, e um grupo de professores de direito penal na Alemanha defenderam-no em texto que aclamada a revolução cannábica proposta pelo presidente:

“Esta é uma insólita, porém valente e enérgica estratégia. É provável que constitua um novo paradigma na política de segurança e saúde pública, especialmente em uma região do mundo que sofre devastadores efeitos colaterais da proibição das drogas, incluindo milhares de homicídios e sequestros violentos, bem como a destruição e contaminação de amplas áreas de vegetação”, destacava a carta, em uma clara alusão às fumigações de vastas extensões de selva na Colômbia para eliminar plantações de coca no contexto do Plano Colômbia… “O enfoque do senhor Mujica está voltado a ajudar os governos a romper com o círculo vicioso da violência, da corrupção e da repressão desproporcional que se associa com as formas tradicionais da proibição”, acrescentaram.” (p. 169)


Outra fator extraordinário da jornada existencial de Mujical está no passado guerrilheiro do futuro presidente: ele participou do enfrentamento contra o governo uruguaio nos anos 1960 e 1970, atuando como guerrilheiro da Frente de Libertação Nacional – Tupamaro; chegou a ser baleado 6 vezes em um confronto com a polícia, tendo sobrevivido miraculosamente ao revólver inteiro que nele descarregaram.

Foi preso político, vítima de torturas indizíveis e longos confinamentos, por mais de 14 anos. A exemplo de Nelson Mandela, na África do Sul, ou Dilma Rousseff, no Brasil, foi uma figura que foi parar na presidência da república após ter sido encarnação do “inimigo público” na perspectiva dos respectivos regimes autoritários.

Os Tupamaros – assim chamados pois consideravam-se “nativos que enfrentam os europeus”, como fez o líder legendário dos incas peruanos, Tupác Amaru (p. 80) – são fruto de uma época em que a luta anti-imperialista era fortíssima, seja pelo impacto na América Latina da Revolução Cubana de 1959, seja pelas contestações latino-americanas aos regimes militares por aqui instaurados, seja pelas lutas de libertação que vários países da África realizavam contra as metrópoles européias que seguiam com sua opressão no pós-2ª Guerra Mundial. O próprio Mujica esteve em Havana, em 1960, ano I da Revolução liderada por Fidel Castro, Che Guevara e os companheiros de Sierra Maestra, e pôde inspirar-se direto na “fonte”…

É pertinente sublinhar que os Tupamaros entraram em confronto armado com um governo que havia sido eleito – a ditadura militar uruguaia só começa em 1973 e, na época deste golpe de Estado, os Tupamaros já estavam derrotados, muitos deles assassinados, presos ou exilados. Os Tupamaros consideravam-se “a vanguarda armada do povo descontente” (p. 89) e realizavam ações “à la Robin Hood”, além de sequestros e até mesmo assassinatos (vide caso Mitrione, da USAID, morto em 1970 – p. 90).

Mujica tem uma vida fascinante, em que transmutou-se e metamorfoseou-se, foi de guerrilheiro a presidente, das armas às urnas. E nunca recusou-se a fazer a auto-crítica e a auto-contestação de sua participação na guerrilha Tupamaro, dos erros ali cometidos, das práticas injustificáveis – ou que talvez só se justifiquem caso algum aprendizado possa delas derivar.

Que ele tenha sobrevivido às 6 balas e aos anos de prisão, saindo do cárcere com sua lucidez aparentemente intacta, é estarrecedor. Quem de nós suportaria experiências tão duras como as que Mujica viveu na cadeia, e ainda seria capaz de emergir de tão trevosas vivências com tamanha sabedoria prática? Talvez possamos dizer que, detrás das grades, nunca puderam aprisionar seu espírito. Que ali, enjaulado como um bicho selvagem por seus adversários políticos, ele forjou sua fortaleza filosófica, seu caráter ético, para re-emergir com uma mensagem que cativaria seu país e o levaria à presidência em 2010.

Brecht chegou a afirmar: “tristes os povos que necessitam de heróis!” Talvez possamos dizer que não podemos, no entanto, nestes tempos sombrios que ainda são os nossos, prescindir de heroicizar aqueles que, com sua vida-exemplo, ampliam para nós os horizontes do possível.  E que nos convidam, pra começo de conversa, a botar pra correr da política aqueles plutocratas que hoje a dominam. Pois, como gosta de dizer Mujica, aqueles que são junkies da plata, devem ficar bem longe da política, pois esta deve ser o esforço coletivo em prol da governança sábia do espaço comum, não o palco grotesco onde elites parasitárias cultuam o próprio Umbigo sob a forma do Deus Mercado.


SIGA VIAGEM:

ONU 2013

RIO +20

Fumando Maconha Com O Presidente Do Uruguai (legendado) – VICE entrevista José Mujica

Canal Livre – TV Bandeirantes (Apresentador: Ricardo Boechat)


TODAS AS CITAÇÕES DO ARTIGO PROVÊM DE:
RABUFFETTI. A Revolução Tranquila. Ed. Leya, 2014.
Compre na Livraria A Casa de Vidro

SINOPSE – VIA LEYAMujica – A revolução tranquila é um retrato moderno e humano do presidente uruguaio, que parte de sua fama mundial para explorar a extraordinária vida de um personagem que gera polêmica em seu país ao mesmo tempo em que é aclamado pelo mundo. O livro de Mauricio Rabuffetti é um retrato profundo, dinâmico e revelador sobre um líder político que tem marcado o seu tempo histórico e tornou-se uma figura analisada em âmbito mundial. As chaves para a sua popularidade, as razões para algumas de suas decisões mais comentadas e explicações para seus fracassos aparecem em uma narrativa vertiginosa que descreve em detalhes esse líder intransigente que cultua um estilo de vida simples. O livro aborda questões, tais como: Como esse líder foi forjado? Por que esse homem desperta tantas paixões? O que o fez encarar a morte e trilhar um caminho de espinhos e armas em direção à paz? Como a lei de liberação da maconha foi concebida? Qual foi seu real envolvimento no processo de paz na Colômbia e no relaxamento do embargo sobre Cuba? E, mais importante: Qual será o legado do presidente mais popular do planeta?

 

QUARTETO VITAL: Em “Vida”, Paulo Leminski (1944-1989) traça retratos de Cruz e Souza, Bashô, Jesus & Trótski

Leminski em Ilustração de Rafael Sica

Leminski em Ilustração de Rafael Sica

I) GRAFAR A VIDA DE GUIAS DE LUZ E DE LUTA

VidaCom seu ciclo de 4 biografias, Paulo Leminski (1944-1989) pretendeu retratar “quatro modos de como a vida pode se manifestar: a vida de um grande poeta negro de Santa Catarina, simbolista, que se chamou Cruz e Souza; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se dedicar apenas à poesia e é considerado o pai do haikai; Jesus, profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva 2.000 anos depois; Trótski, o político, o militar, o ideólogo, que ao lado de Lênin realizou a grande Revolução Russa, a maior de todas as revoluções, porque transformou profundamente a sociedade dos homens.” (p. 10)

Segundo Alice Ruiz, que foi casada com Leminski de 1968 até a morte dele e com quem teve 3 filhos, comenta sobre os 4 biografados: “guias de luz e de luta, esses heróis nos fazem lembrar de nossos próprios heróis, aqueles lá no fundo da memória, que, de alguma forma, determinam e orientam nossos próprios sonhos. (…) Esses mortos precoces, dois por assassinato e dois por precariedade, foram seus heróis por excelência. (…) [E] Paulo Leminski soube, a exemplo de seus biografados, sobreviver à própria vida.” (RUIZ, Alice. P. 11-14)

Paulo Leminski e Alice Ruiz, em 1980

Paulo Leminski e Alice Ruiz em 1980

O livro Vida, lançado em 2013 pela Companhia das Letras, oferece-nos a chance rara de conhecer um dos mais brilhantes escritores brasileiros do século 20 no processo de celebrar seus heróis. Mas não são de modo algum biografias que pretendam ser lineares, ir “passo a passo e dia a dia / exumando o passado”, mas sim obras que pretendem, nas palavras de Domingos Pellegrini, “revelar vidas lapidadas / pela visão de um poeta.” (PELLEGRINI, P. 9)

Há poetas, pondera Leminski, que são “heróis de guerras e batalhas interiores, invisíveis a olho nu. Tem outros, porém, cuja vida é, por si só, um signo. O desenho de sua vida constitui, de certa forma, um poema. Por sua singularidade. Originalidade. Surpresa. Um Camões. Um Rimbaud. Um Ezra Pound. Um Maiakóvski. Um Oswald de Andrade.” (p. 21)

Talvez o próprio “polaco loco paca” tenha intentado transformar sua própria existência em poema ao arriscar-se em tão múltiplas atividades e mestiçagens: filho de mãe negra com pai polaco, Leminski foi faixa-preta de judô, mestre zen-budista nos trópicos, estudioso da Revolução Russa e do trotskismo, compositor de canções populares, além é claro de poeta dos mais talentosos do século 20 na América Latina. Parece-me que Leminski entendia o ser-poeta como uma Foucaultiana estilização da existência, exercício ético que exerceu com rara maestria, consagrando-se como figura inesquecível na história da (contra)cultura brasileira.

II. UM GÊNIO NASCE NA SENZALA

Filosofando sobre a negritude no Brasil, Leminski entoa seus evoés a gênios da literatura (Machado de Assis), da música (Gilberto Gil) e do esporte (Pelé), inserindo neste time seleto “nosso mais fundo e intenso poeta”, Cruz e Souza. Se este poeta interessa tanto a Leminski, é também pela radicalidade de seu destino paradoxal, pela intensidade das contradições e anomalias manifestas nesta vida-poema:

O ASSINALADO

Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma desventura extrema;
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco!

Cruz e Sousa

Cruz e Souza

A senzala e a casa grande mesclam-se no espírito de Cruz e Souza, conduzindo-o a viver um fado excepcional. “Negro retinto, filho de escravos do Brasil imperial, mas nutrido de toda a mais aguda cultura internacional de sua época, lida no original” (p. 21), Cruz e Souza foi uma “anomalia sociocultural no Brasil escravocrata do Segundo Império” – e Leminski sabe bem: “exceção, desvio, aí temos a matéria-prima para um poeta. Afinal, que é poesia senão discurso-desvio, mensagem-surpresa, que, essencialmente, contraria os trâmites legais da expressão numa dada sociedade?” (p. 29)

Se tivesse nascido nos EUA, Cruz e Souza talvez tivesse ajudado seus comparsas de sofrimento a inventar o blues, este “sentimento que produziu uma das modalidades musicais mais poderosas do século” (“basta dizer que todo o rock and roll deriva, diretamente, do blues e suas variantes, traduzidas para um repertório branco e comercializadas: Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones”). Nascido escravo no Brasil colonial, Cruz e Souza, quase um blueseiro brasileiro, entendia de banzo, este “sentimento historicamente situado dos negros brasileiros, submetidos ao estatuto da escravidão. Quando um negro ‘banzava’, ele parava de trabalhar, nenhuma tortura chicote ferro em brasa o fazia se mover. Ele ficava ali, sentando, ‘banzando’… Vinha o desejo de comer terra. E, comendo terra, voltar para a África, através da morte.” (p. 25)

Desde a juventude, Cruz e Souza, que teve o privilégio, raro para os negros, de ser o protegido de um rico marechal e de sua esposa D. Clarinda, brilhou na escola: “eclipsou todos os colegas brancos, em vivacidade e rapidez de aprendizado”, a ponto de chamar a atenção de Fritz Müller, o colaborador de Darwin: aquele “brilhante aluno negro desmentia as teorias racistas correntes que proclamavam a inferioridade intelectual da raça negra.” (p. 33) Leminski abre seu Quarteto Vital, sinfonia polifônica e mestiça, refletindo sobre a História Brasileira de modo crítico e pungente, atento às peculiaridades regionais que distinguem o Nordeste e o Sul (a Bahia de Gilberto Gil e a Santa Catarina de Cruz e Souza):

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“O Brasil, qualquer transeunte sabe, foi descoberto por Cabral e fundado pela violência. Violência física e espiritual do branco adventício e invasor sobre o índio nativo e o negro sequestrado na África e escravizado. Conquista e catequese ou catequese e conquista.Do índio, o massacre foi completo. Já com o negro é outra história. O africano conseguiu preservar suas formas culturais, em corpo e alma, da lavagem cerebral exercida por missionários e pregadores. (…) Basta ver como os africanos de nação gege-nagô, falantes do iorubá, mantiveram vivos seus orixás, num genial gesto quilombola de defesa e resistência, traduzindo-os e disfarçando-os sob as aparências legais dos santos católicos do hagiológio romano. (…) Na Bahia, os cultos africanos já passaram por seu período de catacumbas. E os orixás circulam livremente, entre as pessoas… Sobretudo nas ruidosas festas religiosas, as festas do Largo, onde o povo baiano cultua seus antigos deuses, sob as aparências do ritual católico. Essa fonte de vida, na presença da África, foi negada a Cruz, negro em terra onde o africano era pouco e, portanto, não podia se afirmar culturalmente, como no norte. Cruz e Souza não viu os orixás se movendo em torno. Nem os exus, nas encruzilhadas. No palácio de seu corpo, o fantasma de uma alma branca.” (p. 36)

O poeta negro, carregando o fantasma de uma alma branca, muda-se para o Rio de Janeiro, em 1890, “na efervescência dos primórdios da República”; ingressa no jornalismo; casa-se com Gavita, com quem tem 4 filhos homens; “come o pão que o diabo amassou no terreno da sobrevivência” (p. 43), até que sua vida de apenas 37 anos vividos é ceifada pela tuberculoso, “certamente provocada por precárias condições de vida” (p. 49). Destino meteórico e marcante, que legou-nos uma obra seminal, um dos cumes do simbolismo na poesia brasileira. Leminski lê na própria vida de Cruz e Souza um símbolo inesquecível de uma “loucura social” encarnada no fato deste “negro retinto, no Brasil do século XIX, possuir o repertório de bens abstratos que um Cruz e Souza possuía. O poeta como assinalado. O marcado (Caim?) por um sinal.” (p. 71)

Quem imaginaria o surgimento de um gênio das letras em meio a um grupo social tão estigmatizado, judiado, escorraçado e torturado? Cruz e Souza, aponta Leminski, é um destino insólito e singular em uma época histórica em que “o negro era mantido na senzala numa condição de dor física institucionalizada – açoites, queimaduras com ferro em brasa, algemas, colares de ferro, máscaras de lata para os negros que, com intenção de se matar, comiam terra. A mesma terra que plantavam para os senhores lusos.” (p. 70) A senzala deu à luz um poeta de gênio superior à qualquer dos poetas já gerados pela casa grande. Leminski quer que os brasileiros tomem providências para jamais esquecer este símbolo. Escrever sobre esta vida e esta obra foi uma providência, tomada por um poeta, para que outro poeta pudesse enfim ser reconhecido por seus compatriotas em toda a sua grandeza.

Basho

III. EX-SAMURAI, PAI DO HAIKAI, POETA ZEN

Nascido em 1644, Bashô é considerado por Leminski “o máximo poeta que o Japão produziu” (p. 87). Em seus 23 primeiros anos, Bashô assimilou os valores da casta samurai, “braço armado da classe dominante, a nobreza feudal do Japão medieval” (p. 89). “Assimilava, também, toda uma complexa ideologia, baseada no confucionismo, com ênfase no dever, no sacrifício e na supremacia do social sobre o individual. E no budismo, em sua manifestação zen.” (p. 90) Abandonando a vida militar, Bashô adere a uma vida errante, tornando-se uma espécie de proto-hippie, que deixa-se soprar pelo vento como uma nuvem nos céus. Torna-se alguém, para lembrar um haikai elegíaco de Alice Ruiz, capaz de “enxergar a lágrima no olho do peixe.” (p. 94)

Com Bashô nasce esta forma poética extremamente sintética e peculiar, o haikai, no qual o poeta procura expressar-se em apenas 17 sílabas. “Seu haikai”, celebra Leminski, “é a fina flor de tudo que de melhor o Extremo Oriente produziu… Todos os rios de signos do Oriente correm e concorrem para fazer das parcas sílabas do haikai de Bashô, sempre, uma obra-prima de humor, poesia, vida e significado.” (p. 99) Séculos antes do Twitter, os criadores de haikai procuravam dizer um monte em um espaço minúsculo. Utilizavam as palavras de modo a evocar quadros, utilizando o verbo de maneira pictórica, como se pintassem com as letras. Os ideogramas das línguas orientais – ou seja, aquelas letras-desenhos, bem mais artísticas do que nossos caracteres ocidentais padronizados  –  são inseparáveis do métier do haikai, de modo que “nenhum tipo de poema é mais traído na tradução” (p. 101). De todo modo, Leminski tenta.

velha lagoa
o sapo salta
o som da água

Bashô

Nesta “microilíada zen”, Leminski enxerga alguns elementos paradigmáticos do haikai. Quase sempre, o “primeiro verso [do haikai] expressa uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana”; o “segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual”; já “a terceira linha do haikai representa o resultado da interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento.” (p. 112) Poesia que procura transcender o antropocentrismo, o haikai muitas vezes não fala sobre o ser humano: o protagonista de Bashô, no exemplo aqui citado, é o sapo; o tema do poema, a interação ancestral e sempre recomeçada do anfíbio com a água de uma velha lagoa. Qual o sentido de um tal poeminha pictórico tão “banal”? É um quadro do real, e isso basta; o mestre zen ensina a não procurar sentido onde há somente a plenitude do real em sua profusão de acontecências.

Budfha

A força determinante na vida de Bashô, destaca Leminski, “era uma coisa chamada zen… uma das inúmeras seitas de budismo chinês, que começaram a aportar às ilhas do Sol Nascente a partir do século VIII da nossa era. Em termos de expansão geográfica (Índia, China, Birmânia, Tibete, Vietnã, Sião, Camboja, Coreia, Laos, Japão), brilhante a performance dessa ideia nascida de um príncipe do norte da Índia, que virou iogue, meditou no Parque dos Cervos, teve sua iluminação ao nascer do sol: a suprema intuição de que o viver era Dor. E bem, viver era trabalhar, com todos os seres vivos, para diminuir a Dor. Sem dúvida: o mundo seria muito melhor se fosse budista, a ‘religião’ mais doce, mais humana, mais compassiva. Bashô foi monge budista. Botou em prática, no haikai, a fé que alimentou sua alma durante 50 vagabundos anos, com signos substanciais.

O budismo não é, propriamente, uma ‘religião’, uma ligação entre o homem e os deuses: se não ateu, o budismo é, pelo menos, agnóstico. Não há deuses a adorar, nenhuma potência transcendental: os atos de homenagem a Buda são apenas e exatamente isso, homenagens a alguém extraordinário, o herói fundador, o signo original. (…) O que realmente interessa é que os seres vivos são vítimas da dor. E só a solidariedade, no sentido mais cósmico, pode minorar este fundamento da condição humana, feita de miséria, carência e penúria de ser. (…) O zen não é uma fé. Nem uma teoria. Realiza-se através de práticas (formas sociais) concretas, materiais, físicas. Zen é que nem jazz. E humor. Dessas coisas que não se explicam (isto não é uma explicação).” (p. 127)

5Leminski explica que, para o zen budismo, é preciso descrer na linguagem verbal e nos processos racionais, em prol da emergência de uma consciência que desabrocha a partir da superação de nosso logocentrismo. “Os processos usados pelos mestres zen, no adestramento aos pretendentes à iluminação, são os mais aberrantes, para nossos conceitos ocidentais de pedagogia, centrados na palavra.” (p. 130)

Tanto é assim que o zen budismo inteiro nasce de um gesto de Sidarta Gautama: em silêncio, ele levanta uma flor. Repara bem no que não foi dito. O que importa não é tagarelar uma diarréia verbal, como fazem tão comumente os pregadores religiosos do Ocidente; para Buda, importava mais tornar explícita uma presença. Uma singela presença capaz de ser testemunhada como beleza sublime a quem tem olhos para ver, a quem está com a mente suficientemente quieta para deixar-se penetrar pela plenitude de um mundo que não necessita de sentido para ser lindo.

IV. O DIÓGENES-ZEN DE PAULO LEMINSKI

No Ocidente, Leminski localiza entre os filósofos gregos uma figura que se assemelha a um mestre zen: é Diógenes, lendária figura a quem Emil Cioran dedicou algumas de suas melhores páginas (leia em: http://bit.ly/1GapYU5). Sabe-se que Diógenes contestou de modo provocativo e punk os platônicos de que foi contemporâneo. Platão, afinal, preconizava uma espécie de idolatria dos conceitos, considerados como paradigmas imorredouros a habitar em um paraíso transcendental, algo que Diógenes não conseguia engolir: ao ficar sabendo, por exemplo, que Platão definia o ser humano como um “bípede implume” (está escrito no céu das idéias que é isto o homem!), Diógenes, brincalhão, teria agarrado uma galinha, retirado dela todas as penas, para então acorrer na Academia platônica, berrando: “eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!”

“A figura de Diógenes confina com certo tipo de santo popular, o beato, ‘o louco de Deus’, o peregrino, os portadores de utopias, cuja vida ensina outra vida, proposta alternativa de existência, o modelo de um possível, um dos possíveis do tesouro de possibilidades humanas. (…) Diógenes, ao meio-dia, procurando um homem com uma lâmpada acesa, é um koan perfeito. Como koan é aquilo de Diógenes mandar sair da frente de seu sol um Alexandre Magno que lhe oferecia a satisfação de qualquer desejo.” (LEMINSKI, Vida. Cia das Letras, 2014. Pg. 129-130)

Sem nunca ter ouvido falar em zen budismo, Diógenes agiu um pouco à maneira zen; foi um punk avant la lettre, um poeta do gesto provocativo; foi um koan em carne viva. O paralelo com Bashô, estabelecido por Leminski, afirma a importância do criador de haikais japonês como figura que combate o logocentrismo e a verborragia. Em suma, para Leminski, também ele praticante do zen, criador de haikais e provocador cínico, “o zen é uma fé de artistas. Uma fé que valoriza, absolutamente, a experiência imediata. A intuição. O aqui e agora. A superfície das coisas. O instantâneo. O pré ou post-racional.” (Op cit. p. 143)

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Estátua dedicada a Diógenes em Sinope, Turquia

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V. ECOS DO ORIENTE

Mapeando os ecos do zen e do haikai da cultura ocidental, Leminski revela não só a amplidão de sua erudição literária e sua paixão pela poesia, mas revela também a cultura como uma grande teia, viva, interdependente, de influenciação e interação intensas:

“É de suspeitar odores nipônicos no ‘imagismo’ de García Lorca e na brevidade aforismática do poeta espanhol Antonio Machado. (…) Difícil não desconfiar, de resto, que os poemas-minuto de Oswald de Andrade, micromomentos de superinformação, não tenham inspiração no haikai… Nos anos 1930, até a celebérrima pedra no caminho de Drummond traz consido um certo perfume zen… Poucos criadores brasileiros, porém, prestaram tantos serviços à forma cultivada por Bashô quanto Millôr Fernandes. Via Millôr, o haikai é uma das formas do humor brasileiro de hoje, ao lado do cartum, do picles e da frase de efeito.” (p. 144)

Humilde, Leminski não destaca o óbvio: que ele mesmo é um dos maiores mestres da poesia lapidar brasileira, um gênio dos versos curtos de alto potencial mnemônico, um virtuose na arte do poeminha inesquecível. Ele, que dizia: “Não discuto com o destino / O que pintar eu assino.” Ele, que sobre o “dínamo estrelado da noite” (para citar Allen Ginsberg) soube cravar esta pintura memorável: “A noite me pinga uma estrela no olho e passa.” Ele, que viajou a existência e concluiu: “Essa vida é uma viagem, pena eu estar só de passagem.”

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por Eduardo Carli de Moraes [Junho de 2015]

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CONTINUA EM UM PRÓXIMO POST SOBRE JESUS & TRÓTSKI…

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SIGA VIAGEM: 0s 15 melhores poemas de Leminski na Revista Bula – Resenha de Vida na revista Posfácio – Raul Arruda FilhoUm Tumblr dedicado a LeminskiPainel Leminski no PinterestÁlbum Leminski no Facebook.

Na Academia, depois que Platão chegou a definir o homem como “um bípede sem plumas”, Diógenes acorreu com uma galinha depenada, bradando: “Eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!”

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Diógenes e Sua Lanterna, Pintura de Jean-Léon Gérôme

Na Academia, depois que Platão chegou a definir o homem como “um bípede sem plumas”, Diógenes acorreu com uma galinha depenada, bradando: “Eis o homem de Platão! Eis o homem de Platão!”

Depois de uma preleção sobre as idéias, disse: “A mesa e a taça de vinho eu vejo, Platão, mas tua mesidade e tacidade não vejo de forma alguma.”

FERNANDO SANTORO,
Arqueologia dos Prazeres, p. 71

DIÓGENES – O CÃO CELESTIAL

por EMIL CIORAN

Não se pode saber o que um homem deve perder por ter a coragem de desafiar todas as convenções, não se pode saber o que Diógenes perdeu por tornar-se o homem que se permitiu tudo, que traduziu em atos seus pensamentos mais íntimos com uma insolência sobrenatural como o faria um deus do conhecimento, simultaneamente libidinoso e puro. Ninguém foi mais franco; caso-limite de sinceridade e lucidez, ao mesmo tempo que exemplo do que poderíamos ser se a educação e a hipocrisia não refreassem nossos desejos e nossos gestos.

“Um dia um homem o fez entrar em uma casa ricamente mobiliada e disse-lhe: ‘Principalmente não cuspa no chão’. Diógenes, que tinha vontade de cuspir, jogou-lhe o cuspe na cara, gritando-lhe que era o único lugar sujo que havia encontrado para poder fazê-lo.” (Diógenes Laércio)

Quem, depois de haver sido recebido por um rico, não lamentou não dispor de oceanos de saliva para derramá-los sobre todos os proprietários da terra? E quem não tornou a engolir seu cuspezinho por medo de lançá-lo na cara de um ladrão respeitado e barrigudo? Somos todos ridiculamente prudentes e tímidos…

Diógenes, o homem que enfrentou Alexandre e Platão, que se masturbava em praça pública (“Quem dera que bastasse também esfregar a barriga para não ter mais fome!”), o homem do célebre tonel e da famosa lanterna, e que em sua juventude foi falsificador de moeda (há dignidade mais bela para um cínico?), que experiência teve de seus semelhantes? O homem foi o único tema de sua reflexão e de seu desprezo. Sem sofrer as falsificações de nenhuma moral nem de nenhuma metafísica, dedicou-se a desnudá-lo para nos mostrá-lo mais despojado e mais abominável do que o fizeram as comédias e os apocalipses.

“Sócrates enlouquecido”, chamava-o Platão. “Sócrates sincero”, é assim que devia tê-lo chamado. Sócrates renunciando ao Bem, às fórmulas e à Cidade, transformado, enfim, unicamente em psicólogo. Mas Sócrates – mesmo sublime – ainda é convencional; permanece sendo mestre, modelo edificante. Só Diógenes não propõe nada; o fundo de sua atitude – e a essência do cinismo – está determinado por um horror testicular do ridículo de ser homem.

O pensador que reflete sem ilusão sobre a realidade humana, se quer permanecer no interior do mundo, e elimina a mística como escapatória, chega a uma visão na qual se misturam a sabedoria, a amargura e a farsa; e, se escolhe a praça pública como espaço de sua solidão, emprega sua verve zombando de seus ‘semelhantes’ ou exibindo seu nojo, nojo que hoje, com o cristianismo e a polícia, já não poderíamos nos permitir. Dois mil anos de sermões e de códigos edulcoraram nosso fel… Aliás, em um mundo tão apressado, quem se deteria para responder a nossas insolências ou para deleitar-se com nossos latidos?

Que o maior conhecedor dos humanos tenha sido apelidado de cão prova que em nenhuma época o homem teve a coragem de aceitar sua verdadeira imagem e que sempre reprovou as verdades sem reservas. Diógenes suprimiu nele a pose. Que monstro aos olhos dos outros! Para ter um lugar honrado na filosofia, é preciso respeitar o jogo das ideais e excitar-se com falsos problemas. Já ele, Diógenes, que só possuía um alforje, o menos proprietário dos mendigos, foi um verdadeiro santo da chacota.”

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DOCUMENTÁRIO COMPLETO:

Emil Cioran (1911 – 1995): 10 livros do filósofo romeno para baixar + documentário completo (1999, 48 min)

Emil Cioran nasceu em 1911, na Romênia, formando-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste. Em 1937, mudou-se para a França, onde escreveu a maior parte de sua obra. Morreu em 1995, em Paris, legando-nos uma obra perturbadora, provocante, densa, de linguagem profundamente poética e estilo verbal arrojado e radical. Filósofo-poeta que confronta os cumes do desespero, sonda os abismos do niilismo e ainda tem a coragem de persistir na existência ainda que considere ter nascido mais como inconveniente do que como maravilha, Cioran escreveu algumas das mais belas páginas de filosofia que conheço. Sua escrita a marteladas às vezes tem o sabor dos melhores aforismos de Nietzsche e sua lucidez sem limites parece conduzir a extremos alguns dos convites do existencialismo Camusiano. Sobre seu “projeto filosófico”, Cioran diz o seguinte:

“queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela toda a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa da oração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Eu teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, impedindo multidões de corromperem-se no podredouro das certezas…” (Breviário de Decomposição)

Aqui na Casa de Vidro disponibilizamos abaixo 10 ebooks completos para download, reunidos e compartilhados pelo Arquivo Kronos. Confira também o texto de Cioran Diógenes, O Cão Celestial, que pinta um retrato desta figuraça da filosofia grega, o sábio vagabundo e provocante cínico que saía à cata de um ser humano de verdade, com sua lanterna, em plena luz do dia, e que quando teve um cargo importante a ele oferecido pelo imperador, recusou-o dizendo: “Só quero que saias da frente do meu sol.”

[+] >>> http://acasadevidro.com/2012/05/21/diogenes-o-cao-celestial-por-emil-cioran-1911-95/

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DOCUMENTÁRIO COMPLETO:

NA NATUREZA SELVAGEM – “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente.” (Krishnamurti)


“…prefiro o céu salpicado de estrelas a um teto,
a trilha obscura e difícil, levando ao desconhecido,
a qualquer estrada pavimentada…”

Última carta de Everett Ruess
(11 de Novembro de 1934)

in:
 Jon Krakauer
 “Na Natureza Selvagem”
(Ed. Cia das Letras, pg. 97)

NA NATUREZA SELVAGEM
Reflexões De Rédeas Soltas

Decerto que há os conformados e que eles formam imensas manadas. Raul Seixas quiçá diria deles: são “pedras que choram sozinhas no mesmo lugar“. Morrem de medo da chuva. Gente que quer imitar o reino mineral ao invés de assumir o risco de aventurar-se a ser humano, isto é, uma metamorfose ambulante em busca sempiterna de ser-mais.

Há criaturas com propensão para a estagnação e que sonham ser montanha ao invés de rios a fluir. Apegam-se às suas “identidades”, agarrados a um dogma que formaram sobre aquilo que são e devem ser, e seguem pelas vias estreitas de um mundo domado. Seguras em suas fortalezas, detrás de seus muros e grades, protegidos pelo arame farpado ou pelo carro blindado, dizem em suas melancolias, com sorrisos forçados:

“Pois não é verdade que se deve adorar as benesses da civilização? Ó estradas e pontes, edifícios de concreto e fortalezas de metal! Aleluias à riqueza material que nos permite viver no conforto, no Sacrossanto Conforto! Tudo isso não merece ser glorificado, ó Deusa Tecnologia, ó Deidade Engenharia, como algo que nos torna a vida mais fácil e confortável?” Eis a ladainha dos tempos.

Em contraste com esta “roda morta” da “manada dos normais”, como canta Sérgio Sampaio, na contracorrente desta gente adormecida na crença de que a melhor vida é aquela “fácil e confortável”, há uma série de seres humanos bem mais turbulentos, inquietos, inconformados. É a eles que o mundo deve alguns dos maiores exemplos de heroísmo, subversão da ordem, revolução de costumes e obras de arte de impacto.

Alguns restringem seu heroísmo ao “mundo do espírito”: inventam histórias de gente que realiza as proezas que eles nunca fizeram ou farão. Há desses pretendentes à Jack London que ficam, seguros em suas casas, de cachecol diante da lareira, escrevendo sobre aventuras na neve e confrontos com lobos… Mas há outros para quem o único heroísmo que conta é a ação real sobre o palco do planeta. Como não trepidar e não se excitar ao ler a descrição que faz Jon Krakauer, por exemplo, desses humanos intrépidos que ousam encarar a natureza selvagem?

Eles, os born to be wild da canção antológica do Steppenwolf, atravessam a história, audazmente contrahegemônicos. Dinamietzsches, Blakeanos, Tolstoístas, Thoreauastas, Supertramps, Hippies… todos aqueles que preferem o destino de nuvens ciganas e pedras que rolam. São mendigos iluminados, malucos-beleza transbordantes de lucidez, xamãs involuntários de uma sociedade doente. “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”, diz Krishnamurti. Eles concordam.

Buscam estradas heróicas frequentemente sob a influência fascinante de algum herói prévio que idealizam. O heróico para Nietzsche, por exemplo, parece ser uma mescla de Diógenes e Heráclito, Sófocles e Dionísio… um “espírito livre”, desafiador de todas as convenções e convicções aprisionantes, que é sátiro e dançarino, que prefere usar a coroa de flores de Zaratustra à coroa de espinhos de Cristo, que conhece as tragédias mas sabe afirmar a vida, não foge do sofrimento mas aprende com ele, sabe-se descendo a corredeira do Tempo mas medita sobre os ciclos e os retornos…

A figura das montanhas altaneiras, escaladas por um audaz “espírito livre” sem temor de enxergar mais longe e mais fundo do que o comum dos mortais, que suporta com o máximo de júbilo possível o seu fardo de solidão e clarividência, desenha uma auréola de heroísmo em torno de Nietzsche que talvez explique, ao menos em parte, sua “popularidade” póstuma.

O Capitão Nemo, protagonista de Vinte Mil Léguas Submarinas (Júlio Verne), personagem que “foge da civilização e corta todos os laços com a terra”, foi uma das inspirações do andarilho-alpinista infatigável Everett Ruess. Só que, ao invés de descer às profundezas do Oceano, Ruess preferiu lançar-se sem muitos escudos em meio à indomada Natureza. “Duas vezes quase fui morto pelos chifres de um touro selvagem; escapei por pouco de cascavéis e do desmoronamento de rochas; fui atacado por abelhas selvagens e algumas ferroadas a mais poderiam ter sido fatais para mim…”

De relatos de proezas assim está repleto o relato de Everett Ruess que Krakauer reproduz. O que será isso: vontade de fazer disparar no sangue a adrenalina? É ser um junkie de excitações orgânicas? Ou será mero gosto pela bravata? Uma espécie de desejo de auto-glorificação ao buscar experiências de alto risco? Vive-se para vivê-las ou para contá-las?

O caso de Christoppher McCandless é para mim outro fascínio intenso. Muito por causa do impacto do filme Into the Wild – Na Natureza Selvagem, uma das obras que me são mais queridas no cinema deste jovem século. Sean Penn, em sua adaptação cinematográfica do livro-reportagem de Krakauer, soube “heroicizar” a figura de McCandless (vulgo Alexander Supertramp) ao invés de reduzi-lo através da “psico-patologização”.

Em outras palavras: tratou McCandless/Supertramp não como um biruta qualquer, um cara com parafusos a menos, um vicioso “desajustado social”, mas sim revelando tudo que havia de romântico, idealista, rebelde, subversivo, doce e ambíguo neste destino tão heróico – e tão trágico.


DESPOJAMENTO & ABERTURA
Alexander Supertramp rumo à Natureza Selvagem

“Ele se chama Sonho Americano
pois você precisa estar dormindo
para acreditar nele.”

George Carlin

Christopher McCandless, no começo da Década Grunge, era um rapaz de uma abastada família americana de Washington, D.C. Excelente aluno, atleta de elite, tinha um Datsun que adorava e uma poupança pançuda. Ou seja: todos os ingredientes de um futuro “garantido”. McCandless se encontrava no que alguns veriam como uma situação privilegiada “invejável”, pronto para ajustar-se perfeitamente ao Sistemão Norte-Americano.

Ao invés, porém, de seguir obediente nos trilhos do american way e sonhar de olhos abertos, junto com a manada dos normais, o Sonho Americano, McCandless, “no verão de 1990, logo após formar-se com distinção na Universidade, sumiu de vista. Mudou de nome, doou os 24 mil dólares que tinha de poupança a uma instituição de caridade, abandonou seu carro e a maioria de seus pertences, queimou todo o dinheiro que tinha na carteira” (Krakauer, pg. 9).

Até daria para dizer que aí já está presente um certo “elemento Tyler Durden”. Tyler Durden, me parece, é outro dos símbolos da época, de estandartes do zeitgeist, de retrato da nossa disgrama. “As coisas que você possui acabam por te possuir”, diz Brad Pitt a Edward Norton em um momento da obra de David Fincher em que ainda nem suspeitamos que está rolando uma alucinada conversação entre um funcionário do mundo corporativo e seu amigo-imaginário, Tyler Durden, o subversivo, o terrorista, o incendiário. Conforme a civilização nos EUA foi degringolando para um anarco-capitalismo cada vez mais irracional em sua fome de lucros e em sua ideologia kitsch em prol do Conforto, mais e mais pipocaram rebeldias, terrorismos, contra-culturas – e heroísmos.

Não se trata, porém, de “idealizar” o heroísmo, dizer que ele é a solução para o planeta e lançar toda uma carga positiva pra cima da idéia de um estilo-de-vida heróico. Com certeza muitos crimes e injustiças podem ser cometidos por gente que acredita estar agindo “heroicamente”. Reflitamos um pouco no fato de que, na perspectiva dos sujeitos que realizaram o Atentado do 11 de Setembro, eles estavam cometendo um ato de heroísmo religioso, um digníssimo e elogiável martírio (sem dúvida comemorado por muitos em Kabul ou Bagdá como se comemora, no Brasil, uma vitória na Copa do Mundo…).

Derrubar um dos símbolos da arrogância capitalista da América, trazer abaixo o Templo onde os ímpios, esquecidos de Deus, cultuam o Bezerro de Ouro, tudo isso representava “missão”, “destino”, possibilidade de ascensão ao Paraíso. Enfim: Alá aprova e glorifica os que destroem a mundana ganância cega da América…

 Porém, não é este o único meio – explodir prédios comerciais com aviões sequestrados numa hecatombe de milhares de mortos – para protestar contra o sistema econômico-político. Chris McCandless é uma figura tão instrutiva pois ele procura escapar das garras deste Capitalismo Neo-Liberal Ecocida que está aí por outras vias: segue o exemplo de Tolstói, Thoreau e Jack London, buscando a independência em relação às obsessões consumistas e às neuroses urbanas de que estão repletas as nossas metrópoles e os nossos subúrbios.

Inteligente, bem-informado, sensível aos problemas alheios, mesmo aqueles de países distantes, McCandless é um desses que desperta para o fato óbvio de que o Capitalismo não está funcionando, que gera concentração imensa de capital nas mãos de pouca gente, gerando efeitos colaterais terríveis em termos de fome, miséria, doença, poluição, destruição ambiental – em suma: o Capitalismo é a desgraça de bilhões, ainda que seja a maravilha de alguns. No planeta Capitalista, é “normal” que 2 bilhões morram de fome para que uns 2 mil possam ter seus palácios, mansões e carrões onde possam sofrer de indigestão e obesidade.

McCandless, impregnado por um ideário ético que valoriza o vivenciar e não o possuir, o despojamento ao invés do conforto, a abertura de consciência contra o auto-aprisionamento em convenções, doa tudo o que tem para ajudar os necessitados – a Oxfoam recebe 100% de sua poupança – e parte para a aventura de ser um SuperMendigo, cuca-fresca e cabeça-aberta, que sabe que neste mundo, de onde nada se leva, quem perde o teto em troca ganha as estrelas.

Vade retro, Superman!!!

PREFERINDO O DIFÍCIL

“Eu queria movimento e não um curso calmo de existência.
Queria excitação e perigo e a oportunidade de sacrificar-me por meu amor.
Sentia em mim uma superabundância de energia que não encontrava escoadouro em nossa vida tranquila.” 

Léon Tolstói
Felicidade Conjugal”
Trecho sublimado em um dos livros encontrados com o cadáver de Chris McCandless

 

Eddie Vedder, nas canções que compôs e cantou sobre a inspiradora figura de Chris McCandless, destaca com frequência o fato de Alex Supertramp ter nascido de um desejo de sumir, desaparecer, vazar: ir pra bem longe da “sociedade” como a conhecia. “Society, you’re a crazy breed… hope you’re not lonely without me…” 

Estamos falando, é claro, daquela sociedade yuppie dos EUA, que celebrizou-se por criações como Walt Disney, Hollywood, McDonalds, Mickey Mouse, Tio Patinhas… As crianças que crescem sob tais influências sonham desde o berço em possuir a beleza de Barbies, ainda que a custo de plásticas, lipos e anorexias; obcecam com viagens maravilhosas à Disneylândia; com um imenso apetite por milk-shakes, marshmallows e Big Macs… O “ideal de vida” que por lá é vendido convida a todos a perceber a felicidade exatamente igual à maneira como um pato imbecil a concebia: aspirantes a Tios Patinhas, eles têm fantasias colonizadas pelo sonho de um dia nadarem em uma imensa piscina de moedinhas de ouro – e 18 quilates!…

“It’s a mystery to me:  we have a greed with which we have agreed. You think you have to want more than you need. Until you have it all you won’t be free.” Em três versos riquíssimos (das riquezas que contam, do “ouro de dentro”, como diria Hilda Hilst), Vedder sintetiza a ópera: há um acordo tácito em relação à ganância; todos pensam que precisam ter mais e mais, esquecidos de suas verdadeiras necessidades; e é crença geral que só existe liberdade no possuir, no “have it all”. Uma imensa catarata sobre os olhos de milhões causa essa miopia epidêmica: só conseguir imaginar a felicidade sob a perspectiva do consumo e da posse. “Para ser feliz, é preciso comprar e comprar, possuir e possuir!” – assim prossegue a ladainha dos tempos…

Jon Krakauer insiste, em vários pontos de seu livro, no fato de Chris McCandless ser uma pessoa “extremamente ética” que “se impunha padrões bastante elevados” (pg. 30) e com “traços de idealismo obstinado que não combinavam facilmente com a existência moderna” (pg. 10). Krakauer relembra-nos com recorrência do culto que McCandless prestava ao escritor russo Tolstói: caroneiro atravessando milhares de quilômetros da América que está fora dos cartões-postais, McCandless costumava recomendar a seus companheiros de jornada a leitura de Guerra e Paz.

 Entre a dúzia de livros encontrados junto a seu cadáver no busão abandonado no Alasca, estavam livros de Tolstói e Thoreau, duas figuras que ele parecia enxergar como “paradigmas” éticos, modelos a serem imitados, “sábios” à cuja aprovação ele aspirava. “Cativado há muito tempo pela leitura de Tolstoi, admirava em particular como o grande romancista tinha abandonado uma vida de riqueza e privilégios para vagar entre os miseráveis” (pg. 10). Krakauer conta também dos cursos que McCandless frequentou sobre o problema racial na África do Sul do apartheid, de seu veemente interesse e preocupação em relação ao problema da fome no mundo e sua “intensa aversão ao governo” (pg. 204).


“Não é nada incomum para um homem jovem ser atraído para uma atividade considerada imprudente pelos mais velhos; o comportamento de risco é um rito de passagem em nossa cultura. O perigo sempre exerceu um certo fascínio. É em larga medida por isso que muitos adolescentes dirigem depressa demais, bebem demais e tomam drogas demais, e que sempre foi fácil para as nações recrutar jovens para a guerra. […] Chris McCandless  tinha necessidade de se testar em questões, como gostava de dizer, “que importavam”. Possuía grandiosas ambições espirituais. Conforme o absolutismo moral que caracterizava as crenças de McCandless, um desafio em que o sucesso está garantido não é desafio nenhum. […] O significado que ele tirava da existência estava longe do caminho confortável: ele não confiava no valor das coisas que vêm facilmente.”

JON KRAKAUER (pg. 192)

Alexander Supertramp, que tem nome de imperador mas aspirações a “mendigo iluminado”, é a encarnação de uma prática rebelde em relação ao estilo-de-vida dominante. Decerto que existem muitos exemplos na História de homens ricos que renunciam à sua fortuna: é uma estória tão velha quanto… Buda. Não se conta que Sidarta Gautama também abdicou de todo o luxo do palácio para se procurar a iluminação em andrajos pelos campos e debaixo de árvores?

McCandless é um dos poucos norte-americanos que, tomando consciência mais plena dos rumos de sua pátria, decide pular do barco, procurar uma via própria, longe das estradas pavimentadas. O dinheiro não lhe interessa – não mais. Uma vida fácil e confortável, rodeada de consumos e simulacros, lhe enoja. Prefere estar ao ar livre, sujando as botas na lama dos caminhos que ainda não foram trilhados, escalando montanhas rumo a cumes por poucos pisados. Não quer manter a Natureza à uma distância segura, só saber dela através dos livros ou dos vidros. Quer sentir a brisa na face e dormir sob um céu salpicado de indecifráveis estrelas.

A facilidade é insossa, a busca por conforto é neurótica, a AmériKKKa está louca! E é assim que Chris McCandless larga tudo, aventura-se na Natureza Selvagem, como se seguisse o conselho que Rilke deu ao Jovem Poeta: “Prefira sempre o difícil; desse modo, sua vida não cessará de expandir-se.”

 

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro

:: A Mosca Irritante ::

SÓCRATES: A MOSCA IRRITANTE

por Eduardo Carli de Moraes


Há poucas figuras mais emblemáticas nos mais de 2.500 anos de história da filosofia. Ele marcou época de modo tão radical que fez com que todos os pensadores antes dele, relegados a uma espécie de “pré-história do pensamento”, recebessem a alcunha de “pré-socráticos”. A Razão jamais foi a mesma depois que ele viveu. E poucas vezes na história dos “amigos da sabedoria” uma existência foi interrompida de modo tão dramático quanto a de Sócrates, condenado à morte pela mesma Atenas onde viveu todos os seus 70 anos de vida. Por que foi a figura socrática tão crucial na aurora da Filosofia? Por que seus métodos, atitudes e reflexões causaram tanto impacto e influenciaram tantos séculos do porvir? E o que explica que ele tenha despertado reações tão violentas por parte de seus concidadãos a ponto de ter sido obrigado a beber a cicuta?

Sócrates, como Jesus Cristo ou Buda, não legou à posteridade textos de sua autoria. Preferia o diálogo à escrita, o pensar em grupo à reflexão solitária. Por isso Sócrates será sempre uma figura cuja “faceta histórica” aparece envolta nas nebulosidades características daquilo que está afundado num passado remoto. A pergunta “quem foi o Sócrates real?” não é passível de ser respondida com certeza: o que temos são discípulos, detratores, testemunhos, pegadas, indícios, relíquias. O que possuímos são como que diferentes reflexos fornecidos por diversos espelhos. As três principais fontes da Antiguidade que chegaram até nós são o retrato satírico e iconoclástico de Aristófanes em As Nuvens, a visão idealizada e elegíaca de Xenofonte em seu Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates e os numerosos diálogos de Platão que o trazem como protagonista.

A Apologia é um texto clássico no qual Platão narra o discurso de defesa proferido por Sócrates frente ao tribunal de Atenas. Ali este era réu dos crimes de corromper a juventude e crer em outros deuses que não os “oficiais” da pólis. O texto é uma espécie de “manifesto” no qual o filósofo justifica e defende, frente a seus concidadãos, a atitude de incessante questionamento que caracterizou sua existência.

De modo semelhante ao que conta-se de Diógenes Laércio, que saía pelas ruas da cidades, em plena luz do dia, procurando um “homem honesto” com uma lanterna, Sócrates também vaga pela democrática Atenas realizando uma cotidiana e rigorosa “investigação” sobre a solidez dos saberes e a qualidade dos princípios morais daqueles com quem depara. E não respeita jamais nenhum argumento de autoridade nem deixa-se convencer pelo encanto de uma boa reputação.

A Lanterna de Diógenes


Conta-se que Sócrates viveu na penúria, preferindo uma vida frugal e recusando-se a receber dinheiro por seus “ensinamentos”. Era frequentemente visto a zanzar por Atenas como um vagabundo loquaz, de uma feiúra mitológica, sempre meio desleixado e extravagante. Uma excêntrica figura, em claro descompasso com a cidade, mas que ao invés de se afundar no ermitério, permaneceu sempre na ágora e passeando pelas ruas e praças públicas como uma espécie de inteligentíssimo mendigo provocador. Foi contemporâneo da “era de ouro” ateniense, quando se firma a democracia: nasce em 470 a.C. e vai a julgamento em 399 a.C., morrendo poucos meses depois de sua condenação à pena capital.

Sócrates, em seus chamados “diálogos de juventude” (rubrica que se aplica a textos como “Eutífron”, “Íon”, “Alcebíades”,  “Hípias Maior” e “Hípias Menor”, dentre outros), aparece como encarnação de um procedimento filosófico que procura sempre conduzir seu interlocutor a uma aporia (do grego “aporos”, sem poros, sem saídas).  Trata-se de “encurralar” seu adversário, empurrá-lo para um labirinto, fazê-lo afirmar o contrário do que antes sustentava.  Através do diálogo e do debate, Sócrates põe-se a averiguar se as opiniões e convicções dos homens notáveis de Atenas se sustentam e possuem um fundamento sólido, ou se desmancham-se e revelam suas contradições ou insuficiências, escancaradas pelo filósofo.

O que o filósofo deseja é produzir em seu interlocutor a consciência de sua ignorância. Quer desmascarar os pseudo-sábios que pretendem possuir saberes que de fato não têm, desqualificando e zombando dos “convencidos”. É como ele fosse um auto-eleito “vigia” da pólis, quase uma espécie de super-herói da Grécia Antiga, que dedica-se com ardor à obra higiência de limpar Atenas da escória intelectual e moral que suja suas ruas.

Em contraste com os chamados sofistas, considerados como “professores mercenários” de retórica e eloquência que ensinavam a arte da persuasão tendo em vista o interesse pessoal, Sócrates não aceitava salário por seus “ensinamentos” e se abstinha da vida política para poder dedicar-se inteiramente à filosofia. Assim o fazia para seguir a injunção do deus Apolo, que quando consultado sobre quem era o homem mais sábio de Atenas, no famoso episódio do Oráculo de Delfos, havia respondido, segundo a Apologia platônica, que não havia ninguém mais sábio que Sócrates.

A princípio cético em relação à afirmação oracular, já que tinha uma convicção íntima de não ser sábio, Sócrates passa a dialogar com seus concidadãos e contemporâneos na tentativa de encontrar um homem mais sábio do que ele, o que refutaria o dito do deus. Os interlocutores que escolhe são frequentemente homens que possuem reputação de conhecedores e peritos na cidade: aqueles que são considerados, aos olhos da pólis, como detentores de saber são esmiuçados pela inspeção socrática. Interrogando e investigando em minúcias as pessoas com quem dialoga, e sempre munido de um ferino olhar crítico, Sócrates descobre frequentemente, ao conversar com homens das classes mais respeitadas da cidade (políticos, poetas, artesãos, técnicos…), que aqueles que passavam por sábios frequentemente não possuíam o saber suficiente para fazer jus à sua reputação, enquanto que ele, Sócrates, por estar ciente de sua própria ignorância, estaria mais próximo da sabedoria do que aqueles que se agarravam a suas opiniões e convicções frequentemente paradoxais ou insustentáveis. Donde o famoso “sei que nada sei”:

“…é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei.” 1

O filósofo, pois, quer rasgar as máscaras de presunçoso saber dos rostos daqueles que pretendem deter a chave para os grandes segredos de várias áreas da existência humana, inclusive a arte e a poesia (no “Íon”) e a religião (“Eutífron”). E põe-se por vezes a expôr ao ridículo homens que ocupam posições elevadas na hierarquia de poder, mas cujo pretenso “conhecimento”, que os abonaria e justificaria em seus privilégios, não tem nenhuma base sólida e desmorona ao ataque de uma dúzia de argutas perguntas e “provocações”.

Se Sócrates interroga e refuta para mostrar a seus interlocutores que eles não sabem o que julgam saber, ou seja, para “desmascarar” os “pseudo-sabidos”, não surpreende que ele, a cada vez que faz isso, ganhe um novo inimigo. Se ele é tão “antipático” para muitos de seus concidadãos, que sentem-se lesados por ele como se tivessem sido vítimas de algum crime, talvez seja porque ele atenta contra a auto-estima daqueles com quem conversa, provando-os da inanidade de suas certezas e dogmas.

“Ao apresentar sua defesa perante o tribunal ateniense”, escreve Eduardo Giannetti, “Sócrates questiona a aceitação passiva dos costumes, crenças e tradições socialmente estabelecidos, afirmando que ‘a vida irrefletida não vale a pena ser vivida’. A missão da filosofia moral socrática, conforme o relato de Platão na Apologia, é servir como uma espécie de ‘mosca irritante’ que mantém os cidadãos sob constante e cerrada inquirição e impede o ‘cavalo lasso’ do Estado de dormitar ao longo do caminho.”2

Neste sentido pode-se enxergar em Sócrates uma figura que procurou despertar aqueles com quem convivia de um “sono dogmático” ou de uma crença cega nos valores, saberes e princípios herdados da sociedade. É o que Marilena Chauí parece indicar no seguinte trecho de sua obra Convite à Filosofia, destinada a um público leigo, em que faz Sócrates ser uma figura que se contrapõe ao que hoje conhecemos, em tempos pós-marxistas, como “ideologia da classe dominante”:

“Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar.”3

Podemos conjeturar, pois, que se Sócrates adquire reputação de ser um “corruptor da juventude”, é porque ele “descondiciona” os jovens acostumados a obedecer e planta neles a “semente má” do questionamento das autoridades, expondo tudo o que há de ridículo e de pomposo nas poses de sabidos que assumem muitos dos velhos que se acham no direito de guiar e moldar os mais novos. Sua lição é de insubmissão. E um jovem insubmisso, para aqueles acostumados a conduzir dóceis ovelhinhas, é um ser “corrompido”! “Morte a Sócrates!”, poderia dizer um de seus carrascos, “pois ele retira de nós a aura de saber que faz o nosso poder!”

INSPECÇÃO E MORALISMO

Esta “inquirição” de que fala Gianetti passa não somente pelos “saberes racionais” de que os pretensos sábios se pretendem portadores, mas é também (e sobretudo) uma “inquirição moral”. Neste quesito, o filósofo que sustentava que só sabia que nada sabia não era tão humilde e garantia ter um “coração” éticamente perfeito. Em sua defesa, Sócrates tenta convencer a assembléia de que sempre foi um homem irreprochavelmente justo e idôneo: “eu que, negligenciando o de que cuida toda gente – riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, (…) [preferi] me entregar à procura de cada um de vós em particular a fim de proporcionar-lhes o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato”. 4

No retrato altamente elegíaco e idealizado que Xenofonte pinta do filósofo no Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates também aparece com muita nitidez esta “jactância” quanto à superioridade moral em relação a seus concidadãos que é marca da postura socrática.

“Conhecem homem menos escravo dos apetites do corpo que eu? Mais livre que eu, que não aceito de ninguém presentes nem salário? Quem poderão, em boa-fé, considerar mais justo (…) e que pessoa razoável não me chamaria de sábio? (…) E a prova de que meu labor não foi estéril, não a vêem no fato de que muitos de meus concidadãos que amam a virtude, bem como muitos estrangeiros, dão preferência a mim acima de todos os outros homens?” (5)

É uma constante em sua defesa, pois, que Sócrates tente persuadir os presentes de que sua relação com Atenas é a de um “benfeitor público”, uma “dádiva dos céus”. Quando narra o episódio do Oráculo de Delfos, crucial na determinação de seu “destino” filosófico, Sócrates frisa que seu “serviço à cidade” não passa de um obedecimento a “vozes superiores” (“faço-o por determinação divina”, sustenta [op cit., pg. 30]).

Este “messianismo” é o que permite que ele sugira que sua própria condenação à morte seria um golpe que a pólis infligiria sobre si mesma, e inclusive vaticinando que um futuro castigo os alcançaria — “e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes” (op cit, p. 36): “Neste momento, Atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderiam crer, atuo na vossa, evitando que, com a minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que recebestes do deus. Se me matardes, não vos será fácil achar outro igual…” (op cit, pg. 27).

Curiosa figura, que pretende-se a encarnação da modéstia (sei que nada sei…), mas que ao mesmo tempo garante que é um homem preciosíssimo, puro ouro!


MAIÊUTICA: O PARTEIRO DE IDÉIAS

Mas seria despropositado pensar que os diálogos ditos “refutativos”, em que Sócrates conduz seu interlocutor a uma aporia, são de natureza inteiramente “negativa”, isto é, intentam somente destruir as falsas certezas e pretensos saberes de que se julgam possuidores os que são reputados como sábios em Atenas. Não se trata, para Sócrates, de uma destruição “gratuita”, por assim dizer, que só se preocupasse em reduzir a pó as opiniões insustentáveis dos outros, abandonando o “campo de batalha” cheio de destroços e cacos do que antes constituía, não um saber (episteme), mas uma mera opinião (doxa).

Vale ressaltar que Sócrates, numa célebre passagem do Teeteto 6, “compara-se, em seu papel de parteiro das almas, à sua mãe parteira”, como destaca Jean Pierre Vernant:

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”7

Portanto, o procedimento de Sócrates, se por vezes se assemelha a uma “investigação” ou “inspecção” que visa checar opiniões e supostos saberes que uma certa pessoa julga possuir, passando-os pelo crivo de seu insistente questionamento e crítica, também se assemelha, em certos diálogos, a uma arte de auxiliar seu interlocutor a “parir” idéias e conceitos que este seria incapaz de “dar à luz” sem o auxílio do filósofo. Mas estes “rebentos intelectuais”, assim que são paridos, também precisam ser inspeccionados, como Sócrates bem aponta a Teeteto no seguinte trecho:

“Parece que tivemos muito trabalho para trazê-lo à luz, qualquer que seja o seu valor. Mas, terminado o parto, é preciso que celebremos as Anfidromias (8) do recém-nascido e, sem dúvida, fazer o nosso raciocínio correr em círculo, a fim de examinarmos se se trata, sem que o saibamos, de um produto indigno de ser alimentado, e sim vento e falsidade. Ou então pensarias, porque ele é teu, que é preciso de toda maneira criá-lo e não expô-lo? Suportarás, ao contrário, que se faça a crítica dele aos teus olhos, sem que te aborreças no caso em que teu primeiro rebento te for tirado?” (9)

Por isto é questionável o dito de Cícero, que afirmou que Sócrates criou uma “dialética puramente negativa, que se abstém de pronunciar qualquer julgamento positivo” (10). A partir do exposto acima, fica claro que é no mínimo simplista pensar nos diálogos aporéticos como dotados de uma qualidade totalmente “negativa”, ou seja, como que exercícios de demolição de presunções ao saber, sem nenhuma “construtividade positiva” envolvida no processo. Não é exato dizer que Sócrates procura levar seus interlocutores à confusão e ao desnorteio, abandonando-os com os estilhaços do que acreditavam ser um saber confiável mas mostrou-se, frente à argumentação inquiridora do filósofo, como insustentável.

É possível, pois, interpretar os diálogos aporéticos como dotados de uma certa “positividade” subjacente ao processo socrático: é como se ele destruisse para poder melhor construir.

“Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos e opiniões. É este o momento da ironia, isto é, da crítica. (…) A instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.” (11)

IRONIA SOCRÁTICA

Outra característica comumente vinculada a Sócrates é a ironia (em grego, eironeia). “A ironia socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute” (12). Nas palavras de Cícero, uma recorrente atitude do filósofo era “se diminuir e elevar aqueles que desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os gregos denominam ironia (Acad., IV, 5, 15)”.

Em sua interpretação das razões que levaram Atenas à condenar o filósofo, I. F. Stone frisa que seus procedimentos irônicos contribuíram muito para a antipatia gerada contra ele. Stone procura mostrar que há “um toque de crueldade para com seus interlocutores” na persona socrática (que, não à toa, teve discípulos que depois criariam a escola dos cínicos, tal como Antístenes):

“O que havia de mais humilhante – e irritante – no método socrático de investigação era o fato de que, ao mesmo tempo que era demonstrada a realidade da ignorância dos outros, estes eram levados a pensar que a suposta ignorância de Sócrates era puro fingimento e ostentação. (…) Seus interlocutores sentiam que, por trás da ‘ironia’, da máscara de falsa modéstia, Sócrates na verdade estava rindo deles. É essa a crueldade que se esconde nas entrelinhas do relato platônico, com todo o seu fino humor aristocrático; e o efeito dessa politesse é torná-la ainda mais terrível.” (13)

A ironia socrática, como a descreve Stone, aparece como uma espécie de “arma” utilizada pelo filósofo visando “fazer com que todos os notáveis da cidade parecessem tolos e ignorantes”, de modo que a ação de Sócrates na arena pública era um fator de “aviltamento dos mais respeitados líderes da cidade”. (14)

Convêm, porém, nuançar um pouco esta imagem de Sócrates como um “gracejador”, um “tirador de sarro” ou um “proto-cínico”, que conduziria a uma concepção do filósofo como um cômico provocador e nada mais — o que seria um empobrecimento de sua figura. Lembremos, por exemplo, que no Livro V da República Sócrates manifesta-se contrário aos “gracejadores”, sustentando que

“É insensato aquele que julga ridícula outra coisa que não seja o mal (…) e que tenta excitar o riso tomando para objeto de suas zombarias outro espetáculo que não seja a loucura e a perversidade”. (15)


EUTÍFRON

Um bom exemplo do procedimento refutativo socrático encontra-se no Eutífron, diálogo em que Sócrates dialoga com um sacerdote que se encaminha para o tribunal para acusar seu próprio pai pelo homicídio de um empregado. Este texto platônico já flagra Sócrates na fase final de sua vida, quando ele já havia sido “indiciado” por Meleto e preparava-se para ir a julgamento; tanto que se lermos na sequência o Eutífron, a Apologia, o Críton e o Fédon, notamos que estes quatro diálogos constituem um pormenorizado relato “romanceado” da “via-crúcis” socrática, por assim dizer, incluindo seu julgamento, sua fala no tribunal e sua condenação à morte (Apologia), sua temporada na prisão e a frustrada tentativa de seus amigos de persuadi-lo a fugir (Críton), e enfim a cena em que Sócrates bebe a cicuta depois de “edificar” seus discípulos quanto à questão da imortalidade da alma (Fédon).

Destes quatro diálogos, o Eutífron possui a peculiaridade de ser o mais incisivamente refutativo, já que o filósofo conduz seu interlocutor não só a um estado de confusão, mas a uma “evasão”: o questionado prefere fugir da conversa a prosseguir arguindo com Sócrates.

Como de praxe, Sócrates dialoga com um interlocutor que é reputado sábio ou que tem a orgulhosa presunção de sê-lo. “Afirmas que conheces mais do qualquer outra pessoa a respeito de matérias atinentes aos deuses”, diz a Eutífron um Sócrates que soa irônico e provocativo (16). Eutífron, que possui plena convicção de que sabe distinguir o Bem do Mal, o pio do ímpio, o sagrado do profano, verá que o diálogo com o filósofo o conduz ao desnorteio, quando antes de seu caminho se cruzar com o de Sócrates parecia não ter dúvida alguma de estar agindo de modo idôneo e moralmente irreprochável ao acusar seu próprio pai de homicídio.

“Se não tivesses um claro conhecimento do religioso e do irreligioso”, diz-lhe Sócrates, “decerto não terias ousado processar teu velho pai por homicídio em defesa de um servo. Terias temido o risco de incorrer na ira dos deuses no receio de uma conduta incorreta e te sentirias envergonhado diante dos homens.” (17)

A situação que os dois discutem representa uma espécie de dilema moral para um filho, confrontado com seu dever cívico de denunciar um crime e sua fidelidade ao próprio pai. Eutífron, dando primazia à um certo senso de “dever” moral sobre a lealdade sanguínea, dirige-se ao tribunal para prestar queixa contra o próprio pai, que havia lançado um de seus servos numa vala, depois que este havia matado um homem numa briga. O servo, sem água ou comida, acabou falecendo.

No decorrer do debate, Sócrates solicita de seu interlocutor que lhe dê uma noção geral de “piedade”, e não somente exemplos de ações pias ou ímpias: “eu não lhe havia pedido que me ensinasse uma ou duas das muitas ações pias, e sim a feição (êidos) mesma pela qual tudo que é piedoso é piedoso” (18).

Eutífron, a princípio, sustenta a tese de que tudo aquilo que é agradável aos deuses é piedoso, e que, pelo contrário, comete uma impiedade todo aquele que age de um modo que desagrada aos deuses. O que Sócrates lhe mostra é que este argumento, que até teria chances de se sustentar num contexto monoteísta, mostra-se frágil e contraditório no universo religioso grego dominado pelo politeísmo, em que concebia-se que os deuses podiam muito bem discordar e brigar entre si.

“Não seria de se surpreender”, argumenta Sócrates, “se ao punires teu pai como estás fazendo estivesses realizando uma ação cara a Zeus, mas odiosa a Cronos e Urano, e cara a Hefaístos, mas odiosa a Hera”. (19) Eutífron admite que Sócrates tem razão e vê esfacelar-se, portanto, a definição que havia fornecido de “ato piedoso”. Ambos partem em busca de um conceito melhor de “piedade”, que possuísse a universalidade sempre requerida por Sócrates para uma definição satisfatória.

Os dois se enredam em debates sobre o que representaria aquilo que agrada ou desagrada a todos os deuses, sem exceção, e que poderia servir como definição do ato piedoso perfeito. Inspeccionam a natureza do “comércio” entre homens e deuses, em que sacrifícios, oferendas e preces humanas são dedicadas aàs divindades. Afinal, Sócrates vê seu interlocutor praticar uma “fuga” do debate, provavelmente por sentir-se incapaz de fornecer ao filósofo respostas que o satisfizessem: “Indo embora me deixas abatido e órfão da grande esperança que nutria de aprender de ti o que é o religioso e o que não é, podendo livrar-me da ação pública movida por Meleto mostrando-lhe que obtive sabedoria acerca de assuntos divinos de Eutífron, não sendo mais vítima da ignorância que me leva a ser descuidado e inovador em relação a essas coisas…”.(20)

A antipatia e o ódio que Sócrates despertou em muitos de seus contemporâneos, e que se explica em parte por sua ironia, seu abstencionismo político, sua tendência a “destronar” homens reputados como sábios, talvez se explique também por uma certa postura anti-democrática que um comentador moderno como I. F. Stone diagnosticou no filósofo. Sabe-se que, como exposto na República de Platão, a “cidade ideal” seria gerida por um filósofo-rei; ou seja, a democracia ateniense como existia na era de Sócrates deveria ser substituída por uma espécie de “aristocracia do saber”, por assim dizer, em que não faltam certos elementos do que hoje chamamos de totalitarismo. Sabe-se ainda que alguns dos discípulos de Sócrates, tal como Alcebíades e Cármides, não foram muito benquistos pelos democratas atenienses por suas ações políticas.

Em seu comentário crítico sobre o Eutífron, Stone procura apontar esta problemática posição política de Sócrates, que neste caso parece manifestar uma certa “indiferença” em relação ao criado que o pai de Eutífron acabou matando com sua severa punição.

“Nem uma única vez Sócrates manifesta sentimento algum de piedade em relação ao pobre trabalhador sem terra. Seus direitos jamais são mencionados. Teria sido uma atitude ‘piedosa’ deixá-lo exposto ao frio e à fome, enquanto o proprietário resolvia, sem nenhuma pressa, o que fazer com ele? (…) Sem dúvida, é terrível um filho levar o pai a julgamento. Mas, segundo os critérios atenienses e gregos, o pai não podia inocentar-se em relação à morte do trabalhador sem ter sido julgado. (…) Se ninguém maisia levar aquele proprietário à cerimônia de purgação que representava o julgamento, então não seria dever de seus filho assumir essa tarefa dolorosa?” (21)

I. F. Stone diagnostica na postura socrática no Eutífron um certo “preconceito de classe” tácito que seria “reflexo do desprezo que Sócrates sentia pela democracia”, tese que o livro O Julgamento de Sócrates insiste em frisar através de vasta documentação histórica. Segundo Stone, Sócrates teria tratado o homem que o pai de Eutífron matou como um “mero criado”, indigno de compaixão, jamais em momento algum do diálogo reconhecendo que um crime sério havia sido cometido, e que seria uma injustiça a impunidade de um poderoso num caso em que a punição havia caído sobre o “despossuído” com tamanha força (e de um modo fora da legalidade).

“Eutífron é ridicularizado no diálogo, sendo encarado como uma espécie de fanático supersticioso, mas sua atitude é mais humana que a de Sócrates”, sustenta Stone. “Evidentemente, Eutífron julgava que o que estava em questão era um dever que transcendia as obrigações filiais e diferenças de status e classe. Sócrates deixa de lado esse aspecto da questão. A idéia de que todos são iguais diante da lei, ou de justiça social, jamais é discutida no diálogo. (…) A indiferença manifestada por Sócrates em relação ao empregado teria parecido a seus concidadãos semelhante à indiferença com que ele havia encarado a situação dos thetes em 411 e 404 a.C. (…) [Sócrates] não se exilara durante nenhum dos períodos da ditadura, nem participara da restauração do regime democrático. Sócrates não manifestava nenhum interesse pelos direitos dos pobres, nem pela justiça social. A atitude de Eutífron é que era democrática.” (22)


A BARCA FATAL


“Para o mesmo lugar somos todos tangidos e a sorte,
que mais cedo ou mais tarde há de vir,
e há de na barca pôr-nos para o eterno exílio,
já na urna se agita.”

(HORÁCIO) (23)

Outra característica essencial de Sócrates, que se manifesta na Apologia platônica e em diálogos como o Críton e o Fédon, é a idéia de que a virtude deve prevalecer sobre o temor da morte. Aquilo que o homem considera ser o justo e o virtuoso deve ser sustentado até frente ao último abismo, até mesmo sob a mais letal ameaça.

O julgamento de Sócrates, que este enfrenta já no outono de seus anos, mostra-nos um velho filósofo que demonstra muita ousadia quando ameaçado com uma punição que faria tremer em suas bases a maior parte dos homens. E assim se explica: “À morte não ligo mais importância que a um figo podre, mas a não cometer nenhuma injustiça ou impiedade, a isso sim dou o máximo valor” (24).

Lembremos que Sócrates recusa-se a adotar métodos sentimentalóides, como súplicas entre lágrimas e dramas lamurientos, na tentativa de “amolecer o coração” de seus juízes e conquistar sua absolvição. O filósofo está convicto de não ter culpa alguma e não irá fazer uma falsa confissão com o intuito de retirar seu pescoço do gládio — ou sua língua da cicuta. Sócrates já está próximo da morte quando é julgado, e sabe disso; mas não se esgoela, se descabela ou se descontrola frente a esta perspectiva tão acabrunhante para a maioria de nós. Sua postura frente à Grande Foice que nos ceifa a todos é mais de serenidade e resignação que de angústia e apreensão.

É só trazer à mente a cena em que Críton, visitando seu mestre na prisão de Atenas, após este ser condenado à morte, admira Sócrates enquanto este dorme, depois comunicando o quanto ficou maravilhado com a “placidez” do sono e com a “brandura” com que o filósofo suporta sua “desgraça”. E admira que Sócrates aja sem dar mostras de dilaceramentos e transtornos de angústia estando numa situação que deixaria quase todos homens em estado de “aflição”. (25)

No discurso frente aos juízes, segundo a Apologia, Sócrates não tem a pretensão de saber com certeza o que a morte é: supor deter um conhecimento como tal, aliás, seria ser infiel ao seu princípio “sei que nada sei”. Mas ele imagina que a morte só possa significar uma de duas coisas, e que ambas lhe aparecem como perspectivas “agradáveis”.

“Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! (…) Se, de outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? Se, chegando ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes (…), não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero? Por mim, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso…” (26)

Isto se assemelha a uma argumentação semelhante, mas de cunho epicurista, referendada por Lucrécio em seu clássico De Rerum Natura, obra na qual o poeta latino, discípulo de Epicuro, procura contribuir, entre outras coisas, para livrar a humanidade das superstições e do medo da morte. Lucrécio decerto não imagina a possibilidade de uma “transmigração” da alma, o que não se coadunaria com seu materialismo, mas também procura persuadir o seu leitor de que a idéia da morte não deve afligi-lo. Montaigne cita e comenta o trecho nos seguintes termos:

“Se soubestes usar a vida e gozá-la quanto pudestes, ide-vos e vos declareis satisfeitos; ‘por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado?’ (Lucrécio) Se não a soubestes usar, se ela vos foi inútil, que vos importa perdê-la? E se ela continuasse em que a empregaríeis? ‘Para que prolongar os dias de que não se saberá tirar melhor proveito do que no passado?’ (idem)” (27)

Decerto que a hipótese socrática sobre a morte, que concebe a possibilidade de uma continuação da vida no Hades e que mantêm viva a esperança de uma imortalidade da alma (que um diálogo como o Fédon se propõe a provar), soa mais otimista que esta de Lucrécio (que talvez possa ser considerado muito mais como um precursor de Schopenhauer). Mas o paralelo serve para frisar o quanto a filosofia, desde os seus primórdios gregos, e já na persona de Sócrates, teve como uma de suas tarefas esta: a de exorcizar o terror frente à morte que apavora tantos seres humanos através da história. Tanto que Montaigne pôde dizer que “filosofar é aprender a morrer”.

“Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade: ela corre mais ligeira que a morte” (Apologia, op cit, pg. 36). Com estas palavras, Sócrates destaca uma vez mais que sua preocupação é muito mais a “sanidade moral da alma”, por assim dizer, do que uma instintitiva e horrorizada recusa da morte. “Para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude” (op cit, 34), aponta, de certo modo apontando a si mesmo como alguém que, através de seus incômodos questionamentos, contribui para uma espécie de “evolução moral” da comunidade.

“Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude…” (op cit. 27), destaca Sócrates, garantindo aos atenienses que “enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixará de filosofar” e “há de repreendê-los por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos” (op cit., 26).

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REFERÊNCIAS:

1 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Ed. Cultrix, 5a edição. Tradução direto do grego de Jaime Bruna. Pg. 17.
2 GIANETTI, Eduardo. Vícios Privados, Benefícios Públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 7a ed, pg. 28.
3 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática, 5a edição. Pag.38.
4 PLATÃO. Apologia. Op cit. Pg. 33.
5 XENOFONTE, Apologia, 16-17 (Loeb 4:651).
6 PLATÃO. Teeteto. 150 bc.
7 VERNANT, Jean-Pierre. Mito & pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Ed. Paz e Terra. 2 a edição. Pgs. 233-234.
8 O rito das Anfidromias, como explica Vernant, é uma espécie de equivalente grego do cerimonial cristão do batizado: “festa familiar celebrada, conforme o caso, no quinto, no sétimo ou no décimo dia a partir do nascimento, a cerimônia coincide por vezes com a imposição do nome à criança; mas a sua função própria é consagrar o reconhecimento oficial do récem-nascido por seu pai.” (op cit, pg. 229).
9 PLATÃO. Teeteto, 160c-161a.
10 CÍCERO. Sobre a Natureza dos Deuses, 1.5.11 (Loeb 19:15).
11  PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1974. 10a edição. pg. 112.
12 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.Trad. Alfredo Bosi. Editora Martins Fontes. Ed. 674.
13 STONE, I. F. O Julgamento de Sócrates. Trad Paulo Henriques Britto. Ed Companhia de Bolso, 1a ed. Pg. 108.
14 STONE, I. F. Op cit, pg. 109.
15 PLATÃO. A República. Livro V. Ed. Abril Cultural, pg. 153.
16 PLATÃO. Eutífron. 13e.
17 Op cit. 14 d-e.
18 Op cit. 6e.
19 Op cit. 8e.
20 PLATÃO, Eutífron. 16a.
21 STONE, I. F. Op cit. Pg 180-181.
22 STONE, I. F. Op cit. Pg 184-185.
23 HORÁCIO. Odes. Primeiro Livro, 25-30. Consultado em: http://lingualatina.pro.br/pdfs/horacio.pdf.
24 PLATÃO, Apologia, op cit, pg. 29.
25 PLATÃO, Críton. Pg. 119.
26 PLATÃO. Apologia de Sócrates, Op cit, pg. 37-38.
27 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, Livro I, capítulo 20. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1972, pg. 53.

“Do mesmo modo que a mâia liberta as mulheres que sofrem do parto, Sócrates liberta os jovens das verdades que conservam em si, sem poder trazê-las à luz. Mas sua arte vai mais longe que a das parteiras comuns: cabe-lhe a incumbência de ‘pôr a prova’ o rebento engendrado, a fim de discernir se se trata de um falso semblante enganador ou de um produto de boa estirpe e autêntico.”