TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta || Documentário A Casa de Vidro

A Casa de Vidro lança a segunda parte do documentário “Tsunami da Balbúrdia”, retrato histórico a quente das manifestações em defesa da rede federal de educação (#30M)

“A praça é do povo
Como o céu é do condor.”
Castro Alves (1847 – 1871)

Um coro de vozes, incontáveis e altissonantes, levantou-se para espalhar pelas cidades os cantos e batuques da emancipação: era 30 de Maio de 2019 e éramos um segundo Tsunami de Gente, dando continuidade aos atos grandiosos do #15M que levaram mais de 2 milhões de cidadãos às ruas de mais de 200 cidades.

Mais uma vez, no #30M, as aulas foram nas ruas. Nestas aulas de cidadania coletiva, nestas multitudinárias manifestações, as bandeiras eram muitas e o colorido humano terrestre superava em muito as cores do arco-íris celeste (como ensina Eduardo Galeano).

Queríamos “mais livros e menos armas”, “+ Freire – Guedes”, “Liberdade para Lula“, “Fora Bolsonaro”. Com entusiasmo e coesão, os “blocos” da luta carnavalizada fluíram pelas praças e avenidas, gritando palavras-de-ordem rimadas e ritmadas, feitas para chacoalhar toda a apatia dos fatalistas e todo o conformismo dos privilegiados. Entre os refrões, ressoavam:

– Trabalhador, preste atenção: a nossa luta é pela educação!
– Trabalhador, preste atenção: o Bolsonaro só governa pra patrão!
– Não é mole não! Tem dinheiro pra milícia, mas não tem pra educação!
– A nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria!

Fotos acima: Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo no #30M

No documentário curta-metragem Tsunami da Balbúrdia, parte 2, tentamos captar um pouco destas efervescências cívicas que nos transformaram em gotas nesse mar de revolta. Pois, como Albert Camus ensinava, é na superação do individualismo típico do sujeito egoísta, fissurado em correr atrás de seu interesse privado, que podemos nos alçar para longe do pântano da absurdidade do mundo, rumo à esfera superior da revolta que nos solidariza: “eu me revolto, logo somos” (do livro L’Homme Revolté / O Homem Revoltado). 

TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2
Assista no Youtube || Vimeo || Facebook

Um filme de Eduardo Carli de Moraes (câmera, montagem e direção), com apoio de Lays Vieira (câmera) e participação de Aymê VirgíniaKleuber GarcezBeatriz DurãesLucas CardosoHenrique SouzaLey SilvaNicolle PiresAndreoly N. MonçãoDanny Cruz. Com fotografias de Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida, dentre outros. Trilha sonora com canções de: Flaira Ferro, Francisco El Hombre, Adriel Vinícius e Ceumar.

A vida só se renova com revolta contra as injustiças e as opressões que nos imobilizam. Quando animada por um espírito de solidariedade, a revolta é a força material que impele um princípio ético em sua tentativa de devir carne. Na Praça Universitária, enquanto os estudantes da EMAC (Escola de Música e Artes Cênicas) / UFG faziam a sua performance subversiva, vivi na pele aquela verdade dos existencialistas mais lúcidos e que ganhou sua mais bela expressão em Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.)

A “Tropa de Choque” da Educação, empunhando escudos de papelão transformados em reproduções de capas de livros, vai na vanguarda da marcha, levando seus estandartes que sinalizam a vontade e o ímpeto de defender a cultura, a inteligência, a criatividade, nas figuras de George Orwell, Hilda Hilst, Michel Foucault, Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Angela Davis, Paulo Freire, Augusto Boal, Cervantes, dentre outros.

Protestando também com muita arte, a galera da Faculdade de Artes Visuais deu expressão à palavra tsunami com uma grande onda que conectava os indivíduos ali presentes numa espécie de centopéia. O super-organismo da cidadania organizada e insurgente cantava canções irreverentes e ousadas como aquele adorável “ô Bolsonado, seu fascistinha, os estudantes vão botar você na linha!”

Em marchas repletas de beleza, em que ética e estética davam as mãos para fazer da cultura em movimento uma força de transformação social, estávamos unidos na diversidade. Questionávamos Weintraub, o Bobo dos Cortes, indignados com a tentativa de desmonte da rede federação de educação que está em curso. Assim como em Junho de 2013, não eram só 20 centavos, desta vez também podemos dizer: não são 3 chocolatinhos e meio.

Estar nas ruas fervilhantes de gente desperta e valente foi um bálsamo para as energias. É que nestes tempos de hegemonia da idiocracia neofascista e sua necropolítica, o pessimismo imobilizador poderia muito bem ter tomado conta, feito uma epidemia, matando no nascedouro qualquer capacidade de mobilização e resistência. Não foi o que aconteceu. Os Tsunamis da Educação foram gigantescos sopros de vida de um povo guerreiro e que não aceita o jugo do opressor, com protagonismo de uma “juventude que sonha sem pudor”, como canta a linda Flaira Ferro inspirada pelo tsunami recifense:

“na calada da noite
os estudantes fazem o futuro amanhecer
quem aprendeu a ler e escrever
sabe bem que analfabeto
jamais voltará a ser

mesmo que o destino
reserve um presidente adoecido
e sem amor
a juventude sonha sem pudor
flor da idade, muito hormônio
não se curva a opressor

pode apostar
a rebeldia do aluno é santa
não senta na apatia da injustiça
agita, inferniza e a rua avança
escola não tem medo de polícia

pode apostar
balbúrdia de aluno é o que educa
ensina ao governante que caduca
retroceder não é uma opção
respeito é pra quem dá educação.”

Aos historiadores do futuro que quiserem saber quais as causas da revolta destas gotas cidadãs que se uniram neste tsunami de gente, deixamos algumas pistas. Não se trata apenas de protestar contra os cortes nos investimentos públicos na rede federal de educação, mas de protestar um contexto mais amplo em que a educação já vive um “clima de Ditadura”, como argumentou Juan Arias em El País.

Através da idiocracia de extrema-direita encabeçada por Bolsonaro, Guedes, Damares, Moro etc., o que está em ascensão é uma Cruzada Obscurantista, uma lunática campanha para livrar o Brasil das várias faces de Satanás: na mente desses dementes, Satã é representado na face da Terra por Paulo Freire, Gramsci, o Marxismo Cultural, mas sobretudo o lulismo e o petismo. Gente de Deus? Damares, Edir Macedo, MC Reaça, Malafaia, Ustra… Há quem até mesmo diagnostique na loucura da “mitologização” de Jair Messias Bolsonaro um sintoma do cristofascismo à brasileira.

Estes fanáticos – tanto do Livre Mercado quanto de um Deus conexo à Teologia da Prosperidade – agora atacam numa espécie de Cruzada Anti-Iluminista, numa Aliança Terraplanista em prol do retorno da Inquisição, do fortalecimento da Klu Klux Klan, de “programas sociais” como o Arma Para Todos, o Escola Para Poucos e o Menos Médicos (especialidades Bolsonaristas).

A intentona de criminalização do pensamento crítico e dos docentes que facilitam o avanço da pedagogia crítica está a todo vapor, sendo que filósofos e sociólogos “esquerdistas” e “marxistas” são pintados como chifrudos comedores de criancinhas, “uma paranoia ideológica que enxerga ‘esquerdismo’ e ‘comunismo’ em tudo que cheire à defesa dos interesses populares pelo Estado, flertando com o fascismo e com o ‘darwinismo social’.” (FREITAS: 2018, p. 28)

Temos “movimentos destinados a cercear a liberdade docente como o Escola Sem Partido que, como bem destaca o prof. Luiz Carlos de Freitas, é financiado e apoiado por interesses empresariais e privatistas. Imensas maquinarias de desinformação e idiotização são postas em marcha – por exemplo pelo MBL, turbinado com os dollars dos Kocj Brothers – fortalecendo a viralização das fake news, do discurso de ódio e da noção de uma da “pós-verdade”.

Esse caos todo é destravado pela ação de uma “nova direita” repleta de “velhas ideias”, uma direita que fede a velharia por ser composta sobretudo por homens, brancos, ricos, pseudo-religiosos, ambiciosos e gananciosos até a patologia, e que idólatras de Mammon querem só saber da mercantilização de tudo. Quem tenta nos dominar hoje é uma Direita que une o neoliberalismo na economia e o conservadorismo tacanho na moral (ou “costumes”).

No âmbito educacional, além de desejar sucatear e precarizar as escolas públicas, para depois tentar justificar perante a sociedade a necessidade de privatização ou terceirização, esta Direita tende a idolatrar o Mercado com uma devoção cega com que também parece cair no abismo de idolatrias ainda mais estúpidas e nefastas. Para esses debilóides, Bolsonaro não é um calhorda apologista da tortura e da Guerra Civil, mas um “Mito” e um “Cidadão de Bem”, assim como MC Reaça é um “grande artista”, Olavo nosso “maior pensador” e Edir Macedo ou Silas Malafaia os próprios enviados do Senhor para conduzir-nos à salvação (desde que possamos pagar por ela).

Como escreve Freitas, em seu texto “Um Outro Horizonte Possível”, não podemos e não devemos nos submeter docilmente à lógica privatista e à tentativa de redução da escola ao modelo empresarial:

“A privatização da escola introduz formas de gestão empresariais e verticalizadas, ensina nossos jovens a praticar o individualismo e a competição, reforçando na sociedade formas de organização limitadas e injustas – sem falar da ampliação de processos culturais relativos à violência cultural e ao não reconhecimento das diferenças raciais e de gênero.

Por tudo isso, tal perspectiva é incompatível com a qualidade social que se espera de uma educação voltada para formar lutadores e construtores de uma sociedade mais justa, sob as bases da participação na vida coletiva – na escola e na sociedade – em estreita relação com sua comunidade, da qual a escola faz parte. A competição não é, nem do ponto de vista da convivência social, nem do ponto de vista educacional, um modelo que induza uma humanização crescente das relações sociais em uma ambiência democrática.

Se estamos compromissados com a democracia, todos os espaços da escola devem permitir a vivência da democracia; devem chamar os alunos para a participação em seu coletivo, permitindo o desenvolvimento de sua auto-organização e seu envolvimento com a construção coletiva, com espírito crítico. O conhecimento que se adquire nos processos escolares deve um instrumento de luta voltado para esses objetivos…

A escola pública, no presente momento histórico, é a única instituição educativa vocacionada a acolher a todos de forma democrática. As dificuldades que ela tem para cumprir essa tarefa devem nos mobilizar para uma luta que a leve a cumprir essa intenção com qualidade e não, pelo oposto, nos leve a apostar em sua destruição.”

LUIZ CARLOS FREITASA Reforma Empresarial da Educação – Nova Direita, Velhas Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018. Pg. 128.

* * * * *

ASSISTA “TSUNAMI DA BALBÚRDIA #2”:
(SE GOSTAR, COMPARTILHE E DISSEMINE O FILME)
Youtube || Vimeo || Facebook

VEJA TAMBÉM O PRIMEIRO CURTA-METRAGEM:
TSUNAMI DA BALBÚRDIA – #15M

VEJA MAIS FOTOGRAFIAS || por Hugo Brandão, Marianna Cartaxo, José Almeida e Estudantes Ninja

COMUNA DE PARIS (1871) – CONHEÇA A INTERPRETAÇÃO DE MARX E ENGELS SOBRE ESTE EVENTO HISTÓRICO

Comuna
“Na madrugada do 18 de Março de 1871″, relata Marx, “Paris acordou com o rebentamento do trovão de Vive la Commune! (Viva a Comuna!). Que é a Comuna, essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês?” (MARX, pg. 398)

Para auxiliar no deciframento desta esfinge, recuperamos aqui n’A Casa de Vidro um pouco da saga da Comuna de Paris  a partir das interpretações de Karl Marx & Friedrich Engels sobre este fenômeno histórico de que foram contemporâneos e de que estudaram e interpretaram com profundeza.

A tarefa: ajudar na compreensão da ascensão e queda deste regime comunista que governou a capital da França por 3 meses, entre Março e Maio de 1871, instaurando uma cisão política entre dois centros de poder antagônicos: a Paris revolucionada e posta sob controle comunitário, de um lado, e o antro do reacionarismo palaciano de Versalhes, de outro.

O modo como findou a Comuna de Paris – através de um massacre perpetrado pela elite destronada, que havia se refugiado em Versalhes para ali preparar a carnificina vingativa contra a Paris proletária, serve como símbolo imorredouro da “raiva de que é capaz a classe dominante logo que o proletariado ousa defender o seu direito.” (ENGELS, p. 349)

Maximilien Luce

LUCE, Maximilien (1858 – 1941), “Uma rua de Paris em Maio de 1871”

Com sua obra A Guerra Civil na França (também publicada no Brasil sob o nome As Lutas de Classes na França, ed. Boitempo), Marx legou-nos um dos textos mais impressionantes e sensacionais sobre a Comuna (1871). Nestes escritos, o rigor do historiador de grande erudição soma-se à indignação flamejante do militante indignado. Pierre Bourdieu pondera, em um trecho de Linguagem e Poder Simbólico (Ed. Fayard, 1982, p. 236), que em Karl Marx conviviam duas facetas complementares: o “savant” (o sábio) e o “militant” (o engajado).

É com este rosto de Juno, com uma face voltada para o conhecimento histórico rigoroso, em seu respeito ao factual e ao objetivo, e outra face voltada para a militância, que Marx procede nestes escritos. Sente-se ao ler o livro com que intensidade bate o coração de Marx, a cada sístole e diástole, em sintonia com o grande coração das classes despossuídas. Sente-se  quanto Marx somava suas forças e dons retóricos em prol da libertação coletiva dos “perdedores” crônicos da luta de classes, os oprimidos do mundo do trabalho, as vítimas da espoliação dos frutos de sua produção pelos patrões.

“Mais valia”, afinal, é um termo técnico que designa o roubo cotidiano praticado pela classe burguesa, possuidora dos meios de produção e do capital acumulado, que nunca paga o que é devido e justo aos trabalhadores. O capitalista espreme o trabalhador como se fosse uma laranja livremente amassável para extrair lucros enquanto despeja-lhe como esmola alguns salários de fome…

O que Marx relata-nos sobre a Comuna e seu contexto histórico parece-me algo de importância fundamental para nossa cognição ampla e profunda dos labirintos da política: são lições que servem para outrora, para hoje e para amanhã. Em sua introdução à edição de 1891 de A Guerra Civil Na França, Friedrich Engels celebra o “maravilhoso dote” de Marx de

Friedrich Engels

Friedrich Engels

“apreender claramente o caráter, o alcance e as consequências necessárias de grandes acontecimentos históricos, ao mesmo tempo em que esses acontecimentos ainda decorrem diante dos nossos olhos ou apenas acabaram de se consumar. (…) Em 28 de maio, os últimos combatentes da Comuna sucumbiam… e dois dias depois, no dia 30, Marx lia, perante o Conselho Geral, o trabalho no qual está exposta a significação histórica da Comuna de Paris em traços breves, vigorosos, mas tão penetrantes e sobretudo tão verdadeiros, que não foram jamais igualados em meio a toda a abundante literatura sobre o assunto. (…) Era a primeira vez que a burguesia mostrava até que louca crueldade de vingança é levada, logo que o proletariado ousa surgir face a ela como classe à parte, com interesses e reivindicações próprios. E, ainda assim, 1848 foi uma brincadeira de crianças perante a sua raiva de 1871.” (ENGELS, A revolução antes da revolução, Ed. Expressão Popular, pg. 340 – 343)

Maio de 1871 é um dos meses mais trágicos na história francesa: naquele mês, milhares de cidadãos foram massacrados e chacinados pelo Estado imperial e bonapartista de Versalhes, que não teve pudores nem mesmo de bombardear Paris como se esta fosse uma cidade de país inimigo!

O governo chefiado por Thiers, refugiado em Versalhes após a proclamação da Comuna de Paris três meses antes, havia decidido pela via do extermínio da insurreição. A Comuna de Paris – decidiram estes nobres senhores versalheses, cujos privilégios e insígnias de poder haviam sido aniquilados pela revolução – merece ser afogada em seu próprio sangue.

A vendeta dos anticomunistas fanáticos veio na forma de uma invasão do exército de Versalhes – devidamente auxiliado pelo imperador prussiano Bismarck, vitorioso na guerra Franco-Prussiana ainda recente. A Comuna era defendida pela Guarda Nacional, constituída majoritariamente por proletários que haviam sido armados para que defendessem a República. Este imbróglio é assim descrito por Engels:

“Na Comuna, todos os parisienses aptos a pegar em armas entravam na Guarda Nacional e recebiam armas; os operários formavam a grande maioria. Em breve, estalou a oposição entre o governo quase composto só por burgueses e o proletariado armado. (…) Thiers, o novo chefe do governo de Versalhes, tinha de reconhecer que a dominação das classes possidentes – grandes proprietários rurais e capitalistas – estava em perigo permanente enquanto os operários parisienses conservassem as armas na mão. A sua primeira obra foi a tentativa de desarmamento destes. Em 18 de Março de 1871 enviou tropas com a ordem de roubar a artilharia pertencente à Guarda Nacional… A tentativa falhou, Paris ergueu-se como um só homem para a defesa, e foi declarada guerra entre Paris e o governo francês sediado em Versalhes. Em 26 de Março a Comuna foi eleita, e foi proclamada no dia 28. (…) No dia 30, os estrangeiros eleitos para a Comuna foram confirmados nas suas funções, porque a ‘bandeira da Comuna é a da República Mundial’. Em 1º de Abril, foi decidido que o vencimento mais elevado de um empregado da Comuna, portanto dos seus próprios membros também, não poderia exceder a 6 mil francos. No dia seguinte foi decretada a separação da Igreja e do Estado e a abolição de todos os pagamentos do Estado para fins religiosos, assim como a transformação de todos os bens eclesiásticos em propriedade nacional. (…) No dia 6 de Abril, a guilhotina foi trazida pelo 137º batalhão da Guarda Nacional e queimada publicamente no meio de ruidoso júbilo popular…” (ENGELS, op cit, pg. 347)

Vive la Comune
Revolucionários da Comuna de Paris queimam a guilhotina na Praça Voltaire, em 1871. Por Ernst Alfred Vizetelly.

Revolucionários da Comuna de Paris queimam a guilhotina na Praça Voltaire, em 1871. Por Ernst Alfred Vizetelly.

Marx, celebrado por seu comparsa  Engels como alguém com aptidão descomunal para apreender a dimensão histórica dos eventos de que foi contemporâneo, tem muito a nos dizer sobre as crueldades da burguesia na defesa de seus privilégios.

Tanto em 1848 quanto em 1871, a burguesia imperialista da França preferiu o genocídio, cometido contra cidadãos franceses, a permitir o avanço do auto-governo e a ampliação dos direitos sociais de trabalhadores urbanos e rurais. Este governo burguês, ademais, não parava de envolver a França em custosas e devastadoras guerras – e não seria possível entender a irrupção da Comuna de Paris sem refletir sobre suas conexões com a Guerra que arrebenta em 1870 opondo a França ao império da Prússia, uma escaramuça de senhores, uma treta de imperialistas, em que os proletários eram usados como carne de canhão.

Fica a impressão, a partir da leitura do detalhado retrato de Marx, que o Império, na França, arrastou-se pelo chão da história no século XIX como uma forma histórica já moribunda, mas que insistia em rastejar pelo mundo em seus estertores.

A Revolução Francesa de 1789, quase um século depois, ainda não havia feito triunfar de fato o republicanismo, já que a dinastia Napoleônica, além dos versalheses nostálgicos da monarquia, insistiam em boicotar os esforços para a instauração de uma república democrática autêntica, onde o poder de fato emanasse da sociedade como um todo e o commons fosse mais valorizado do que os interesses de minorias econômicas elitistas.

Em 1870, Paris tinha se revolucionado (de novo!) e a república tinha sido (mais uma vez!) re-proclamada. Mas era uma república demasiado burguesa para que pudesse ser aceita pela massa trabalhadora de Paris, que queria mais (bem mais!) do que o direito de ir às urnas para escolher o nome de quem iria explorá-la e espoliá-la.

O inimigo externo, na forma dos exércitos prussianos, era também um perigo real e urgente nesta época (saiba mais com o livro The Fall of Paris: The Siege and the Commune 1870-71, by Alistair Horne (Penguin Books, 2007) [DOWNLOAD EBOOK]).

A Comuna, tentando instalar suas cooperativas de produção sem espoliação, reformando o Estado de modo a instalar a laicidade plena, tinha também que lidar com as urgências da defesa militar, já que Versalhes não tinha pudores de bombardear Paris, matar civis e tocar o terror. As barricadas proliferavam na Comuna, muitas delas cheias de mulheres que pegaram em rifles para defender a revolução. Talvez a mais célebre delas, Louise Michel, teve sua estória pós-Comuna narrada num excelente drama histórico, o filme Louise Michel:

Versalhes promoveu um banho de sangue em sua fúria anticomunista. Poucos restaram vivos para deixar seu testemunho para a história. Donde o valor inestimável de figuras como Louise Michel.

Um dos fenômenos históricos que mereceria ser estudado mais a fundo é o fato de que algumas das revoluções socialistas mais significativas – como a Comuna de Paris em 1871 ou a Revolução Bolchevique na Rússia de 1917 – irrompem em uma era de Guerra. E de guerra que está sendo travada pelos poderes capitalistas em suas rixas imperialistas de dominação.

A Guerra Franco-Prussiana (1870-71) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não somente servem como “pano de fundo” para estas irrupções revolucionárias, mais que isso: estas revoluções só são compreensíveis a partir das condições de existência das massas sob os regimes hegemônicos na Europa, tão maniacamente envolvidos em escaramuças imperialistas que não pareciam dar a mínima para o sofrimento humano em massa que causavam com seus ímpetos bélicos de conquista, predominância, opressão e exploração abusiva do labor das massas.

Quando Karl Marx escreve sobre A Guerra Civil Na França, comunica ao leitor com eloquência profunda o quão bárbaras e genocidas eram as elites dirigentes das potências européias quando se tratava de esmagar, como se fossem baratas, todos os movimentos, partidos e sindicatos revolucionários, socialistas, comunistas, anarquistas etc.; a contra-revolução não tinha escrúpulos quanto ao uso de métodos como a tortura geral, o guilhotinamento em massa, as prisões lotadas de opositores políticos…

A importância histórica crucial da Comuna de Paris, na perspectiva de Marx, está no triunfo, ainda que de vida curta, de um levante popular contra as forças reacionárias do imperialismo; a Comuna, “campeã intrépida da emancipação do trabalho, era expressivamente internacional. À vista do exército prussiano, que tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França o povo trabalhador do mundo inteiro.” (MARX, Karl. A Guerra Civil na França. In: A Revolução Antes da Revolução, Ed. Expressão Popular, SP/Brasil, 2008, P. 412)

eng3

São páginas em que fica explícito o engajamento do historiador: Marx não está somente sendo uma máquina neutra de registrar fatos; ele está debatendo com os fatos históricos e tomando uma posição, que é claramente pró-Comuna de Paris.

Marx quase canta em louvor à “Paris operária, combatente, a sangrar – quase esquecida, na sua incubação de uma sociedade nova, dos canibais às suas portas – radiante no entusiasmo da sua iniciativa histórica! (…) Prodigiosa, na verdade, foi a mudança que a Comuna operou em Paris! Não mais qualquer traço da Paris meretrícia do segundo Império…” (MARX, op. cit., p. 415-416)

Em contraste com a Paris da Comuna, que Marx pinta refulgente de glória épica, a descrição do velho mundo em Versalhes revela o brilhantismo marxiano na arte do denuncismo justiceiro. O discurso de Marx não economiza em termos demonizantes – “sanguessugas”, “vampiros” e “canibais”, todos “ávidos de se alimentar da carcaça da nação” – para referir-se à elite que, derrotada pela insurreição que instaurou em Paris a Comuna, fugiu para buscar refúgio nos palácios de Versalhes.

De lá, “considerava a guerra civil só uma diversão agradável” e “olhava o desenrolar da batalha através de telescópios” (pg. 417). Na perspectiva de Marx, em Versalhes ocorreu a reunião de uma minúscula elite cujo domínio já estava defunto, cuja decadência já denunciava-se pelo fato de ser “mantida numa aparência de vida só pelos sabres dos generais de Luís Bonaparte. Paris toda ela verdade, Versalhes toda ela mentira; e essa mentira, exalada pela boca de Thiers.” (pg. 416)

paris_commune

O fato de ter sido esmagada em um banho de sangue patrocinado pelo regime de Thiers não impede a Comuna, na perspectiva de Marx e Engels, de ter uma importância histórica crucial como protótipo de uma sociedade comunista em via de instalar-se.

Vale lembrar também que, como exímio conhecedor da História, aquela que sempre se repete (“a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”), Marx estabeleceu as devidas conexões entre os massacres perpetrados pelas elites contra o proletariado em 1848 e em 1871.

Em junho de 1848, eclodiu uma heróica insurreição dos operários de Paris, ebulição de revolta dos parisienses mais espoliados, protagonistas de cenas que Marx pinta com tintas fortes, evocando imagens que parecem extraídas dos grandes poetas trágicos. Marx relata como a insurreição foi “esmagada com excepcional crueldade pela burguesia francesa” na “primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia”.

Tanto em seus escritos sobre a Comuna quanto nas suas descrições da situação que conduziu à insurreição operária de Junho de 1848, também sangrentamente reprimida, Marx acaba por fornecer-nos um espelho da luta de classes, que degringola em guerra civil, ainda profundamente atual:

De Horace Vernet. Barricadas nas ruas de Paris durante a Revolução de junho de 1848.

Pintura de Horace Vernet. Barricadas nas ruas de Paris durante a Revolução de junho de 1848.

“Venceu a república burguesa. A seu lado estava a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe média, os pequeno-burgueses, o exército, o lumpemproletariado organizado como Guarda Móvel, as competências intelectuais, os padres e a população do campo. Ao lado do proletariado de Paris não estava ninguém senão ele próprio.

Mais de 3 mil insurgentes foram passados pelas armas depois da vitória e 15 mil deportados sem julgamento. Com essa derrota, o proletariado passou para o plano de fundo da cena revolucionária. Mas, pelo menos, sucumbe com as honras de uma grande luta de alcance histórico-universal; não só a França, mas também toda a Europa, tremem perante o terremoto de junho…

Certamente, a derrota dos insurgentes de junho tinha preparado, aplanado, o terreno em que podia fundar-se e erigir-se a república burguesa; mas, ao mesmo tempo, tinha mostrado que na Europa se discutiam outras questões que não a de “república ou monarquia”. Revelara que aqui uma república burguesa significava despotismo ilimitado de uma classe sobre outras…

[A república burguesa] Tinha dado como consigna ao seu exército as palavras de ordem da velha sociedade: “Propriedade, Família, Religião, Ordem”, e gritado à cruzada contra-revolucionária: “Por este sinal vencerás!” (No ano de 312, na véspera de uma vitória militar, o imperador Constantino I teria visto no céu uma cruz com a seguinte inscrição: “Por este sinal vencerás!”)

Vai-se restringindo o círculo dos dominadores e um interesse mais exclusivo é defendido contra um interesse mais amplo. Qualquer reivindicação da mais simples reforma financeira burguesa, do liberalismo mais vulgar, do republicanismo mais formal, da democracia mais trivial, é ao mesmo tempo castigada como “atentado contra a sociedade” e estigmatizada como “socialismo”.

E, por fim, os pontífices da “religião e da ordem” vêem-se expulsos eles próprios a pontapés de suas cadeiras píticas, arrancados da cama no meio da noite e do nevoeiro, encafuados em camburões, metidos no cárcere ou enviados para o exílio; o seu templo é arrasado, a sua boca é selada, a sua pena quebrada, a sua lei rasgada, em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem.

Burgueses fanáticos da ordem são espingardeados nas suas varandas pela soldadesca embriagada, a santidade do lar é profanada e as suas casas são bombardeadas como passatempo, em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. As fezes da sociedade burguesa formam por fim a sagrada falange da ordem, e o herói Krapülinski faz a sua entrada nas Tulherias como “salvador da sociedade.”

O estado de sítio em Paris foi a parteira da Constituinte nas suas dores de parto republicanas. Se mais tarde, em dezembro de 1851, a Constituição foi mandada para o outro mundo pelas baionetas, não se deve esquecer que também tinha sido guardada no ventre materno e trazida ao mundo pelas baionetas, por baionetas voltadas contra o povo. (KARL MARX. A Revolução Antes da Revolução. Expressão Popular. Pg. 228)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Todas as citações estão em MARX, Karl & ENGELS, Friedrich (intro). “A Guerra Civil na França”. Obra publicada no Brasil no livro A Revolução Antes da Revolução, Vol. II, Ed. Expressão Popular, SP/Brasil, 2008.

Por Eduardo Carli de Moraes.
http://www.acasadevidro.com/

* * * * *

SIGA VIAGEM E CONFIRA TAMBÉM…

* * * * *

* * * * *

commune-poster

“La Commune – Paris 1871”, um filme de Peter Watkins

* * * * *

* * * * *

1871: The Paris Commune by LIBCOM

* * * * *

COMPARTILHE ESTE ARTIGO NO FACEBOOK