AILTON KRENAK: COMO ADIAR O FIM DO MUNDO – Leia trechos e veja vídeo da conferência na UFG (Outubro de 2019, 49 min)

Ailton Krenak – líder indígena, ambientalista, ativista e escritor brasileiro, nascido em 1953, na região do Rio Doce (MG) – esteve na Universidade Federal de Goiás em Outubro de 2019. Participou do V Seminário do Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) e do I Seminário Lugar e Patrimônio, com o tema “Patrimônios marginalizados e a luta pelo território”(saiba mais: https://bit.ly/2r13v0p). ASSISTA AO VÍDEO – ACESSE: https://youtu.be/x55TZ73Wqvw.

Ailton Krenak vem demonstrando ser um “pensador acurado e original das relações entre as culturas ameríndias e a sociedade brasileira, criando reflexões provocativas e de largo alcance” (Azougue Editorial). Entre os temas que ele aborda, está o estado de “coma” do Rio Doce após os crimes sócio-ambientais das empresas mineradoras em Minas Gerais, com o despejo de lama tóxica em mais de 600 km de extensão daquele curso d’água à margem do qual o povo Krenak desenvolveu sua história e forjou sua cosmovisão.

Daria para dizer que o fim do mundo não é nenhuma novidade para os povos originários desta terra que os europeus invasores chamariam de América, mas que recentemente houve um incremento nesta sensação de mundo que se acaba com o exacerbamento das catástrofes sócio-ambientais e das mudanças climáticas. O que capacita Ailton Krenak a ser uma espécie de xamã visionário deste mundo em colapso é, para começo de conversa, a vivência concreta que seu povo teve, a partir de 2015, de um crime monumental que pôs o Rio Doce em estado de coma.

Era novembro de 2015 quando a barragem do Fundão, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton, rompeu-se e lançou 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro no Rio Doce, habitat ancestral do povo Krenak. O material tóxico “nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma”, diz Ailton. “Esse crime atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou.” (KRENAK, Cia das Letras, 2019, p. 42)

Lançado pela Companhia das Letras em 2019, o livro – disponível na Livraria A Casa de Vidro: https://bit.ly/2T1fHKi – revela um pensador que é lúcido em sua crítica de uma tóxica ideologia:

“a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. (…) É um abuso que chamam de razão. Enquanto a humanidade está se distanciando de seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter…” (KRENAK, 2019, p. 11 – 20)

Ailton Krenak é hoje um voz altissonante que questiona os rumos equivocados da doentia civilização mercadológica dos branquelos. Ele nos pergunta: “Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade.” (pg. 28)

Ora, os branquelos concebem a civilização e a humanidade como áreas V.I.P. e querem excluir mais da metade dos humanos. Contra esta pretensa civilização – supostamente iluminada, mas realmente obscurantista; falsamente universalista, mas autenticamente excludente – é que se insurgem as resistências em nosso território, seja dos Krenak no Rio Doce criminosamente poluído (tema de documentário da Futura), seja dos Yanomami resistindo ao garimpo e à contaminação em suas terras, seja dos Munduruku praticando a auto-demarcação de suas terras ancestrais, seja dos Guajajara na linha de frente contra o fascismo Bozonazista que os quer exterminados, seja dos Guarani-Kayowá resistindo contra o avanço do agrobizz genocida e desumano, dentre outros.

No vídeo filmado por A Casa de Vidro, Ailton também reflete sobre a noção de “patrimônio imaterial” e as defesas institucionais erguidas para sua salvaguarda (em instituições como o Iphan). Fala sobre as produções culturais dos povos ameríndios e as dificultosas relações com a civilização dos “brancos”, ou seja, com “o povo da mercadoria” (Davi Kopenawa). Acostumado a cutucar a onça do imperialismo externo e interno com a vara curta de suas provocações ácidas, Ailton afirma que “a maioria das pessoas tem dificuldade de nos considerar remanescentes de uma guerra de colonização. Todos os meus parentes são sobreviventes de uma guerra de ocupação.” (Livro “Encontros”, pg. 84)

Este vídeo foi filmado e editado por Eduardo Carli de Moraes para a Frente Audiovisual d’A Casa de Vidro (Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente), em evento realizado no auditório da Faculdade de Farmácia da UFG em 21/10/2019.


“Ideias para adiar o fim do mundo”, seu novo livro publicado pela Companhia das Letras, teve seu lançamento em Goiânia em 22/102019 na Livraria Palavrear. A obra está disponível na Livraria A Casa de Vidro em Estante Virtual! Sobre o livro, a editora publicou:

Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas. Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.

Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.

“Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. […] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.”

Desde seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak se destaca como um dos mais originais e importantes pensadores brasileiros. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca. “Ideias para adiar o fim do mundo” é uma adaptação de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal, entre 2017 e 2019.

Na obra, Krenak denuncia “um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes d vida.

A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante de um dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas no mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres.” (p. 47)

Além de mobilizar o importante conceito de Antropoceno, entrando em diálogo com a obra de grandes pensadores contemporâneos como Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour e Isabelle Stengers, Ailton Krenak também nos ajuda a formular, para o século XXI, um Ética Inter-Geracional similar àquela formulada pelo filósofo Hans Jonas:

“Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós.

Na verdade, a gente vive reclamando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: ‘Depois de abrir, não tem troca.’ Há 200, 300 anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: ‘Mas é esse mundo que deixaram para a gente?’ Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? Ok, você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem? A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. Quem vai receber são os nossos netos, bisnetos, no máximo nossos filhos já idosos. Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhões de mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo?  Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores; há algo de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, teríamos feito muito melhor.” (p. 69)

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O CONGLOMERADO DAS CRISES E AS TAREFAS DA FILOSOFIA – Reflexões após o III Seminário NUPEFIL e VII Encontro de Filosofia no IFG Goiânia

OUÇA A COMUNICAÇÃO:

 

 

 

O que pode a Filosofia diante da multiplicidade de crises que nos assolam? Que serventia podem ter os filósofos em meio ao redemoinho caótico do presente, grávido de catástrofes?

“Crise” é uma palavra na moda, que pipoca toda hora no noticiário: são crises econômicas (recessão, desemprego, cracks na Bolsa…); são crises políticas (como a tão falada “crise de representatividade” nas democracias liberais burguesas, em que sentimos a descrença generalizada nas instituições pois os políticos não nos representam de fato…); são crises da liberdade de expressão, com artistas censurados, shows cancelados, mostras em museu encerradas prematuramente, palestras proibidas; são crises dos direitos sociais, dos serviços públicos, todos cortados brutalmente pela tesoura da Austeridade neoliberal; são crises também ditas individuais, psíquicas, emocionais – desde a crise de depressão que leva um pós-graduando a suicidar-se na USP, até as crises de ciúme e possessividade que levam tantos machos humanos a cometerem as atrocidades do feminicídio de que esta terra de Pindorama ainda está excessivamente repleta.

São também crises sócio-ambientais, ou melhor: catástrofes ecológicas, como aquelas da contaminação de mais de 800km do Rio Doce (MG/ES) em 2016, ou como o incêndio da Chapada dos Veadeiros em 2017 (que põe em situação ainda mais péssima o tão essencial Cerrado brasileiro), para nos restringirmos a dois exemplos nacionais de recursos naturais postos em crise pela tresloucadas ações humanas. Com prognósticos de aumento da temperatura global entre 2º e 6º C, com as consequências múltiplas em termos de derretimento de calotas polares, acidificação de oceanos, queda brutal de biodiversidade, além de crises migratórias e Guerras Climáticas (Cf Harald Welzer), estamos em pleno processo de progressiva instauração do Caos.

São crises empilhadas sobre crises, feito uma matrioshka de pesadelo, e diante desse caos a Filosofia tem a inglória tarefa de apontar mais sábios caminhos.

Convicto de que uma das potências da Filosofia é sua audácia em pensar grande, inclusive mobilizando a categoria da totalidade (a Phýsis, o Cosmos, o Ser, o Deus de Spinoza…), tentei pensar qual seria a mais ampla e abrangente das crises que vivemos. Qual será a Crise maior que engloba todas as outras crises? E nisto senti o impuxo magnético das obras não só de Hans Jonas, mas também de Fritjof Capra, de David Attenborough, de Michel Serres, de Eduardo Viveiros de Castro, de Elizabeth Kolbert, de Davi Kopenawa/Bruce Albert, que me parecem ser os pensadores da Vida como aquilo que lamentavelmente acabamos por pôr em crise. A crise é vital, ou melhor, toda a vida sobre o planeta é a entidade sobre a qual a crise em curso pratica suas estripulias, suas devastações, seus imperdoáveis crimes impunes.

“A Sociedade de Mercado está incrustada no mundo natural, coisa que o mito do mercado autorregulado também procura negar. A civilização humana depende da ecologia da Terra, embora a estejamos explorando até sua morte – segundo algumas estimativas, a atividade humana aumentou a taxa de extinção de outras espécies em cerca de 1000 vezes (Cf. Millenium Ecosystem Assessment). No cercamento implacável do mundo natural, destruímos nosso planeta e, caso os sussurros ouvidos entre cientistas do clima devam ser levados a sério, talvez já seja tarde demais para fazer alguma coisa. A eterna busca por crescimento econômico transformou a humanidade num agente de extinção, por meio da contínua desvalorização dos serviços ecossistêmicos que mantêm nossa Terra viva.” (RAJ PATEL, O Valor de Nada, Ed. Zahar, 2009, p. 25)

A crise da Vida – ou da “biosfera”, como se diz com frequência – talvez seja a Crisona que engloba todas as crisinhas; é a mais grave de todas as crises, a pior de todas as guerras, pois, como disse o cientista canadense Hubert Reeves, “estamos em guerra contra a natureza, se vencermos… estamos perdidos.” A Crise das Crises, se soubermos compreender as mensagens dos pesquisadores ditos “alarmistas” e “catastrofistas’, tem a ver com as ações dos seres humanos como totalidade, que estão ameaçando a própria continuidade das condições de existência para as futuras gerações de seres vivos. Os vindouros, os viventes por vir, são aqueles que, por nossas ações atuais, estamos severamente lesando. Sem nem percebermos que a Humanidade, ao fazê-lo, age como um bicho burro que serrasse o galho onde está sentado. Seguindo no business as usual, nosso destino é o abismo – o dilaceramento de boa parte da teia da vida. Talvez de fato os ratos e baratas hão de herdar a Terra…

Nossos “crimes contra o futuro”: eis uma das preocupações maiores de Hans Jonas em O Princípio Responsabilidade. Já há organizações, como a World Future Council – Voice of Future Generations, que também buscam trabalhar com o conceito de crimes inter-geracionais e que visam criar meios para que a geração presente possa ser responsabilizada e punida por suas ações que geram legados de longo-prazo para os vindouros. É justamente um crime contra o futuro aquilo que decorre da irresponsabilidade da geração presente: pensar que a Humanidade é hoje uma espécie de vida que aniquila milhões de outras espécies de vida, porém, faz colapsar totalmente as bases do nosso humanismo. Parece convidar a uma nova sorte de misantropia onde o homo sapiens passa a ser visto como espécie daninha, praga ecológica, cataclismo encarnado.

Ando achando que só podemos descrever o desafio que o tempo histórico impõe à consciência humana propondo que adicionemos uma 4ª Ferida Narcísica ao célebre tripé proposto por Freud. Depois de perdermos os narcisismos vinculados ao geocentrismo, ao criacionismo e ao racionalismo – aniquilados, diz Freud, pelo heliocentrismo Copernicano, pelo evolucionismo Darwiniano e pela Psicánalise – teríamos agora a necessidade de enterrar aquele narcisismo que nos coloca como “melhor coisa que já aconteceu nesse planeta” ou “ápice da evolução da matéria orgânica”, para levarmos em conta a noção anti-narcísica, mas muito provavelmente verdadeira, de que a Humanidade está ferrando com toda a Árvore da Vida com a fúria irracional, multiplicada por um milhão, de uma tempestade de gafanhotos que arrasa uma plantação.

Que a Humanidade como um todo possa estar causando tamanhos danos à teia da Vida através da conjugação de todos os seus esforços produtivos de dominação da Natureza é algo que ainda não disseminou-se pelo corpo social, e a falta de esclarecimento sobre isto lançam-nos no pesadelo subsequente: o da inação. O pesadelo do deixa-estar, conexo ao pesadelo da hegemonia econômica do laissez-faire, do deixemos a Mão Invisível do Mercado cuidar de tudo. A baixa consciência da crise ecológica global, a recusa de muitos em enxergar a magnitude do problema, produz também o horror desta pasmaceira, desta falta de mobilização social, diante daquilo que mais solicita a urgência de nossa intervenção ativa.

Sempre que busquei propagar certas reflexões sobre o problema ecológico me vi tolhido por uma certa reação de retraimento, de levantar-escudos, por parte do ouvinte. O interlocutor costuma muitas vezes levantar um muro, dentro de si, ou pôr cera nos ouvidos, quando um filósofo-ecologista como Hans Jonas pede-nos que consideremos seriamente o prognóstico de que somos a causa de um desastre monumental que está em processo de concretizar-se. Este desastre de que somos causa e que derramará toda sua violência  somente sobre os vindouros, esta catástrofe possível deve estar, desde já e daqui em diante, no nosso horizonte de decisão ética e política.

Foi no redomoinho destes questionamentos que me pus a preparar minha comunicação sobre O Princípio Responsabilidade, de Hans Jonas, apresentado nesta Segunda (30 de Outubro do 2017) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, câmpus Goiânia. Busquei comunicar – apesar do tempo limitado de apenas 30 minutos para exposição e debate – que a Crise da Vida é diretamente determinada pela ação humana. Este fato que ainda não raiou em muitas consciências, é nosso dever lutar para que se dissemine, para que esse sol se acenda nas mentes, ainda que seja a luz de uma verdade amarga.

Talvez precisemos recuperar Lucrécio e sua noção de que o remédio amargo pode ser ministrado para o paciente em uma taça cujas bordas estão embebidas em mel. Como falar de modo melífluo e sedutor, porém, a verdade amarga sobre a Humanidade como agente de extinção da biodiversidade terrestre? Talvez precisemos de toda a ajuda dos músicos e dos poetas, estes magos da estética, para nos ajudarem na tarefa de espalhar uma verdade importante que muitos se esforçam por não ouvir. Aos que tapam os ouvidos, precisamos berrar a eles em nossos punks! Aos avestruzes com as cabeças fincadas na areia, contestemos com os furacões de nossas hip hopísticas rimas!

Precisamos de uma arte que faça a experiência das massas dar o salto quântico, do atual pesadelo de cegueira voluntária, da inação fatalista, da subserviência a demagogias, dos espontaneísmos caóticos, rumo à consciência expandida da Vida como interconexão e interdependência, Vida cuja crise nos obriga à responsabilidades extremas e que só cumpriremos colaborando coletivamente. Somos a causa da crise da Vida, decerto, mas talvez sejamos também a única possível solução. O que demanda que nos revolucionemos. Nada menos.

Por que Hans Jonas seria um filósofo importante de conhecermos nesta atualidade onde vivemos nesta cornucópia de crises? Primeiro, penso, pois Jonas é alguém que manifesta em suas páginas um senso de urgência e de crise que parece-me ter muita ligação com a experiência judaica no século XX. A pessoa em carne-e-osso Hans Jonas sofreu na pele não só com um antisemitismo teórico, que se manifestasse apenas por preconceitos verbalizados ou agressões em palavrões, mas sim um antisemitismo psicopata e genocida, como foi o do III Reich e sua proposta, posta em prática a partir de 1942, da Solução Final. Neste contexto, a mãe do filósofo, assassinada em Auschwitz, ganha relevância como uma das chaves para compreensão de sua obra.

“O trabalho liberta”, inscrição na entrada do campo de concentração de Auschwitz

A mãe de Hans Jonas, assassinada pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, decerto se torna uma presença perene no pensamento do filósofo. Perder uma mãe nestas circunstâncias é o tipo de ocorrência capaz de levar um filósofo a questionar todo o sentido da presença humana sobre a Terra. O tipo de tragédia tão terrível que imaginamos conexa a uma atitude de “pára o mundo que eu quero descer!”.

Donde o interesse de Hans Jonas pelo “evento para o qual Auschwitz tornou-se símbolo”: além de sua mãe, Auschwitz “devorou as crianças e os bebês”. E isto conduz Jonas a colocar os pontos de interrogação bem fundo, questionando até mesmo a noção de um Deus providente e onipotente, conceito que entra em crise e colapsa: “a desumanização pela absoluta degradação e privação precedeu suas mortes, nenhum vislumbre de humanidade foi deixado àqueles destinados à solução final, dificilmente um traço de dignidade foi encontrado nos espectros esqueléticos sobreviventes dos campos libertados… E Deus deixou isso acontecer. Mas que Deus poderia deixar que isso acontecesse?” (HANS JONAS, O Conceito de Deus Após Auschwitz: Uma Voz Judia, Ed. Paulus, p. 20)

Trata-de um problema filosófico antiquíssimo, o do mal radical, o desafio supremo a toda teodicéia: é evidente que existe mal no mundo – Auschwitz é disso o símbolo! – e como Deus, sendo onipotente, o permite? A questão de Hans Jonas recebe eco no cinema naquele magistral God on Trial (2008)um filme de Andy Emmoni, onde prisioneiros de um campo de concentração decidem realizar um tribunal onde se sentará, sobre o trono dos réus, o próprio Deus. Ao invés do Juízo Final que tem Deus por juiz, o filme propõe, com tensa e envolvente dramaturgia, a inversão disso: a Humanidade erguendo-se como juíza (e justiceira) de Deus. É possível seguir crendo em um Deus bondoso, justo, que tudo pode, depois Dele ter permanecido silente e improvidente quando o “povo de Israel” clamou para ser resgatado do massacre total perpetrado pelas hordas nazistas?

A filosofia do século XX não seria o que é sem as contribuições daqueles que, como Theodor Adorno, Hannah Arendt e Hans Jonas, puseram-se a refletir nos “tempos sombrios” em que o dito progresso técnico-científico desembocou na calamidade triunfal, na vitória da desumanidade, no colapso de qualquer solidariedade em prol da atroz desunião odienta. Adorno destaca que a educação nunca poderá ser a mesma depois dos campos de concentração (cf. Educação e Emancipação, em especial o artigo “Educação Após Auschwitz”)Arendt dedica anos de esforços à compreensão histórica do que tornou possível a “banalidade do mal” sob os totalitarismos – em especial o nazista e o stalinista. Onde foi que falhamos tão feio que puderam nascer horrores como Eichmanns, como gulags?

 Já Hans Jonas aventura-se a refletir sobre o Conceito de Deus Após Auschwitz: um tema que, diz ele, “com temor e tremor eu o escolho. Pois creio que eu não deveria recusar a essas sombras algo como uma resposta a seu grito, após tanto tempo, lançado a um Deus silente.” (p. 17) Se é possível prosseguir crendo em Deus após alguns emblemáticos acontecimentos do século XX é uma questão que anima também a filosofia de Marcel Conche – que responde, no primeiro artigo de Orientação Filosófica, com convicção atéia: não é possível que exista um Deus que aprove, de braços cruzados, o morticínio de crianças. A teodicéia está morta e Nietzsche tinha razão – Deus morreu, e fomos nós que o matamos. Como celebrar o Criador diante de Hiroshima e Nagasaki após a bomba atômica?

“O que fez Auschwitz adicionar ao que sempre se pôde saber sobre a extensão das coisas terríveis e horrendas que os seres humanos podem fazer a outros seres humanos e que desde tempos imemoriais têm feito?”, pergunta-se Jonas (p. 19). Ele evocan uma distinção entre Auschwitz e o famoso terremoto de Lisboa, tão debatido no Iluminismo: “é o fato e sucesso do mal deliberado, mais que as aflições da causalidade cega e natural, o uso desse último nas mãos de agentes responsáveis (Auschwitz, em vez do terremoto de Lisboa) – com o que a teologia judaica tem que se confrontar no momento.”

Se a noção de uma providência divina, de um Deus bondoso e onipotente, entra em maus lençóis diante de um terremoto que faz milhares de vítimas – atualizando o exemplo, pensemos no Haiti em 2010 e seus mais de 100.000 mortos -, o Holocausto perpetrado pelo III Reich alemão também faz entrar em parafuso a noção tradicional de deidade a que estamos acostumados após tantos séculos de pregações monoteístas.

Jonas sabe muito bem que entre os atributos essenciais do conceito de Deus estão a bondade e a onipotência. Como prosseguir crendo em um Deus bom e onipotente quando sabemos muito bem que “durante os anos que Auschwitz assolou, Deus permaneceu silente?” (p. 32) O filósofo ateísta não tem maiores dificuldades em responder que Deus se manteve em silêncio pois Deus não existe. Se Deus não praticou uma miraculosa intervenção salvífica para resgatar o povo de Israel da bocarra devoradora da Solução Final nazista, não foi porque Deus teve um breve eclipse em sua onipotência ou sentiu-se incapaz de agir para consertar o mundo, simplesmente não havia ninguém no Céu com os poderes que a imaginação humana atribui à figura e ao conceito do Criador.

Jonas, não sendo ateísta, permanecendo enraizado na tradição judaica, precisará fazer altos malabarismos teológicos para explicar Deus após Auschwitz. A tentativa de solução proposta por Jonas faz colapsar a noção de onipotência divina. Já que “a bondade é inalienável ao conceito de Deus”, é preciso que caia a noção do todo-poderosismo divino. É preciso que Deus seja limitado em seu poder, que Deus não possa tudo, que os poderes de intervenção desse Deus estejam enjaulados em estreitos limites: “Depois de Auschwitz, podemos afirmar com mais forma do que nunca que uma divindade onipotente ou teria que não ser boa ou (em seu governo do mundo, no qual podemos ‘observá-lo’) totalmente ininteligível. Mas de Deus deve ser inteligível de alguma maneira e em certa medida (isso devemos sustentar), então sua bondade deve ser compatível com a existência do mal, e isso ocorre somente se ele não for todo-poderoso.” (p. 31)

Querer conservar o conceito de Deus-bondoso após o crepúsculo do Deus-todo-poderoso conduz Jonas a uma noção curiosa da impotência divina, formulando um mito de um deus que teria abdicado de seus poderes de intervenção em prol da existência de outros agentes que determinam o curso dos eventos – nós.

“Por razões decisivamente solicitadas pela experiência contemporânea, sustento a ideia de um Deus que por um tempo – o tempo contínuo do mundo processo – despojou-se de qualquer poder de interferir no curso físico das coisas; e que responde ao impacto de eventos mundanos sobre o seu ser não ‘com uma mão forte e braço estendido’, como nós, judeus, recitamos em cada Páscoa, recordando o êxodo do Egito, mas com o mudo e insistente apelo de seu objetivo não alcançado. (….) E aqui lembremo-nos e que a própria tradição judaica  não é realmente tão monolítica  em matéria de soberania divina quanto a doutrina oficial faz parecer. A poderosa corrente oculta da cabala, que Gershom Scholem em nossos dias trouxe novamente à luz, conhece um destino divino ligado ao vir-a-ser do mundo. Lá encontramos especulações altamente originais, muito pouco ortodoxas, em cuja companhia a minha não parece tão impertinente, afinal.” (p. 32-34)

O Conceito de Deus Após Auschwitz é um “fragmento de teologia especulativa” em um contexto sócio-histórico onde podemos dizer que a própria noção de Deus entra em uma de suas piores crises – como Nietzsche e Feuerbach haviam previsto no século anterior. A crise de Deus é tamanha que muitos de seus atributos essenciais – como a onipotência – são tacadas ao mar na esperança de salvar a embarcação, tornada mais leve pela exclusão daquilo que não poderia ser harmonizado com os males radicais do Holocausto ou da bomba atômica.

O tipo de especulação teológica que Hans Jonas realiza neste texto certamente tem seu esplendor, sua poesia, seu pathos tocante, já que estamos diante de um filósofo que não só perdeu a mãe para a máquina de genocídio alemã, mas que sente uma comunidade de destino com seu povo e que não pode impedir que sua filosofia fique marcada pela cicatriz indelével deste trauma. É algo que, parece-me, acaba por unir Jonas, Arendt e Adorno, tornando-os figuras tão eminentes da filosofia da “Era dos Extremos” analisada em minúcias por Hobsbawn. Mas diante da cornucópia das crises – muitas delas apontadas com muita contundência em O Princípio Responsabilidade – do que nos vale ficar especulando sobre Deus ao invés de arregaçar mangas contra a existência dos males e em prol dos potenciais transformadores e revolucionários que as crises também nos abrem?

Ora, confessa Jonas, este seu ímpeto de fazer teologia, de filosofar sobre Deus, Alma e Liberdade, “certamente deixaria o velho Kant completamente atônito. Pois ele, ao contrário, sustentou serem estes alegados não objetos os mais elevados objetos de todos, sobre os quais a razão não pode deixar de ser concernida, embora não possa esperar que em algum momento se obtenha um saber sobre eles e que, por isso, sua busca esteja necessariamente fadada ao fracasso, graças aos limites intransponíveis do conhecimento humano. Todavia, este veto cognitivo, por tal preocupação ainda justificada, deixa aberta outra via além da completa renúncia: curvar-se ao decreto de que o ‘conhecimento’ nos escapa aqui e, mais que isso, até mesmo renunciar a esse grande objetivo de saída, não impede ainda o pensar sobre coisas dessa natureza em termos de sentido e significado.” (p. 18)

A filosofia, ainda que tenha consciência progressiva do quão são incognoscíveis estas antiquíssimas figuras de Deus, da Alma, do Outro Mundo, do Sentido Transcendente de Tudo, não se resigna facilmente a um ceticismo abstêmio. Em especial, a filosofia se sente compelida a ir além dos limites do conhecimento e especular sobre o que nunca se poderá saber com certeza. É o próprio sentido da vida humana sobre a face da terra o que entra em crise em situações históricas como aquelas da carnificina generalizada da 2ª Guerra Mundial – e é tarefa da filosofia encarar o desafio de formular conceitos e interpretações que nos ajudem a encontrar sabedoria em meio ao caos de tempos sombrios.

É o que Arendt fez ao propor a noção de “banalidade do mal” após testemunhar o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Ainda que não possamos chegar a um conhecimento perfeito sobre certos temas, é preciso refletir e especular sobre eles, até porque a irreflexão é muito mais perigosa do que a reflexão infrutífera. Goya sabia: “o sono da razão gera monstros”. Gosto da atitude de Jonas em sua tentativa de refazer a teia teológica rasgada pelo evento de que Auschwitz se tornou símbolo, ainda que minhas convicções atéias me impeçam de segui-lo na sua tentativa de salvar Deus do completo naufrágil, forjando o mito de um deus frágil e abstêmio, resgatado em um barca de palavras e salvo da derrocada geral.

Porém, sinto que a filosofia corre sempre o risco de se perder num labirinto de abstrações, de se encerrar num interminável jogo de palavras e de conexões entre conceitos, muitas vezes tornando-se de um hermetismo que afasta o comum das gentes e torna os filósofos um clubinho seleto de gatos pingados que dialogam em linguajar cifrado. Quem já se arriscou a ler a Fenomenologia do Espírito de Hegel ou O Ser e o Nada de Sartre deve ter sentido o quanto alguns filósofos parecem indiferentes ou negligentes com a questão da comunicação com um público mais amplo – escrevem para outros filósofos, bichos sempre raros mesmo nas sociedades que mais valorizam a filosofia. Por isso, gosto muito quando ao fim de O Conceito de Deus Após Auschwitz raia com força no texto de Jonas – ainda que numa nota de rodapé – um destino individual, uma singularidade irrepetível, uma vida concreta: Etty Hillesum (1914-1943).

Hans Jonas sente-se comovido pelo destino de Etty Hillesum, a jovem judia holandesa que, “quando as deportações começaram na Holanda, deu um passo à frente e se ofereceu para o campo de concentração de Westerbrok, para lá ajudar no hospital e compartilhar o destino de seu povo.” (p. 36) Etty foi assassinada em Auschwitz em 30 de Novembro de 1943, mas legou à humanidade uma obra destinada a ecoar por muito tempo: Uma Vida Interrompida – Diários 1941-1943 (ed. Record.; tradução de Antônio C. G. Penna). Há mais de 10 anos atrás, li este livro com comoção e interesse – e escrevi o seguinte texto, que retomo e republico com pequenas alterações:

DIÁRIO DE UMA VIDA INTERROMPIDA

O Holocausto foi certamente uma das manchas mais vergonhosas da história humana (que não tem poucas). Algo tão monstruoso e demoníaco que é capaz de abalar para sempre, no coração de quem o reconhece de frente, uma série da crenças que caem em efeito dominó: a fé na humanidade, no progresso da história, na vitória certa do Bem, na existência de um Criador justo e bondoso que fica sentado em sua nuvemzinha a zelar pelos destinos de suas criaturas…

Mas é evidente que não é por isso que devemos esquecê-lo, fingir que não existiu, apagá-lo da memória. Não: é importante se lembrar desse gigantesco erro para que não se volte a repeti-lo nunca mais. Para que ele permaneça frente à nossos olhos como um exemplo supremo do Mal, como um souvenir do horror possível que deve sempre estar lá para nos deixar enojados e nos fazer repelir qualquer coisa que se assemelhe a ele…

Suspeito que muita gente quer mais é fechar os olhos para as merdas e mazelas do mundo e crer de maneira delirante em um mundo mais róseo em que as coisas são mais de acordo com o que gostaríamos que fossem. Mas fingir que o mundo é um conto de fadas nunca serviu para torná-lo mais vivível ou menos hediondo: melhor reconhecê-lo como é, por mais horrendo que seja, para poder combater nele toda a tropa de males que nos assola.

O problema, penso eu, é que não podemos e não conseguimos saber de verdade o que foi o Holocausto quando, nas aulas de história, ficamos sabendo da existência dos “fatos” a partir dos números de vitimas. Sim, enquanto alunos, ficamos sabendo que durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista assassinou entre 6 e 9 milhões de judeus. Anotamos a informação no caderno, decoramos tudo pra poder passar na prova, alguns ficam profundamente chocados, outros fingem uma piedade um tanto artificial… Mas, se me lembro bem de minha atitude e daquela dos colegas, isso não era algo que mexia visivelmente com a vida e a paz de espírito de ninguém. Certamente que surpreendia pela grandiosidade do número, pelo tamanho descomunal do crime, mas não era algo que transtornava a vida ou que nos fazia arder de insuportável compaixão. Afinal de contas, somos todos, e mais ainda quando crianças e adolescentes, imensamente egocêntricos e o sofrimento dos outros é pra nós muitas vezes indiferente. Lembro-me que uma aula de História sobre o Holocausto não impedia ninguém de bocejar com tédio, de continuar com as conversinhas fúteis de sempre ou de desejar ir pra casa pois estava quase na hora do Chaves e do Chapolim começarem na TV.

Acho que só começamos a ter uma idéia verdadeira do horror quando começamos a ver as fotos e vídeos das sepulturas de massa, com aquele amontoado de esqueletos e crânios empilhados, ou quando vemos algum dos inúmeros filmes que o cinema produziu sobre o assunto (A Lista de Schindler de Spielberg, A Vida é Bela de Benigni, O Pianista de Polanski, Amém de Costa-Gravas, A Escolha de Sofia de Pakula, Noite e Neblina de Resnais, The Pawnbroker de Lumet, entre muitos outros). É que a coisa é tão monstruosa que se torna difícil de imaginar. Até hoje não consigo fabricar uma imagem mental de 6 milhões de pessoas e tenho que usar artifícios como “são 60 Maracanãs lotados”. Mas nem isso consigo imaginar direito… 60 Maracanãs de gente morta é o tipo de imaginação que leva a mente quase a dar tilt.

E mais: a coisa não nos abala quando é só um número, uma estatística, uma massa humana anônima. São 6 milhões que não conhecemos, que não amamos, que não são nossos amigos, nem mesmo conhecidos… Enfim, são gente com quem não temos nenhum laço mais forte (além daquele muito frágil que é o pertencimento à mesma espécie biológica), gente por quem não sentimos muita coisa. Como pedir que sintamos piedade desses judeus sem rosto, sem história, sem vida, que se amontoam para formar uma estatística? Não nos compadecemos de números, mas sim de destinos humanos. É somente quando alguns desses rostos assassinados começam a ganhar rosto, e seus rostos a ganhar uma história, que a dimensão da tragédia começa a ser notada de verdade – donde a importância histórica tremenda do documentário Shoah de Claude Lanzmann (com mais de 9 horas de duração e repleto de entrevistas com os sobreviventes dos campos de extermínio).

Podemos dizer também que nós, brasileiros, ao procurarmos saber da história de vida de Olga Benário, podemos fazer um massacrados ganhar um rosto e um passado – tornamos concreta a tragédia coletiva na encarnação de uma singularidade irrepetível. A piedade que então somos capazes de sentir por uma pessoa individualizada nos dá a dimensão da piedade monstruosa – e seguramente fatal – que nos tomaria se a sentíssemos por todos que pereceram.

Mais um rosto e mais uma história, pois.


Em 30 de Novembro de 1943, aos 29 anos de idade, Etty Hillesum foi assassinada no campo de concentração de Auschwitz junto com seu pai, sua mãe, seu irmão e mais algumas centenas de judeus, todos esmagados pela máquina genocida do Partido Nazista que havia subido ao poder estatal em 1933. Humanos tratados como se fossem moscas, baratas, amebas… chacinados com Zyklon B e outros produtos químicos destinados ao controle das pestes.

Foi somente nos anos 1980 que finalmente se publicou na Holanda pela primeira vez uma edição dos Diários que Etty escreveu entre 1941 e 1943, fato que serviu para elevar dos subterrâneos da história uma voz lírica, profunda e sábia que descrevia os horrores nazistas que sentiu na pele, até o fim, até o ponto em que teve sua voz rasgada e silenciada subitamente pela insânia genocida Nazi… Em 1941, quando o domínio nazista na Holanda começava a se intensificar, Etty Hillesum começou a escrever seu diário – e isso a poucos quilômetros de distância de onde a pequena Anne Frank também escrevia o seu.

Anne Frank (1929-1945) em foto escolar de 1940

Talvez não imaginando que acabaria por deixar para a posteridade um dos mais tocantes relatos sobre aqueles anos terríveis, Etty Hillesum começou seu Diário com pouca ciência de que acabaria gerando uma obra com interesse  histórico. Ela, aliás, está longe de ser um historiadora ou alguém com grandes conhecimentos de sociologia e ciência política. É apenas uma garota judia talentosa, sensível, doce e inteligente tentando prosseguir com sua vida em meio a uma situação exterior que vai gradualmente esmagando seu povo, seus amigos, sua família, sua vida.

A princípio, os Diários não parecem se ocupar muito com a guerra, o nazismo e o holocausto. Etty Hillesum, garota de tendência introspectiva, fã de poesia (especialmente de Rilke), interessada em psicologia, preocupa-se muito mais em se voltar para dentro de si em uma jornada de auto-conhecimento. Em sua viagem em direção ao mundo interior, vai sondando seu íntimo em busca de respostas para dúvidas sobre o amor, a sexualidade, a conduta na vida, sempre com um esforço muito estimável em tentar se manter o mais sincera possível, vencendo todas as suas inibições e todo desejo de glória: “Este é um passo doloroso e quase impossível para mim: confiar tanta coisa que esteve escondida a uma folha de papel…”, começa ela em sua primeira entrada, confessando que tem em si muito “medo de desabafar e de permitir que as coisas extravasem”: “É como aquele grito final e libertador que sempre fica timidamente preso na garganta quando se faz amor… no mais profundo de meu âmago algo ainda está aprisionado… no mais profundo do meu ser, algo como uma bola de fios de lã bem apertados amarra-me, sem me dar alívio…” (17)

O principal objetivo que Etty se coloca é escrever sobre sua vida íntima e seus sentimentos confusos a fim de adquirir um pouco de clareza e de lucidez. Nada por aqui é muito grandiloquente ou literário: ela até pode ter tido a ambição de publicar esses diários algum dia, mas a leitura nos faz notar uma espontaneidade e um ausência de artifício que só se encontram nos textos escritos na solidão e sem intento de publicação. O objetivo do Diário, aliás, não é de modo algum registrar o momento histórico; o Diário de Etty Hillesum, como todo diário verdadeiro, é uma tentativa dela pensar sua própria vida e seus próprios problemas – em suma, algo muito mais voltado para o individual do que para o social: “Talvez meu propósito na vida seja preocupar-me comigo, viver às turras comigo, com tudo que me incomoda e me tortura e que clama por soluções internas e por uma organização. Pois esses problemas não são apenas meus. E se ao fim de uma longa vida eu for capaz de dar alguma forma ao meu caos interior, terei cumprido meu pequeno propósito na vida” (47), diz.

E, apesar da preocupante situação política, ela parece atingir nesse momento de sua vida um alto grau de sabedoria e uma de suas fases mais felizes, como mostra um trecho como esse: “Antes eu vivia sempre por antecipação; tinha a sensação de que nada que fazia era a coisa ‘real’, que tudo era uma preparação para alguma outra coisa, algo ‘maior’, mais ‘autêntico’. Mas esse sentimento desapareceu de mim completamente. Agora eu vivo a hora e a ocasião, este minuto, este dia, integralmente, e a vida vale a pena ser vivida. E se soubesse que iria morrer amanhã, eu diria: é uma grande lástima, mas valeu a pena enquanto durou” (32). Além do mais, julga que “a morte é apenas um suave desaparecimento…”

Pouco a pouco, as medidas dos alemães intensificam a segregação e a humilhação dos judeus holandeses: primeiro eles são proibidos de usar bicicletas; depois não podem mais entrar em nenhum meio de transporte coletivo; depois são impedidos de circular em bosques, praças e outros locais públicos; depois são obrigados a ostentar a famosa Estrela de Davi colada ao peito… Não tardam as deportações para campos de trabalhos forçados, que muitas vezes rasgam famílias ao meio… E crescem os rumores a respeito das gigantescas e impiedosas matanças que os nazistas estão infligindo ao povo judeu em dezenas de campos de extermínio. Tudo atinge um ponto em Etty não tem mais condições de se enganar: “…o que está em jogo é nossa iminente destruição e aniquilamento, não podemos ter mais ilusões sobre isso. Eles estão em campo para nos destruírem completamente…” (156).

NAS GARRAS DO NAZISMO

E então o Diário de Etty, antes voltado quase que exclusivamente para problemas pessoais e afetivos, se transforma gradualmente num retrato da situação histórica desesperadora para o povo judeu. E o que acho mais bonito em Etty Hillesum é que ela, em nenhum momento, deixa-se tomar pelo ódio, pelo rancor, pela selvageria, pela ferocidade. Frente ao ódio nazista, ela se esforça para não pagar na mesma moeda, como se perguntasse: de que serviria aumentar a quantidade de ódio nesse mundo já transbordante de fúria? Por que nos tornaríamos tão horríveis e tão brutais quanto nossos inimigos?

Sobretudo é preciso se salvaguardar contra o grande erro que seria se tornar parecido com os nazistas: “Se permitirmos que nosso ódio nos transforme em animais selvagens como eles, então não haverá mais esperança para ninguém”, diz Etty, notando que um dos principais problemas que nota em seus concidadãos é que “o ódio aos alemães envenena a cabeça de todo mundo…”.

E continua: “Se houvesse apenas um alemão decente, então ele deveria ser admirado, apesar de toda aquela quadrilha de bárbaros, e por causa daquele único alemão decente está errado derramar ódio sobre um povo inteiro… o ódio indiscriminado é a pior coisa que existe; é uma doença da alma” (24-25).

O Diário inteiro persiste, obstinado, nessa recusa do ódio. É evidente que Etty não consegue evitar sentir “uma profunda indignação moral por um regime que trata seres humanos de tal forma”, mas essa indignação não se permite nunca utilizar meios brutais e raivosos para se manifestar. Ela recusa até mesmo qualquer tipo de rebeldia e qualquer tentativa mais forte de escapar das garras dos carrascos. Etty, antes de ser mandada para Auschwitz, vai voluntariamente para o campo de Westerbork.

Alguns podem até criticar a atitude de Etty Hillesum como “muito fatalista” ou “muito resignada”, como se ela tivesse aceitado muito facilmente ser conduzida ao matadouro, como uma ovelinha que pouco reclama. Uma atitude que está nas antípodas do Levante do Gueto de Varsóvia, por exemplo. De fato, Etty não se deixa nunca tomar pelo ímpeto insurrecional, nem por qualquer atitude mais enérgica no sentido de salvar-se, como se tivesse aceitado completamente seu destino. E se explica da seguinte forma, num trecho magistral que merece ser citado na íntegra:


“Não é como se eu desejasse cair nos braços da destruição com um sorriso resignado – longe disso. Estou apenas curvando a cabeça ao inevitável, e ao fazê-lo sou amparada pela certeza de que afinal de contas eles não podem roubar-nos aquilo que realmente importa. Mas não acho que me sentiria feliz se fosse excluída daquilo que tantos outros têm que sofrer. As pessoas insistem em dizer-me que alguém como eu tem o dever de esconder-se, porque tenho muitas coisas a fazer na vida, muito para dar. Mas sei que qualquer coisa que eu tenha para dar aos outros, posso dá-la não importa onde eu esteja, aqui no círculo de meus amigos, ou lá, num campo de concentração. E é pura arrogância uma pessoa imaginar-se boa demais para não compartilhar do destino das massas. E se o próprio Deus sentir que eu ainda tenho muita coisa a fazer, então muito bem, eu o farei, após ter sofrido o que todos os outros têm que sofrer. E se eu sou ou não um valioso ser humano, isso só ficará claro a partir de meu comportamento em circunstâncias as mais árduas.” (178)

Claro que a resignação de Etty ao seu destino terrível só podia mesmo se sustentar sobre uma crença religiosa que parece crescer em sua mente na mesma proporção em que cresce o perigo e a iminência da morte. Quanto mais difícil se torna a situação, mais ela se ajoelha para orar a seu Deus… Sintomático. Quando estamos impotentes, quando não há nada que possamos fazer para resolver uma situação, quando estamos nessa situação de radical dependência em relação a uma força externa, é aí que a religião se ergue mais do que nunca nos corações humanos. É este o sentido da famosa frase que diz: “não existem ateus a bordo de aviões com turbulência”. E, por mais incrível que pareça, o fato de esse Deus (suposto como bom e onipotente!) não ter movimentado um dedo para ajudar quem quer que fosse dentre as vítimas do massacre não parece razão nenhuma para Etty duvidar de sua existência… E ela prossegue tentando crer que “o mundo é belo e a vida é cheia de significação”. Pena que tantos de nós, frente aos relatos desse horror, não possam dizer o mesmo…

Longe de mim julgar se ela esteve certa ou errada a agir dessa maneira. Como saber o que é certo a se fazer numa situação extrema desse tipo? Deve-se aceitar com estoicismo as pancadas que o destino resolve nos infligir, ou então deve-se espernear, gritar, se revoltar, descer ao túmulo largando palavras do mais puro ódio contra os carrascos? Não sei. O fato é que a atitude de Etty é considerada por muitos de seus intérpretes – entre eles André Comte-Sponville – como sábia, serena, doce, encarnação da caritas ou da ágape (a amorosidade caridosa). Em Etty Hillesum, lê-se uma indignação que não descamba para a violência, uma luta que não degenera em ódio, uma recusa em somar raiva à raiva, um não ao incremento da quantia de fúria que já há no mundo. É uma mensagem até cristã aquela que emana destes diários da jovem judia: mostrar a outra face, recusar o combate, não se deixar arrebatar pelo ódio… Mas é também, antes de mais nada, a atitude de uma garota que se conhece bem demais para acusar os outros de todo mal e se fingir de santinha…

Etty sabe muito bem que no coração e na mente de todos nós repousam vários vícios em potência, várias sementes malignas que podem germinar e crescer se solicitadas pelas circunstâncias e pelas histórias de vida de cada um. Etty Hillesum se exime de condenar os outros pois ela mesma sabe que culpados somos todos, que a capacidade para fazer o mal existe em potência em cada um, apesar de só se manifestar em ato em alguns. “A podridão dos outros está também em nós… Não vejo outra solução a não ser voltar-nos para dentro e erradicar toda a podridão que ali existe. Eu não acredito mais que nós possamos mudar qualquer coisa no mundo antes que tenhamos mudado primeiro a nós mesmos. E esta parece para mim a única lição a ser aprendida desta guerra: que devemos olhar para dentro de nós mesmos e para mais lugar nenhum.” (92)

A medicina moral que Etty sugere, pois, é introspectiva: não se deve sair apontando o dedo para os males e vícios alheios antes de erradicar todo o mal pessoal (e ele é muito numeroso, em quantidade suficiente para que se leve uma vida inteira na faxina…). “Acredito que nunca serei capaz de odiar qualquer ser humano por sua suposta ‘maldade’, que só odiarei o mal que está dentro de mim…” (103). “A verdadeira paz só chegará quando cada indivíduo encontrar sua paz interior; quando tivermos todos dominado e transformado algum dia nosso ódio pelos nossos semelhantes, de qualquer raça, até mesmo em amor – embora isso talvez seja pedir demais. É no entanto a única solução.” (148) “Cada um de nós deve voltar-se para dentro e destruir no seu interior tudo o que pensa que deveria destruir nos outros”, diz Etty Hillesum, antes de concluir com um ensinamento de perene atualidade: “Lembre-se que cada átomo de ódio que acrescentamos a este mundo o faz ainda mais inóspito” (210).

Em seu livro Matéria, Espírito e Criação (Ed. Vozes, 2010), Jonas escreve, no capítulo 16, sobre o “testemunho de Etty Hillesum”: “Face ao acontecimento de Auschwitz – e desde o porto seguro de não ter estado ali, de onde se pode facilmente especular – fui impelido à opinião, provavelmente considerada herética para toda doutrina da fé, de que não é Deus que pode nos ajudar, mas sim nós é que temos de ajudá-lo.” (p. 67) É exatamente a opinião manifestada por Etty Hillesum antes de ser levada para a câmara de gás em Auschwitz: ela diz que “não é de Deus a culpa por tudo ter sobrevindo assim, mas nossa”; que “o Senhor não pode nos ajudar, mas nós é que devemos ajudar o Senhor a nor ajudar”; que “não há mesmo o que quer que seja que o senhor possa fazer a respeito de nossa situação” (p. 68).

Para Hans Jonas, portanto, “a ignomínia de Auschwitz não pode ser imputada a uma providência onipotente ou a uma necessidade dialeticamente sábia… Nós, seres humanos, infligimos isto à deidade, como mordomos ineptos de sua causa; sobre nós tal ignomínia pesa, e somos nós que devemos também limpar a vergonha de nossos rostos desfigurados, e até mesmo do próprio rosto de Deus.” (p. 59)

A noção tradicional de Deus, entendido como benigna providência onipotente, entra em grave crise com o fato histórico dos campos de concentração e extermínio. Entra em colapso qualquer possibilidade de crença em um Deus que intervenha na realidade para consertar aquilo que nela está moralmente errado. Poderíamos até dizer que seria difícil criarmos algum “experimento empírico” mais eficaz para comprovar a inexistência da providência divina do que o Partido Nazista e seu III Reich puderam fazer. Se Deus não se manifestou em tais condições, se manteve-se silencioso e de braços cruzados diante de tão colossal ignomínia, de tão hedionda injustiça, é pois, no mínimo, não é dotado da onipotência que algumas seitas religiosas costumam lhe atribuir. Hans Jonas tenta salvar a noção de Deus, purgado da onipotência, realizando complexos malabarismos teológicos e cosmogônicos – uma tentativa que, ele confessa, “se vinculou ao nome de Auschwitz, uma vez que para mim ele também foi um acontecimento teológico.” (p. 62)

A filosofia de Hans Jonas, sob o impacto dos fatos históricos vinculados ao Holocausto do povo judeu perpetrado pelos genocidas nazis, abandona qualquer noção de Deus onipotente, de providência divina – noções que já eram recusadas, cerca de 25 séculos atrás, pela escola epicurista. Epicuro e Lucrécio não pouparam esforços para mostrar que não passava de superstição dos mortais acreditar em deuses que se importavam conosco, que nos vigiavam de perto, que respondiam a nossas preces e sacrifícios. Hans Jonas, portanto, não faz senão reatar sua conexão com a sabedoria epicurista após o impacto de certos acontecimentos históricos que forneceram a prova da improvidência divina, isto é, da ausência de um “governo divino do mundo”, já que “muito do nosso conhecimento da natureza e da história, portanto teórica e moralmente, corre em direção contrária a ela.” (p. 49)

Na polêmica entre criacionismo e evolucionismo, Jonas toma partido, sem sombra de dúvida, em defesa da “descoberta factual da evolução”, recusando a noção fictícia – expressa no mito de Adão e Eva – segundo a qual “os seres humanos teriam aparecido de repente no mundo e prontos de uma vez por todas”:

“Satã observando o amor de Adão e Eva”, de William Blake (1807)

“A descoberta factual da evolução nos ensinou que os seres humanos chegaram a ter consciência de si mesmos através de uma longa pré-história de avanços desde a alma animal até o espírito; e os dados presentes referentes ao próprio espírito pensante nos ensinam que ele não é de modo algum separável do sensível e do anímico, tal como a percepção, o sentimento, o desejo, o prazer, a dor – coisas essas inteiramente ligadas ao corpo.” (p. 48) Ora, argumenta Jonas, é preciso que a “matéria primordial” do universo seja dotada da “possibilidade do espírito”: “tudo isso pode ser demonstrado pelo simples fato de seu surgimento, haja vista a inferência quase tautológica de que o que se tornou real precisava ser possível.” (p. 46)

A existência, na natureza, de subjetividade, de espírito, é prova suficiente de que a matéria universal é capaz de gerar tais resultados como estes que podemos testemunhar em nosso próprio ser.  A emergência do homo sapiens, alguns bilhões de anos após a explosão primordial, resultado de um longo processo de evolução da matéria orgânica, é prova de que matéria e espírito não são heterogêneas, imescláveis, mas muito pelo contrário: a matéria contêm entre suas possibilidades o desenvolvimento da espiritualidade, ou melhor, só há espírito encarnado, só há espírito como resultado da evolução orgânica da matéria universal.

Desde a filosofia pré-socrática, com Xenófanes, a crítica da mitologia tradicional denunciava o processo humano de fabricar deuses à nossa imagem e semelhança. Xenófanes ficava estarrecido diante da representação dos deuses olímpicos como se tivessem corpos extremamente semelhantes aos corpos humanos. Boticcelli pinta sua deusa Vênus com seios à mostra, indistinguíveis dos seios de uma mulher. Não faltam quadros onde Zeus é uma espécie de homem musculoso, e nos museus ao redor do mundo vocês podem observar que as esculturas de Apolo, por exemplo, são dotadas de um pênis. Xenófanes, provocativo, havia sugerido que se os cavalos e os bois pudessem desenhar seus deuses, acabariam por figurá-los como deuses-cavalos e deuses-bois.

Cega à esta crítica mordaz, a tradição judaico-cristã insistiu sempre em um Deus único que teria criado os seres humanos “à sua imagem e semelhança”. Hans Jonas, no capítulo 9 de Matéria, Espírito e Criação, encara a “objeção do antropomorfismo”, isto é, a “reprovação à vaidade humana” feita por aqueles que julgam como imperdoável vanglória a crença em um deus que criou o homo sapiens à sua imagem e semelhança. A filosofia de Jonas não é totalmente avessa a um certo “narcisismo” humano: afirma que “nosso espírito é a coisa mais elevada de que temos conhecimento no universo” (p. 44).  Nem búfalos, nem corujas, nem cobras, nem macacos, manifestam os poderes de consciência reflexiva e de linguagem que fomos capazes de desenvolver. Ainda que recuse a noção de Descartes dos animais como autômatos, máquinas sem alma, concedendo que as outras formas de vida são sim dotadas de anima e manifestam diferentes estágios da evolução anímica na cadeia da vida, Jonas ainda assim coloca o ser humano numa espécie de pináculo – ainda que com muitas ressalvas:

“A fórmula ‘coroa da Criação’ certamente não deixa de ser um tanto presunçosa.Mas se o orgulho da ‘dignidade do homem’ se estende dessa maneira presunçosa, logo destrói aquilo que reclama para si mesmo. Apenas enquanto um enorme fardo, enquanto um mandamento de se colocar à altura da condição de ser a imagem de Deus, pode ele mesmo dar prova dessa dignidade. E, nesse sentido, a vergonha, muito antes que o orgulho, é o que se constata quando observamos o drama humano, pois a traição a essa semelhança excede sobremaneira à fidelidade a ela. Devemos ser gratos pelas raras confirmações que vez ou outra resplandecem e, algumas vezes, exatamente nas horas mais sombrias, pois sem elas e ante o cortejo histórico-universal das provas contrárias a uma tal imagem, essa mistura de atrocidades e estupidez, teríamos que provavelmente nos desesperar quanto ao próprio sentido da aventura humana. O exemplo dos justos nos salva disso e, de fato, salva-se a si mesmo cada vez mais. Mas o gênero humano, Deus o sabe bem, não tem razão alguma para vangloriar-se.” (p. 46)

No último capítulo do livro, Jonas pergunta-se: “Que importância tem saber se há vida inteligente em outro lugar do universo?” Se encontrássemos ETs com civilizações avançadas a alguns milhões de anos-luz daqui, isso faria alguma diferença ética-política, impactaria os dilemas e as responsabilidades da atualidade? “A descoberta de vida inteligente extraterrestre alteraria algo em nossa responsabilidade? Poderíamos nos consolar com o fato de que se estragarmos nossa grande oportunidade aqui, ela seria levada adiante em algum outro lugar, estando, inclusive, em melhores mãos, e que portanto não depende apenas de nós?” (p. 76)

Jonas responde com convicção que não temos o direito de estragar a árvore da vida, que inclui os organismos capazes de subjetividade e espírito, em nenhuma hipótese:

“Somos responsáveis apenas pelo destino do espírito aqui onde dominamos, isto é, no distrito exclusivo de nosso poder – tal como o são aquelas hipotéticas inteligências, se é que existem, em seu próprio distrito. Ninguém pode assumir a responsabilidade de outrem… neste canto do universo  e neste momento de nosso poder funesto, a causa de Deus oscila na balança. Que nos importa que em algum outro lugar ela tenha prosperado, esteja em perigo, a salvo ou perdida? Que nosso sinal, uma vez interceptado, não importa onde no universo, não seja um mero anúncio de morte, pois temos muito trabalho a fazer. Preocupemo-nos com nosso planeta. Independentemente do que possa se passar fora de nossos limites, é aqui que se decide nosso destino e, com ele também, o destino da aventura da criação, que se encontra em nossas mãos, podendo ser por nós zelado ou destruído. Cuidemos dele, como se fôssemos, de fato, os únicos no universo.” (p. 76)

Dentre as tarefas urgentes da filosofia estaria, portanto, auxiliar as consciências humanas a perceberem a amplitude da responsabilidade pela Árvore da Vida que nos cabe neste momento na história do planeta – o Antropoceno – onde o nosso poder excessivo põe em risco aquilo que bilhões de anos de evolução cósmica geraram como frágil fruto. Temos que perceber que não há Planeta B.

Diante do conglomerado das crises que nos assolam, refletindo sobre as tarefas da filosofia, em busca de assumir as devidas responsabilidades que me cabem, fico pensando que seria um equívoco imenso esperar pela intervenção salvífica de um benigno deus. Além disso, no combate contra os males que desfiguram o mundo e às vezes nos chafurdam nos desânimos, precisamos estar atentos em relação aos métodos e táticas de combate, indo além do simplismo perigoso do “os fins justificam os meios”. Atribuir ao outro uma monstruosidade de que nos julgamos perfeitamente imunes – demonizar o outro no processo de autobeatificar-se! – é um passo gigante para que nos tornemos, através da transfiguração hedionda do ódio e da segregação, em seres tão monstruosos quanto aqueles que combatemos.

Decerto que é preciso, como Lênin na liderança dos bolcheviques há 100 anos atrás, saber vencer. Não gosto da filosofia derrotista, apática, que se recusa aos labores de transformação do mundo – Marx já disse: não se trata apenas de interpretar o que há, mas de transformá-lo! Não podemos nos resignar a estar entre os derrotados, os pisoteados, os deserdados. Não temos o direito de nos conformar com a derrota com a desculpa ilusória de que depois da morte seremos recompensados e que no além-túmulo “os últimos serão os primeiros”. A Justiça é pra já e por ela devemos coletivamente colaborar. Mas nem todos os métodos valem neste percurso rumo a uma vitória possível de um mundo menos injusto, mais solidário. Donde a perene importância da ética e da filosofia da práxis (como síntese entre reflexão e ação) no aclaramento das nossas encruzilhadas, no auxílio a nossas decisões.

Nossas responsabilidades são imensas, assim como são minúsculas nossas capacidades individuais de assumi-las: precisaríamos de um ombro de Atlas que só se configuraria por uma união de ombros, por um esforço coletivo e colaborativo. A ação coletiva condena-se à cegueira ou ao espontaneísmo ineficaz quando dispensa a reflexão ética. E Etty Hillesum ensina – “lembre-se que cada átomo de ódio que acrescentamos a este mundo o faz ainda mais inóspito” – que às vezes é melhor perder conservando a dignidade e a faculdade de amar do que, por uma vitória atroz, tornar-se apenas mais um monstro no cortejo hediondo da calamidade triunfal.

OUÇA:


Por Eduardo Carli de Moraes
Professor de filosofia do IFG – Câmpus Anápolis
Goiânia, Outubro de 2017

 

Este artigo complementa e dá sequência aos escritos Prometeu Desacorrentado – A responsabilidade pelos viventes vindouros na filosofia de Hans Jonas (1903 – 1993) A Árvore Da Vida Na Viagem Do Tempo

 

O SANGUE JORRA SOBRE A TERRA VERMELHA: Reflexões sobre o filme de Marco Bechis (2008) no contexto do etnocídio Guarani-Kayowá

O SANGUE JORRA SOBRE A TERRA VERMELHA
Reflexões sobre o filme de Marco Bechis (2008) no contexto do etnocídio Guarani-Kayowá

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
(Série #Cinephilia Compulsiva)

Uma das melhores expressões cinematográficas do drama trágico que aflige os Guarani-kaiowá é Terra Vermelha (2008), filmaço de Marco Bechis, cuja trama desenrola-se na região de Dourados (MS) e tematiza a epidemia de suicídios dos indígenas da etnia. Logo nas primeiras cenas do filme, o espectador depara-se com duas jovens – uma de 17 anos, outra de 14 – que pendem enforcadas no meio da floresta e são encontradas por outros membros da tribo.

As mortas estão vestidas com roupas “de branco” – uma delas está com o uniforme escolar da “Escola Municipal Marechal Rondon” – e logo são enterradas em uma cova onde também são sepultados objetos típicos do “povo da mercadoria”, como o batizou Davi Kopenawa em A Queda do Céu.

Celulares, pulseiras, roupas e sapatos são recobertos pela terra do túmulo onde vão jazer as jovens. Em poucos minutos, o cinema de Bechis já escancara sua vocação para provocar o debate e instigar a reflexão através de um retrato nu e cru, ao mesmo tempo que sutilmente alegórico, desta onda macabra de suicídio indígena que é, como escreve Daiara Tukana na Rádio Yandê, “mais uma face do genocídio”.

Assistir à Terra Vermelha em 2016, oito anos após seu lançamento, é ainda uma experiência impactante e aflitiva. Mostra que o correr dos anos não serviu para nenhum tipo de resolução de uma situação de tamanha tragicidade. Prosseguimos atolados na lama de um Estado que pratica cotidianamente a banalidade do mal através de suas práticas de etnocídio institucionalizado.

Como foi denunciado pelo diretor dos documentários Martírio Corumbiara, Vincent Carelli, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o índice de homicídio nas reservas indígenas Guarani-Kaiowá chega a ser 590% maior que a média nacional.

O filme de Bechis foi lançado cerca de três anos antes daquilo que foi, em 2012, uma espécie de auge sinistro da saga Guarani-Kayowá e também o cume da sensibilização pública sobre a situação deles: naquela ocasião, 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças assinaram coletivamente uma carta que causou comoção ampla e na qual anunciavam o ritual de morte conhecido como jejuvy (tema do excelente artigo de Fabiane Borges e Verenilde Santos).

Era, como escreveu a BBC Brasil, o “anúncio de suicídio coletivo por parte dos Pyelito Kue, comunidade de 170 indígenas que expôs seu desespero após receber uma ordem de despejo da terra onde vive acampada. Na carta, os indígenas afirmavam que dali não sairiam vivos.” A matéria da BBC Brasil informava ainda que, segundo dados do Ministério da Saúde, “de 2000 até outubro de 2012, 555 indígenas dessa etnia cometeram suicídio, sendo a maior parte dos casos por enforcamento (98%) e cometidos por homens (70%), a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos.”

Uma onda surpreendente de solidarização tomou conta das redes sociais, com milhares de pessoas modificando seus sobrenomes no Facebook para “Guarani-Kayowá” – o que mereceu uma ótima matéria de Eliane Brum, em que analisou a “moda” que pegou nas redes sociais, a adoção da hashtag #SomosTodosGuaraniKaiowa e adoção do sobrenome Guarani Kaiowá por uma multidão de navegantes da Web (para esclarecer o fenômeno, Brum entrevistou figuras, que aderiram à campanha, como Eduardo Viveiros de Castro, Márcia Tiburi, Idelber Avelar, Marina Silva, dentre outros). A mobilização também gerou uma petição no site da Avaaz – Vamos impedir o suicídio coletivo… – que foi assinada por mais de 38.000 pessoas.

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Para além do âmbito da WWW, manifestações também eclodiram: em 19 de Outubro de 2012, a Esplanada dos Ministérios, na capital federal, amanheceu com 5 mil cruzes fincadas em seu gramado; no fim do mês, um protesto unindo estudantes e indígenas, como relata o Zero Hora, também ocorreu em Brasília. A Funai soltou então uma nota oficial comentando que “reconhece a luta dos povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, por suas terras tradicionais e esclarece que a determinação da comunidade de Pyelito Kue de não sair do local que considera seu território ancestral é uma decisão legítima.”

Já o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), vinculado à CNBB (Comissão Nacional dos Bispos do Brasil), destacou: “Eles falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las.”

Dentre os múltiplos méritos do filme de Bechis, eu destacaria o seu poder de atravessar os anos com sua relevância intacta – o que não é boa notícia para o Brasil pois indica nossa crônica incapacidade de lidar com uma das piores desgraças que assola o nosso território: o genocídio patrocinado pelo agrobiz com o beneplácito do Estado. Terra Vermelha, por isso, merece lugar de honra na história da cinematografia brasileira junto a outras obras que revelam a distopia real do “Brasil Grande” satirizado no clássico Iracema – Uma Transa Amazônica (1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna.

Aquilo que o crítico Ismail Xavier apontou para Iracema – que se trata de uma “alegoria do desastre embutido no milagre brasileiro” e uma “figuração do desastre nacional” – talvez valha também para Terra Vermelha, retrato nu e cru de um país que não figura no cartão-postal do kitsch turístico mas sim no rol das horrendas violações dos direitos humanos que assolam este planeta.

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“Paulo Pereio, no papel de Tião Brasil Grande, não leva Iracema (Edna de Cássia) a sério no road-movie. A circulação da jovem inocente que vem de comunidades ribeirinhas para Belém e se enreda com o caminhoneiro é uma jornada de ilusões perdidas, radical, grotesca. Vítima de um lance tão predatório quanto o da construção da transamazônica, a moça se faz alegoria do desastre embutido no milagre brasileiro, uma inversão antirromântica do sacrifício de Iracema, mãe do futuro, no romance de José de Alencar.” (XAVIER, Ismail. ‘Alegorias do Subdesenvolvimento’. Cosac e Naify, p. 23)

Terra Vermelha, um filme de mood realista e pessimista, não é um retrato primaveril da pátria Brasil. No começo do filme, vê-se placas do governo federal até alardeiam que se trata de “terra protegida”, mas o respeito pelas placas é menos que pífio. Os indígenas, longe de estarem em relativo isolamento em uma reserva onde pudessem resguardar sua cultura ancestral, estão em situação de constante choque cultural com o “mundo branco”, acossados por todos os lados pelas práticas gananciosas do povo da mercadoria.

A integração forçada ao mundo do neo-colonizador é descrita através de vários elementos: os indígenas já aprenderam a beber cachaça e tiveram os ouvidos martelados por hits da música sertaneja com refrões como “aí eu bebo, aí eu bebo, aí eu bebo pra carai”. Já sabem comprar fiado nos mercadinhos da cidade e muitos já se renderam a vender serviço braçal por trocados e migalhas, viajando amontoados em picapes para chegar no trampo dos canaviais.

A transmutação do indígena, habitante de uma floresta de vasta biodiversidade e que tira dela seu sustento, em um cidadão brasileiro miserável e espoliado, está em estado avançado de concretização. É como diz Viveiros de Castro: o plano do Estado nacional, por trás da perfumaria da “ordem e progresso”, é converter índio em mendigo. Um processo que empurra ao suicídio já que aniquila o enraizamento (conceito que empresto de Simone Weil e que é fecundo para refletirmos sobre o tema).

O background das peripécias da tribo Guarani-kaiowá não é mais a exuberância de uma floresta tropical repleta de uma fauna e flora de diversidade estonteante, mas sim o ruído dos tratores e as milhares de cabeças de gado que pastam sobre a terra arrasada. Eles não estão mais nem remotamente em seu ambiente originário, mas agora viajam em fretados que cospem sua fumaça tóxica para o ar. O motorista de um desses transportes de bóias-frias, interpretado por Matheus Nachtergaele, dirige um veículo que traz colado aos vidros adesivos que dizem “Jesus te ama!”, numa irônica menção à duvidosa “religiosidade” dos neo-colonizadores (que são capazes de praticar as maiores desumanidades, como a exploração de trabalho semi-escravo, e ainda assim dizerem-se “cristãos”).

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O personagem de Matheus Nachtagaerle funciona como uma espécie de recrutador de mão-de-obra barata. Quando aparece trabalho numa fazenda, ele vai atrás de aliciar trabalhadores e os conduz em seu frete. Sabe das dondocas de Dourados que precisam de domésticas e sonda entre os Guarani em busca de “novinhas” que topem o trampo. Quando eles se recusam a sair do acampamento, como faz a liderança Guarani-Kayowá, Nádio, ao fincar pé no improvisado acampamento, anuncia: “depois não vá pedir que eu venda fiado, não vá dizer que não tem dinheiro para comprar comida!” (’36)

Em Terra Vermelha, os Guarani-Kauowá demandam seu direito a um território que, na visão dos brancos, tem dono: “essa terra é do Moreira”, anuncia o personagem de Matheus, que é também dono de um mercadinho da cidade. Na perspectiva dos Guarani, ao contrário, aquele pedaço de chão integra a tekoha – “o lugar onde podemos ser quem somos” -, espaço sagrado onde estão sepultados os antepassados. Eles começam a montar acampamento ali sob o olhar raivoso do fazendeiro Moreira (interpretado por Leonardo Medeiros). Munidos de maracas, à beira de fogueiras, cantam e ritmizam juntos, interrompidos pelo barulho dos caminhões que passam à beira da estrada.

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Na beira da piscina, a madame, esposa de fazendeiro, lê sua revista de futilidades e bebe seu suco-de-laranja açúcarado de ócio. É servida por uma mulher que pode até parecer uma serviçal doméstica comum, mas é uma Guarani-kaiowá que vestiu-se como o branco gosta, aceitando receber ordens por um salário. Duas adolescentes da família latifundiária, de biquinis, deitadas à beira da piscina, atuam no filme como elos de ligação entre estes mundos que conversam tão mal. As moças decidem ir fumar um baseado no mato, para depois banharem-se no rio. Ali encontram com um rapaz Guarani que lhes explica, quando perguntado sobre a maraca que carrega: “isso aqui é um celular para falar com Nhanderu.” (’26)

Um grupo de Guaranis se aproxima do rio para encher seus baldes com água. O clima torna-se constrangedor para as duas branquelas de biquini. Na sequência, o fazendeiro observa-os andando com seus baldes d’agua por aquilo que chama de “sua propriedade” e logo dá uma pistola para um capanga e ordena: “estão entrando aí para pegar água, eu não quero que você deixe isso acontecer. Eu quero que você fique aqui como um espantalho, para botar medo neles!” (’29)

A “lógica” do fazendeiro é totalmente dominada pelo princípio do arame farpado: a cerca delimita sua propriedade privada, e tudo que está cercado, inclusive rios e florestas, tem dono. Este tem prerrogativa de fazer o que bem entender a água, a madeira, a floresta – são suas. O pistoleiro no trailer é ameaça constante que os ronda, com o revólver no coldre e ordens do patrão para que seja um espantalho. O fazendeiro Moreira, agressivo ao pisar no acelerador de seu carrão Ford, com o revólver sobre a cintura de sua calça jeans, mal disfarça seu desejo de se ver livre daquele acampamento de beira-de-estrada: “o lugar de vocês é na reserva!” Para sobreviver, os Guarani caçam na mata e conduzem a carne pelo acostamento, só para serem brutalmente solicitados pelo “dono do pedaço” a mostrarem a ele: “deixa eu ver a marca!” (’39) O fazendeiro está “p da vida” com aquele bando de índios folgados que não só “invadiram” seu território como também estão matando seu gado para se alimentarem.

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Mesmo em meio a este cenário de radical desenraizamento imposto pela invasão do povo da mercadoria, os Guarani-kaiowá ainda buscam transmitir para as novas gerações os conhecimentos ancestrais: um dos mais idosos da tribo procura formar um jovem para tornar-se xamã; recomenda-lhe, durante o processo de aprendizado, que não toque em mulher e que não coma carne de vaca, um animal que considera “inimigo” (já a onça e a cobra ele considera como bichos amigos). Obediente, o jovem cospe a carne de vaca que começara a mastigar. À beira-rio, com sua maraca, canta em língua Tupi-Guarani. Porém, o candidato a futuro xamã está muito longe de qualquer pureza: para inspirar-se no transe, toma cachaça sem temperança; logo é interrompido pela filha do fazendeiro, que chegou ali de motocicleta e veio fumar um baseado escondida do papai. Ela lhe diz:

– Você matou a vaca, né? Não se preocupa não, meu pai tem um monte. 

Maria, a filha do manda-chuva da pecuária, acha estranho o índio rezando na beira do rio e interessa-se por saber mais: ele explica que está entrando em comunicação com o Nhanderu pra saber o futuro das pessoas, pra adquirir poderes inauditos (até ameaça a moça: “rezando posso até quebrar a tua moto.” – ’50). No entanto, o fascínio gerado pelo veículo motorizado supera qualquer “purismo”: ele pede aulas de motocicleta, ela topa, ele sobe na garupa, um clima sensual se instaura. Da próxima vez, Maria chegará primeiro à beira-rio, despirá seu biquini, deixando seu corpo nu bem à vista do aspirante à xamã. De dentro d’água, lhe dirá apenas “vem, vem…” Ele irá. (’59) Contra o ideário segregacionista e latentemente racista do seu papai-fazendeiro, Maria praticará uma rebeldia adolescente que não deixa de ser simbólica de um desejo de mistura, de miscinegação, de transgressão de fronteiras étnicas artificialmente instituídas.

Em Terra Vermelha, Maria talvez esteja em secreta insurreição contra o pai Moreira e sua postura de autoritário, mandão e preconceituoso. Ao invés de aderir à doutrina do apartheid do pater famílias, ela prefere a aventura da descoberta de uma alteridade até então desconhecida, o experimento de abertura ao outro; entrega seu corpo num surto que talvez não seja só de tesão, mas de desejo de subversão de tabus iníquos. Fica óbvio que ela não toma precauções anticoncepcionais. O paizão nem suspeita que a filha possa estar carregando no ventre mais um dentre os inúmeros frutos da miscigenação na história deste território. Miscigenação: palavra difícil que no concreto do real ocorre muitas vezes através de uma simples trepada-de-rio.

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O gado do Moreira começa a adoecer. Um boi cai morto, sem marca de cobra nem sinal de febre aftosa. Em busca da causa, elenca-se a possibilidade do “feitiço de índio”. Evoca-se uma flecha fincada no chão da fazenda e que Nádio havia alertado: “não chega perto dela ou você pega doença.” Para além do misticismo que há na sugestão de “feitiços diabólicos” praticados por xamãs índios, será assim tão implausível supor que os Guaranis dominem também tecnologias da morte capazes de aniquilar ao menos algumas das “cabeças-de-gado” que sentem como intrometidas e invasivas imposições dos caras pálidas?

As relações dos homens brancos com as mulheres indígenas também revelam elementos de conflituosidade. No trailer, o pistoleiro ameaça um início de aproximação sexual com a senhora Guarani-Kayowá – ela, malandra, esquiva-se e rouba-lhe um queijo. Em outra cena, o empregado do fazendeiro dá uma “encoxada” na índia-que-deveio-doméstica que está lavando roupa no tanque. Vislumbres da patriarcal cultura-do-estupro rondam as relações. Mas a mulher do latifundiário está longe de ser feminista ou defensora da causa indígena. A patroa envia sua doméstica, com grana-de-propina, para subornar os acampados; oferece trabalho, sob a condição de que voltem para a reserva. Mas a floresta, para eles, está assombrada por Anguè, a “alma dos defuntos”, os espectros dos mortos. Pressionados pela miséria, pela falta de alimento, pela dificuldade de caçar o próprio rango, eles acabam aceitando ofertas de trabalho pelas fazendas, tornam-se neo bóias-frias.

Com requintes de crueldade, o latifundiário ordena que um avião sobrevoe a área do acampamento e despeje ali veneno. A morte por agrotóxico teleguiado evoca as crueldades Yankee no Vietnã com o napalm. (’62) Evoca também o método da Polícia Militar de reprimir manifestações com o uso de armas químicas como as bombas de gás lacrimogêneo (chamadas, de modo eufemístico, “de efeito moral”, quando são de fato um artefato de chemical warfare que merece uma crítica contundente como a berrada pelos Dead Kennedys).

Na cidade grande, os adolescentes Guarani andam através de um corredor polonês de anúncios publicitários, vitrines cheias de tênis, concessionários que vendem carros e motos, redes de restaurantes fast food. O filme deixa sugerido, subliminarmente, que assim são inoculados sonhos de consumo que agem concretamente como a-culturação, como imposição de desejos e valores daquela civilização da mercadoria que prossegue sua campanha colonizadora etnocida, passando sobre os cadáveres dos que resistem como um trator faz com pequenos bichos que esmaga sobre o asfalto.

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O adolescente Guarani, codinome Irineu, que aceita o trampo temporário do branco, retorna ao acampamento com um tênis novinho no pé, comprado com seu trabalho, mas é repreendido por seu pai Nádio, líder do “movimento”. O garto é expulso do grupo como um traidor que se vendeu para o fazendeiro. Nos cigarros industrializados que fumam, nos bonés com logomarcas que portam, nas bermudas e calçados que vestem, está sinalizada a invasão impiedosa da civilização mercadológica.

O colapso de Nádio, que desmaia sobre a terra vermelha com o tênis comprado pelo filho na mão, serve como emblema de um estado psíquico levado ao extremo do nervous breakdown. O estopim deste colapso é a visão do filho Irineu, suicidado, pendendo pelo pescoço de uma árvore. A culpa deve ser aterradora na psique de Nádio, que acabara de expulsar o filho para puni-lo e ensiná-lo uma lição; ele, que quis realizar uma espécie de pedagogia do enraizamento, acabou por desenraizar o filho ainda mais. O tênis Nike será enterrado na mesma cova que o jovem morto.

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Terra Vermelha, apesar de ficar bem longe de ser um filme-tese, sugere e ensina que o suicídio de tantos membros da tribo Guarani-Kaiowa explica-se não por mero desajuste individual, mas por complexas questões sociais que quase “empurram” a pessoa à auto-aniquilação. Na linguagem de C. Wright Mills em The Sociological Imagination, eu diria que não se trata de um personal trouble, mas de um social issue.

O filme culmina em cenas que apontam a impossibilidade de qualquer solução conciliatória ou pacifista diante de tal cenário distópico. Com a pele pintada com tinta negra, munidos de arco e flecha, em formação tática militar, os Guarani vão à guerra. A mulher índia, carregando cachaça, dirige-se ao trailer para trepar com o pistoleiro-espantalho: o ímpeto sexual não respeita fronteiras étnicas, ele deixa-se levar, enchaça-se, fode e desmaia. Depois da trepada, ela foge com a pistola. Os índios cercam o trailer e obrigam o branquelo a tornar-se refém.

Moreira esbraveja contra os “invasores” de uma terra que considera sua propriedade, de direito: ele tem os papéis de cartório para provar que é dono. Com firma reconhecida e tudo. Ele pega nas mãos um punhado de terra e discursa: “Essa terra aqui, o meu pai chegou aqui há mais de 60 anos, são três gerações, eu nasci aqui, a minha filha foi criada aqui. Eu trabalho nessa terra aqui, de sol a sol, pra fazer disso um lugar produtivo. Eu planto comida pras pessoas comerem.”

A resposta de Nádio é mimetizar o gesto de Moreira, também pegando um punhado de terra nas mãos, para em seguida, em silêncio, levá-la à boca. É uma cena de denso simbolismo, que talvez nem mereça ser explicada, pois assim perderia seu potencial semântico de despertar várias interpretações do espectador. Digo somente que este gesto – o contato da língua e dos dentes com a terra vermelha – é decerto um contato empírico com a terra muito mais íntimo do que aquele contato com a terra do fazendeiro Moreira, que lida com o território através das mediações de papéis e cercas. Aqui, a phýsis do intercâmbio indígena com a terra, enraizado numa ancestralidade que remonta às civilizações pré-colombianas, contrasta coma húbris do latifundiário ganancioso que se pretende “dono” daquilo que seus antepassados roubaram e colonizaram.

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Se Moreira hesita em contratar algum capanga para assassinar uns índios, não é por piedade, gentileza ou laivos de ética cristã; é somente porque teme que as suspeitas recaiam sobre ele. Mas a solução “capanga” acaba por vencer: é o modus operandi já consagrado pelas elites do agrobiz no MS. O que significa que latifundiário mandante-de-assassinato é uma das facetas da banalidade do mal em terra brasilis. O tiro letal em Nádio derruba mais sangue sobre a terra vermelha dele já encharcada. Um sangue que tem corrido aos borbotões desde o “Descobrimento” e que prossegue hoje neste descalabro nacional que alguns querem celebrar como pátria da Ordem e Progresso…

Com as mãos sujas de pólvora, os capangas de Moreira são funcionários desta maquinaria etnocida-genocida. O patrão, ordenador do crime, foge correndo: “vou passar uns 3 ou 4 meses fora até que essa situação se resolva.” (’89) Irrompe no cenário piscinesco da realeza rural aristocrática o jovem Guarani Kaiowá, em estado de descontrolada rebeldia, num estado em que a fúria ainda não cedeu lugar ao luto. E até mesmo Maria é vítima de suas flechas verbais e gritos raivosos; “Maria, você também, sua vagabunda, sua vadia, sua biscate! Covardes! E agora fogem! Seu filho da puta! Você o matou! Seus desgraçados!” Sob a mira da arma, ele pede: “dê um recado pro teu patrão, eu vou pegar ele ainda! Vou cortar a cabeça dele!” Na mata, ele flerta com o suicídio, chega a pôr a corda no galho e o pescoço na corda, mas na hora H desiste; celebra sua desistência do suicídio como vitória; resistirá na existência, mesmo que seja com o combustível selvagem e sombrio de uma vendeta ansiada. Sem redenção, o filme encerra-se prenunciando que a terra seguirá vermelha – não de natural vermelhidão, mas do vermelho do sangue que flui aos borbotões dos corpos indígenas trucidados pela marcha inexorável do Desenvolvimento…

A câmera sobrevoa um oceano de verde e desliza depois para a devastação do desmate. A mensagem é clara: se tudo continuar como está, a mata biodiversa desata a virar deserto; se o business as usual prosseguir, continuará a carnificina. Para terminar, informa-se que aqui viviam cerca de 5 milhões de pessoas quando chegaram os primeiros europeus e que a maioria dos povos originários foram dizimados pela invasão. Hoje, “o genocídio continua.” Os dados não mentem – e são estarrecedores. Como lembra Frei Betto:

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“Dados do CIMI indicam que, entre 2003 e 2011, foram assassinados, no Brasil, 503 índios. Mais da metade – 279 – pertence à etnia Guarani-Kaiowá. Em protesto, a 19 de outubro de 2012, em Brasília, 5 mil cruzes foram fincadas no gramado da Esplanada dos Ministérios, simbolizando os índios mortos e ameaçados. (…) A Constituição abriga o princípio da diversidade e da alteridade, e consagra o direito congênito dos índios às terras habitadas tradicionalmente por eles. Essas terras deveriam ter sido demarcadas até 1993. Mas, infelizmente, a Justiça brasileira é extremamente morosa quando se trata dos direitos dos pobres e excluídos. Um quarto de século após a aprovação da carta constitucional, em 1988, as terras dos Guarani-Kaiowá ainda não foram demarcadas, o que favorece a invasão de grileiros, posseiros e agentes do agronegócio.(…) Ao chegarem aqui os colonizadores portugueses – equivocamente qualificados nos livros de história de “descobridores” – se depararam com mais de 5 milhões de indígenas, que dominavam centenas de idiomas distintos. A maioria foi vítima de um genocídio implacável, restando hoje, apenas, 817 mil indígenas, dos quais 480 mil aldeados, divididos entre 227 povos que dominam 180 idiomas diferentes e ocupam 13% do território brasileiro.” (FREI BETTO, Portal Vermelho)

O cinema revela-se, em Terra Vermelha, uma força social capaz de mobilizar sua maquinaria narrativa e dramatúrgica num empreendimento que não visa apenas contar uma história baseada em fatos reais, mas que pretende também agir sobre o real de modo transformador ao impactar a sensibilidade e instigar a empatia dos espectadores. Mais do que mera testemunha apática e passiva da desgraça, a câmera cinematográfica faz-se agente de denúncia e conscientização, realizando uma alegoria da desumanidade que ressoa através dos séculos neste país onde a Ditadura do Lucro não cessa de derramar sobre a terra vermelha o copioso sangue dos involuntários da pátria.

Por Eduardo Carli de Moraes, Setembro de 2016
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SIGA VIAGEM:

X ALDEIA MULTIÉTNICA: Diálogo entre o fotógrafo Danilo Christidis e a psicóloga Giuliana Mattiazzo Pessoa

[Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros – julho de 2016]

LEIA TAMBÉM: Pierre Clastres, “Arqueologia da Violência”

 

X ALDEIA MULTIÉTNICA: Diálogo entre o fotógrafo Danilo Christidis e a psicóloga Giuliana Mattiazzo Pessoa [Encontro de Culturas 2016, Txt 17]

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bruna-brandao-7730Fotos: Bruna Brandão

X ALDEIA MULTIÉTNICA

EM DIÁLOGO: DANILO CHRISTIDIS E GIULIANA MATTIAZZO PESSOA

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” – assim dizia o poeta Vinícius de Moraes no “Samba da Bênção”. No “Encontrão”, apelido carinhoso do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, que realizou sua 16ª edição neste 2016, esta arte do encontro é praticada em uma miríade de diálogos, rodas-de-prosa e oficinas que transformam o evento numa multiplicidade de intercâmbios e numa conferência intercultural de saberes.

Catalisador de convívios, o Encontrão oferece chances de nos encontrarmos com as múltiplas faces da alteridade e atua como um autêntico “esticador de horizontes”, para relembrar a expressão tão feliz de Manoel de Barros.

É com imensa satisfação que A Casa de Vidro apresenta um bocadinho do que rolou no Encontrão através deste vídeo, filmado na X Aldeia Multiétnica, que registra um instigante e instrutivo diálogo entre o fotógrafo e educador visual Danilo Christidis e a psicóloga Giuliana Mattiazzo Pessoa.

ASSISTA NO VIMEO OU NO YOUTUBE:


Danilo Christidis é co-autor do livro de fotografias Os Guarani Mbyá, publicado em Porto Alegre, pela Ed. Wences, em 2015. Trata-se da primeira obra, no âmbito da fotografia brasileira, a ter sido composta em co-autoria com um fotógrafo indígena, o Vherá Poty (“Relâmpago Florido”), um jovem cacique Guarani-Mbyá da aldeia Itapuã, no Rio Grande do Sul.

Danilo relembra – como revelamos na matéria Os Deuses Que Dançam: Vislumbres da Cultura Guarani-Mbyá –  que a princípio agiu como professor de fotografia, ensinando técnicas e truques para Vherá Poty. “Mas o interessante é que os papéis se inverteram muito rapidamente: eu deixei de ser o professor e me tornei muito mais o aluno dele”, rememora Danilo. “Eu queria aprender como desconstruir o meu olhar, que é de um não-indígena (o que eles chamam de um juruá, um “boca-cabeluda”). Assim, pouco a pouco busquei entender de que forma poderia aparecer, na fotografia, um modo-de-vida e uma cosmovisão. Foram sete anos convivendo para que fosse possível realizarmos este livro.”

Conversando com Danilo durante um almoço na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, perguntei-lhe por que, nas páginas do livro, não há créditos informando qual dos dois fotógrafos tirou cada uma das fotos. Sua resposta, sintética e profunda, ficou marcada na memória: “A autoria é da relação.” Nenhuma das imagens seria possível sem o vínculo estabelecido entre os dois, sem a convivência mutuamente enriquecedora estabelecida entre eles. Confira abaixo algumas  das imagens que integram o livro:

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SAIBA MAIS, VEJA OUTRAS FOTOS E ADQUIRA O LIVRO

Giuliana Mattiazzo Pessoa, recém-formada no curso de Psicologia da PUC-SP, realizou um trabalho de conclusão do curso (TCC) em que buscou elucidar as raízes e razões de um drama trágico que desenrola-se no Brasil: a epidemia de suicídios de Guaranis-Kayowá no Mato Grosso do Sul – entre 2003 e 2014, foram mais de 707 suicídios da etnia somente no MS. Uma recente reportagem de Daiara Tukano, publicada no site da Rádio Yandê, revela as dimensões do “suicídio indígena, mais uma face do genocídio”. 

O trabalho da Giuliana Mattiazzo “Suicídios Guarani Kaiowá: o Território Tradicional e a Identidade Étnica (tekoha)” (2016, 106 pgs) está disponível para leitura on-line  e também pode ser encontrado na biblioteca da PUC-SP. A Giuliana inspirou-se, para realizar seu trabalho, na perspectiva teórica da psicologia social de Antônio Ciampa, além de ter pesquisado ativistas da causa indígena como Valdelice Veron, antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro e sociólogos do suicídio como Émile Durkheim.

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Valdelice Veron, liderança Guarani Kayowá

Mobilizando uma reflexão focada no conceito de identidade, tal como teorizado por Ciampa, ela buscou “correlacionar este conceito com a ocorrência de suicídios generalizados entre jovens da etnia Guarani-Kaiowá, da região do Mato Grosso do Sul (MS)”, refletindo sobre a “relação do índio com o seu território tradicional e a importância do mesmo para a produção de uma identidade autêntica e saudável.”

Giuliana relembra que entrou em contato com “o conhecimento xamânico e seus rituais de cura” e compreendeu “que muitas tradições indígenas possuem uma vasta sabedoria no que tange à saúde e ao cuidado”. “Foi aí que percebi o quanto a Psicologia – tanto da graduação da PUC-SP, quanto de maneira geral – não só se ausentou do contato com essas sabedorias milenares como as desconsiderou. Frente a isso, vi a necessidade de me aproximar da sabedoria indígena, não mais numa relação unilateral de aprendizado, mas numa relação de troca.”

A autora foi agraciada com o 3° lugar no Prêmio Marcus Vinícius de Psicologia e Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP) – SP, na categoria estudante, com o artigo “Suicídios Guarani Kaiowá: a impossibilidade do território tradicional como obstáculo para a produção da identidade étnica”. O prêmio “tem como finalidade estimular a produção de artigos da área de Psicologia a respeito da persistente violação de direitos praticada pelo Estado, no passado e no presente.”

É com intensa gratidão que saúdo Danilo e Giuliana pelos excelentes momentos de convívio que tivemos na X Aldeia Multiétnica. E convido a todos para que experienciem, no vídeo que aqui compartilhamos, este diálogo inteligente, profundo e bem-informado que filmamos na convicção de que ajudará a elucidar muita coisa sobre o drama e a tragédia, a beleza e o sofrimento, as raízes e os horizontes, dos povos Guaranis. É nossa esperança de que este material, aqui compartilhado, possa contribuir para lançar luz e aprofundar reflexão sobre as existências atuais dos povos originários hoje (r)existem, a duras penas, em um mundo que gostaríamos que fosse menos hostil àqueles que resguardam tantas sabedorias conviviais, cosmovisões geniais e terapêuticas ancestrais.

ASSISTA JÁ:

Uma produção A Casa De Vidro – Junho de 2016 – 62 minutos
Filmagem e Edição: Eduardo Carli de Moraes
Fotografias: Bruna Brandão, Danilo Christidis, Vhera Poty
Trilha Sonora: Uakti

Eduardo Viveiros de Castro: “Alguma coisa vai ter que acontecer” (Prefácio ao livro “Encontros” com Ailton Krenak)

Foto: Jackson Romanelli/Infinito 07/07/2015. Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. AILTON KRENAK, principal líder do movimento indígena dos anos 70, é o convidado do Sempre Um Papo e do MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal para o debate e lançamento do livro integrante da série “Encontros - Ailton Krenak” (Azougue Editorial). A obra reúne entrevistas concedidas ao longo de sua vida, entre 1984 e 2013, organizadas pelo editor Sérgio Cohn, e inclui o belo discurso no Congresso, em 1987, que culminou na garantia de direitos fundamentais ao povo indígena, estabelecidos na Constituição Federal de 1988.

AILTON KRENAK: voz de intensa relevância que ressoa neste livro da série “Encontros” (Azougue Editorial). “A obra reúne entrevistas concedidas ao longo de sua vida, entre 1984 e 2013, organizadas pelo editor Sérgio Cohn, e inclui o belo discurso no Congresso, em 1987, que culminou na garantia de direitos fundamentais ao povo indígena, estabelecidos na Constituição Federal de 1988.”

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LEIA ABAIXO O PREFÁCIO DE EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
(Click para ver em tamanho maior)

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AILTON KRENAK em “20 ideias para girar o mundo” [Link: https://youtu.be/f48HAu0bNPc]

“Conheça o pensamento de 20 personalidades reconhecidas por seu trabalho de promoção do desenvolvimento humano, econômico e socioambiental. O projeto 20 Ideias para Girar o Mundo é uma contribuição da UNESCO no Brasil para o debate sobre a sustentabilidade e o futuro do planeta. Assista aos vídeos de até 7 minutos que reúnem ideias e reflexões sobre o desenvolvimento sustentável. >>>http://bit.ly/20ideias_unesco

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FILME RECOMENDADO:
Índio Cidadão? – de Rodrigo Siqueira Arajeju

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MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA – MAIO DE 2016

FIOS NA TEIA DA VIDA – O papel do jornalismo na defesa da sociobiodiversidade

FIOS NA TEIA DA VIDA:
O papel do jornalismo na defesa da sociobiodiversidade

por Eduardo Carli de Moraes

Escrito para o Edital do XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros (resultado)

“A pluralidade é a lei da terra”.
HANNAH ARENDT (1906 – 1975) [1]

“Não sou apenas o índio que perdeu a taba
Na curva da estrada que o trator abriu
Quando arrancou mãe-floresta,
Quebrou minha flecha
Deturpou minha festa e quase ninguém viu
Não quero esse lero-lero de quem diz:
Não posso! Coitado! Ai de mim!
Se a Amazônia dá um grito, nós gritamos juntos.
E rezamos assim: Ave! Ave! Santa árvore
Pai nosso e do palmital
Pão nosso e do santo fruto
Ribeirinho enfrenta o mal
Do homem que traz a cerca
Planta capim, faz curral
Amparado num projeto de violência brutal
Onde o homem é esquecido
E o boi querido é o tal.”
ZÉ PINTO [2]

Neste ano de 2016, o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros comemora 16 anos de travessia. Através desta história, vem atuando como propiciador de intercâmbios culturais que contribuem para que “a voz do nosso povo se faça ouvir com toda sua diversidade” [3], para lembrar palavras de Célio Turino.

Esta é também uma das tarefa de antropólogos e etnográfos, de fotógrafos e jornalistas: tornar evidente e manifesto a polifonia e a pluralidade de nosso “país que pulsa diversidade”, como se lê na Carta de São Jorge. Esta é um manifesto coletivo, nascido como um dos muitos frutos da 15ª edição do Encontro, assinado pela Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, reunida entre os dias 28 de julho a 01 de agosto na Vila de São Jorge, Alto Paraíso de Goiás. Suas eloquentes palavras permanecem, um ano depois, intensamente atuais:

O Brasil, que pulsa diversidade, está atento à onda conservadora que assola o País e promove uma crise civilizatória. Setores reacionários atacam nossa juventude por meio da redução da maioridade penal e o genocídio da juventude negra, agridem povos de terreiro, mulheres e a comunidade LGBTT com o crescente fundamentalismo religioso. Indígenas, quilombolas e povos tradicionais sofrem uma ofensiva do grande capital contra seus territórios. Fica claro para nós que as conquistas sociais e econômicas dos últimos anos não são suportadas pelas elites do nosso País… (Carta de São Jorge [4])

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Aldeia Multiétnica @ Encontro de Culturas da Chapada dos Veadeiros – Foto: Fredox Carvalho

Premiado pelo Iphan em 2015 [5], o Encontro das Culturas Tradicionais tem contribuído para repovoar nosso imaginário utópico rumo a uma cultura polifônica, repleta de participação social e diálogos fecundos entre os diferentes povos e perspectivas que constituem os fios na grande teia da vida. É neste contexto que nos propomos, no presente texto, realizar algumas reflexões sobre o papel do jornalismo na defesa e na celebração da sociobiodiversidade, conceito muito enfatizado no “Encontrão” (como é carinhosamente conhecido).

Acredito que os profissionais da mídia têm o dever ético e profissional, além da função pública essencial, de engajarem-se na defesa da “inestimável sociobiodiversidade dos povos da floresta”6 e na denúncia da brutalidade das práticas “da cerca e do curral” mencionadas no poema-canção de Zé Pinto e que fazem com que “o homem seja esquecido”.

Hoje, mais do que nunca, quando estamos ameaçados por todos os lados por desmatamentos e etnocídios, por assassinatos de ecoativistas e imensas catástrofes ambientais (como aquela que ocorreu no Rio Doce), faz-se necessário e urgente defender as culturas em sua pluralidade, re-afirmando a possibilidade de um convívio fecundo e mutuamente enriquecedor entre as diferenças.

Para esta tarefa grandiosa e utópica é preciso a congregação de forças – e sem dúvida que os jornalistas podem (e devem) somar suas vozes e palavras, suas investigações e pesquisas, suas reportagens e fotografias, suas denúncias e seus anúncios, ao coro daqueles que querem uma cultura viva, pulsante, pluralíssima, que celebre o colorido todo da nossa inestimável sociobiodiversidade hoje tão ameaçada, vilipendiada e golpeada.

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Palco de atrações artísticas do Encontro de Culturas da Chapada dos Veadeiros – edição XV, 2015, foto de Leonil Jr

A desconexão pode enlouquecer – e não estamos falando da Internet que, quando cai, pode deixar doido (ao menos provisoriamente) alguns de seus usuários mais adictos. A desconexão mais nociva é aquela que nos separa uns dos outros em facções e seitas inimigas, impedindo-nos a congregação e a troca em meio à pluralidade que nos constitui. Em um país de cultura adoecida, os sujeitos estão desconectados da rede da vida. Podem estar conectados a seu feed de besteirol no celular ou no navegador, mas vivem na alienação da desconexão, desvinculados uns dos outros, construindo abismos intransponíveis que as separam ao invés de pontes que comunicam as margens, incapazes de perceberem os laços que os unem uns aos outros e à natureza comum de que participam.

O jornalismo, quando de fato fornece informação autêntica sobre a realidade concreta, fornece não apenas uma enxurrada de informação, infértil e sem consequência. O jornalismo, ao informar-nos sobre o real, fornece-nos algo essencial para a transformação do que há, para a superação do dado, uma vez que pode servir para desfazer os feitiços paralisantes da alienação, definida magistralmente por Milton Santos nos seguintes termos: “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.”

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O jornalismo, quando de fato se presta a ouvir as vozes das comunidades tradicionais, quando abre-se a aprender com as sabedorias ancestrais de povos indígenas ou quilombolas, pode realizar um trabalho de revelação de uma realidade que muitos não enxergam. Pode contribuir para que a opinião pública se sensibilize em relação a problemas, dificuldades e desafios enfrentados pelas comunidades, mas pode também ensinar sobre outros modos de conviver e de criar. O jornalismo autêntico, segundo acredito, busca compartilhar um saber sobre o real de que somos contemporâneos, sendo uma atividade não apenas informativa mas também de formação; contêm uma dimensão pedagógica intrínseca, desde que não preste ao leitor o desserviço de enganá-lo ou ludibriá-lo por ordem do patrão.

Compartilhar o saber sobre a vida concreta, as dificuldades e os triunfos, os obstáculos e as vitórias, das comunidades tradicionais, pode ajudar os leitores a compreenderem a importância das raízes bem plantadas em solo fecundo para que as árvores dêem profusão de flores e frutos. O jornalismo pode ser uma dessas forças que fornece saber sobre a efetividade desses povos e que amplifica seus valores e práticas. Se saber não é exatamente poder, é sim um elemento essencial à eficácia da ação conjunta no mundo comum de que nos fala Hannah Arendt, esta terra cuja lei a filósofa afirmava ser a pluralidade.

Conhecer o real é indispensável para aqueles que querem transformá-lo, e o jornalismo, em sua vocação, deve ser veículo de conhecimento sobre aquilo de que somos contemporâneos. Assim considerado, o jornalista é análogo ao historiador (que deseja ter cognição do passado para comunicar conhecimento sobre tempos idos), com a diferença de que é no calor da hora, em um presente que está acontecendo em toda a sua desenrolante imprevisibilidade, que o jornalista buscará aquilo que é digno de comunicar a seu público.

Em nosso país de dimensões continentais como o Brasil, estamos condenados a desconhecer vários Brasis onde nunca estivemos, vários locais onde nossa experiência imediata nunca bebeu. E já que ninguém tem o dom da ubiquidade, só se pode conhecer a fundo este país gigantesco – e de si mesmo tão dessemelhante! – através das narrativas que tecemos e comunicamos uns aos outros, entre elas as jornalísticas. Uma boa reportagem não difere tanto, quanto aos efeitos éticos e estéticos que propicia à sensibilidade e à inteligência do leitor, de algum primoroso conto de nosso repertório literário. E creio não haver absurdo em debater quem é a escritora mais magistral, se Clarice Lispector, se Eliane Brum.

Eliane Brum, jornalista e escritora brasileira

Eliane Brum, jornalista e escritora brasileira

No Brasil, existem em atividade alguns jornalistas muito engajados nas questões socioambientais: caso de Washington Novaes, Felipe Milanez, Eliane Brum (El País), Inês Castilho (Outras Palavras), André Trigueiro, dentre outros. Há também institutos e ONGs, com seus respectivos blogs e sites, devotados ao jornalismo de qualidade sobre o tema, caso do Combate Racismo Ambiental, Instituto Sócio Ambiental ou Envolverde [7]. O jornalismo, tal como praticado por estes inspiradores luminares da profissão, pode contribuir para que o leitor enxergue as conexões entre os fenômenos, refletindo sobre as consequências futuras de nossas ações atuais etc.

Infelizmente, a chamada “grande mídia” não costuma dar o devido destaque aos temas do meio ambiente e dos modos-de-vida de populações tradicionais capazes de uma relação harmônica com a natureza. Temas de extrema importância, como o aquecimento global, a acidificação dos oceanos, a poluição atmosférica, o desmatamento, a invasão de garimpeiros e madeireiras sobre áres demarcadas, dentre outros temas, sofrem com uma espécie de blecaute cotidiano em grande parte da imprensa empresarial, apelidada por alguns “mídia burguesa”.

Ainda assim, há de se reconhecer que, apesar das críticas que podem lhe ser dirigidas, existem projetos como a Planeta Sustentável, “uma iniciativa multiplataforma de comunicação que tem a missão de difundir conhecimentos sobre desafios e soluções para questões ambientais, sociais e econômicas do nosso tempo. Dissemina conhecimentos sobre temas relacionados a sustentabilidade para 21 milhões de leitores anuais por meio de seu site mais de 30 títulos de revistas da Editora Abril.” [8]

Já no âmbito da intelectualidade brasileira, também há alguns ilustres autores que têm oferecido muitas reflexões relevantes sobre os temas socioambientais e culturais: é o caso, por exemplo, de Ricardo Abramovay, Ladislau Dowbor, Deborah Danowski, Eduardo Gianneti da Fonseca, Antonio Nobre, Eduardo Viveiros de Castro, dentre outros.

Quando exercido por profissionais de talento literário e percepção sociológica aguçada, a narrativa jornalística pode atingir tons épicos, grandiosos. Um exemplo excelente é aquilo que costumo chamar de “jornalirismo” de Eliane Brum, autora capaz de descrições socioambientais de raro brilhantismo literário, que podemos exemplificar relembrando sua descrição da realidade vivenciada pelos ianomâmis:

A floresta proibida dos ianomâmis, 9,7 milhões de hectares estendidos como um tapete verde e úmido sobre Roraima e Amazonas, assemelha-se a um universo primordial. Rios de sucuris gigantes, cachoeiras cinematográficas, árvores eternas. Quase o dia da criação. Os índios, feitos dessa mesma matéria original, se mimetizam à selva, invisíveis ao primeiro olhar, aconchegados ao ventre de Omamë, o precursor de tudo segundo sua cosmologia. Revelam ao cibernético século XXI, agora tragicamente confrontado com as diferenças que julgava encobrir, um modo de viver semelhante ao dos primeiros ancestrais. Dos povos mais isolados do planeta, travam a guerra do começo do mundo enquanto o planeta globalizado ameaça manchar a Terra com um ponto final. – ELIANE BRUM 9

Eliane Brum serve para ilustrar a potência do jornalismo quando pratica a sensibilização do leitor para as questões socioambientais, em que a vida humana e a vida da biosfera nunca estão desconectadas, onde as florestas e seus povos são reveladas em toda a tessitura de sua pluralidade, inclusive com a revelação recorrente da unicidade de cada personagem que dá o ar de sua graça na reportagem.

Foi lendo e relendo os textos de Brum que fui me convencendo que hoje o jornalista precisa ser um pouco antropólogo, um pouco etnógrafo, movido por um sincero desejo de compreender o mundo do outro, acessar a perspectiva existencial alheia, construindo pontes de comunicação que permitam uma mútua cognição e que nos auxiliem a melhor tecer, em conjunto, a continuação da teia da vida.

Sem dúvida, o jornalista responsável, que conhece sua função pública, têm necessariamente de pôr em prática permanente o seu senso crítico, inclusive sobre os dogmas e as dominações que vigem na profissão. Um livro publicado recentemente no Brasil pela Ed. Boitempo, Mídia, Poder e Contrapoder – Da concentração monopólica à democratização da informação, traz um interessante artigo de Ignacio Ramonet onde ele afirma que vários grupos midiáticos “estão se comportando, segundo o conceito de Louis Althusser, como ferramenta ideológica da globalização”10.

Para não se render a ser serviçal das ideologias hegemônicas e dos sistemas de produção e consumo hoje hegemônicos, que são insustentáveis pois ecocidas, o jornalismo precisa esclarecer a opinião pública sobre as culturas, em sua pluralidade, que sobrevivem hoje com técnicas ancestrais de interação com o meio ambiente, sem devastação, com respeito e sabedoria. Povos indígenas e quilombolas têm destaque neste cenário, infelizmente ainda muito desconhecido de boa parte dos brasileiros “civilizados”, já que muitos urbanóides que habitam os grandes centros urbanos ignoram boa parte da realidade brasileira (e, como viemos explorando, a mídia empresarial tem culpa no cartório em relação à produção social desta relativa cegueira).

Um outro exemplo de jornalismo competente, cujo tema tem muita relação com o XVI Encontro de Culturas das Chapadas dos Veadeiros, é uma interessante reportagem recente chamada “As Novas Cercas do Quilombo”, na qual Repórter Brasil revelou que “apenas 7% das famílias quilombolas vivem em áreas tituladas. Na busca pelo reconhecimento dos territórios, comunidades enfrentam ameaças, confisco de objetos históricos e resistência até do órgão de preservação do patrimônio.” Eis um exemplo interessante de como o jornalismo pode servir ao bem público ao informar-nos sobre a realidade social:

Dos cerca de 2.700 quilombos de todo o país já certificados pela Fundação Palmares, só 163 chegaram à etapa final e foram titulados. No Incra, a morosidade é absoluta: “A questão é que há mais de 1.500 processos abertos no Incra, mas o órgão não tem capacidade de encaminhá-los”, afirma Otávio Penteado, assessor da Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização que também lida com a questão quilombola. Para Otávio, a falta de titulação das terras ocorre por “desinteresse político”, o que se traduz em cortes orçamentários na área.

A mudança na composição dos ministérios que o presidente interino Michel Temer (PMDB) realizou assim que Dilma Rousseff foi afastada pelo Senado agravou as preocupações das entidades ligadas à questão quilombola. Na última quinta-feira (12/05), o deputado federal ligado à bancada ruralista Osmar Terra (PMDB-RS) foi nomeado para a pasta de Desenvolvimento Social e Agrário, que é responsável pelo Incra. Também foi extinto o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que coordenava o Programa Brasil Quilombola e executava políticas voltadas às comunidades negras tradicionais. – Repórter Brasil [11]

Acredito que o jornalismo possa ser uma tocha iluminante em nossos tempos sombrios, fornecendo informação verídica sobre o real que permita transformá-lo de modo criativo. Quando soma suas forças narrativas à eventos como o Encontro de Culturas Tradicionais, pode auxiliar a tornar visíveis os invisíveis, tornar audíveis os silenciados, dando voz e vez àqueles que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro apelidou recentemente de os involuntários da pátria [12].

O jornalismo, que também integra o âmbito da cultura e tem todo o interesse em seu florescimento, pode (e deve) agir consciente de sua função pública ao invés de servil a interesses empresariais classistas e excludentes. Para recuperar a Carta de São Jorge com que começamos, não há jornalismo emancipador que não seja devotado à construção de uma democracia participativa, do diálogo perene, que aposte numa política da gestão compartilhada do mundo comum, tendo sempre em foco a defesa e a celebração da sociobiodiversidade. Por isso, subscrevemos o seguinte trecho do manifesto:

Entendemos que a cultura deve estar na centralidade do modelo de desenvolvimento do país. E um governo que tem como lema Pátria Educadora deve reconhecer as sabedorias, os conhecimentos e os ensinamentos próprios de seu povo. Deve reconhecer, também, que quem faz cultura, quem produz cultura não são gestores em gabinetes, mas o povo no seu viver, conviver, sobreviver, existir e resistir. A Política Nacional de Cultura Viva (Lei 13.018) é a afirmação de que, sem diversidade com base nos direitos humanos, não há cidadania. Ela é essencial para combater o avanço conservador em marcha e construir uma sociedade emancipada.”

Que a pluralidade pulse no XVI Encontro e que o jornalismo possa juntar sua voz para cantar nesta ciranda exuberante da cultura viva!

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Aldeia Multiétnica do Encontro de Culturas da Chapada dos Veadeiros – 14a edição

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NOTAS

1 A frase de filósofa está presente em seu livro A Vida Do Espírito – Volume I: Pensar.

2 Zé Pinto é poeta e cantador de Rondônia e este poema foi declamado na música “Devoção à Amazônia” do CD Arte em Movimento do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ouça na Internet: https://youtu.be/InHzQ_h1SbA.

3 Célio Turino em Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima. 2ª ed. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi, 2010. P. 16.

5 Na 28ª edição do prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), foi um dos vencedores na categoria II – “iniciativas de excelência em promoção e gestão compartilhada do patrimônio cultural.“

6 CALEGARE; HIGUCHI (org). Nos interiores da Amazônia: leituras psicossociais. Curitiba-PR: Ed. CRV, 2016.

9 BRUM, E. A Guerra do Começo do Mundo. Leia a reportagem na íntegra no portal A Casa de Vidro. O texto integra o livro Olho da Rua – uma repórter em busca da literatura da vida real (ed. Globo, 2008, p. 53)

10 “Vocês acham que os meios de comunicação dominantes, que pertencem a grupos de alta relevância no mercado, serão críticos com a globalização e o neoliberalismo, sendo que eles são atores centrais nessas duas dinâmicas? É evidente que a possibilidade disso acontecer é pequena. Em termos gerais, o que eles dizem sobre esse assunto? Que isso é muito bom para nós. Você perdeu seu trabalho, não dispõe mais de serviços públicos, cortaram sua pensão, complicam sua aposentadoria e fazem você trabalhar mais… mas isso é muito bom! É excelente! Todos os meios de comunicação nos repetem isso constantemente. Em outras épocas, quem dava a visão de mundo, quem tinha a responsabilidade e a missão de inculcá-la na sociedade era a Igreja. A Igreja difundia uma concepção de mundo; do mundo e do além. Por exemplo, na colonização da América, os conquistadores eram acompanhados por evangelizadores na destruição de sociedades que tinham sua idiossincrasia, sua religião, sua cultura, suas línguas, sua própria cosmogonia. O conquistador brutal destruía todos esses elementos da sociedade e o evangelizador dizia: ‘mas que sorte maravilhosa!’ Destruíram sua família, destruíram seu povo, destruíram suas crenças, destruíram sua língua, destruíram sua cultura, mas agora você tem a verdadeira religião! Alegre-se! Hoje, a imprensa e os meios de comunicação têm a missão de ser a ferramenta ideológica da globalização.” (RAMONET: Boitempo, 2013, p. 63)

12 Em um trecho magistral, Viveiros de Castro diz: “Povo” só ‘(r)existe’ no plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quanto perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”, ele cortou no ato: “não sou índio; sou Munduruku”. Mas ser Munduruku significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os “índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial, imperial, republicano.” Trecho de “Os Involuntários da Pátria”, aula pública de Viveiros de Castro proferida durante o ato Abril Indígena, na Cinelândia, RJ, em 20/04/2016, que pode ser lida na íntegra no portal A Casa de Vidro.


SIGA VIAGEM:

Moacir

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Trabalhos do artista plástico Moacir, na Vila de São Jorge (GO), tema do documentário “Moacir Arte Bruta” de João Jardim (assista abaixo)


“Chapada dos Veadeiros” – filmagens de drone


“Cada Terra Tem Um Uso, Cada Roda Tem Um Fuso” (2009, 80 min, diretor Neto Borges)


“ATLÂNTICO NEGRO – Na Rota dos Orixás”


SERRAS DA DESORDEM – Um filme de Andrea Tonacci (2006, COMPLETO)


PROGRAMA ENREDO CULTURAL DA TV UFG


BOOGARINS – “Benzin” (clipe filmado na Chapada e estrelado pela Salma do Carne Doce)


ACOMPANHE A COBERTURA COMPLETA DO 
XVI ENCONTRO DE CULTURAS DA CHAPADA DOS VEADEIROS
Site oficialhttp://www.encontrodeculturas.com.br/

MUNDURUKU NO TAPAJÓS: TECENDO A RESISTÊNCIA [Assista a 3 documentários completos]

“Índios Munduruku: Tecendo a Resistência”

TECENDO RESISTÊNCIA, um filme de Nayara Fernandes (em inglês, Weaving Resistance; em espanhol, Tejiendo la Resistencia): “O governo brasileiro está planejando construir um grande número de barragens hidrelétricas nos rios da Amazônia, destruindo a biodiversidade e interrompendo o modo de vida de milhares de índios e populações locais. Agora que as obras da gigante barragem de Belo Monte, no rio Xingu, estão a todo vapor, o governo está avançando com o seu próximo grande projeto – uma série de barragens no rio Tapajós. Mas os mais de 12.000 índios Munduruku, temidos como guerreiros, vivem nessa região e estão se mobilizando.

O documentário mostra a vida em uma aldeia Munduruku, onde as tarefas tradicionais são praticadas diariamente e as crianças crescem com uma liberdade admirável. O filme documenta o crescimento de sua resistência, que de diferentes formas sempre existiu, inclusive entre as mulheres, que têm papel fundamental nessa luta, e que agora também estão se levantando como guerreiras na articulação contra as barragens hidrelétricas.”
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Este documetário foi produzido de forma independente, com apoio de algumas organizações, grupos da região do Tapajós e lideranças Munduruku. Toda a pós-produção foi executada graças ao trabalho colaborativo e em solidariedade à luta do povo Munduruku.

| Ficha técnica |
Reino Unido/Brasil, 25min

Dir.: Nayana Fernandez
Produção: Sue Branford, Mauricio Torres e Nayana Fernandez
Camera / Som: Nayana Fernandez
Edição: Nayana Fernandez e Jason Brooks
Edição de Som: Aquiles Pantaleão e Michal Kuligowski
Desenho de Som: Michal Kuligowski
Graficos: Mariana Delellis
Música: “Whispers” – Por Kushal Gaya e Jenny Sutton / “Mi Corazón” por Kike Pinto
Imagens adicionais: Índios Munduruku (aldeia Teles Pires), Emilio Días (aéreas), Alejo Sabugo (aldeia Restinga)
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“Índios Munduruku: Tecendo a Resistência”, de MiráPorã, está registrado sob licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 – International License e pode ser baixado gratuitamente para maior difusão no link a seguir.

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26.11.2014 - Ativistas do Greenpeace e índios Mundukuru usam pedras para formar a frase "Tapajós Livre" nas areias de uma praia às margens do rio Tapajós, na região onde está prevista a construção da barragem de uma hidrelétrica, próximo ao município de Itaituba, no Pará. O protesto acontece por causa da intenção do governo federal de construir um complexo de hidrelétricas ao longo da bacia do Tapajós. Para os índios Munduruku, Tapajós significa “rio da vida”. Com 795 km de extensão é o último rio que ainda permanece livre dos empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. Os guerreiros Munduruku, além de caciques de diversas etnias, mulheres e jovens estudantes formam o movimento Ipereg Ayu, que luta pelo direito à consulta prévia, livre e informada garantido pela Constituição brasileira e pela Convenção 169 da OIT, Organização Internacional do Trabalho. A convenção estabelece que os povos que tenham seu patrimônio físico e cultural ameaçados por grandes empreendimentos hídricos tenham acesso a todas as informações sobre os impactos do projeto e que sua opinião seja ouvida em sua língua de origem, quando e onde quiserem, por representantes do governo, antes mesmo do início do licenciamento das obras. Até agora nenhuma consulta prévia foi realizada. Foto Greenpeace/Marizilda Cruppe.AVISO DE COPYRIGHT: PROIBIDA UTILIZAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DA AUTORA. PROIBIDO TERCEIRIZAÇÃO, REVENDA OU ARQUIVO. SOMENTE PARA USO EDITORIAL. PROIBIDO O USO COMERCIAL OU EM CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS. CRÉDITO OBRIGATÓRIO. COPYRIGHT NOTICE: NO USE BEFORE AUTHOR'S KNOWLEDGE. NO THIRD PARTS, NO RESALE, NO ARCHIVE, FOR EDITORIAL USE ONLY, NOT FOR MARKETING OR ADVERTISING CAMPAIGNS. CREDIT-LINE COMPULSORY.

FOTO ACIMA: 26.11.2014 – Ativistas do Greenpeace e índios Mundukuru usam pedras para formar a frase “Tapajós Livre” nas areias de uma praia às margens do rio Tapajós, na região onde está prevista a construção da barragem de uma hidrelétrica, próximo ao município de Itaituba, no Pará. O protesto acontece por causa da intenção do governo federal de construir um complexo de hidrelétricas ao longo da bacia do Tapajós. Para os índios Munduruku, Tapajós significa “rio da vida”. Com 795 km de extensão é o último rio que ainda permanece livre dos empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. Os guerreiros Munduruku, além de caciques de diversas etnias, mulheres e jovens estudantes formam o movimento Ipereg Ayu, que luta pelo direito à consulta prévia, livre e informada garantido pela Constituição brasileira e pela Convenção 169 da OIT, Organização Internacional do Trabalho. A convenção estabelece que os povos que tenham seu patrimônio físico e cultural ameaçados por grandes empreendimentos hídricos tenham acesso a todas as informações sobre os impactos do projeto e que sua opinião seja ouvida em sua língua de origem, quando e onde quiserem, por representantes do governo, antes mesmo do início do licenciamento das obras. Até agora nenhuma consulta prévia foi realizada. Foto: Greenpeace/Marizilda Cruppe.

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Mundurukânia, Na Beira da História

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Ribeirinhos e Mundurukus frente ao Complexo Tapajós

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Eduardo Viveiros De Castro: “Povo” só ‘(r)existe’ no plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quanto perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”, ele cortou no ato: “não sou índio; sou Munduruku”. Mas ser Munduruku significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os “índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial, imperial, republicano. O Estado, ao contrário dos povos, só consiste no singular da própria universalidade.

O Estado é sempre único, total, um universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados-nação, cada um é uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a forma do Múltiplo. Forçados a se descobrirem “índios”, os índios brasileiros descobriram que haviam sido ‘unificados’ na generalidade por um poder transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados, homogeneizados, abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa. Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra.

E não obstante, os povos indígenas originários, em sua multiplicidade irredutível, que foram indianizados pela generalidade do conceito para serem melhor desindianizados pelas armas do poder, sabem-se hoje alvo geral dessas armas, e se unem contra o Um, revidam dialeticamente contra o Estado aceitando essa generalidade e cobrando deste os direitos que tal generalidade lhes confere, pela letra e o espírito da Constituição Federal de 1988. E invadem o Congresso. Nada mais justo que os invadidos invadam o quartel-general dos invasores. Operação de guerrilha simbólica, sem dúvida, incomensurável à guerra massiva real (mas também simbólica) que lhes movem os invasores. Mas os donos do poder vêm acusando o golpe, e correm para viabilizar seu contragolpe. Para usarmos a palavra do dia, golpe é o que se prepara nos corredores atapetados de Brasília contra os índios, sob a forma, entre outras, da PEC 215.

– Eduardo Viveiros De Castro
Aula pública – Abril de 2016

LEIA-A NA ÍNTEGRA: “OS INVOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA” @ A Casa de Vidro: http://wp.me/pNVMz-2Y2

Munduruku Indians attend a meeting consisting of nearly 150 Indians, who are campaigning against the construction of the Belo Monte hydroelectric dam in the Amazon, in Brasilia. Talks between the Indians and the government were suspended a day after Air Force planes flew 144 Munduruku Indians to Brasilia for talks to end a week-long occupation of the controversial Belo Monte dam on the Xingu River, a huge project aimed at feeding Brazil's fast-growing demand for electricity. (Lunae Parracho/Reuters)

“Munduruku Indians attend a meeting consisting of nearly 150 Indians, who are campaigning against the construction of the Belo Monte hydroelectric dam in the Amazon, in Brasilia. Talks between the Indians and the government were suspended a day after Air Force planes flew 144 Munduruku Indians to Brasilia for talks to end a week-long occupation of the controversial Belo Monte dam on the Xingu River, a huge project aimed at feeding Brazil’s fast-growing demand for electricity.” (Lunae Parracho/Reuters)

“OS INVOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA” por Eduardo Viveiros De Castro – aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, RJ, 20/04/2016

arawatearawete_53 1982 davi_kopenawa_yanomami_shaman_-_courtesy_survival_international1-485x246 Foto2 Kaniata-no, hoje líder da tribo Paratasi, ainda menino, com shorts Adidas e uma camiseta do Superman - 1982

OS INVOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA
por Eduardo Viveiros De Castro

Aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro 20/04/2016

Hoje os que se acham donos do Brasil — e que o são, em ultimíssima análise, porque os deixamos se acharem, e daí ao serem foi um pulo (uma carta régia, um tiro, um libambo, uma PEC) — preparam sua ofensiva final contra os índios. Há uma guerra em curso contra os povos índios do Brasil, apoiada abertamente por um Estado que teria (que tem) por obrigação constitucional proteger os índios e outras populações tradicionais, e que seria (que é) sua garantia jurídica última contra a ofensiva movida pelos tais donos do Brasil, a saber, os “produtores rurais” (eufemismo para “ruralistas”, eufemismo por sua vez para “burguesia do agronegócio”), o grande capital internacional, sem esquecermos a congenitamente otária fração fascista das classes médias urbanas. Estado que, como vamos vendo, é o aliado principal dessas forças malignas, com seu triplo braço “legitimamente constituído”, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário.

Mas a ofensiva não é só contra os índios, e sim contra muito outros povos indígenas. Devemos começar então por distinguir as palavras “índio” e “indígena”, que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que “índio” seja só uma forma abreviada de “indígena”. Mas não é. Todos os índios no Brasil são indígenas, mas nem todos os indígenas que vivem no Brasil são índios. Índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus. Foram chamados de “índios” por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia.

“Indígena”, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de “indiana” nela; significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive” (1). Há povos indígenas no Brasil, na África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa. O antônimo de “indígena” é “alienígena”, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é “branco”, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em português por “branco”, mas que se refere a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias. Essas palavras indígenas têm vários significados descritivos, mas um dos mais comuns é “inimigo”, como no caso do yanomami ‘napë’, do kayapó ‘kuben’ ou do araweté ‘awin’.

Ainda que os conceitos índios sobre a inimizade, ou condição de inimigo, sejam bastante diferentes dos nossos, não custa registrar que a palavra mais próxima que temos para traduzir diretamente essas palavras indígenas seja “inimigo”. Durmamos com essa. Mas isso quer dizer então que todos as pessoas nascidas aqui nesta terra são indígenas do Brasil? Sim e não. Sim no sentido etimológico informal abonado pelos dicionários: “originário do país etc. em que se encontra, nativo” (ver nota 1, supra). Um colono de ‘origem’ (e língua) alemã de Pomerode é “indígena” do Brasil porque nasceu em uma região do território político epônimo, assim como são indígenas um sertanejo dos semi-árido nordestino, um agroboy de Barretos ou um corretor da Bolsa de São Paulo. Mas não, nem o colono, nem o agroboy nem o corretor de valores são indígenas — perguntem a eles…

Eles são “brasileiros”, algo muito diferente de ser “indígena”. Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada, contada e medida por um Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão, em outras palavras, ‘súdito’ de um Estado ‘soberano’, isto é, transcendente. Essa condição de súdito (um dos eufemismos de súdito é “sujeito [de direitos]“) não tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se ‘faz a vida’ junto com seus parentes e amigos.

Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um ‘povo’. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma ‘população’ controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto.

“Povo” só ‘(r)existe’ no plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quanto perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”, ele cortou no ato: “não sou índio; sou Munduruku”. Mas ser Munduruku significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os “índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial, imperial, republicano. O Estado, ao contrário dos povos, só consiste no singular da própria universalidade.

O Estado é sempre único, total, um universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados-nação, cada um é uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a forma do Múltiplo. Forçados a se descobrirem “índios”, os índios brasileiros descobriram que haviam sido ‘unificados’ na generalidade por um poder transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados, homogeneizados, abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa. Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra.

E não obstante, os povos indígenas originários, em sua multiplicidade irredutível, que foram indianizados pela generalidade do conceito para serem melhor desindianizados pelas armas do poder, sabem-se hoje alvo geral dessas armas, e se unem contra o Um, revidam dialeticamente contra o Estado aceitando essa generalidade e cobrando deste os direitos que tal generalidade lhes confere, pela letra e o espírito da Constituição Federal de 1988. E invadem o Congresso. Nada mais justo que os invadidos invadam o quartel-general dos invasores. Operação de guerrilha simbólica, sem dúvida, incomensurável à guerra massiva real (mas também simbólica) que lhes movem os invasores. Mas os donos do poder vêm acusando o golpe, e correm para viabilizar seu contragolpe. Para usarmos a palavra do dia, golpe é o que se prepara nos corredores atapetados de Brasília contra os índios, sob a forma, entre outras, da PEC 215.

Os índios são os primeiros indígenas do Brasil. As terras que ocupam não são sua propriedade — não só porque os territórios indígenas são “terras da União”, mas porque são eles que pertencem à terra e não o contrário. Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. E nesse sentido, muitos povos e comunidades no Brasil, além dos índios, podem se dizer, porque se sentem, indígenas muito mais que cidadãos. Não se reconhecem no Estado, não se sentem representados por um Estado dominado por uma casta de poderosos e de seus mamulengos e jagunços aboletados no Congresso Nacional e demais instâncias dos Três Poderes.

Os índios são os primeiros indígenas a não se reconhecerem no Estado brasileiro, por quem foram perseguidos durante cinco séculos: seja diretamente, pelas “guerras justas” do tempo da colônia, pelas leis do Império, pelas administrações indigenistas republicanas que os exploraram, maltrataram, e, muito timidamente, às vezes os defenderam (quando iam longe demais, o Estado lhes cortava as asinhas); seja indiretamente, pelo apoio solícito que o Estado sempre deu a todas as tentativas de desindianizar o Brasil, varrer a terra de seus ocupantes originários para implantar um modelo de civilização que nunca serviu a ninguém senão aos poderosos. Um modelo que continua ‘essencialmente’ o mesmo há quinhentos anos.

Alvo

O Estado brasileiro e seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e quanto mais rapidamente melhor; fizeram o possível e o impossível, o inominável e o abominável para tanto. Não que fosse preciso sempre exterminá-los fisicamente para isso — como sabemos, porém, o recurso ao genocídio continua amplamente em vigor no Brasil —, mas era sim preciso de qualquer jeito desindianizá-los, transformá-los em “trabalhadores nacionais” (2). Cristianizá-los, “vesti-los” (como se alguém jamais tenha visto índios ‘nus’, esses mestres do adorno, da plumária, da pintura corporal), proibir-lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que os definiam para si mesmos, submetê-los a um regime de trabalho, polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a terra. Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como ‘condição necessária’ para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou (e ainda precisa) de escravos. Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais nada separá-lo de sua terra, da terra que o ‘constitui’ como indígena.

Nós, os brancos que aqui estamos sentados na escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 2016, nós nos sentimos indígenas. Não nos sentimos cidadãos, não nos vemos como parte de uma população súdita de um Estado que nunca nos representou, e que sempre tirou com uma mão o que fingia dar com a outra. Nós os “brancos” que aqui estamos, bem como diversos outros povos indígenas que vivem no Brasil: camponeses, ribeirinhos, pescadores, caiçaras, quilombolas, sertanejos, caboclos, curibocas, negros e “pardos” moradores das favelas que cobrem este país. Todos esses são ‘indígenas’, porque se sentem ligados a um lugar, a um pedaço de terra — por menor ou pior que seja essa terra, do tamanho do chão de um barraco ou de uma horta de fundo de quintal — e a uma comunidade, muito mais que cidadãos de um Brasil Grande que só engrandece o tamanho das contas bancárias dos donos do poder.

A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, outra operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas. Pense-se nos LGBT, separados de sua sexualidade; nos negros, separados da cor de sua pele e de seu passado de escravidão, isto é, de despossessão corporal radical; pense-se nas mulheres, separadas de sua autonomia reprodutiva. Pense-se, por fim mas não por menos abominável, no sinistro elogio público da tortura feito pelo canalha Jair Bolsonaro — a tortura, modo último e mais absoluto de separar uma pessoa de seu corpo. Tortura que continua — que sempre foi — o método favorito de separação dos pobres de seus corpos, nas delegacias e presídios deste pais tão “cordial”.

Por isso tudo a luta dos índios é também a nossa luta, a luta indígena. Os índios são nosso exemplo. Um exemplo de ‘rexistência’ secular a uma guerra feroz contra eles para desexistí-los, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os “cidadãos civilizados”, isto é, brasileiros pobres, sem terra, sem meios de subsistência próprios, forçados a vender seus braços — seus corpos — para enriquecer os pretensos novos donos da terra.

Os índios precisam da ajuda dos brancos que se solidarizam com sua luta e que reconhecem neles o ‘exemplo’ maior da luta perpétua entre os povos indígenas (todos os ‘povos’ indígenas a que me referi mais acima: o povo LGBT, o povo negro, o povo das mulheres) e o Estado nacional. Mas nós, os “outros índios”, aqueles que não são índios mas se sentem muito mais ‘representados’ pelos povos índios que pelos políticos que nos governam e pelo aparelho policial que nos persegue de perto, pelas políticas de destruição da natureza levadas a ferro e a fogo por todos os governos que se sucedem neste país desde sempre — nós outros também precisamos da ajuda, e do exemplo, dos índios, de suas táticas de guerrilha simbólica, jurídica, mediática, contra o Aparelho de Captura do Estado-nação. Um Estado que vai levando até às últimas consequências seu projeto de destruição do território que reivindica como seu. Mas a terra é dos povos.

Concluo com uma alusão ao nome de uma rua nn muito distante desta Cinelândia onde estamos agora. Em Botafogo existe, como vocês todos sabem, a Rua Voluntários da Pátria. Seu nome provém de uma iniciativa empreendida pelo Império em sua guerra genocida (e etnocida) contra o Paraguai — o Brasil sempre foi bom nisso de matar índios, do lado de cá ou de lá de suas fronteiras. Carente de tropas para enfrentar o exército guarani, o Governo imperial criou corpos militares de voluntários, “apelando para os sentimentos do povo brasileiro”, como escreve o verbete da Wikipedia sobre a iniciativa. Pedro II apresentou-se em Uruguaiana como o “primeiro voluntário da pátria”. Não demorou muito e o patriotismo dos voluntários da pátria arrefeceu; logo o Governo central passou a exigir dos presidentes das províncias que recrutasse cotas de “voluntários”. A solução para esta lamentável “falta de patriotismo” dos brancos brasileiros foi, como se sabe, mandar milhares de escravos negros como voluntários. Foram eles que mataram e morreram na Guerra do Paraguai. Obrigados, escusado dizer. Voluntários involuntários.

Pois bem. Os índios foram e são os primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram cair-lhes sobre a cabeça uma “Pátria” que não pediram, e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que representamos a terra — esta terra. Não a “nossa terra”, mas a terra de onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque ‘outra’ é a nossa vontade.

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Notas:

1 “A palavra ‘indígena’ vem do «lat[im] indigĕna,ae “natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria”, derivação do latim indu arcaico (como endo) > latim] clássico in- “movimento para dentro, de dentro” + -gena derivação do rad[ical do verbo latino gigno, is, genŭi, genĭtum, gignĕre “gerar”; Significa “relativo a ou população autóctone de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador” …; por extensão de sentido (uso informal), [significa] “que ou o que é originário do país, região ou localidade em que se encontra; nativo”. (Dicionário Eletrônico Houaiss)

2 O primeiro nome do SPI republicano (Serviço de Proteção aos Índios) era SPILTN: Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Foi SPITLN de 1910 a 1918, depois só SPI, até virar FUNAI em 1967, ao cabo de uma CPI que revelou uma infinidade de abusos, desmandos, violências variadas, explorações e outras benesses protetoras conferidas pelo Estado.

Via André Vallias

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SIGA VIAGEM:

LEIA “O RECADO DA MATA”, PREFÁCIO AO LIVRO 
“A QUEDA DO CÉU” (Kopenawa e Albert), 
por Eduardo Viveiros de Castro

FILMES RECOMENDADOS

O RECADO DA MATA – Eduardo Viveiros de Castro prefacia “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa e Bruce Albert

O RECADO DA MATA

O prefácio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (Ed. Companhia das Letras, 2015)

OBS – Compartilhamos abaixo alguns trechos seletos do brilhante prefácio de Viveiros de Castro para a obra de Kopenawa e Albert; faça o download em PDF do prefácio completo AQUI; para compartilhar este post nas redes sociais e contribuir para a disseminação deste conteúdo, use os seguintes links: Facebook || Twitter || Tumblr

quedadoceuA Queda do Céu é um livro sobre o Brasil, sobre um Brasil — decerto, ele é ostensivamente ‘sobre’ a trajetória existencial de Davi Kopenawa, onde o pensador e ativista político yanomami, falando a um antropólogo francês, discorre sobre a cultura ancestral e a história recente de seu povo (situado em terras venezuelanas tanto quanto em brasileiras), explica a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as características monstruosas da civilização ocidental como um todo, e de prever um futuro funesto para o planeta — mas, de um modo muito especial, ele é um livro sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios.

Pois com a A queda do céu mudam-se o nível e os termos do diálogo pobre, esporádico e fortemente desigual entre os povos indígenas e a maioria não-indígena de nosso país, aquela composta pelo que Davi chama de “Brancos” (napë).4 Nele aprendemos algo de essencial sobre o estatuto ontológico e ‘antropológico’ dessa maioria — são espectros canibais que esqueceram suas origens e sua cultura —, onde vive ela — em altas e cintilantes casas de pedra amontoadas sobre um chão nu e estéril, em uma terra fria e chuvosa sob um céu em chamas—, e com o que ela sonha, assombrada por um desejo sem limites — sonha com suas mercadorias venenosas e suas vãs palavras traçadas em peles de papel.

Essa maioria, como eu disse, somos, entre outros, nós, os brasileiros ‘legítimos’, que falam o português como língua materna, gostam de samba, novela e futebol, aspiram a ter um carro bem bacana, uma casa própria na cidade e, quem sabe, uma fazenda com suas tantas cabeças de gado e seus hectares de soja, cana ou eucalipto. A maioria dessa maioria acha, além disso, que vive “num país que vai pra frente”, como cantava o jingle dos tempos daquela ditadura que imaginamos pertencer a um passado obsoleto.

Do ponto de vista, então, dos povos autóctones cujas terras o Brasil ‘incorporou’, os brasileiros não-índios — tão vaidosos como nos sintamos de nossa singularidade cultural perante a Europa ou os EUA, isso quando não nos envaidecemos justo do contrário — são apenas “Brancos/inimigos” como os demais napë, sejam estes portugueses, norte-americanos, franceses. Somos representantes quaisquer desse povo bárbaro e exótico proveniente de além-mar, que espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber que “a máquina do mundo” é um ser vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri

Impossível, de fato, não nos reconhecermos nessa caricatura fielmente disforme de nós ‘mesmos’ desenhada, para nosso escarmento, por esse ‘nós’ outro, esse outro que entretanto insiste em nos advertir que somos, ao fim e ao cabo (mas talvez apenas ao fim e ao cabo), todos os mesmos, uma vez que, quando a floresta acabar e as entranhas da terra tiverem sido completamente destroçadas pelas máquinas devoradoras de minério, as fundações do cosmos ruirão e o céu desabará terrível sobre todos os viventes. Isso já aconteceu antes, lembra o narrador. O que é o modo índio de dizer que acontecerá de novo.

Kopenawa

Kopenawa na FLIP

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818W3Uq-9jLA queda do céu é um acontecimento científico incontestável, que levará, suspeito, alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica. Mas espero que todos os seus leitores saibam identificar de imediato o acontecimento político e espiritual muito mais amplo, e de muito grave significação, que ele representa. Chegou a hora, em suma; temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa — os índios e todos os demais povos ‘menores’ do planeta, as minorias extra-nacionais que ainda resistem à total dissolução pelo liquidificador modernizante do Ocidente.

Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do Novo Mundo criadas às custas do genocídio americano e da escravidão africana, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais “cheia de esquecimento”, imersa em um tenebroso vazio existencial, só de raro em raro iluminado, ao longo de nossa pouco gloriosa história, por lampejos de lucidez política e poética.

Davi Kopenawa ajuda-nos a pôr no devido lugar as famosas “ideias fora do lugar”, porque o seu é um discurso sobre o lugar, e porque seu enunciador sabe qual é, onde é, o que é o seu lugar. Hora, então, de nos confrontarmos com as ideias desse lugar que tomamos a ferro e a fogo dos indígenas, e declaramos “nosso” sem o menor pudor; ideias que constituem, antes de mais nada, uma teoria global do lugar, gerada localmente pelos povos indígenas, no sentido concreto e etimológico desta última palavra.

Uma teoria sobre o que é estar em seu lugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente, oikos, ou, para usarmos os conceitos yanomami, hutukara e urihi a: o mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, a terra como um ser que “tem coração e respira”, não como um depósito de ‘recursos escassos’ ocultos nas profundezas de um subsolo tóxico — massas minerais que foram depositadas no inframundo pelo demiurgo para serem deixadas lá, pois são como as fundações, os sustentáculos do céu —; mas o mundo também como aquela outra terra, aquele ‘suprassolo’ celeste que sustenta as numerosas moradas transparentes dos espíritos, e não como esse ‘céu de ninguém’, esse sertão cósmico que os Brancos sonham — incuráveis que são — em conquistar e colonizar.

Por isso Davi Kopenawa diz que a ideia-coisa “ecologia”sempre fez parte de sua teoria-práxis do lugar:

Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama [o demiurgo yanomami] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente. […] Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos.

O mundo visto então — melhor, vivido — a partir daqui, do ‘centro da ecologia’, do coração indígena dessa vasta e ilimitada Terra cosmopolítica onde se distribuem nomadologicamente as inumeráveis gentes terranas, e não como uma esfera abstrata, um globo visto de fora, cercado e dividido em territórios administrados pelos Estados nacionais, épuras da alucinação euro-antropocêntrica conhecida pelos nomes de “soberania”, “domínio eminente”, “projeção geopolítica” e fantasmagorias do mesmo quilate. Talvez seja mesmo chegada a hora de concluir que vivemos o fim de uma história, aquela do Ocidente, a história de um mundo partilhado e imperialmente apropriado pelas potências europeias, suas antigas colônias americanas e seus êmulos asiáticos contemporâneos.

Caberia-nos portanto constatar, e tirar daí as devidas consequências, que “o nacional não existe mais; só há o local e o mundial.” Dir-se-á que tal declaração é conversa de europeu decadente, fantasia de ‘localista’ romântico, mantra de anarquista irresponsável, isso se não for, Deus nos proteja, um arroto do ‘libertarianismo’ à americana, aquele sinistro fascismo supremacista do indíviduo macho branco armado que grassa em nosso Grande Irmão do Norte.

O que cabe a nós brasileiros, dizemos com a cabeça erguida, é construir a Pátria Socialista do Porvir, o prometido país de classe média e feliz, sustentado por um Estado forte capaz de defendê-lo contra a cobiça internacional, ou, para sermos ‘proativos’, capaz de fazê-lo ingressar no clube seleto dos patrões deste mundo. Mas, se o nacional vai de fato — aguardemos — deixando de existir lá fora (só que nunca houve lá fora, pois o aqui dentro sempre foi, e continua sendo, uma das ‘dependências’ do lá fora), é provável que o conceito do nacional acabe mudando mundialmente de lugar, isto é, de sentido, e isso até mesmo ‘aqui dentro’.

No mínimo, talvez comecemos a nos dar conta de que se continuarmos a destruir obtusamente o local, este local do mundo que chamamos de ‘nosso’ — mas quem detém, para além do mero direito pronominal, o fato brutalmente proprietarial deste possessivo? —, não sobrarão nem fundos nem fundamentos para construirmos qualquer nacional que seja, anacrônico ou futurista. O Brasil é grande mas o mundo é pequeno.

A queda do céu é rico em lições, entre outras, sobre a incompetência eficaz, a irrelevância maligna, o ufanismo bufão da teoria e prática da governamentalidade ‘nacional’, esse nomos antinômico que estria e devasta simultaneamente um espaço que ele imagina instituir quando é, na verdade, literalmente suportado por ele. O Estado nacional? Muito bem, muito bom; mas muito antes dele, há os espíritos invisíveis da floresta, as fundações metálicas da terra, a fumaça diabólica das epidemias e a doença degenerativa do céu — e nada disso tem fronteira, porteira ou bandeira. Os xamãs e seus xapiri não carecem de passaporte nem de visto dado por gente; são eles que vêem, se forem bem vistos pela onividente gente invisível da floresta…

O Brasil? — O Brasil, na imagem tão bela e melancólica de Oswald de Andrade, já foi “uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. Hoje, ele está mais para uma corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minério para exportação, coberta por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes na produção automotiva, entupida por milhares de quilômetros de rios barrados para gerar uma energia de duvidosíssima ‘limpeza’ e ainda mais questionável destinação, devastada por extensões de floresta e cerrado, grandes como países, derrubadas para dar pasto a duzentos e onze milhões de bois (hoje mais numerosos que nossa população de humanos). Enquanto isso, a gente… Bem, a gente continua dizendo adeus — às árvores. Adeus a elas e à república, pelo menos em seu sentido original de res publica, de coisa e causa do povo.

***

terrra a vista

O depoimento-profecia de Kopenawa aparece, assim, em boa hora; porque a hora, claro está, é péssima. Neste momento, nesta república, neste governo, assistimos a uma concertada maquinação política que tem como alvo as áreas de preservação ambiental, as comunidades quilombolas, as reservas extrativistas e em especial os territórios indígenas. Seu objetivo é consumar a ‘liberação’ (a desproteção jurídica) do máximo possível de terras públicas ou, mais geralmente, de todos aqueles espaços sob regimes tradicionais ou populares de territorialização que se mantêm fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lógica da propriedade privada, de modo a tornar ‘produtivas’ essas terras, isto é, lucrativas para seus pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação fundiária, vários deles aboletados nas poltronas do Congresso, muitos apenas pagando seus paus-mandados para ali ‘operarem’.

Na verdade, são os Três Poderes da nossa república federativa que vêm costurando uma ofensiva criminosa contra os direitos indígenas, conquistados a duras penas ao longo da década entre 1978, ano do ‘Projeto de emancipação’ da ditadura (o qual deu espetacularmente com os burros n’água), e 1988, ano da ‘Constituição cidadã’ que reconheceu os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras, consagrando e perenizando o instituto fundamental do indigenato. Esse acolhimento dos índios como uma categoria sociocultural diferenciada de pleno e permanente direito dentro da nação suscitou uma feroz determinação retaliativa por parte do sistema do latifúndio, que hoje ocupa vários ministérios, controla o Congresso e possui uma legião de serviçais no Judiciário. Chovem, de todas as instâncias e níveis dos poderes constituídos, tentativas de desfigurar a Constituição que os constituiu, por meio de projetos legislativos, portarias executivas e decisões tribunalícias que convergem no propósito de extinguir o espírito dos artigos da Lei Maior que garantem os direitos indígenas.

O presente governo, e refiro-me aqui ao Executivo, desde sua comandante até seus ordenanças ministeriais, vem-se mostrando o de pior desempenho, desde a nossa tímida redemocratização, no tocante ao respeito a esses direitos, agravando a já péssima administração anterior sob a mesma gerência: procedimentos de demarcação e homologação de terras indígenas praticamente nulos; políticas de saúde mais que omissas, desastrosas para as comunidades indígenas; uma indiferença quase indistinguível da cumplicidade diante do genocídio praticado continuadamente e às escâncaras sobre os Guarani-Kaiowá, ou periodicamente e ‘por descuido’ sobre os Yanomami e outros povos nativos, bem como diante do assassinato metódico de lideranças indígenas e ambientalistas pelo país afora — quesito no qual o Brasil é, como se sabe, campeão mundial.

Veja-se por fim, mas não por menos lamentável, a jóia da coroa da suprema mandatária da república, a saber, a construção a toque de caixa, por mega-empreiteiras de capital privado a serviço do poder público e/ou vice-versa, ao arrepio insolente da legislação e às custas de ‘financiamentos’ de dimensões obscenas, feitos com o chamado dinheiro do povo, de dezenas de hidrelétricas na bacia amazônica, que trarão gravíssimos danos à vida de centenas de povos indígenas e de milhares de comunidades tradicionais — para não falarmos nas dezenas de milhares de outras espécies de habitantes da floresta, que vivem nela, dela e com ela; que são, enfim, a floresta ela própria, o macrobioma ou megarrizoma autotrófico que cobre um terço da América do Sul, e cuja estrutura lógico-metafísica, se me permitem a expressão, se encontra claramente exposta por Kopenawa em A queda do céu. Mas de que vale tudo isso, perante as leis inexoráveis da Economia Mundial e o objetivo supremo do Progresso da Pátria?

A entropia crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante. E ainda se diz que são os índios que crêem em coisas impossíveis. Em suma, o que a ditadura empresarial-militar não conseguiu arrasar, a coalizão comandada pelo Partido dos …Trabalhadores! vai destruindo, com eficiência estarrecedora. Seu instrumento material para tanto são as mesmas forças político-econômicas que apoiaram e financiaram o projeto de poder da ditadura. Tal ‘eficiência’ destrutiva, note-se bem, anda longe da “destruição criadora” marxista e schumpeteriana, valha o que esta ainda valer nos sombrios tempos que correm.

Não há absolutamente nada de criador, e menos ainda de criativo, no que a classe dominante e seu órgão executivo fazem na Amazônia. O que falta em inteligência e descortino sobra em ganância e violência. As invasões das terras dos Yanomami por garimpeiros — e suas consequências em termos de epidemias, estupros, assassinatos, envenenamento dos rios, esgotamento da caça, destruição das bases materiais e dos fundamentos morais da economia indígena — se sucedem com monótona frequência, seguindo a oscilação das cotações do ouro e outros minerais preciosos no mercado mundial. No dia mesmo em que escrevo este parágrafo (7 de maio de 2015), leio a notícia de que uma “organização criminosa de extração de ouro” em território yanomami, que movimentou cerca de um bilhão de reais nos últimos dois anos, foi desmantelada pela Polícia Federal (em um acesso inédito de eficiência que deve ter lá seus motivos). O esquema tinha a participação de servidores públicos locais — entre eles, funcionários da Funai —, intermediação de joalherias das grandes cidades da Amazônia, e financiamento por “empresários do ramo localizados, principalmente, em São Paulo”.

Davi Kopenawa vem sendo ameaçado repetidamente de morte, desde pelo menos 2014, por ter denunciado a situação. E como se lerá neste livro (ver especialmente o cap. XV), foi sua consternação atônita ao testemunhar a sucessão de catástrofes desencadeadas pela corrida do ouro na terra Yanomami, entre os anos 1975 e 1990 — desde a construção mal-inacabada da rodovia Perimetral Norte, na primeira metade da década de 1970, até a maciça invasão garimpeira, estimulada pelos militares, a partir da implantação do Projeto Calha Norte no Governo Sarney, em 1985 — foram essa raiva e essa perplexidade, transformados em convicção militante,23 que levaram Kopenawa a se engajar na dupla posição de xamã e de diplomata (trata-se, como veremos, de uma só e mesma posição). Ele inverteu assim a polaridade de sua função de intérprete a serviço dos Brancos, que desempenhou por algum tempo como funcionário da Funai, para se tornar o intérprete e o defensor permanente de seu povo contra os Brancos, como descreve perspicazmente Albert.

O sistema do garimpo é semelhante ao do narcotráfico, e, em última análise, à tática geopolítica do colonialismo em geral: o serviço sujo é feito por homens miseráveis, violentos e desesperados, mas quem financia e controla o dispositivo, ficando naturalmente com o lucro, está a salvo e confortável bem longe do front, protegido por imunidades as mais diversas. No caso do garimpo nos Yanomami, o dispositivo, como é de notório conhecimento nos meios especializados, envolve políticos importantes de Roraima, alguns deles defensores destacados, no Congresso, de reformas ‘liberalizantes’ da legislação minerária relativa às terras indígenas. Esses próceres não aparecem na notícia sobre o desmantelo da operação criminosa mais recente. Duvido que apareçam. Quem sabe, sequer existam. O povo inventa muito…

Mas não temos a exclusividade do ruim; nossa estupidez etnocida, ecocida, e em última análise suicida, não é sequer original. A concorrência internacional é fortíssima. O diagnóstico e o prognóstico contidos em A queda do céu não concernem apenas aos brasileiros. Neste momento, assistimos a uma mudança do equilíbrio termodinâmico global sem precedentes nos últimos 11 mil anos da história do planeta, e, associada a ela, a uma inquietação geopolítica inédita na história humana — se não em intensidade (ainda), certamente em extensão, na medida em que ela afeta literalmente ‘todo (o) mundo’. Neste momento, portanto, nada mais apropriado que venha dos cafundós do mundo, dessa Amazônia indígena que ainda vai resistindo, mesmo combalida, a sucessivos assaltos; que venha, então, dos Yanomami, uma mensagem, uma profecia, um recado da mata alertando para a traição que estamos cometendo contra nossos conterrâneos — nossos co-terranos, nossos co-viventes — assim como contra as próximas gerações humanas; contra nós mesmos, portanto.

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O que lemos em A queda do céu é a primeira tentativa sistemática de “antropologia simétrica”, ou “contra-antropologia”, do Antropoceno, a época geológica atual que, na opinião crescentemente consensual dos especialistas, sucedeu o Holoceno, e na qual os efeitos da atividade humana — entenda-se, a economia industrial baseada na energia fóssil e no consumo exponencialmente crescente de espaço, tempo e matérias primas — adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta, ao par do vulcanismo e dos movimentos tectônicos.

Ao mesmo tempo uma explicação do mundo segundo uma outra cosmologia e uma caracterização dos Brancos segundo uma outra antropologia (uma contra-antropologia), A queda do céu entrelaça estes dois fios expositivos para chegar à conclusão de uma iminência da destruição do mundo, levada a cabo pela civilização que se julga a delícia do gênero humano — essa gente que, liberta de toda ‘superstição retrógrada’ e de todo ‘animismo primitivo’, só jura pela santíssima trindade do Estado, do Mercado e da Ciência, respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia modernista.26 Tal credo fanático, de resto, é costumeiramente empurrado goela baixo dos índios por um estranho instrumento, ao mesmo tempo arcaico e modernizador, o Teosi (Deus) dos missionários evangélicos norteamericanos que Davi conheceu tão bem, esses insuportáveis operadores de telemarketing do Capital.

(…) A Queda do Céu é um ‘objeto’ inédito, compósito e complexo, quase único em seu gênero. Pois ele é, ao mesmo tempo: uma biografia singular de um indivíduo excepcional, um sobrevivente indígena que viveu vários anos em contato com os Brancos até reincorporarse a seu povo e decidir tornar-se xamã; uma descrição detalhada dos fundamentos poéticometafisicos de uma visão do mundo da qual só agora começamos a reconhecer a sabedoria; uma defesa apaixonada do direito à existência de um povo nativo, que vai sendo engolido por uma máquina civilizacional incomensuravelmente mais poderosa; e, finalmente, uma contraantropologia arguta e sarcástica dos Brancos, o “povo da mercadoria”, e de sua relação doentia com a Terra — conformando um discurso que Albert (1993) caracterizou, lapidarmente, como uma “crítica xamânica da economia política da natureza”.

O livro se destaca de seus aparentes congêneres, antes de mais nada, pela densidade e solidez inauditas de seu contexto de elaboração, que pôs frente a frente, em um diálogo ‘entrebiográfico’ que é também a história de um projeto político convergente, um pensador indígena com uma longa e dolorosa experiência ‘pragmática’ (mas também intelectual) do mundo dos Brancos, observador sagaz de nossas obsessões e carências, e um antropólogo com uma longa experiência ‘intelectual’ (mas também prática, e não isenta de dificuldades) do mundo dos Yanomami, autor que chegou a esta obra a quatro mãos já de posse de um saber etnográfico que conta entre as mais importantes contribuições ao estudo dos povos amazônicos, e cuja biografia é quase tão ‘anômala’, em sua recusa a se deixar capturar pela carreira acadêmica, quanto a do xamã-narrador.

* * * *

Não caberia, em todos os sentidos, resumir aqui a narrativa de Davi Kopenawa, cujo interesse extravasa de muito as questões e querelas ‘antropológicas’ acima expostas. Pois o que realmente importa é como este livro pode dar a pensar aos não antropólogos; o que conta é o que Davi Kopenawa tem a dizer, a quem souber ouvir, sobre os Brancos, sobre o mundo e sobre o futuro. Que seu seu repertório conceitual e seu universo de referências sejam muito estranhos ao nosso só torna mais urgente e inquietante sua ‘profecia xamânica’, cada vez menos ‘apenas’ imaginária e cada vez mais parecida com a realidade. Como observou Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um “[r]etorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes, as quais percebemos, subitamente, não serem assim tão infundadas” (Latour 2012: 452).

Há, entretanto, duas pequenas passagens de A queda do céu que me tocam especialmente, por resumirem de modo epigramático o que eu chamaria a diferença indígena. A primeira é uma citação, em epígrafe ao capítulo XVII, “Falar aos Brancos”, de um diálogo havido no dia 19 de abril de 1989 (o “Dia do Índio”) entre o General Bayma Denis, ministrochefe da Casa Militar durante o governo Sarney — sempre ele — e Davi Kopenawa. Quase conseguimos ouvir o tom arrogante e complacente com que o dignitário militar, provavelmente obrigado a jogar conversa fora com um índio qualquer durante aquela tediosa efeméride, pergunta a Davi: “O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?” Ao que o impávido xamã replica: “Não. O que desejo obter é a demarcação de nosso território.”

Pano rápido… O que me fascina neste diálogo, além, naturalmente, da soberba indiferença à farda demonstrada por Kopenawa, é a presunção do general, que imagina poder ensinar aos senhores da terra como cultivá-la — convicto de que, povo da natureza, os índios não entendiam nada de cultura, Bayma Denis devia pensar que os Yanomami eram ‘nômades’ ou algo assim—; que acredita, ademais, que os pobres índios estavam sequiosos de beber dessa ciência agronômica possuída pelos Brancos, a ciência que nos abençoa com pesticidas cancerígenos, fertilizantes químicos e transgênicos monopolistas, enquanto os Yanomami se empanturram com o produto de sua roças impecavelmente ‘agrobiológicas’.

Mais fascinante ainda, porém, é a total inversão de conceitos proposta por Davi em sua réplica, verdadeiro contragolpe de mestre espadachim. O general fala em “terra”, quando deveria estar falando é em “território”. Fala em ensinar a cultivar a terra, quando o que lhe compete, como militar a soldo de um Estado nacional, topográfico e agro-nomocrático, é demarcar o território. Bayma Denis não sabe do que sabem os Yanomami; e, aliás, o que sabe ele de terra? Mas Kopenawa sabe bem o que sabem os Brancos; sabe que a única linguagem que eles entendem não é a da terra, mas a do território, do espaço estriado, do limite, da divisa, da fronteira, do marco e do registro. Sabe que é preciso garantir o território para poder cultivar a terra. Faz tempo que ele aprendeu a regra do jogo dos Brancos, e nunca mais esqueceu. Veja-se esta sua entrevista ao Portal Amazônia, concedida exatamente 26 anos após o colóquio com o General:

Davi Yanomami with Yanomami children, Brazil

Quem ensinou a demarcar foi o homem branco. A demarcação, divisão de terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio. Brasileiro ensinou a demarcar terra indígena, então a gente passamos a lutar por isso. Nosso Brasil é tão grande e a nossa terra é pequena. Nós, povos indígenas, somos moradores daqui antes dos portugueses chegarem. Lutei pela terra Yanomami para que o meu povo viva onde eles nasceram e cresceram, mas o registro de demarcação da terra Yanomami não está comigo, está nas mãos do Governo. Mesmo diante das dificuldades, o tamanho da nossa terra é suficiente para nós, desde que seja mesmo somente para nós e não precisamos dividir com os garimpeiros e ruralistas.

A segunda passagem, e aqui transcrevo (não conseguiria fazer melhor…) três parágrafos do comentário que Deborah Danowski e eu tecemos sobre ela em Há mundo por vir?, equivale a um tratado inteiro de contra-antropologia dos Brancos:

Os brancos nos tratam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. […] Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. É por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Nós não as mais queremos ouvir. Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.

O vão desejo de ignorar a morte está ligado, segundo Kopenawa, à fixação dos Brancos na relação de propriedade e na forma-mercadoria. Eles são “apaixonados” pelas mercadorias, às quais seu pensamento permanece completamente “aprisionado”. Recordemos que os Yanomami não só valorizam ao extremo a liberalidade e a troca não-mercantil de bens, como destroem todas as posses dos mortos. E então, a volta do parafuso: “Os Brancos dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.” Este é, talvez, o juízo mais cruel e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do “povo da mercadoria”. A desvalorização epistêmica do sonho por parte dos Brancos vai de par com sua autofascinação solipsista — sua incapacidade de discernir a humanidade secreta dos existentes não-humanos — e sua avareza ‘fetichista’ tão ridícula quanto incurável, sua crisofilia. Os Brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonhar com o outro, sonhamos com o ouro.

É interessante notar, por um lado, que há algo de profundamente pertinente do ponto de vista psicanalítico no diagnóstico de Kopenawa sobre a vida onírica ocidental — sua Traumdeutung é de fazer inveja a qualquer pensador freudo-marxista —, e, de outro lado, que seu diagnóstico nos paga com nossa própria moeda falsa: a acusação de uma projeção narcisista do Ego sobre o mundo é algo a que os Modernos sempre recorreram para definir a característica antropológica dos povos “animistas” — Freud foi, como se sabe, um dos mais ilustres defensores desta tese. No entender desses que chamamos animistas, ao contrário, somos nós, os Modernos, que, ao adentrarmos o espaço da exterioridade e da verdade — o sonho —, só conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de nós mesmos, em lugar de nos abrirmos à inquietante estranheza do comércio com a infinidade de agências, ao mesmo tempo inteligíveis e radicalmente outras, que se encontram disseminadas pelo cosmos. Os Yanomami, ou a política do sonho contra o Estado: não o nosso “sonho” de uma sociedade contra o Estado, mas o sonho tal como ele é sonhado em uma sociedade contra o Estado.

Eduardo Viveiros de Castro (Twitter)
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“O etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um projeto de redução do outro ao mesmo…” (CLASTRES)

SOBRE O ETNOCÍDIO
por Pierre Clastres

“Há alguns anos o termo etnocídio não existia. A utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente seu lugar de origem, a etnologia, para cair de certo modo no domínio público. No espírito de seus inventores, a palavra estava decerto destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. Se surgiu a necessidade de criar um termo novo, é porque considerava-se que uma outra palavra — genocídio — era inadequada ou imprópria para preencher esta nova exigência. 

Criado em 1946 no processo de Nuremberg [em que foram julgados criminosos nazistas], o conceito jurídico de genocídio é a consideração no plano legal de um tipo de criminalidade até então desconhecido: o extermínio sistemático dos judeus europeus pelos nazistas alemães. O delito do genocídio tem sua raiz portanto no racismo, é o seu produto lógico e, no limite, necessário: um racismo que se desenvolve livremente, como foi o caso da Alemanha nazista, só pode conduzir ao genocídio.Embora o genocídio anti-semita dos nazistas tenha sido o primeiro a ser julgado em nome da lei, não foi o primeiro a ser perpetrado. A história da expansão colonial no século XIX, a história da constituição dos impérios coloniais pelas grandes potências européias, está pontilhada de massacres metódicos de populações nativas/autóctones. No entanto, por sua extensão continental, pela amplitude da queda demográfica que provocou, é o genocídio de que foram vítimas os indígenas americanos o que mais chama a atenção. A partir da descoberta da América em 1492, pôs-se em funcionamento uma máquina de destruição dos índios. Esta máquina contínua a funcionar ao longo da grande floresta amazônica, onde subsistem as últimas tribos “selvagens”.

Se o termo genocídio remete à idéia de “raça” e ao desejo de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens, como o genocídio, e sim para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática de modos de vida e de pensamento de povos diferentes daquelas que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seus corpos e o etnocídio os mata em seu espírito.

O genocídio e o etnocídio tem em comum uma visão idêntica do Outro: o Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença. O genocida quer pura e simplesmente negar a diferença; exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocídio, por outro lado, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto.

Cena do filme “A Missão” (The Mission), de Roland Joffe, com Jeremy Irons e Robert DeNiro. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, 1987.

Quem são, por outro lado, os praticantes do etnocídio? Em primeiro lugar, aparecem na América do Sul, mas também em muitas outras regiões, os missionários. Propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente. A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a diferença – o paganismo – é inaceitável e deve ser recusada; a seguir, que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de partida, é suposto perfectível, reconhem-lhe os meios de se alçar, por identificação, à perfeição que o cristianismo representa.

O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz outra coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro quanto à política indigenista: “Nossos índios, proclamam os responsáveis, são seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajudá-los a libertar-se da servidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de usufruir de seus benefícios”. A espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo.

Denomina-se etnocentrismo a vocação para avaliar as diferenças pelo padrão da sua própria cultura. O Ocidente seria etnocida porque é etnocentrista, porque se pensa e quer ser a civilização. Surge, no entanto, uma pergunta: nossa cultura detém o monopólio do etnocentrismo? Consideremos o modo pelo qual as sociedades primitivas se denominam a si mesmas. Em geral elas se designam como “os homens, os humanos”. Os Guayaki, por exemplo, chamam a si próprios de aché, isto é, “pessoas”; os esquimós se denominam innuit, ou seja, “homens”; e assim por diante. E, inversamente, cada sociedade designa sistematicamente seus vizinhos com nomes pejorativos, desprezíveis e injuriosos. Toda cultura procede assim a uma partilha da humanidade entre ela própria, os humanos por excelência, e os outros, que só participam secundariamente da humanidade. O etnocentrismo aparece então como a coisa mais bem compartilhada do mundo e, pelo menos neste aspecto, a cultura do Ocidente não se distingue das outras.

Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico. O etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um projeto de redução do outro ao mesmo. O índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro. Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múltiplo em Um.

O critério clássico de distinção entre os selvagens e os civilizados, entre o mundo primitivo e o mundo ocidental, é que o primeiro reúne o conjunto das sociedades sem Estado, o segundo compõe-se de sociedades com Estado. O que significa o Estado? O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença, (…) a vontade de redução da diferença e da alteridade. Toda formação estatal é etnocida.

Os Incas haviam conseguido edificar nos Andes uma máquina de governo que causou a admiração dos espanhóis. O aspecto propriamente etnocida dessa máquina estatal aparece em sua tendência a incaizar as populações recentemente conquistadas: não apenas obrigando-as a pagar tributo aos novos senhores, mas sobretudo forçando-os a celebrar prioritariamente o culto dos conquistadores, o culto do Sol. É verdade também que a pressão exercida pelos Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violência do zelo maníaco com que os espanhóis aniquilariam mais tarde a idolatria indígena.

Onde se situa a diferença que proíbe colocar no mesmo plano ou enfiar no mesmo saco os Estados bárbaros (Incas, Faraós, despotismos orientais etc.) e os Estados ditos civilizados (o mundo ocidental)? Nos Estados ocidentais a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é desenfreada.

O que contém a civilização ocidental, que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É o seu regime de produção econômica, o capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira; é o capitalismo como sistema de produção para o qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo deve ser útil, tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo, de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade.

Eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não-exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio ou o genocídio. No final do século XIX, os índios do pampa argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criação extensiva de ovelhas e vacas, o que fundou a riqueza do capitalismo argentino. No início do século XX, centenas de milhares de índios amazônicos pereceram sob a ação dos exploradores de borracha. Atualmente, em toda a América do Sul, os últimos índios livres sucumbem sob a pressão enorme do crescimento econômico, brasileiro em particular. As estradas transcontinentais, cuja construção se acelera, constituem eixos de colonização dos territórios atravessados: azar dos índios com quem a estrada depara!”

Tradução de Paulo Neves
Prefácio de Bento Prado Jr.
Posfácio de Eduardo Viveiros de Castro

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