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A pandemia deixa lições claras: “o novo coronavírus se alastrou pelo mundo graças à ação destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza”, como afirmou o pesquisador Allan Carlos Pscheidt ao Brasil de Fato[1]. Um grande aprendizado da ecologia pode ser absorvido pelos indivíduos que vivem e refletem durante a quarentena do COVID-19. Somos apenas mais uma espécie no planeta Terra. Nossa soberba e irrefletida sanha de dominar os mais distantes quinhões da Terra com um modelo homogeneizado de relação ser humano-natureza colheu mais uma pandemia.
Imagine que delícia para um vírus aprender a se alimentar e aprender a viver no e do corpo humano. Pra quê se contentar de viver de/em morcegos, pangolins, cobras? O sonho de um vírus com pretensões “reais” é ser coroado como o desbravador de corpos humanos.
O reino microscópico ficou em alvoroço com mais essa conquista da evolução. A dinâmica da evolução microscópica é acelerada, a variabilidade genética boia no meio biótico. Crie a condição de um vírus conviver entre seus parentes que eles trocarão informações. Surgirá o suprassumo da seleção natural.
Um vírus com potencial pandêmico é aquele que balanceia transmissibilidade com letalidade. Se pesa demais na letalidade, seu hospedeiro padece rápido demais para se propagar. Se é pouco transmissível dá tempo para ser isolado e erradicado (saiba mais na Netflix: Explicando… Coronavírus[2]).
Para completar a performance desse novo jogador da evolução biológica, além de transmissível por vias aéreas, ele permanece de poucas horas no alumínio até 5 dias no plástico, e é possivelmente transmissível por via fecal-oral[3]. SARS-COV-2 disputa o páreo com Influenza e joga com ferramental qualificado.
Esse vírus é também sorrateiro, pode ficar até 14 dias para manifestar sintomas mais agudos, ou pode simplesmente não manifestar, usando pessoas como pontes para chegar em redes e perfis específicos, como exposto por Átila Iamarino [4]:
Na perspectiva de um parasita, a super população humana dá “água na boca”. É a mesma lógica das “pragas” que atacam uma monocultura. Monoculturas de soja dão água na boca da mosca-branca [5]. Se tivéssemos uma alfabetização ecológica [6] não ficaríamos assustados com a COVID-19.
O que assusta de fato é achar que o único caminho é fazer ambientes estéreis, itens descartáveis [7], manter as metrópoles superpopulosas e poluídas, sem saneamento, até que se encontre uma vacina para que possamos voltar à normalidade. O problema é a antiga normalidade!
Agora o Sars-CoV-2, covid-19 ou coronavírus – nomes dados ao vírus responsável pela pandemia em curso – parece apontar uma nova data para a mudança do século. Isso porque, segundo numerosos analistas, estaríamos diante de um evento que mudará a dinâmica do mundo contemporâneo. O nascimento do novo século – mais simbólico que cronológico – pressupõe mudanças culturais, sociais, econômicas e tecnológicas que reorganizarão os modos de vida e, sobretudo, as políticas de controle das populações (o que Michel Foucault chamou de biopolítica), bem como as políticas de controle das mentes (que Byung-Chul Han chama de psicopolítica), e que visam à otimização da produtividade por meio da autoexploração: cada indivíduo torna-se sua própria empresa, cujo sucesso ou fracasso só depende de si. [9]
A sociedade global precisou de duas décadas do novo século para cair na real da crise ecológica?
O retorno à antiga normalidade significa postergar a solução das causas das crises ecológico-sanitárias. A saúde humana é um estado complexo condicionado pelos determinantes sociais da saúde, que inclui uma relação dialética entre saúde humana e saúde ambiental. Ninguém se mantém muito tempo saudável em um ambiente doente.
Quando seu corpo demonstra padecer com sintomas de uma doença, o sábio altera hábitos, práticas e alimentações para auxiliar o sistema imunológico para superar a doença. Quando uma reação alérgica desponta, o sábio limpa o ambiente e se afasta do elemento alérgico.
As mudanças climáticas sozinhas não conseguiram despertar as massas para uma mudança de paradigmas de produção e consumo global. Perdemos a comunicação com as estações, com a dinâmica das águas, com os signos sutis do clima. Será que uma pandemia conseguirá?
Dizem que o peso de todas as formigas do mundo ultrapassa a massa de todos os seres humanos[10]. Porque a crise ecológica não foi desencadeada pelas formigas? Porque elas estão fazendo sua função ecológica. Nós, seres humanos, estamos fazendo nossa função? Estamos em contato com os sinais da natureza? Estamos buscando aprender essa linda enciclopédia ou estamos exterminando-a da forma como exterminamos culturas inteiras?
[3] Uma pequena porcentagem de indivíduos com coronavirus teve SARS-COV 2 identificados em seus tratos gastrointestinais: https://www.rivm.nl/node/153991?fbclid
“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.” ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]
CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes
Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.
Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).
Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa)[3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker[4].
O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.
Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.
Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].
É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.
Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.
Pintura de Arnold Boecklin
CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA
Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.
Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.
Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?
Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.
Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.
É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.
Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota. A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]
Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]
História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.
CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS
Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.
Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.
Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].
Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”
Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Críton – o filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.
O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.
CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO
Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray[14].
No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].
Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:
“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?
A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]
Alves comenta:
“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]
Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.
“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]
Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]
Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:
“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.
Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.
“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.
O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]
CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA
Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil[21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.
O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.
No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]
A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas. Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.
Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:
“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]
O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]
Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica[25].
CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE
No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]
No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.
No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.
O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].
Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?
O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus. Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.
Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica.[28]
O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.
Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.
A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.
No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]
Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.
CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO
A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.
Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).
Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.
O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992
Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.
– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]
Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte).
Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.
Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.
Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.
Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]
REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS
[1] CAMUS, Albert.Núpcias / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.
[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.
“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”
[3] PESSOA, Fernando.Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:
NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.
[4] BECKER, Ernest.A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:
[10] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ed Record, 2004. [11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual. [12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia. [13] CAMUS, A. La Peste. Folio: 1999, Pg. 191. [14] ONFRAY, Michel.A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult. [15] ALVES, Marcelo. Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas. [16] CAMUS.Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80. [17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [20] RIBEIRO, Hélder.Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90. [21] BBC News Brasil.‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus. [22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [24] CAMUS, A. La Peste. Op cit. [25] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro. [26] ALVES, M. op cit, idem nota 15. [27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”
[28] CONCHE, Marcel.Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George.História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A.O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito porImmanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A.O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.
Octavia Butler (1947 – 2006), em entrevista concedida em Maio de 1999, disse algo profundamente significativo: “Perguntei a mim mesma qual era a força mais poderosa na qual podia pensar? O que não podemos impedir, não importa o quanto tentemos? A resposta que encontrei depois de alguma reflexão foi: a Mudança. Podemos fazer muitas coisas para influenciar os constantes processos de mudança. Podemos direcioná-los, alterar sua velocidade ou impacto. Em geral, podemos moldar a mudança, mas não podemos impedi-la, a nenhum custo. Por todo o universo, a realidade constante é a mudança.
(…) No budismo, a mudança também é muito importante: já que tudo é impermanente, só podemos evitar sofrimento ao evitar apego, pois tudo a que poderíamos nos apegar está fadado a perecer. Lauren Olamina, a protagonista de ‘A Parábola do Semeador’, diz que, já que a mudança é a única verdade inescapável, mudança é a argila primordial das nossas vidas. Para vivermos de forma construtiva, precisamos aprender a moldar a mudança quando pudermos e a nos render a ela quando necessário. De todo modo, devemos aprender e ensinar, nos adaptar e crescer.” (São Paulo: Editora Morro Branco, 2018, pg. 415 – 416)
A aclamada autora de ficção científica revela aí um pouco de sua filosofia de vida. A Editora Morro Branco, que a publica no Brasil, destaca: “Apesar de enfrentar muito preconceito em uma área dominada por homens brancos, Octavia Butler foi uma autora que abriu caminho para que outras prosperassem na ficção especulativa e um dos nomes mais fortes quando se fala em afrofuturismo.”
O livro descreve “uma crise ambiental e econômica que leva ao caos social. Nem mesmo as cidades muradas estão seguras. Em uma noite de fogo e morte, Lauren Olamina, a jovem filha de um pastor, perde sua família e seu lar. É obrigada a se aventurar pelas terras americanas desprotegidas. Mas o que começa como uma fuga pela sobrevivência acaba levando a algo muito maior: uma visão estonteante do destino humano. E ao nascimento de uma nova fé.”
Se “Deus é Mudança”, a protagonista do romance sci-fi distópico de O. Butler está disposta a não ser apenas vítima do que muda, mas também aquela que molda a mudança. Lauren Oyá Olavina atravessa, nas 400 páginas do livro, um turbilhão de transformação que não escolheu. São mudanças que surgem como imposições de um destino cruel: um futuro não muito distante, já que tudo se passa entre 2024 e 2027, Los Angeles virou de fato um cenário Mad Max. A adolescente Lauren é jogada na estrada pela violência de um contexto pós-apocalíptico que também evoca The Road – filme de John Hillcoat baseado na obra de Cormac McCarthy.
Esta sementeira de outros amanhãs possíveis sofre de uma condição psicofisiológica, que é também um ethos, descrita por O. Butler como “hiper-empatia”. Parece-me bastante irônica a atitude da autora quando chama isto de síndrome ou de doença – o que ocasionou que alguns desavisados da imprensa e da crítica literária, a exemplo do Estadão, pudessem escrever que na obra “a sensibilidade é tratada como doença” (https://bit.ly/355QItq). Não é bem assim: a hiper-empatia de Olavina não é justamente a virtude que precisamos para transformar o mundo para melhor, ainda que “possuí-la” torne o sujeito muito mais vulnerável a sentir as dores de outrem, além das suas?
Lauren, relatando como é difícil para ela “aguentar o compartilhamento da dor alheia” (p. 117), leva-nos a pensar numa tendência humana bastante comum e disseminada, a vontade de recalcar, reprimir e não atentar para quaisquer sofrimentos que não nos atinjam diretamente (o que é outro modo de descrever o egoísmo mais empedernido). A tal da síndrome de “hiper-empatia” de Lauren só é considerada anormal e aberrante em contraste com quase todos os humanos a seu redor, que aparecem embrutecidos, agressivos, violentos, piromaníacos, capaz de destruir o que resta de beleza e gentileza no mundo sem derramar uma lágrima.
É evidente que ser hiper-empática não é sentido por Lauren como uma dádiva – seu sensor à dor alheia, estando tão afinado, lhe conduz à dificuldade extraordinária de ser uma espécie de Atlas da compaixão, como quem sente as dores de todo o mundo a ponto de todos os fardos caírem sobre seus ombros. Mas é talvez justamente esta insuportabilidade do sofrer coletivo que impele as pessoas revolucionárias a embarcarem na estrada da consciente “moldação da mudança”?
– Eu não brigava muito quando era criança porque me dóia muito. Sentia cada golpe que dava, como se tivesse atacado a mim mesma. (p. 21)
Google faz homenagem à escritora californiana Octavia Butler.
Há também um certo humor na descrição sagaz que O. Butler faz das desventuras de Lauren, pois os outros, que conhecem sua condição hiper-sensível, acabam por brincar com isso: em um episódio memorável, ela conta que seu meio-irmão Keith “usou tinta vermelha para me enganar e me fazer sangrar em solidariedade a um ferimento que ele não tinha.” (p. 135)
Keith e Lauren, neste momento da epopéia, estão ainda vivendo em uma comunidade murada, rodeada pelo caos da convulsão social. Não há segurança alguma intra-muros: nesta distopia, colapsou totalmente a “lógica do condomínio” de que nos fala Vladimir Pinheiro Safatle (https://bit.ly/2VzJTgy). Tudo é de uma grande precariedade existencial e se sente que os personagens podem morrer violentamente a qualquer instante. O plano de Keith é se mandar para Los Angeles, a 32 km de onde vivem, mas o caminho para lá é repleto dum inferno terrestre à la Mad Max, que leva Keith a aconselhar sua meia-irmã:
– Lá fora, você não duraria um dia. Essa merda de hiper-empatia que você tem te destruiria mesmo que ninguém fizesse nada contigo. (p. 138)
Retrato de um mundo onde a empatia e a sensibilidade tornaram-se, para a consciência alienada hegemônica, vícios deploráveis e fraquezas a serem extirpadas. Mas é Keith quem poucos dias depois estará morto após ser barbaramente torturado. Lauren Olavina, hiper-empática, mostra-se não só como sobrevivente, resiliente, mas também como sementeira, criadora desta mescla de movimento social com religião new-age, o Semente da Terra (Earthseed). Lauren – e O. Butler através da boca de sua criatura – conclui diante das atrocidades horrendas que pululam à sua volta: “Se a síndrome de hiperempatia fosse algo mais comum, as pessoas não fariam essas coisas… Se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? (…) Eu queria poder dar isso às pessoas.” (p. 144)
A cruel pedagogia do vírus, ensaio do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, novo volume da coleção Pandemia Capital, disponível exclusivamente em e-book, é uma didática argumentação sobre os desdobramentos da pandemia do coronavírus à luz da situação econômica e política dos últimos anos.
Na obra, o autor reflete sobre as súbitas mudanças de hábitos impostas em todo o planeta, como o tempo dispensado aos filhos, a diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. Segundo ele: “Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas”.
Boaventura faz uma importante menção aos grupos mais afetados pela crise ao redor do mundo e credita ao capitalismo enquanto modelo social nossa inabilidade de fazer frente a ela: “Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar uma sociedade em que a humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita”.
Pandemia Capital é uma série especial de obras curtas, objetivas e com preços acessíveis que aborda a crise atual do novo coronavírus e suas implicações na sociedade, na psicologia e na economia.
Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais impactantes. Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de “volta à normalidade”, uma “normalidade” em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela qual o mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no modo como vivemos. “Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.”
“A publicação A Luta é Pela Vida reúne textos escritos por anarquistas em diferentes partes do planeta. Este é um esforço inicial de difusão das análises feitas no calor da situação em que nos encontramos por conta do surgimento e propagação do novo coronavírus, causador da Covid-19. São escritos produzidos em meio ao ronco surdo de uma batalha que travamos pela vida de cada um e não, como Estado vem fazendo, em torno da ideia de vida como ativador de dispositivos de segurança.
Sabemos que os textos não dão conta das especificidades de cada território, mas nosso objetivo ao editá-los é promover as análises que vêm sendo feitas nas últimas semanas para estimular novas publicações, comentário e trocas e sob uma perspectiva anarquista. São notas, sugestões, referências para uma luta em curso que podem inspirar ou auxiliar na busca de saídas.
Ao contrário do que os Estados tentam nos fazer crer, não é por meio do isolamento que vamos conseguir nos cuidar e resistir ao que nos é colocado. E com isso não estamos negando a necessidade de reforçar cuidados temporários na relação entre os corpos para evitar o adoecimento e a transmissão do vírus, e sim que isso não significa assimilarmos a quarentena, a atomização, o silêncio, a interceptação das trocas entre nós. É hora de inventar na luta sem descuidar da orientação ética que baliza nossas ações: a expansão da liberdade e da autogestão.
Tomar o isolamento como a principal maneira para combater a propagação do vírus explicita muito sobre qual situação enfrentamos e quais dispositivos securitários são ativados com os estados de emergência, de urgência, de sítio etc. Somado ao “(auto) cuidado” e a “prevenção”, os Estados tentam romper os laços solidários entre as pessoas, fomentando o medo para instaurar o pânico e o entendimento de que só é possível manter as vidas humanas por meio de uma solução única: uma individualização a ponto de ver em cada pessoa ao redor, um outro, um perigo, um potencial transmissor de uma pandemia.
A utopia governamental de controle total e irrestrito de nossas subjetividades ganha campo por meio de uma retórica de combate ao inimigo comum (i. e. de toda “espécie humana”) e que ao mesmo tempo pode estar habitando, de forma invisível, o corpo de cada indivíduo. Isso produz uma forma de regulação das mortes que é, a um só tempo, o mais genérica possível e extremamente individualizada. Assim atualiza-se e expande-se as funções assassinas do Estado, o seu racismo próprio. Tudo isso guiado pela precisão dos controles algorítmicos. A crise dá novos contornos aos controles biopolíticos e amplifica sua forma assassina, o racismo de Estado.
Desse modo, a responsabilidade passa a ser de cada um e de todos, o dano é pulverizado entre todas as pessoas e simultaneamente socializado. Contudo, no capitalismo, o gozo, o prazer, os benefícios, a bonança, são privados. E quando emergem catástrofes naturais, vírus, quando o uso da terra pelo sistema capitalista se mostra insustentável, insuportável, aparece o discurso de “precisamos cuidar do futuro de todos”, é preciso “socializar a responsabilidade”.
Por isso, entendemos ser necessário a difusão dos textos a seguir, pois trazem relatos de experiências de apoio mútuo, solidariedade e informações sobre autocuidado para nos ajudar a pensar, a partir do contexto de cada localidade, em práticas possíveis para responder à urgência da situação na qual o planeta se encontra.
Abraços solidários, saúde e anarquia!”
Anarquistas
no território dominado
pelo Estado brasileiro
OUTRAS LEITURAS BOAS PARA A QUARENTENA:
ALBERT CAMUS – “A PESTE”
BOCACCIO – “DECAMERON”
GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ – “O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA”
A pandemia do novo coronavírus é considerada por especialistas de diversas áreas como um evento com potencial para mudar o mundo. Nesse cenário onde conhecimento é poder, surgem questões que evocam as origens, dinâmica e epidemiologia dessa nova ameaça. A Casa de Vidro, em parceria com o Grupo de Estudos em Complexidade, aproveitou essa quarentena para realizar um debate sobre “A biologia do Coronavírus”, em que os jornalistas Renato Costa e Eduardo Carli de Moraes entrevistaram dois biólogos: Hauanny Rodrigues e Gabriel Ávila. Design do flyer por Marcelle Veríssimo (Instagram @zholograma). Link: https://youtu.be/s0onm5gaQtw.
A conversa se desenrolou a partir de uma pauta temática pré-preparada:
A importância do isolamento social na ação contra o espalhamento do vírus; a diferença entre iso. vertical vs horizontal; estudos do Imperial College de Londres previram 1 milhão de mortes no Brasil caso nenhuma medida fosse tomada para evitar o contágio, disseminando tal informação o virologista e influenciador digital Átila Iamarino foi considerado por alguns como “alarmista”, em contraste com a atitude de minimizar a pandemia como “histeria” e “resfriadinho” que caracterizou o campo Bolsonarista; na perspectiva de vocês, o prognóstico é alarmista ou realista? A capacidade de contágio do novo coronavírus excede de fato a de outros vírus conhecidos? Apesar de sua letalidade abaixo dos 5%, é plausível prognosticar óbitos que superem um milhão de vidas humanas em países de populações humanas q superam 200 ou 300 milhões, como é o caso de EUA e América, epicentros atuais da covid-19 nas Américas? Tais “alarmes” contribuem para que o próprio cenário catastrófico possível não se realize devido a medidas de prudência coletiva tomadas no sentido do isolamento social?
Considerando que nenhum estudo seja conclusivo quanto a sua origem genética precisa, sendo que não se encontrou uma variante 100% idêntica à causadora da Covid-19, muito ainda se especula sobre a origem do novo coronavírus. A revista Nature atestou sua origem biológica, mas sem apontar definitivamente qual o animal hospedeiro desta variação chamada SARS-Cov2. Considerando a imensa capacidade de mutação dos coronavírus em geral, qual seria o caminho mais provável da contaminação humana?
Em que medida as ações humanas no planeta, nesta era geológica que adentramos, o chamado Antropoceno, são causadoras não só das mudanças climáticas (Efeito Estufa), mas também das pandemias? A destruição de habitats naturais de outras espécies, a “tirania” especista que os animais humanos impõem aos animais cujas carnes desejam comer, o uso intensivo de agrotóxicos e OGMs, as monoculturas, a destruição de florestas tropicais, também são responsáveis por disrupções nos equilíbrios ecosistêmicos que ocasionam o espalhamento de pandemias?
Mais recentemente, um estudo chamado “Grandes Fazendas, Produzem Grandes Gripes”, do pesquisador estadunidense Rob Wallace, aponta para a relação entre a pandemia e o modelo agroindustrial de pecuária suína. A hipótese é que morcegos alojados em grandes granjas possam ter contaminado os suínos, que, por sua vez, possuem grande similaridade genética com os seres humanos, o que facilitaria a transmissibilidade. Essa parece uma tese viável?
Em algum momento, as mídias ocidentais, em seu conjunto, denunciaram o consumo humano direto da carne destes animais “exóticos“ no mercado de Wuhan, na China, como origem mais que provável. Quase que o atestaram, nas entrelinhas. Isto disparou uma série de conclusões apressadas e uma verdadeira crise diplomática, além de um movimento xenófobo anti-China, que chegou até o Brasil, principalmente entre os detratores do Partido Comunista Chinês. Por estigmatizar os hábitos alimentares chineses e, consequentemente, racializar o debate, muitos atacaram o país e suas autoridades. Qual seria o papel da ciência na moderação ética de conclusões rápidas e indevidas, no esclarecimento das responsabilidades e no encaminhamento de desagravos diplomáticos ou reparações jurídicas em caso de pandemia ou problemas similares?
Estudos, como o da revista ScienceMag, atestaram a presença de variações muito similares nos morcegos, e logo nos pangolins, um mamífero da ordem Pholidota, similar aos tatus. Este mesmo estudo, entretanto, aponta que outros infectados chineses não tiveram qualquer contato epidemiológico com o “mercado molhado” de Wuhan, onde animais vivos são efetivamente comercializados, porém com um rigor sanitário atestado por pesquisadores de diferentes países, inclusive em comparação com similares nos Estados Unidos e Europa. Qual o nível do rigor sanitário contra contaminações similares no mercado de carnes no Brasil?
As mutações genéticas impostas pela humanidade – os OGMs, as sementes transgênicas, os clones etc. – hoje são questionadas por várias vozes críticas, a exemplo de Isabelle Stengers: mega-corporações como a Monsanto ou a Friboi, com o argumento liberal da “liberdade de empreender”, estão pregando seu “direito à irresponsabilidade” (como diz Stengers, No Tempo das Catástrofes, p. 69), tratando catástrofes sócio-ambientais por elas ocasionadas como externalidades, além de defenderem seus direitos de patente sobre OGMs. Na perspectiva de vocês, as megacorporações, sobretudo agroalimentares, teriam alguma “culpa no cartório” no atual cenário pandêmico?
É compreensível que, nesta conjuntura, os sujeitos humanos sejam tomados pelo temor de serem invadidos por um vírus invisível que pode causar estragos consideráveis à saúde, deixar sequelas nos pulmões ou mesmo causar a morte; porém, a esta “fobia” específica contrasta com a afirmação de muitos cientistas de que aquilo que chamamos de organismo humano, na verdade, está povoado por milhões de bactérias, fungos, vírus – somos um “zoológico itinerante” e uma “casa de feras”, como afirmou Emanuele Coccia em entrevista recente (leia trecho a seguir). Vocês compartilham desta visão do ser humano como uma espécie de “comunidade inter-espécies” que usualmente não se percebe como tal?
“Todos somos cuerpos que transportan una increíble cantidad de bacterias, virus, hongos y no humanos. 100 mil millones de bacterias de 500 a 1.000 especies se instalan en nosotros. Esto es diez veces más que la cantidad de células que componen nuestro cuerpo. En resumen, no somos un solo ser vivo sino una población, una especie de zoológico itinerante, una casa de fieras. Aún más profundamente, múltiples no humanos, comenzando con virus, han ayudado a dar forma al organismo humano, su forma, su estructura. Las mitocondrias de nuestras células, que producen energía, son el resultado de la incorporación de bacterias. Esta evidencia científica debería llevarnos a cuestionar la sustancialización del individuo, la idea de que es una entidad en sí misma y cerrada al mundo y a la otredad. Pero también deberíamos eliminar la sustancialización de las especies …” Emanuele Coccia
A angústia causada pela impossibilidade de comprovar por meios racionais se existe vida depois da morte acompanha a humanidade desde seus primórdios. Imaginar que nos transformaremos em pó e que capacidades cognitivas adquiridas com tanto sacrifício se perderão irreversivelmente é a mais dolorosa das especulações existenciais.
Tamanho interesse no destino posterior à morte, entre tanto, contrasta com a falta de curiosidade em saber de onde viemos. O que éramos antes de o espermatozóide encontrar o óvulo no instante de nossa concepção?
Aceitamos com naturalidade o fato de inexistir antes desse evento inicial, em contradição com a dificuldade em admitir a volta à mesma condição no final do caminho. Como não existíamos (portanto, não fomos consultados para vir ao mundo), consideramos a vida uma dádiva da natureza, e nosso corpo, uma entidade construída à imagem e semelhança de Deus, exclusivamente para nos trazer felicidade, atender aos nossos caprichos e nos proporcionar prazer.
Essa visão egocentrada de quem “não pediu para nascer” faz de nós seres exigentes, revoltados, queixosos, permanentemente insatisfeitos com os limites impostos pelo corpo e com as imperfeições inerentes à condição humana. Assim, acordamos todas as manhãs com tal expectativa de plenitude e de funcionamento harmonioso do organismo que o desconforto físico mais insignificante, a mais banal das contrariedades, são suficientes para causar amargura, crises de irritação, explosões de agressividade e depressão psicológica, não importa que privilégios o destino tenha nos concedido até a véspera ou venha a nos conceder naquele dia.
Ao contrário da dificuldade em nos livrarmos desses estados emocionais negativos que nos consomem parte substancial da existência, as sensações de felicidade geralmente são fugazes, varridas de nosso espírito à primeira lembrança desagradável. Seria lógico esperar, então, que o aparecimento de uma doença grave, eventualmente letal, desestruturasse a personalidade, levasse ao desespero, destruísse a esperança, inviabilizasse qualquer alegria futura. Mas não é isso que costuma acontecer: vencida a revolta do primeiro choque e as aflições da fase inicial, associadas ao medo do desconhecido, paradoxalmente a maioria dos doentes com câncer ou AIDS que acompanhei conta haver conseguido reagir e descoberto prazeres insuspeitados na rotina diária, laços afetivos que de outra forma não seriam identificados ou renovados, serenidade para enfrentar os contratempos, sabedoria para aceitar o que não pode ser mudado.
Não me refiro exclusivamente aos que foram curados, mas também aos que tomaram consciência da incurabilidade de suas doenças. Naqueles, é mais fácil aceitar que o fato de ter sobrevivido à ameaça de perder o bem mais precioso e de ser forçado a lutar para preservá-lo confira à vida um valor antes subestimado. Quanto aos que sentem a aproximação inevitável do fim, no entanto, soa estranho ouvi-los confessar que encontraram paz e se tornaram pessoas mais relaxadas, harmoniosas, admiradoras da natureza, amistosas, agradecidas pelos pequenos prazeres, e até mais felizes.
– Troquei as noites frenéticas, de uma boate para outra até o dia clarear, por minhas plantas, pela algazarra dos passarinhos logo cedo, por meus livros, pelo café-da-manhã com minha mãe e o jornal – disse um de meus primeiros pacientes a descobrir que estava com AIDS.
Um colega de profissão, mais velho, tratado por mim de um câncer de próstata incurável, certa vez disse:
– Antes de ficar doente, eu nunca estava no lugar em que me encontrava: vivia alternadamente no passado e no futuro. Quantas coisas boas desperdicei por permitir que meus pensamentos fossem invadidos por memórias tristes ou contaminados pela ansiedade de planejar o que deveria ser feito em seguida. Era tão ansioso que chegava a puxar a descarga antes de terminar de urinar. A doença me ensinou a viver o presente.
Um rapaz de vinte e cinco anos que tratei de uma forma grave de linfoma de Hodgkin, tipo de câncer que se instala no sistema linfático, uma vez resumiu o amadurecimento prematuro que considerava ter adquirido:
– Sempre fui explosivo: brigava no trânsito, xingava os outros, ficava irritado por qualquer bobagem, já acordava chateado sem saber por quê. Quando entendi que podia morrer, pensei: não tem cabimento desperdiçar o resto da vida. Virei Albert Einstein, o defensor da relatividade: quando alguma coisa me desagrada, procuro avaliar que importância ela tem no universo. Descobri que é possível ser feliz até quando estou triste.
No ambulatório do Hospital do Câncer, quando perguntei a um maranhense iletrado, pai de quinze filhos e rosto marcado pelo sol, se a doença havia lhe trazido alguma coisa de bom, ele respondeu:
– O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo.
Custei a aceitar a constatação de que muitos de meus pacientes encontravam novos significados para a existência ao senti-la esvair-se, a ponto de adquirirem mais sabedoria e viverem mais felizes que antes, mas essa descoberta transformou minha vida pessoal: será que com esforço não consigo aprender a pensar e a agir como eles enquanto tenho saúde?
[DRAUZIO VARELLA. Por Um Fio]
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“Quando vier a Primavera”
Alberto Caeiro (F. Pessoa)
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Este é talvez o livro mais triunfalista e exultante de Nietzsche, mais cheio de uma saúde anunciada com trombetas e rodopios de dança! É talvez o mais solar, o mais primaveril, o mais “leve” dos livros nietzschianos. “Escrito na língua de um vento de degelo”, A Gaia Ciência representa, segundo o próprio Nietzsche, uma “vitória sobre o inverno”. Não se trata somente do inverno da doença, mas de outros invernos “da alma”: o pessimismo, o romantismo, o niilismo… “Tudo superado!” – eis o grito de júbilo que sai destas páginas!
Nietzsche, em A Gaia Ciência, canta como um pássaro que se ergue de uma queda, sentindo o retorno das forças às asas, celebrando uma felicidade alcançada depois de uma longa provação: “nossa beatitude se assemelha à do náufrago que alcança a costa e que põe seus pés na velha terra firme – espantado de não senti-la vacilar” (#46). Depois de longas peregrinações solitárias, em que o único diálogo era entre o viajante e sua sombra, entre o poeta-pensador e a colméia tumultuada de seus pensamentos e vivências, Nietzsche enfim sente-se tão transbordante de vida que quer enunciar ao mundo sua felicidade e descrever os contornos de sua “gaia ciência”. É uma obra que “transborda de gratidão, como se a coisa mais inesperada se tivesse realizado: é a gratidão de um convalescente – pois essa coisa mais inesperada foi a cura.”
Ora, quem conhece como foi a vida de Nietzsche sabe que esta criatura amaldiçoada pela impiedade da fortuna viveu adoentada. Atormentado por dores de cabeça pavorosas, parcialmente cego, isolado socialmente e “nômade” por causa da enfermidade (viveu na Suíça, na Itália, ao sabor de suas melhoras e recaídas…), Nietzsche foi um homem que pensou, escreveu, criou… em meio aos turbilhões infindos do sofrer. Após o colapso nervoso em Turim, em 1889, caiu na demência e sua última década de vida foi praticamente a de um “vegetal”: parou de produzir e ficou de cama, aos cuidados da irmã, até a morte em 1900, 11 anos depois de sua última obra. Nós, que já conhecemos o “fim da história” desta vida, talvez achemos um tanto estranho que Nietzsche se gabe de sua saúde e cante as “saturnálias” joviais que enchem estas páginas de A Gaia Ciência, saturadas da “esperança de sarar” e a “embriaguez da cura”… (p. 15)
É que os homens, quando escrevem, por mais proféticos que tentem ser, por mais que ponham sua fantasia a serviço da imaginação de um futuro plausível, nunca sabem realmente que surpresas e desgostos o futuro trará. Todos nós podemos ter certeza de que o futuro, seja como vier, será surpreendente e surpassará todas as nossas expectativas. Nietzsche, em A Gaia Ciência, dá a impressão de realmente ter atingido uma sanidade que derrama-se pelas páginas que escreve. É que não sabe que, no futuro, a terra vai voltar a vacilar, que certezas adquiridas nunca são tão fixas que ventos não possam vir desenraizar e que a saúde não é algo que se possa possuir indefinidamente…
“Este livro inteiro nada mais é que uma festa depois das privações e das fraquezas, é o júbilo das forças renascentes, a nova fé no amanhã e no depois de amanhã” – celebra Nietzsche. E estas “privações” e “fraquezas” a que Nietzsche se refere são abissais “fundos-de-poço” que ele pensa ter superado e que pretende ensinar-nos como superarmos: “deserto de esgotamento, de ausência de fé, de congelamento em plena juventude, essa senilidade que se introduziu onde não devia, essa tirania da dor, esse isolamento radical…” (16).
Contra todos estes males o espírito nietzschiano se insurge! Sua obra manifesta um intenso desejo de sarar, de superar sua doença, de vencer a força que puxa para baixo, de não ceder à decadência, de não se tornar impotente e ressentido… Em A Gaia Ciência, podemos vislumbrar algumas das espantosas paisagens emocionais e intelectuais deste homem que viveu boa parte da vida doente, mas cuja vontade e intelecto estavam intensamente votados à tarefa de conquista da “grande saúde”.
Por ter muito aprendido com o sofrimento, por ter dado a luz a tantas de suas ideias em meio a dores de parto excruciantes, Nietzsche não poderia ser um pensador para os “acomodados”, os fanáticos por “conforto”, aqueles que desejam manter a dor à distância de qualquer jeito. Segundo Nietzsche, a dor ensina-nos lições fundamentais que não poderíamos aprender se dela não cessássemos de fugir. A sabedoria de Nietzsche nasce de uma longa convivência – fecunda e frutífera! – com o sofrimento da doença, com a depressividade do pensamento, com tudo o que puxa para baixo e quer nos prostrar e nos reduzir à impotência dos fracos. Abismos de dor e de doença serviram para que Nietzsche se erguesse até os mil achados poéticos e críticas certeiras e passos-de-dança que constitui A Gaia Ciência!
“Retorna-se renascido de semelhantes abismos, de semelhantes doenças graves… retorna-se como se se tivesse trocado de pele… com um gosto mais sutil para a alegria, com uma língua mais sensível para todas as coisas boas, com o espírito mais alegre, com uma segunda inocência, mais perigosa, na alegria… retorna-se mais criança e, ao mesmo tempo, cem vezes mais refinado do que nunca se havia sido antes” (21).
Surge daí uma “visão de mundo” extremamente afirmadora, no sentido de que consiste no esforço consciente da vontade em dizer-sim à realidade, a tudo que se passa, a tudo que o tempo possa trazer, em aceitação jubilosa do existir, incluindo aí os sofrimentos, partes integrantes necessárias do viver. Nietzsche, no fundo, diz-nos algo de bem simples: não saia correndo do sofrimento como se ele fosse o mal encarnado, a coisa mais horrenda deste mundo, o mais demoníaco satanás . O sofrimento pode ensinar. Pode “aprofundar” nossa percepção. Pode mudar nossa “tábua de valores”. Podemos viver certas experiências sofridas que serão absolutamente cruciais para que nos tornemos capazes de alguma genuína felicidade! Em outras palavras: quem acha que vai ser feliz sem antes ter sofrido um bom bocado… este se ilude, se auto-inebria com uma quimera romântica, se engana no sonho de uma “felicidade perfeita” que só existe nos contos-de-fada.
“E se o prazer e o desprazer estivessem de tal modo solidários um com o outro que aquele que quer saborear ao máximo de um deve saborear ao máximo do outro – que aquele que quer chegar até a “felicidade do céu” deve também se preparar para ser “triste até a morte”? (#12)
O que Nietzsche procura realizar é uma completa “transmutação” no valor conferido ao sofrimento. Nietzsche quer que paremos de considerar o sofrimento como o inimigo e que comecemos a acolhê-lo com mais hospitalidade, como se faz quando vai se receber a visita de um… professor. O sofrimento é maldito pela maioria dos homens, Nietzsche bem o sabe: “se odeia agora o sofrimento mais do que antigamente… dele se diz mais mal do que nunca… e se vai mesmo ao ponto de já nem sequer se poder suportar a ideia dele… disso se faz uma questão de consciência e uma censura à existência em sua totalidade…” (p. 82)
Esta experiência individual de ser “erguido” pelo sofrimento, de aprender com as dores, de sair com “sabedoria” suplementar a cada ferida e cada cicatrização, Nietzsche a generaliza e a aplica à própria “vida das civilizações”, por assim dizer. Salta da psicologia para a sociologia, da experiência poética subjetiva à tentativa de meditar sobre a história da humanidade, ou mesmo sobre a história natural, e alega:
“Examinem a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos, e perguntem se uma árvore que deve elevar-se altivamente nos ares pode viver sem o mau tempo e as tempestades; […] veneno que mata o mais fraco é um fortificante para o forte – por isso ele não o chama veneno.” (#60)
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O “juízo dos homens fatigados”, conta-nos a pequena poesia do prelúdio #46, é a seguinte: “Todos os esgotados amaldiçoam o sol: para eles o valor das árvores… é a sombra!” (#46). Nietzsche, portanto, enxerga que estas “maldições”, que lançam os exaustos, contra os sóis da existência, é uma doença. E uma doença que diagnostica como comum aos cristãos, aos budistas, aos schopenhauerianos, aos românticos, a Wagner e Sócrates… O amaldiçoamento da existência é aquilo que Nietzsche quer criticar e superar: quer bradar um grande “SIM!” depois de ter, na história do pensamento, trombado com excessivos, taciturnos e rabugentos “NÃOS”. A todos que queiram sustentar que “esta vida não presta!” e que “seria melhor não ter nascido!”, slogans prediletos dos niilistas de todos os tempos, Nietzsche confronta dizendo que não, o sofrimento não é uma razão para caluniar a existência!
Nietzsche, se queixou-se tão recorrentes vezes de sentir-se “extemporâneo”, estrangeiro em sua própria época, incompreendido por seus contemporâneos, talvez seja pois não conseguia identificar-se com estes “homens de alma cotidiana que à noite, em vez de se parecerem como vencedores no carro do triunfo, têm o ar de mulas cansadas, demasiado fustigadas pelo chicote da vida…” (#111). Há em Nietzsche um pouco daquilo que nós brasileiros conhecemos por “não reclame de barriga cheia!” Um filosófo que sofreu pra caralho (só um palavrão cabe para sugerir quantias tão colossais de sofrimento!) nos diz que larguemos mão de ficar choramingando e amaldiçoando a existência por ninharias, por dorzinhas, por picadinhas de insetos…
A Gaia Ciência pretende ensinar o riso aos carrancudos. Pois “para rir como conviria os melhores não tiveram até agora bastante autenticidade, os mais dotados bastante gênio! Talvez ainda haja um futuro para o riso!” (#01) Nietzsche sabe muito bem o quanto os “professores de moral”, ou seja, pregadores, padres e pastores, são sérios e pomposos quando “se impõe como professores do objetivo da vida” (#42). Falam com muita empáfia e solenidade suas doutrinas sobre o “fim último da existência humana”, tentando convencer-nos, por exemplo, que o “sentido” está no sacrifício à uma divindade transcendente, numa vida humilde e retraída, voltada ao extermínio das propensões naturais do organismo, toda voltada ao ódio contra o corpo, a sexualidade e as alegrias terrestres… O “sentido da vida” não é gozar na terra, mas conquistar os céus! Assim dizem estes risíveis papagaios de altar! Riamos na cara deles!
Ora, segundo Nietzsche os “maiores progressos da humanidade” não foram os papagaios moralistas que promoveram! Mas sim aqueles “espíritos que reacenderam sem cessar as paixões que adormeciam – toda sociedade organizada adormece as paixões – despertaram sem cessar o gosto pelo novo, pelo ousado, por aquilo que ainda não foi tentado…” (#4). Ou seja: são os espíritos livres que contribuem para a “derrubada dos marcos fronteiriços”, para uma expansão do horizonte de possibilidades humanas.
Esta “abertura” nova produz temor naqueles que são fanáticos por reduzir tudo ao estado estável e duradouro de conhecido. A humanidade gostaria de adormecer no conhecido. Gostaria de crer que “sabe tudo”. Religiões são tentativas de “explicar tudo”, de tentar convencer os homens a terem fé na lorota de que há explicação para tudo, e que todas as explicações… se encontram na Bíblia, no Corão, na Torá!
Nietzsche nos convida a ir além desta estreiteza de horizonte, desta fé cega na ideia de que um Livro possui todas as respostas e todas as verdades. Quer nos fazer refletir e pensar num “âmbito” bem diferente daquele a que estamos acostumados: quer que pensemos “além do Bem e do Mal”, ou seja, sem maniqueísmo, sem “rachar” o mundo em bandidos e mocinhos, pondo sob suspeita o dogma de que os homens ou vão para o Céu ou queimam como frango-assados no Inferno…
Risível superstição! Que concebe um deus capaz de ser um juiz tão míope e tão injusto que seria como um professor que, diante do “alunado” humano, isto é, diante da Humanidade inteira, distribuiria apenas duas notas: zero e dez. Quão injusto seria este deus, se existisse, que só conheceria os extremos, que seria cego às flutuações, às gradações, aos degradês! Ou você é um santo, ou é um capeta! Ou presta, ou não presta. É 8 ou 80. Com este Poderoso Chefão não tem conversinha: ou você é a perfeição mais perfeita e imaculada, ou você é um calhorda vicioso e funesto que merece arder em chamas eternas e sofrimentos infinitos. Que delírio! Na História, tais delírios, infelizmente, não se restringem a permanecer fantasmas dentro de cérebros humanos, mas servem para motivar ações e influenciar a História.
Nietzsche pode até se referir a si mesmo como um “imoralista”, vez ou outra, mas isto não significa que ele não tenha suas preferências morais, ou seja, um certo ideal de “nobreza” ou de “liberdade de espírito” que ele procura… sugerir, definir os contornos, evocar poeticamente. O “espírito livre” é, certamente, alguém que se libertou das cegueiras e superstições da fé religiosa e que agora está entregue à aventura heróica de buscar, sem Deus, a gaia ciência, a grande saúde, a sabedoria terrena. “O que faz a nobreza de um ser é que a paixão que se apodera dele é uma paixão peculiar, sem que ele o saiba; é o emprego de uma medida singular e quase uma loucura; é a adivinhação de valores para os quais ainda não foi inventada balança; é o sacrifício em altares dedicados a deuses desconhecidos; é a coragem sem o desejo das honras; é um contentamento de si que transborda e que prodigaliza sua abundância aos homens e às coisas...” (#55)
Nietzsche, pois, deseja uma ciência que seja gaia, que alegre, que fortaleça, que dê mais saúde, mais luz, mais potência. Sabe que o sofrimento que às vezes nos atropela, as dores que a vida necessariamente nos reserva, todos os “golpes do destino” e todas as facadas das desventuras, podem contribuir para os aprendizados e as experiências que farão este savoir-vivre, esta sabedoria dionisíaca e afirmativa. Ao fim do Livro I, é como se Nietzsche ousasse abrir um sorriso de orelha a orelha, feliz em seu papel de convalescente e transbordante de saúde: “tive a ousadia de rabiscar no muro minha felicidade!”
Palavras extraordinárias, quando saídas da boca de um… filósofo! Nietzsche bem o sabe: é esta, a dos filósofos, uma “raça” enfermiça. Com tendências a alienar-se em “loucuras metafísicas”, em esquecer dos pés grudados-ao-chão para “viajar” por Cucolândia das Nuvens. É que a perspectiva de Nietzsche em A Gaia Ciência é mais a da exaltação da vida do que do elogio do conhecimento; é o ponto-de-vista de um filósofo que superou a filosofia e que permite-se ser também poeta, dançarino, palhaço, profeta… Nietzsche foi um dos primeiros que ousou erguer um brado contra os “homens racionais” que estão “encouraçados contra a paixão” (#57): a filosofia nietzschiana poderia ser vista como uma vasta campanha de reabilitação da paixão e tentativa de injetar vida nova às veias da filosofia, retirando-a das mãos dos zumbis e dos pregadores. Paixão deixa de ser vista como “pecado” – não é mais coisa suja, imoral e feia. Não é coisa que deva ser reprimida, podada, exterminada e culpabilizada de modo tão rígido e fanático quanto querem muitos homens-de-fé. Talvez seja… energia vital, utilizável de preferência em mil jorros vulcânicos de criatividade artística, de infindos tipos de passos de dança, de rimas e melodias, de piadas e sorrisos, de uivos e espantos…
...e aqueles que foram vistos dançando foram tidos por insanos por aqueles que não podiam escutar a música...
Há males que vem para o bem, dizem. Como se fossem males meramente aparentes, horrendos só na fachada, mas carregados de tesouros secretos. Como uma pessoa de rosto deformado, corcunda, mau-cheirosa, com bafo de onça, que ao primeiro contato nos causa repulsa, mas em quem encontramos um excelente coração e mil jóias de bondade que não estavam anunciadas na vitrine…
Males que vêm para o bem?… Mas suspeito que, nestes casos, as pessoas que sofrem os males é que conseguem encontrar neles um “lado bom”, uma vantagem, um encanto na vida que foi modificada, ainda que por um indesejado terremoto…
Ninguém deseja a doença, mas quando ela vem, melhor lutar contra ela sem perder o amor à vida, se possível, aproveitando até o que ela possa trazer de bom, em termos de aprendizado, experiência de vida, ampliação de horizontes limitados… Hão de perguntar: mas o que diabos uma doença pode trazer de bom, de fato?
Em primeiro lugar: acho que, apesar do sofrimento terrível que é sentir o próprio corpo ficar com defeito e dolorido, ou sendo atacado por outros organismos, roído por dentro pelas batalhas entre os invasores e os anti-corpos, abre-se a possibilidade, na doença, de um reconhecimento pleno da nossa mortalidade. As vísceras, e não o entendimento, aprendem a amarga lição: somos mortais. Sem apelação e sem motivo.
Dirão alguns que isto não é “bem” algum e que só nos traz um suplemento de angústia e desassossego, como se mais nuvens nubladas viessem somar-se aos temporais da doença… Mas, numa outra perspectiva, o aprendizado da mortalidade talvez seja essencial para o aprendizado da vida. E aprende-se a mortalidade muito melhor quando cai-se doente do que quando lê-se num tratado filosófico o silogismo tão repetido e, por isso, tão anêmico: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Portanto, Sócrates é mortal”. É nosso próprio nome que entra no lugar de “Sócrates” quando, num leito de hospital, numa mesa de cirurgia, sentimos a precariedade de nossa carne, a fragilidade de nossa vida…
E talvez aqueles que sabem que vão morrer vivam melhor do que aqueles que caminham de olhos vendados na direção do abismo. “De costas para o poente”, como diz o Rubem Alves. E para o abismo caminhamos todos, queiramos ou não, o que não impede que colhamos morangos pelo caminho…
“Para ficar sábio é preciso ser discípulo da morte. (…) Aqueles que contemplam a morte nos olhos vêem melhor, porque ela tem o poder de apagar do cenário tudo aquilo que não é essencial. Os olhos dos vivos tocados pela morte são puros. (…) São apenas duas as coisas que a morte nos diz de sua beleza crepuscular, resumo de toda sabedoria: tempus fugit, portanto, carpe diem.” (…) “Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe um crepúsculo, ‘antes que se quebre a corrente de prata, e se despedaçe a taça de ouro…’ (Eclesiastes 12.6). Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o abismo face a face, para compreender que o outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.” [RUBEM ALVES, As Cores do Crepúsculo]
É como se o mel fosse mais doce na língua de quem se sabe provisório. “Com esta língua que os vermes haverão de comer, devoro com pressa os frutos da terra!”… E com esta vida que se apagará, amo-te, meu amor, com um ardor de que são incapazes os que se julgam sóis imorredouros…
Talvez.
A doença, além de escola da mortalidade e, por isto mesmo, de sabedoria, pode também, me parece, servir como a ocasião para a descoberta da solidariedade. Algumas das mais belas cenas de Bergman prestam testemunho disso. Como em “Gritos e Sussuros”, quando a moribunda, acamada e enfeiada, em seus últimos suspiros, descobre a ternura e o desvelo logo na figura imprevista de sua criada. Interessante notar que esta figura “subalterna”, de uma classe social inferior, é afonte de onde emana o calor e o auxílio de que a adoentada precisa, e não as próprias irmãs, que teoricamente deveriam apoiar sua irmã padecente bem mais do que uma pessoa com quem a doente não possuía nenhum laço sanguíneo.
Belo símbolo para nos sugerir que a doença talvez possa ser a porta que se abre para uma fraternidade maior do que a consanguínea! Uma fraternidade que não exige que o outro seja seu irmão “de fato” para tratá-lo como um. Uma fraternidade que não pede do outro uma igualdade de origens, uma semelhança de classe, para julgá-lo digno de auxílio, amor, amparo. E é a experiência de milhares de nós, não só da personagem de Bergman, que há ocasiões na vida em que as pessoas que são conosco as mais fraternas não tem nenhuma relação com nossa família.
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“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” – NIETZSCHE — A Gaia Ciência
Penso no “eterno retorno” de Nieztsche, uma das idéias mais misteriosas e enigmáticas que eu conheço na história da filosofia, e no quanto este eterno retorno seria sentido como terrível, se existisse, por um doente. Seria uma horrenda piada sádica, toda a existência, se não bastasse sofrer por uma vida, se fosse necessário que este sofrimento se multiplicasse numa miríade infinita de idênticas vidas. Que horror! Talvez por isto a última coisa que os budistas querem na vida é o renascimento! Um doente, pois, é um torcedor fanático para que o Eterno Retorno não exista: que perspectiva horrenda, sentir que será preciso atravessar, não só uma vez, mas infinitas vezes, este mesmo martírio! Cruzes!
Mas, ainda bem, me parece que o fluxo de Heráclito, e não a hipótese do “eterno retorno” nieztschiana, é que é a descrição mais precisa do real. O que tem seu lado consolador: os sofrimentos, uma vez sofridos, não voltarão. Podem ser teimosos, persistirem, mas nenhuma dor é eterna, nem mesmo vitalícia, e há uma bonança para cada tempestade, ainda que tarde. Nunca se sofre duas vezes a mesma dor, e é bom sofrer dores diferentes: a mesma dor, eterna, seria ainda mais horrenda. A vida, esta só se vive uma vez, e nunca mais. Somos canoa no rio dos cosmos por uma tiquinha de tempo: não se aflija! Desta vida não sairemos vivos: sorria! “Somos um clarão entre duas imensas noites”, como diz Sponville… pequeno clarão de vida na escuridão da morte! O que é uma razão a mais para amá-la, a vida, justamente por sua preciosidade, por sua urgência, por seu ineditismo, por sua fragilidade, como se ama a vela quando se sabe que ela logo se apaga, que a luz que emana nada tem de eterna… E tentar fazer dela um obra-prima.
Sempre entendi o “eterno retorno” não como uma descrição de uma realidade, mas como um experimento da imaginação (sim, quase um sci-fi filosófico!), e um “devaneio” que Nieztsche imaginava fecundo, capaz de despertar impetuosas forças represadas no ser humano. Não é que a vida que cada um de nós vive irá retornar, idêntica, tal e qual, sem tirar nem pôr, como um replay perfeito e integral, só “mudando a hora do espetáculo”, como diz o personagem de Tarkovski em “O Sacrifício”.
Como o entendi, Nieztsche apenas pediu que SE IMAGINASSE algo assim, a repetição da vida, absolutamente idêntica a si mesma, para que tirássemos disso um aprendizado que, mais que ético, é de sabedoria. Devemos viver de modo que cada ação nossa, se imaginarmos que ela ecoa idêntica, eternidade afora, nos encha de júbilo. É como se Nietzsche substituísse o imperativo categórico kantiano, que manda que sempre deve-se agir de modo que desejemos que esta ação torne-se universal (por exemplo: ser bondoso querendo que a bondade torne-se regra-de-conduta para todos os homens…), por um outro: “Aja sempre de modo que deseje que este ato se repita na eternidade”…
Não são tão diferentes assim? Pois é! E não me importo: quiçá existe uma secreta fraternidade até entre Kant e Nietzsche, ainda que este último talvez vomitasse em minha cara se me tivesse ouvido sustentar isso. Mas pobres dos que não querem notar fraternidades, só para poderem se sentir filhos-únicos no cosmos!
Talvez eu sinta, tanto em Nietzsche quanto em Kant, que os move um desejo semelhante: o de que a vida humana seja vivida com o desejo de torná-la uma obra-prima! Por que não se encontraria aí um caminho bom para a virtude? Desejar uma boa-vida, mais até do que uma vida feliz, não é isso o que faz o sábio? Não lhe basta o prazer: ele precisa, também, da bondade. Ele é incapaz de considerar que “vive bem” só pela constatação de seus prazeres: gostaria também de sentir que vive bem nos domínios do intelecto, do afeto, da ética, da capacidade de simpatia e ajuda para com outras criaturas vivas…
Vida boa não significa uma vida onde só se gozaria. Uma vida assim, aliás, é uma impossibilidade, e desejá-la é cegar-se com quimeras. Acho que um obstáculo imenso que nos impede de chegar à felicidade é o fato de nós a imaginarmos de modo idealizado e kitsch, na crença temerária de que o ser humano pode atingir o reino da bem-aventurança absoluta. Ah, que força gigantesca tem este desejo humano! Que ardor nesse querer! Disso jorraram deuses, messias e templos!
Por sermos animais que anseiam tão ardentemente pela felicidade, nos sentimos na necessidade de inventar deuses. Inventamos deuses imaginando e desejando que eles nos auxiliariam a ser felizes. Ingênuos que somos! Mas alguns, enfim, um dia acordam do transe e percebem que não há Deus algum cuidando da felicidade dos homens.
Momento de angústia. Início da temporada do desamparo. Não digo que seja fácil: pra mim, foi muito duro. De uma dureza quase de matar. Não cheguei à pôr os punhos no caminho da navalha, mas não nego que pensei em suicídio. Não poucas vezes. Quase o desejei. Daqueles tempos, felizmente passados, e que espero que não voltem, trago uma espécie de rastro amargo, que ainda que me incomode, creio que me ajuda a entender melhor toda a amargura do mundo, quando a vejo em mim e em outros e me ponho, quando tenho a energia e o açúcar, a tentar adoçá-la…
Queríamos que houvesse um Deus que cuidasse da nossa felicidade, como nosso pai, se tivemos esta sorte, fez conosco em nossa infância. É doce a lembrança de quando éramos frágeis criaturinhas, anões quebráveis num mundo de gigantes, e havia um super-papai, lá fora, muito mais alto e poderoso do que éramos, e que trabalhava em prol do nosso bem-estar, provendo o alimento pra nossa fome, o leite para nossa sede, a cantiga para o nosso sono, o socorro para o nosso berro…
Por isso me parece tão acertada e tão elucidativa a tese do Freud de que a crença religiosa deriva de desejos infantis que subsistem no homem “maduro” (e maduro, aqui, só em idade, em número bruto de anos, deixando de lado o que chamamos de “idade mental/afetiva”). Sim, é isso mesmo: está-se sugerindo que a religião é uma… criancice. Crer em Papai-do-Céu é fruto, escancaradamente, de uma personalidade regressiva que não consegue se livrar de sua nostalgia da infância.
Daí decorre, parece, que o amadurecimento psíquico, a consumação da condição de “homem”, não mais de “adolescente” ou “criança”, necessita do abandono das infantilidades religiosas. E nem todo crescimento é prazeiroso. Imagino que os passarinhos machuquem bastante seus pequenos crânios ao quebrarem a cabeçadas a parede do ovo!
A religião seria também uma espécie de ovo ou de ninho, que nós mesmos fabricamos, que serve como um berço-para-adultos em que somos ninados pelo “divino”, em que permitimos que nos contem historietas consoladoras e doces que funcionam como o mel em nosso leitinho… Que gostoso, a felicidade estar assegurada! Que lindo, o final feliz ser garantido! Um papai na terra e um papai no céu: o quê mais poderia desejar desta vida um bebêzinho?
Mas não somos mais bebês, o retorno é impossível. Ajamos, pois, como homens despertos e maduros! Que despejemos sobre a vida um olhar lúcido, que não se deixa cegar pelo desejo! Só assim, me parece, os verdadeiros problemas vão poder ser resolvidos. Não com o sonho de soluções quiméricas, mas pelo confrontamento direto com o real e seus perrengues. Tomar em nossas próprias mãos o nosso destino! Pois bem se vê que do céu não têm chovido graças, ao menos não nos últimos milênios, e que se deixarmos a fome, a guerra, o fascismo, a ditadura, a tortura, a AIDS, o aquecimento global, a poluição do ambiente, a privatização do genoma humano e todos os outros inumeráveis males que grassam sobre a Terra como um trabalho para ser por Deus resolvido, estamos é fudidos. Fudidos. Pois Deus não resolverá nada. E talvez, quando de fato o percebermos, seja tarde demais para re-afinar o concerto desafinado do mundo…
“O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade.”
Um livro muito interessante pra meditar sobre “questões da escrita” é “O Filho Eterno”, de Cristovão Tezza, um dos romances brasileiros mais premiados desta década (levou o Jabuti de Melhor Romance em 2008, por exemplo). Eis um livro que transpira autenticidade: o autor não teme revelar sentimentos “sórdidos”, ainda que correndo o risco de ser chamado de “cruel e perturbador”, como quando narra seu intenso desejo de que o filho recém-nascido com síndrome de Down morresse na maternidade ou não atingisse a idade adulta.
Está aí uma confissão que soa até um tanto “brutal”; uma revelação que a maioria de nós seria incapaz de fazer, muito menos de escrever num livro que circulará em milhares de mãos. Quase todo mundo, quando deseja a morte ou o mal de alguém, esconde bem escondidinho este desejo, sem querer revelá-lo por suspeitar que o outro nos julgaria uns monstros, uns sanguinários. E há sempre algo de chocante, e até de comovedor, quando uma pessoa tem a coragem de fazer uma confidência que não é nada lisonjeira para si mesma, ou seja, quando “revela um podre” que qualquer um desejaria ocultar com forte escudagem.
Minha sensação, aliás, é a de que “O Filho Eterno” é um livro tão marcante, apesar da crueza com que é escrito, pois ficamos com a impressão de estarmos ouvindo um homem que se preocupa pouco com a beleza e muito mais com a verdade. Ele prefere a revelação crua e sem floreios de uma verdade feia à invenção de uma beleza ilusória. A literatura de Tezza, que neste caso se confunde com a auto-biografia e o livro-de-memórias, parece querer compartilhar uma experiência-de-vida verdadeira, com tudo o que ela inclui de obsceno, de trágico, de feio e de deprimente, sendo que a preocupação em “agradar” ou consolar o leitor praticamente inexiste.
Este é um livro tão forte pois ele não tem piedade de nós, não tem pudor de nos fazer sofrer e não teme lançar em nossa cara verdades que talvez nos soem um tanto intragáveis, mas que chegam ao nosso paladar com um gosto verídico inegável. “O Filho Eterno” não tem uma gota de melodrama ou de pieguice e se desenrola numa “atmosfera narrativa” que é o exato oposto do kitsch. É literatura radicalmente anti-kitsch, e que leva este procedimento mais longe, talvez, do que Milan Kundera jamais conseguiu fazer.”O kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável”, escreveu o grande autor tcheco no clássico “A Insustentável Leveza do Ser”. Tezza, em levante contra esta exclusão, leva a extremos vertiginosos o processo deinclusão no campo de consciência do leitor de tudo aquilo que o kitsch rejeita.
Se, lendo romances idealistas e água-com-açúcar, nos dizemos à toda hora que “isso é bom demais pra ser verdade!” (ecoando um sábio dito popular), lendo Tezza podemos nos pegar dizendo o oposto: “isso é horrível demais para ser mentira…”.
Entra em nossa consciência, ao lermos palavras tão saturadas de veracidade sem condescendência, a certeza de estarmos lidando com fatos crus, ainda que desagradáveis, que exigem muita coragem para serem revelados. Como esta: existem crianças que nascem deficientes e existem pais que desejam a morte dos próprios filhos ao serem apresentados à criança, talvez um pouco pelo choque de terem esperado um anjinho e terem recebido um monstrinho… O descompasso que há entre as expectativas do pai, antes do nascimento de seu primogênito, quando desejava ser um “excelente” paizão, e a realidade com a qual se choca, que o obriga a confrontar-se com o lado pior de si mesmo, dá o tom de uma obra marcada por uma certa vertigem, mas uma vertigem enfrentada com uma audácia e uma lucidez incríveis.
Caso o leitor se aproxime destas páginas com a expectativa de se edificar com belas lições sobre a beleza da paternidade e sobre o amor incondicional dos pais pelos filhos, certamente se desiludirá — ou mesmo ficará chocado. Tezza não faz o mínimo esforço de auto-celebração ou marketing em causa própria. Jamais tenta nos convencer de que é um excelente pai repleto de nobres sentimentos. Pelo contrário: em vários momentos, é a VERGONHA o que lhe domina o coração e é sobre ela que ele reflete de modo bem incisivo. “A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem”, escreve Tezza, e “regula do catador de lixo ao presidente da República” (94).
Não faltam descrições de ocasiões em que Tezza confessa que teve vergonha de contar pros amigos e conhecidos que possuía um filho “mongolóide”; e é curioso notar que seu romance só foi escrito e publicado depois do filho ter atingido 20 anos de idade. É como a irrupção nas páginas de uma longuíssima vergonha secreta, de uma história que foi proibida no universo interior por décadas, de uma experiência vivida que por muito tempo ele teve vergonha de compartilhar, que manteve recoberta pelo silêncio e pela repressão, e que finalmente ganha direito à expressão. Para sorte do escritor e de todos os seus leitores.
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Óbvio que há uma certa audácia em “revelar os próprios podres”. O procedimento padrão, é evidente, é escondê-los. Cada um de nós procede de modo kitsch em relação a si mesmo, mantendo em armários escuros seus crimes de pensamento e seus vícios inconfessáveis, oferecendo ao outro, para usar um termo de Pessoa, só “um jardim” de si mesmo, todo florido e podado.
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…
FERNANDO PESSOA
Tezza, realizando na arte o que no mundo seria considerado como um “comportamento anti-social”, rasga o véu da polidez, puxa todos os tapetes que escondem suas próprias sujeiras e vêm para frente do palco para nos mostrar a nudez de sua verdade. Ler “O Filho Eterno” nos permite conhecê-lo muito bem pois nos dá a chance de vê-lo também em seus piores defeitos, que ele não só não procura esconder, como expõe de modo explícito.
No final, pelo menos no meu caso, não senti “admiração moral” pelas atitudes de Tezza como pai (o que o próprio autor talvez julgaria uma reação absurda) ou como esposo (o romance, aliás, peca gravemente por omitir quase completamente a figura da mãe, sendo que o relacionamento de Cristóvão e sua esposa fica completamente nas sombras…). Poderia ter sido tão frutífero que este livro fosse não somente o relato da experiência de um pai, mas também de um casaltendo que lidar com a difícil vivência de criar um filho deficiente e com as inevitáveis modificações que isso certamente causou no relacionamento deles.
A admiração que senti foi não “ética” ou “literária”, mas sim uma admiração pela amplidão da franqueza que Tezza teve a ousadia de adotar. Este é um livro de muita boa-fé. E boa-fé significa, muitas vezes, saber contar aos outros as verdades sobre nós mesmos que nos desagradam. Tezzar demonstra em vários momentos tendências auto-depreciativas; por vezes sente-se quase que suas palavras são cilícios com os quais ele se auto-flagela, purgando sua culpa por ter sentido coisas tão “feias”. Não há muito “narcisismo” para ser encontrado na personalidade de Tezza além do narcisismo ferido, em frangalhos. E fico com a impressão de que o livro demonstra como o “narcisismo” pode ser superado através da confissão — quando esta é de uma franqueza que vai até os limites do obsceno.
Não ficaria mal dizer, pois, que Tezza é um “terrorista lírico” — nome de um dos romances anteriores do autor curitibano. Mas ele não explode prédios com dinamite; explode pudores com palavras. Seu alvo é sempre a mentira, o disfarce, a omissão, a pose de que se é melhor do que se realmente é.
As “conclusões filosóficas” que ele tira de uma experiência tão dolorosa também não são nada consoladoras e certamente ferem as convicções dos panglossianos, otimistas, crentes na Bondade de Deus e na Beleza da Criação. “O Filho Eterno” é um livro visceralmente anti-religioso, o que se escancara nas seguintes palavras, claras como um punhal: “Não gosto de padres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de anticlericalismo atávico” (pg. 51); “sou alguém completamente desprovido de sentimento religioso” (pg. 16). Ter um filho com deficiência mental já é um forte argumento contra a idéia de uma “criação divina”, e este pai não é diferente. O fato do “determinismo cromossômico” é somente “mais um passo no processo de desdemonização do mundo” por revelar a “natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos” (49).
A lucidez impiedosa do olhar de Tezza faz com que ele veja como tapeação e auto-engano a tentativa de “procurar sempre uma justiça secreta em todas as coisas para fugir do peso terrível do acaso que nos define” (pg. 43). Ele tem que admitir pra si mesmo que seu filho não é nem obra divina, o que é pra lá de evidente, nem uma “punição” que lhe enviam os céus por algum suposto pecado cometido. Olhando para o filho Felipe, em seu “fechamento misterioso em si mesmo”, separado do mundo por “aquela barreira intransponível diante da alma alheia” (pg. 117), só lhe resta admitir que esta criança “jamais terá cérebro suficiente para inventar um deus que a ampare” (pg. 57). Mas no pai o processo de aceitação deste “universo desencantado” e regido pelo acaso é difícil e dura, mas não desprovida de vitórias e superações que, no meio de tanta desolação, nos comovem mais que qualquer pieguice.
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