A MARÉ VERMELHA QUE NA TV NÃO SE VÊ – “A praça é do povo como o céu é do condor!” – Castro Alves

Brasília, 17 de Abril de 2016

“Ó pátria, desperta… Não curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o Sol do Equador.
Não miras na fímbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor?

Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas… que nódoa te são!
Não manches a folha de tua epopéia
No sangue do escravo, no imundo balcão.”

CASTRO ALVES. Recife. 1865.

ASSISTA O DOCUMENTÁRIO / REPORTAGEM:
“O CÉU E O CONDOR – Brasília em Transe”
(16 e 17 de Abril na capital federal)

Há 20 anos atrás, ocorria o Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 ativistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram assassinados pela Polícia Militar no Pará. É um escárnio grotesco que neste dia, 17 de Abril, que poderia ser devotado à construção coletiva da reforma agrária e do avanço no combate às hediondas desigualdades na distribuição de renda e terra que corrói nosso país, tenhamos visto – a maioria de nós com a bunda sentada no sofá e diante da TV – um complô golpista dos mais sórdidos e infames que já tivemos o desprazer de testemunhar.

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Deputado Chico Alencar (PSOL), um dos mais contundentes críticos da farsa parlamentar presidida por Cunha e a Bancada BBB.

A Câmara dos Deputados, presidida pelo delinquente Eduardo Cunha, perpetrou seu farsesco golpismo oportunista na tentativa de instalar um governo biônico, sem voto e sem legitimidade, atentando em gangue contra o mandato de Dilma Rousseff. Quem se beneficia com isso além do 1% no topo da pirâmide econômica?

O golpe faz a alegria dos capitalistões da Fiesp, gera muita comemoração nos bunkers habitados pela cleptocracia do P.I.G. e pela elite célebre por estrelar os Panama Papers – dentre outros listões da corrupção empresarial-estatal endêmica que nos afunda neste infernal lodaçal do capitalismo desenfreado e da política sequestrada por interesses financeiros.

Do lado de fora do circo armado pela Direitona lá dentro, teve muita garra e muita luta na caudalosa aglomeração de calor humano lá fora. Povo em flow em que pude embarcar como num rio, remando na multidão, com as mãos na câmera e o coração aos pinotes.

Aqui tento desvelar um bocadinho de experiência compartilhável sobre algo que a mídia corporativa “suína”, como era de se esperar, abafou e omitiu, mas que tem plena e intensa relevância: o “povo na rua”, o povo pedindo poder… O povo que o poeta Castro Alves dizia destinado à praça pública, à pólis dos indivíduos sociais interdependentes e solidários: “a praça é do povo como céu é do condor”.

Em 17 de Abril de 2016, os movimentos sociais que no espectro ideológico são classificados à “esquerda”, unidos contra o golpe e em defesa da democracia, mostraram uma impressionante capacidade mobilizatória. Pintaram de vermelho as ruas de Brasília numa belíssima passeata que foi do ginásio Gilson Nelson até a Esplanada dos Ministérios. Participaram do ato movimentos sociais como o MST, a CUT, o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Afetados por Barragens, dentre outros.

Jean Wyllys, Ivan Valente e Chico Alencar, do PSOL, além de Maria do Rosário e Jandira Feghali, do PT, estiveram entre a “turma” de parlamentares mais entusiasticamente aplaudidos pela multidão que, após a passeata, se concentrou diante dos telões para acompanhar a votação do impeachment. Tambores batucados com ímpeto e um mar de bandeiras vermelhas estavam nas ruas enquanto no “circo” do Congresso uma chuva de “Deus, Família e Propriedade” horrorizava as espinhas de quem não esqueceu as cicatrizes de nossa mau-enterrada ditadura.


“Eu estou constrangido de participar dessa farsa, dessa eleição indireta conduzida por um ladrão e apoiada por torturadores. Farsa sexista! Em nome da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem-teto/terra, voto NÃO AO GOLPE! E durmam com essa: CANALHAS!” – Jean Wyllys do PSOL 50

(BÔNUS) “SOBRE O CUSPE AO FASCISTA – Por Jean Wyllys do PSOL 50: Depois de anunciar o meu voto NÃO ao golpe de estado de Cunha, Temer e a oposição de direita, o deputado fascista viúva da ditadura me insultou, gritando “veado”, “queima-rosca”, “boiola” e outras ofensas homofóbicas e tentou agarrar meu braço violentamente na saída. Eu reagi cuspindo no fascista. Não vou negar e nem me envergonhar disso. É o mínimo que merece um deputado que “dedica” seu voto a favor do golpe ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército durante a ditadura militar. Não vou me calar e nem vou permitir que esse canalha fascista, machista, homofóbico e golpista me agrida ou me ameace. Ele cospe diariamente nos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Ele cospe diariamente na democracia. Ele usa a violência física contra seus colegas na Câmara, chamou uma deputada de vagabunda e ameaçou estuprá-la. Ele cospe o tempo todo nos direitos humanos, na liberdade e na dignidade de milhões de pessoas. Eu não saí do armário para o orgulho para ficar quieto ou com medo desse canalha. #‎FascistasNãoPassarão‬. Foto: Oliver / Mídia Ninja. Deu tb n’O Globo.

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Le peuple a sa colère et le volcan sa lave.
(O povo tem sua cólera e o vulcão sua lava.)
VICTOR HUGO

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“O Sol, do espaço Briaréu gigante,
Pra escalar a montanha do infinito,
Banha em sangue as campinas do levante.

O povo é como o sol! Da treva escura
Rompe um dia co’a destra iluminada,
Como o Lázaro, estala a sepultura!…

Oh! temei-vos da turba esfarrapada,
Que salva o berço à geração futura,
Que vinga a campa à geração passada.

Quando nas praças s’eleva
Do povo a sublime voz…
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz…

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor…

Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão…”

CASTRO ALVES.
O Povo ao Poder. Recife, 1865.

Na vanguarda da massa, faixas diziam: “1964 nunca mais, Globo mente!” Povos indígenas protestavam contra os latifundiários e exigiam demarcação de terras. As Mulheres Pela Democracia punham um colorido e aguerrido feminismo para sambar sobre o asfalto.

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Do carro de som, os discursos se sucederam, com destaque para o brado-hit: “NÃO VAI TER GOLPE (JÁ TEM LUTA!)”. Esperta contra o P.I.G., a massa em coro lembrava: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a Ditadura (E AINDA APÓIA!)”. A maré humana, caudalosa e cheia de vida, atravessou a cidade garantindo aos golpistas Temer e Cunha que não pensem que seguirão em frente, sem resistência, com sua usurpação criminosa do poder.

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Não se viu nenhum helicóptero da mídia burguesa cobrindo aquela que foi, talvez, uma das significativas e históricas mobilizações populares ocorridas na capital federal nos últimos anos. Minutos depois, no gramado da Esplanada, cartazes em punho, com tinta vermelha, direcionados ao helicóptero policial que nos sobrevoava, manifestantes mandavam alfinetada óbvia: “A PM não sabe contar!”

Isso porque, para escárnio geral, a PM divulgou nota estimando o público em 8 mil pessoas, enquanto de cima do trio elétrico o mar-de-gente era tamanho que o início da marcha perdia-se de vista no horizonte e fazia pintarem números de estimativa da marcha que oscilava entre 50 e 100 mil participantes.

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Lá dentro do bunker do Parlamento, a classe política revelava o grau de sua sordidez e hipocrisia com um torrencial mantra ideológico, “família” e “religião” como carros-chefe, disfarçando o fato de que as bases jurídicas do processo são absurdamente injustas, Dilma Rousseff vivendo na pele o Josef K. do romance Kafkiano. Como pode estes ilustres engravatados, altivos senhores, louvarem a Deus na mesma frase que tem por efeito lançar uma condenação sobre um governante por crime de responsabilidade que nunca houve? O tema da responsabilidade não se discutia, quase; a punição aos responsáveis pela corrupção era, no discurso de muitos vociferantes defensores do “impeachment já”, uma performance teatral, cortina de fumaça para os corruptos de sempre poderem encher a pança de pizza em Miami assim que Temer-Cunha estiverem nos controles.

Caso o Senado aprove a deposição de Dilma, caso os movimentos sociais discordem radicalmente desta “medida institucional”, então teremos enfim constituído um cenário explosivo, incendiário. Serão inevitáveis os clashes entre uma frente de esquerda – Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular, MST, CUT, MTST, CTB, Levante Popular da Juventude, movimentos estudantis e sindicais, ativismos LGBT e críticas-práticas do feminismo militante etc. – que irá à luta, chocando-se contra as forças de repressão do “novo governo” e suas massas-de-manobra. Nesta hipótese, quanto sangue e quanta turbulência vão decorrer deste “assalto ao poder” da velhas dinossáuricas elites da cleptocracia tupiniquim?

Fico a imaginar as Olimpíadas do Rio, num eventual governo Temer – Cunha, caso estes usem as tropas estatais de repressão, comandando com “punho de ferro” na defesa do “novo governo”. Talvez muitos então repensem então o ceticismo com que encaram a denominação golpe de Estado (coup d’État) para explicar o que ocorre na crise política brasileira desta 2016.

O que se chama de “golpe” é um cancelamento da vontade de 54 milhões de eleitores, que se expressaram nas urnas de uma pátria que às vezes tenta se orgulhar de seguir o preceito republicano, consagrado em nossa constituição, de que “todo o poder emana do povo”. Golpe é rasgar isso, cuspir sobre isso, anular as urnas por meio de complôs de cúpula. Golpismo é usurpar o poder do representante eleito por sufrágio universal através de falsas acusações, processos caluniosos, linchamentos midiáticos, complôs de elites insaciáveis, nacionais ou gringas, dos magnatas da mídia e da construção civil aos interesses petrolíferos transnacionais…

Se Dilma for “chutada” do poder por causa de “pedaladas fiscais” que o próprio Temer assinou,  o governo já nasce podre por dentro, carcomido em sua legitimidade, com popularidade beirando o zero (vá lá: Temer seria o presidente biônico do 1% mais rico desta pátria ó tão desigual). Como viu Safatle, “não existirá governo Temer”, pois ele já nasceria natimorto, altamente contestado, sob uma enxurrada de greves e ocupações, com a perspectiva de resistência coletiva organizada envolvendo milhões de pessoas e ativistas país afora…

Este post serve também como um tiragosto do documentário curta-metragem independente que vocês podem conferir abaixo:

ASSISTA O DOCUMENTÁRIO / REPORTAGEM:
“O CÉU E O CONDOR – Brasília em Transe”
(16 e 17 de Abril na capital federal)

LINK PARA O ÁLBUM: http://bit.ly/1Sh59fA
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Fotos por Eduardo Carli de Moraes

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LEITURAS SUGERIDAS NA IMPRENSA:
O que disseram os jornais europeus sobre a votação do impeachment na Câmara

BRASIL DE FATO – Cientistas políticos criticaram a argumentação de deputados na sessão do plenário da Câmara que votou a admissibilidade do processo deimpeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os parlamentares dedicaram os votos às suas famílias, a Deus, aos evangélicos, aos cristãos, aos prefeitos de suas cidades e correligionários. A sessão foi marcada pela presença de cartazes, bandeiras, hino e gritos de guerra.

Com 367 votos a favor (mais de dois terços dos 513 deputados), 137 contra, sete abstenções e duas ausências, o parecer pela instauração do processo de impeachment foi aprovado nesse domingo (17) na Câmara dos Deputados. Agora cabe ao Senado decidir se processa e julga a presidenta.

“Acho estarrecedor, em um país republicano, que tem princípios de laicidade do Estado, levantar argumentos religiosos e a família. Pouquíssimos levantaram os motivos reais que são julgados no processo. É entristecedor ver a qualidade de argumentos, todos arregimentados para seu entorno, em questões de seu interesse”, disse a professora do Departamento de Ciência Política e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos. (LEIA NA ÍNTEGRA)

Na imprensa gringa, sugiro A Coup Is In The Air, do The Wire.In, e os trabalhos de Glenn Greenwald.

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Trechos do “Diário Pessoal-Mas-Nem-Tanto de Viagens”

Eduardo Carli de Moraes

Rumei para Brasília com a sensação de ir a um face-a-face com a história. Não a que ficou nos livros, mas a que um dia neles estará. Fui com Sérgio Sampaio nos tímpanos, pra “ver o que há” pros lados do Paranoá. A Gi diz que nunca me viu tão politizado (e atribui isso também à má influência dela…), e é verdade: os afetos políticos têm me dominado. Não me sinto capaz de isenção ou indiferença diante do que venho chamando de “intentona golpista”. Nunca vi este país tão intensamente polarizado, algo que o muro recém-edificado na Esplanada mostra bem. Sociedade cindida. As torcidas trocam insultos e sopapos: “coxinhas!” “petralhas!”

Tenho alguma ilusão de poder influir no resultado deste jogo? Eu em toda a minha insignificância individual e pequenez cósmica? Não… serei um anônimo na massa – e sei de que lado da barricada irei estar. Este impeachment é uma farsa golpista capitaneada por delinquentes engravatados. Cunha presidir é um escárnio. Uma vergonha pior que o 7 a 1 da Copa – a que quase não teve. A impunidade dos tubarões é grotesca. E boatos fortíssimos são audíveis que dizem claramente: o intento é fazer a corrupção, no Brasil, novamente acabar em pizza, com impunidade para golpistas e perdão geral a todos os assaltantes dos cofres públicos. Angeli foi brilhante em seu cartum: é um golpe de dinossauros pra instaurar um retrocesso jurássico…

Angeli

Contra o mito insustentável da História como progresso, cada vez mais aparece-me como evidente e concreto que História é capaz de retrocesso, que há em todo presente, em potência, catástrofe (mas também maravilha). Como julgar avanços e recuos? É uma questão ética, e por isso não é possível separar ética e política, sob o risco de cairmos numa política da barbárie, que somente continua a guerra por outros meios, ao invés de ser esforço coletivo de instauração de convivência ética e civilizada. A polêmica sobre o progresso e o atraso, porém, não pode ser ignorada: o que é retrocesso pra uns é avanço pra outros e a “vitória” da Fiesp é a derrota dos direitos trabalhistas – e vice-versa.

Acabou o ganha-ganha do lulismo. A luta de classes se exacerba. Não engulo o papo niilista de que os partidos se equivalem em sua idêntica escrotidão. Isso é um atentado às nuances e complexidades do real. “Tomar partido” não implica necessariamente sectarismo e unilateralidade: pode-se ser do partido que não é particularista, que defende o bem comum e a solidariedade social.

O interesse pela política tem a ver com ânsia de participação, de união, de estar com outros no esforço conjunto. Política é remédio pra solidão, antídoto ao isolamento, negação do solipsismo, superação da indiferença pelo coletivo, sociabilidade ética em ação. Ainda assim, sinto-me bem só. Desfiliado. Não estou enquadrado num partido ou movimento específico. Ainda aprendo os modos de funcionamento da pólis. Nem mesmo sou exatamente “nacionalista”. Os problemas pátrios às vezes me enojam e me dão vergonha do Brasil e seus males. Não junto minha voz ao coro do “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Ao assistir a votação do impeachment, meu sentimento era o avesso do patriotismo: sou brasileiro, com muito asco, com muito horror…

Tento agir como midiativista independente, com autonomia de olhar, mas nunca a-partidário e indiferentista. Sei que meu impacto é pequeno. Não é nulo, porém. Prefiro fazer o pouco que posso a não fazer nada. Alice Walker: “o modo mais comum das pessoas renunciarem ao poder é acreditarem que não tem nenhum.”

AliceWalker

Sei que poderio midiático tem muito a ver com grana – meios de difusão de mensagens. Sou uma formiguinha, minúsculo diante dos elefantes corporativos, só um carinha com um blog, sem hype nem anunciantes. Mais um do monte que tem página no Facebook e esforça-se para ter seguidores como micro-investidor. Em contraste com a grande mídia, sou quase ninguém. Uma alternativa disponível entre milhares de outras. Não dá nem mesmo pra ter a imodéstia de dizer que sou um “formador de opinião” – isso é pra quem escreve e é lido por milhares de leitores, seja qual for o espector ideológico (de esquerda, como Eliane Brum ou Sakamoto, de direita, como Reinaldo Azevedo ou Diogo Mainardi).

Ambiciono me tornar voz midiática de alguma importância? É minha “vontade de poder”? Talvez. Gostaria de influir mais, repercutir, ter voz mais ressoante. É deprimente o isolamento e me recuso ao cruzar-de-braços indiferentista. São esmolas para a auto-estima as curtidas no Facebook? Os acessos ao site me convencem de que não sou socialmente invisível? O que sei é que estou tendendo ao abuso de internet, pelo tempo excessivo que passo na postação e zapeando no feed, querendo ser uma “força da net”, querendo ver os posts “viralizar”… Que “festa” aos 1.000 compartilhamentos! Há essa possibilidade de que algo torne-se uma “bomba” informativa que se replica… Há a possibilidade imediata de contra-informar, de contestar algo que a mídia de massas está dizendo nos telepúlpitos da burguesia, dos antros do golpismo elitista.

Ainda que pequeno e quase inofensivo, há a chance deste micropoder servir como contra-poder, contra-cultura, que tece um fio numa teia de resistência e solidariedade. Isso é o que me anima na net, tecer teias de contatos, inaugurar algo – tipo um meme – que possa se espalhar e ser hit na web, no sentido de impactar de algum modo a opinião pública, ou pelo menos chaqualhar a indiferença letárgica dos silentes.

É vontade de aventura – aquilo que era tão quintessencial ao Che e à Rosa, ao Joseph Conrad e à Castro Alves, um ímpeto irrefreável de liberdade exploratória! É vontade de excitação vital, de colaboração (co-laborare, ou “trampemos juntos”!). É vontade, vivida existencialmente, de política, ou seja, política ontologicamente baseada nesta ânsia de ter não só vida pessoal mas também destino coletivo. Ter um coração que bata de indignação diante de qualquer sofrimento injusto sobre a face da Terra, como exortava o médico-guerrilheiro Ernesto Guevara…

Sofri por muito tempo por déficit de pertença – adolescente sem turma e sem muito lar que acontecia de passar muito temo sendo músico sem banda, jornalista sem revista, ativista sem movimento social, um tanto desajustado aos moldes caretas do mercado de trabalho, de tendências psíquicas subversivas e transviadas… Vou na política como se fosse – e é – vivência, existencialmente experenciada, de nossa pertença a um real comum, compartilhado, nosso commons. Constituído em seu cerne de uma teia de interdependêcia – “the web of life”…

Vou na viagem política na busca de aprender mais sobre  poder – aquele das cúpulas, aquele das bases; o poderio tirânico e teocentrado, o poderio contragolpista que desfere um levante de resistência “de baixo pra cima”… Interessam-me estes levantes da base contra o topo das pirâmides sociais historicamente constituídas. Recém-nascido neste mundo de tão complexos e desnorteantes legados históricos – da escravidão ao genocídio dos nativos – em meio aos quais o sentimento que poderia inundar e tomar conta, totalmente, o “fatalismo”. Nada fazer por nada poder. Niilismo. Nietzsche conclama a ir além dele, escapar ao niilismo fatalista de quem cruza os braços e recusa-se a agir.

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“Triste dia para ser ateu. Por dois motivos: 1) escutar tanto canalha falando de Deus no parlamento. 2) Não acreditar que há um inferno para todos eles passarem a eternidade.” Bruno Torturra. 17/04/2016. Ilustração: Carlos Latuff.

Neste vórtex vou explorando o poder – o meu, sei que é pouco, limitadíssimo, mas também que é dinâmico, expansível ou redutível. Uma potência passível de incremento e redução, como o sistema ético de Spinoza ilustra através de suas elucidações dos afetos humanos como conatus que sobe ou desce na escala da vitalidade. Meu “Paulo Freireanismo”, recém-adquirido, sugere-me que teias de alteridade dialogante podem galvanizar a eletrificação e revitalização de nossas vontades colaborantes, na re-elaboração perene de nossos fins coletivos (utopias) e rumos partilhados, no parto sempre difícil de nosso porvir possível, cheio da potencialidade de florescimento dos inéditos viáveis, dos nunca-dantes-visto.

Encontro em Marx um espírito livre o bastante para nunca dogmatizar, nunca pregar uma verdade indiscutível, mas sim praticar um método de crítica permanente e de perene predisposição à re-consideração. Contra a farsa idealista dos conceitos eternos e imutáveis, que empesteam a filosofia desde Pitágoras e Platão, Marx – nisso bem semelhante a Nietzsche… – denunciou como lorotas, pseudo-conceitos, muito do quê pregavam, de suas cátedras, os idealistas. Para Marx não há conceito que não seja historicamente determinado, como explica Engels no prefácio ao Capital:

“Nos escritos de Marx as coisas e suas influências recíprocas são concebidas não como fixas, mas como variáveis, os próprios conceitos também estão sujeitos a variações e mudanças. Nessas condições, não estarão contidos em uma definição, mas desenvolvidos conforme o processo histórico de sua formação.” – F. ENGELS

Marx foi sempre um destruidor de correntes, inclusive as que “prendem nos grilhões de definições rígidas”, como escreve Daniel Bensaïd neste livro que tem sido bom-companheiro-de-viagem, Marx – Manual de Instruções (autor também do magistral “MARX, O INTEMPESTIVO”). Mano Daniel Ben revela Marx como um “Prometeu” filosófico que quebra seus cárceres psíquicos e ideológicos, que exorta-nos a libertar-nos sem medo. A classe trabalhadora não teria nada a perder senão seus grilhões… e transformação não era só possível, era necessária. Um pensador-de-práxis, que espanta os abutres do obscurantismo e da inação niilista, através da exposição translúcida dos antagonismos da  realidade social, do conflito de poderes em disputa, que Marx revela sempre como sendo (Paulo Freire: não sou, estou sendo), tal como nossas vidas-em-teia constituída por uma natureza histórico-fluida, dinâmica, dialética, eflúvio de vida que flui, tudo sempre revolucionável. Permanentemente revolucionável. Revolucionável por natureza.

E.C.M. / Brasília e Goiânia, 17 e 18 de Abril de 2014

POST FACTUMMarx

“A fé no todo-poderoso mercado foi mortalmente abalada. Quando se deixa de acreditar no inacreditável, agrega-se à luta social uma crise de legitimidade ideológica e moral, que acaba por atingir a ordem política: ‘Um estado político em que alguns indivíduos ganham milhões enquanto outros morrem de fome poderá subsistir se a religião não estiver mais lá, com suas esperanças fora deste mundo, para explicar o sacrifício?’, perguntava Chateaubriand às vésperas das revoluções de 1848. Ele mesmo respondeu profeticamente: ‘Tente persuadir o pobre quando ele souber ler e não tiver mais crença, quando ele possuir a mesma instrução que você, tente persuadi-lo de que deve se submeter a todas as privações enquanto seu vizinho possui mil vezes o supérfluo…’ 

Sob a luz ofuscante da crise, milhões de oprimidos terão de aprender a ler.”

DANIEL BENSAID – MARX: MANUAL DE INSTRUÇÕES (Pg. 138). Editora Boitempo, 2013, trad. Nair Fonseca. 

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO – “Além da Metafísica e do Niilismo: a Cosmovisão Trágica de Nietzsche” [Eduardo Carli de Moraes, UFG, 2013]

Resumo
Ficha2
Além da Metafísica e do Niilismo:
a Cosmovisão Trágica de Friedrich Nietzsche (1844-1900)

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PREFÁCIO DO AUTOR

Nietzsche: eis um pensador que – nas palavras de um de seus comentadores, Gianni Vattimo – “é decisivo para o nosso presente e ainda repleto de futuro.”

 Uma das frases mais célebres de Nietzsche está em Ecce Homo: “Eu não sou um homem, eu sou dinamite” [1]. Já o sub-título de Crepúsculo dos Ídolos traz outra imagem de impacto: “Como filosofar com o martelo”. Estes dois retratos que Nietzsche pinta de si mesmo mostram que o filósofo sabe do potencial explosivo de suas críticas e demolições. Mas não nos esqueçamos que a dinamite não serve apenas para destruir e arruinar, mas também para abrir terreno para novas construções [2]. E também que um martelo, nas mãos de um escultor, serve para transformar um bloco de pedra em uma obra-de-arte, e que um médico, por sua vez, utiliza o martelo como instrumento para um diagnóstico clínico.

Na minha investigação, procurei compreender a filosofia nietzschiana como um empreendimento em que as facetas crítica e a criativa são indissociáveis, em que o destruidor e o criador estão reunidos. Uma máxima de A Gaia Ciência expressa isso muito bem: “Somente enquanto criadores temos o direito de destruir!” [3] Não considero, portanto, que o pensamento de Nietzsche seja motivado por um ímpeto apenas iconoclasta, polêmico e aniquilador. Mas sim que procura contribuir para libertar-nos do jugo de morais autoritárias, valores anti-naturais, superstições daninhas, dogmas inquestionados etc. A sabedoria nietzschiana nos convida à afirmação e à celebração da existência, em prol do desabrochar de potencialidades ainda não efetivadas, em favor de uma vitalidade ascendente e transbordante.

Neste trabalho, procurei mostrar que Nietzsche realiza não apenas uma crítica devastadora dos sistemas filosóficos metafísicos, das religiões instituídas e dos valores morais sacrossantos. Mas que há também um esforço, por parte do filósofo, em compartilhar uma sabedoria cujas características procurei explorar e que inclui uma revalorização do corpo, da sensorialidade, do devir, da multiplicidade, da alteridade, da pluralidade de perspectivas etc.

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“Se Deus não existisse, tudo seria permitido.” – Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski (1821-1881)

Apesar de muitas vezes referir-se a si mesmo como um “imoralista”, isto não significa, como procurei argumentar, que Nietzsche faça apologia de um vale-tudo moral, onde é abolida toda e qualquer responsabilidade e dever. Seria  simplista e falsificador atribuir a Nietzsche a célebre idéia do personagem de Dostoiévski, Ivan Karamázov, que sustenta que “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Procurei mostrar que a morte de Deus, em Nietzsche, é vista como acontecimento potencialmente libertador, como ocasião para a emergência de novos valores e estilos-de-vida.

“As consequências mais próximas [da morte de Deus], suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora… De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’…” (A Gaia Ciência, 343)

Procurei destacar a ruptura que Nietzsche realiza com uma das correntes hegemônicas da filosofia ocidental, o platonismo, em especial a cisão do real em dois “mundos” (o Sensível e o Inteligível), o que Nietzsche considera uma “fábula”. A ideia de um mundo metafísico, sobrenatural, suposta morada do absoluto e do imutável, seria, segundo o pensamento nietzschiano, um dos mais duradouros equívocos da história da filosofia. Procurei argumentar que, em Nietzsche, todos os conceitos abstratos da razão, forjados a partir da experiência empírica, permanecem tendo uma existência derivada, como produção de cérebros humanos necessariamente vinculados a corpos animados pela vontade. Procuramos elucidar, portanto, o quanto a filosofia de Nietzsche procura refletir sobre a base fisiológica e psico-somática de onde emergem os conceitos abstratos, os valores morais, as doutrinas religiosas etc. Trata-se, como indica Patrick Wotling, de “denunciar as interpretações falíveis que desde Platão triunfam na tradição filosófica, interpretações idealistas, que esquecem seu estatuto e sua fonte produtora, o corpo.” [4]

Procurei elucidar que Nietzsche se mostra contrário a todas as moralidades baseadas no ideal ascético, ou seja, que negam valor ao corpo, ao desejo, às paixões, ao tempo, à esfera dita “mundana”. A ascese, isto é, o esforço auto-mortificante de purificação, baseia-se em geral na crença em uma alma imortal, que supõe-se destinada a um destino glorioso no além-túmulo. Nietzsche diagnostica neste ideal ascético uma hostilidade contra a vida, uma “calúnia” contra a realidade terrena, um anátema lançado contra o corpo e seus instintos, uma incapacidade de afirmação da existência em sua real finitude e em seus incontornáveis tormentos. Como diz Oswaldo Giacóia, o ideal ascético, como se manifesta por exemplo no platonismo e no cristianismo, “leva a efeito um movimento de completa desvalorização da imanência em proveito da transcendência. (…) Representa, assim, a desvalorização absoluta do ‘mundo’ e da ‘vida’ em proveito de uma vida imaginária, de um ‘além-do-mundo’.”[5]

O esforço de crítica da moral que Nietzsche empreende, portanto, tem como intenção possibilitar uma libertação das energias vitais que foram sufocadas, reprimidas e culpabilizadas por doutrinas morais ascéticas que oprimem os corpos, condenam os prazeres e pregam a hipertrofia de uma razão tirânica contra as paixões. Como diz Tongeren, “mediante uma crítica à moral, Nietzsche pretende abandonar intencionalmente o caminho aplainado e descobrir a abertura para aquilo que é possível para além desse horizonte, a abertura para ‘muitas auroras que ainda não brilharam’.” [6]

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nietzsche (2)
Em meu trabalho destaco também que Nietzsche confere muita importância ao senso histórico, isto é, a um pensamento filosófico sempre atento ao ininterrupto fluir do tempo. Nietzsche forjou seu método genealógico no intento de compreender como vieram-a-ser as instituições, legislações, valores morais, costumes e crenças com que hoje nos deparamos. Compreender a origem histórica dos valores morais e relacionar seu surgimento a conflitos sociais de classe e jogos de dominação equivale a mostrar quão infundada e ilegítima é a pretensão das morais e das religiões de possuírem uma verdade eterna de fonte divina. Em Humano, Demasiado Humano, por exemplo, Nietzsche critica um defeito de muitos filósofos, que:

“Involuntariamente imaginam o homem como uma verdade eterna, como uma constante em todo o redemoinho, uma medida segura das coisas. Muitos chegam a tomar a configuração mais recente do homem, tal como surgiu sob a pressão de certas religiões e de certos eventos políticos, como a forma fixa de que se deve partir. Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser…  Tudo veio a ser, não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia.” [7]

heraclito

“Tudo flui. Não se entra duas vezes no mesmo rio.” – Heráclito de Éfeso (535 a.C. – 475 a.C.)

Quis mostrar que a filosofia de Nietzsche combate, portanto, a idéia de que existem valores morais, sistemas filosóficos ou doutrinas religiosas de validade eterna, verdade absoluta ou universalidade legítima. A própria Humanidade é concebida como um fenômeno histórico, re-inserida na Natureza que lhe deu origem, de modo que Nietzsche rompe também com a noção criacionista de uma origem sobrenatural para o homem. Por estar “embarcado” na correnteza da história, e por ser uma espécie animal dentre milhões de outras que co-existem no seio da Natureza em fluxo, o homem é inescapavelmente um ser mutante, que integra um cosmos eternamente movediço. Quer aceite este seu destino, quer lute contra ele, cada um de nós, para usar a expressão da canção de Raul Seixas, é uma “metamorfose ambulante”. Procuro compreender o pensamento de Nietzsche, portanto, como fiel ao preceito do filósofo grego Heráclito, que sustentava que “tudo flui” e que “é impossível entrar duas vezes no mesmo rio”.

Considero ainda que Nietzsche jamais sugeriu “fazer tábula rasa do passado”, nunca elogiou o esquecimento da História ou o aniquilamento de seus legados, mas sim uma relação dinâmica e fecunda com o passado: como escreve Karl Jaspers, “em nenhuma parte Nietzsche estima o ato de esquecer o que foi transmitido pela história e recomeçar a partir do nada… Toda sua obra é penetrada por seu intercâmbio com a grandeza do passado, mesmo daquele que ele rejeitou.”[8]

Prova desta relação frutífera com o passado é o modo como Nietzsche reativa a potência do mundo grego pré-socrático, como por exemplo os ritos dionisíacos e a obra dos poetas trágicos (em especial Ésquilo e Sófloces). Nietzsche formulou assim uma sabedoria, que encarna em seu Zaratustra ou nos espíritos livres, cujas características procuramos explorar nessa pesquisa: trata-se de um sujeito afirmador de sua vontade e de seu corpo, criativo e questionador, capaz de superar todo ressentimento através do amor fati, que jamais se acomoda em seu estado atual e procura sempre superar-se, e que age no mundo mais como sátiro do que como santo, mais como dançarino do que como estátua. Em A Gaia Ciência, por exemplo, Nietzsche pinta o retrato do espírito livre, que seria dotado de “uma alegria e uma força de soberania  (…) em que o espírito recusaria toda fé, todo desejo de certeza, tendo prática em manter-se sobre as cordas leves de todas as possibilidades e até mesmo em dançar à beira do abismo. Esse seria o espírito livre por excelência.” [9]

Para Nietzsche, as convicções e os dogmas são inimigos do filósofo e prejudicam-nos em nossa aventura de conhecimento. Quem quer de fato tornar-se amigo da sabedoria tem de ousar libertar-se de certezas apaziguadoras, crenças reconfortantes e tomadas-de-partido inquestionadas. Como diz em Aurora: “A serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo ocorre com os espíritos que se impedem de mudar de opinião; cessam de ser espíritos.” [10] O filósofo autêntico, de acordo com Nietzsche, é uma figura em que se encarna um certo ímpeto heroico de busca pelo saber. Relembremos as palavras de Aurora:

“Nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão. (…) A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós (…) que o conhecimento transformou-se em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão sua própria extinção…” [11]

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

A filosofia, afinal, não é uma busca interesseira por ideias apaziguadoras ou convicções agradáveis, nem por um cômodo repouso no colo de verdades imutáveis, mas um heróico navegar, em mares perigosos, em busca de um saber sobre o real que nada garante que terá um sabor doce ou que vá nos tornar felizes. O filósofo autêntico, para Nietzsche, segundo nossa interpretação, é aquele que ousa ir à conquista de um saber, ainda que este possa ter um gosto amargo e ainda que acarrete consequências trágicas; é aquele que, como diz Karl Jaspers, tem a coragem de entrar no labirinto, como fez Teseu, mesmo sabendo que terá que defrontar-se com o Senhor Minotauro. [12]

Consideramos que o efeito do convívio com a obra Nietzsche é a de um tônico para a vontade-de-viver. Eis uma filosofia, enfim, onde há muita sabedoria a assimilar, em especial por aqueles que, como diz Giacóia, “não temem fazer dos abismos do sofrimento uma fonte inestimável de conhecimento.” [13]

Em suma: procuramos mostrar o pensamento de Nietzsche como superação tanto da metafísica quanto do niilismo, culminando numa cosmovisão trágica que, longe de ser pessimista, significa uma celebração dionisíaca da existência como ela é, sem exclusão de seus aspectos mais dolorosos e problemáticos. Arqui-inimigo da apatia da vontade, do niilismo desalentador, do ascetismo auto-mortificante, Nietzsche, através de sua obra, canta um hino à vida que inclui um louvor à alegria, aquele afeto que, segundo Spinoza, aumenta nossa potência de existir. Como diz Zaratustra: “Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original!” [14] Já em Humano, Demasiado Humano, Nietzsche escreve: “Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” [15]

Para concluir este prelúdio, cito mais uma instigante idéia de Nietzsche, que me parece um belo emblema de sua “fidelidade à Terra”, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos: “Não há no mundo amor e bondade suficientes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” [16]

Eduardo Carli de Moraes,
Goiânia – 08/11/2013
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REFERÊNCIAS:


[1] NIETZSCHE, Ecce Homo. Por Que Sou um Destino, §01.

[2] É o que aponta Martha Nussbaum: “Indeed, this was the whole purpose of genealogy as Nietzsche, Foucault’s precursor here, introduced it: to destroy idols once deemed necessary, and to clear the way for new possibilities of creation.” Citada por Brobjer, Nietzsche’s Ethics of Character, Pg. 49.

[3] NIETZSCHE. A Gaia Ciência, §58.

[4] Ibid. Pg. 155.

[5] GIACOIA, O. Labirintos da Alma: Nietzsche e a Auto-Supressão da Moral. Pg. 13-38.

[6] TONGEREN, P.V. A Moral da Crítica de Nietzsche à moral. Pg. 43-44.

[7] NIETZSCHE. Humano, Demasiado Humano. Capítulo 1, §2.

[8] JASPERS. Nietzsche: Introduction à sa Philosophie. Pg. 445.

[9] NIETZSCHE. A Gaia Ciência. §347.

[10] NIETZSCHE. Aurora.  §573.

[11] Ibid, §429.

[12] JASPERS. Op Cit. Pg. 231.

[13] GIACOIA. O Humano Como Memória e Como Promessa. Pg. 183.

[14] NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Op cit. Livro II, Dos Compassivos. Pg. 84.

[15] NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano, §589.

[16] Humano, Demasiado Humano, § 129. Citado a partir de Lou Andreas-Salomé, op cit, Pg. 139: “Il n’y a pas assez d’amour et de bonté dans le monde pour avoir licence d’en rien prodiguer à des êtres imaginaires.”

Souvenir da banca na companhia de Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

Um souvenir fotográfico da banca – com Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

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P.S. – nos próximos meses, tentarei desmembrar este mestrado em 3 ou 4 artigos, a serem publicados em revistas de filosofia, se possível, ou aqui no blog mesmo, pra “socializar” a pesquisa e “pôr na roda” o conhecimento. Em breve!

Siga viagem…

“Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira…” (Nietzsche)

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“Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”, “além” são conceitos para os quais nunca dediquei atenção, nem mesmo tempo, inclusive quando era criança – talvez eu jamais tenha sido criança o suficiente para tanto… Estou longe de conhecer o ateísmo na condição de resultado, menos ainda como acontecimento: em mim ele é compreensível na qualidade de instinto. Eu sou demasiado curioso, questionador e animado para poder aceitar uma resposta esbofeteada. Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira, uma indelicadeza contra nós, os pensadores – no fundo apenas uma proibição esbofeteada e grosseira contra nós: “vós não deveis pensar!”

NIETZSCHE (1844-1900)
“Ecce Homo”
Ed. L&PM
Pgs. 45-46

As saturnálias joviais de “A Gaia Ciência”


NIETZSCHE 

A Gaia Ciência

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Este é talvez o livro mais triunfalista e exultante de Nietzsche, mais cheio de uma saúde anunciada com trombetas e rodopios de dança! É talvez o mais solar, o mais primaveril, o mais “leve” dos livros nietzschianos. “Escrito na língua de um vento de degelo”, A Gaia Ciência representa, segundo o próprio Nietzsche, uma “vitória sobre o inverno”. Não se trata somente do inverno da doença, mas de outros invernos “da alma”: o pessimismo, o romantismo, o niilismo… “Tudo superado!” – eis o grito de júbilo que sai destas páginas!

Nietzsche, em A Gaia Ciência, canta como um pássaro que se ergue de uma queda, sentindo o retorno das forças às asas, celebrando uma felicidade alcançada depois de uma longa provação: “nossa beatitude se assemelha à do náufrago que alcança a costa e que põe seus pés na velha terra firme – espantado de não senti-la vacilar” (#46). Depois de longas peregrinações solitárias, em que o único diálogo era entre o viajante e sua sombra, entre o poeta-pensador e a colméia tumultuada de seus pensamentos e vivências, Nietzsche enfim sente-se tão transbordante de vida que quer enunciar ao mundo sua felicidade e descrever os contornos de sua “gaia ciência”. É uma obra que “transborda de gratidão, como se a coisa mais inesperada se tivesse realizado: é a gratidão de um convalescente – pois essa coisa mais inesperada foi a cura.

Ora, quem conhece como foi a vida de Nietzsche sabe que esta criatura amaldiçoada pela impiedade da fortuna viveu adoentada. Atormentado por dores de cabeça pavorosas, parcialmente cego, isolado socialmente e “nômade” por causa da enfermidade (viveu na Suíça, na Itália, ao sabor de suas melhoras e recaídas…), Nietzsche foi um homem que pensou, escreveu, criou… em meio aos turbilhões infindos do sofrer. Após o colapso nervoso em Turim, em 1889, caiu na demência e sua última década de vida foi praticamente a de um “vegetal”: parou de produzir e ficou de cama, aos cuidados da irmã, até a morte em 1900, 11 anos depois de sua última obra. Nós, que já conhecemos o “fim da história” desta vida, talvez achemos um tanto estranho que Nietzsche se gabe de sua saúde e cante as “saturnálias” joviais que enchem estas páginas de A Gaia Ciência, saturadas da “esperança de sarar” e a “embriaguez da cura”… (p. 15)

É que os homens, quando escrevem, por mais proféticos que tentem ser, por mais que ponham sua fantasia a serviço da imaginação de um futuro plausível, nunca sabem realmente que surpresas e desgostos o futuro trará. Todos nós podemos ter certeza de que o futuro, seja como vier, será surpreendente e surpassará todas as nossas expectativas. Nietzsche, em A Gaia Ciência, dá a impressão de realmente ter atingido uma sanidade que derrama-se pelas páginas que escreve. É que não sabe que, no futuro, a terra vai voltar a vacilar, que certezas adquiridas nunca são tão fixas que ventos não possam vir desenraizar e que a saúde não é algo que se possa possuir indefinidamente…

“Este livro inteiro nada mais é que uma festa depois das privações e das fraquezas, é o júbilo das forças renascentes, a nova fé no amanhã e no depois de amanhã” – celebra Nietzsche. E estas “privações” e “fraquezas” a que Nietzsche se refere são abissais “fundos-de-poço” que ele pensa ter superado e que pretende ensinar-nos como superarmos: “deserto de esgotamento, de ausência de fé, de congelamento em plena juventude, essa senilidade que se introduziu onde não devia, essa tirania da dor, esse isolamento radical…” (16).

Contra todos estes males o espírito nietzschiano se insurge! Sua obra manifesta um intenso desejo de sarar, de superar sua doença, de vencer a força que puxa para baixo, de não ceder à decadência, de não se tornar impotente e ressentido… Em A Gaia Ciência, podemos vislumbrar algumas das espantosas paisagens emocionais e intelectuais deste homem que viveu boa parte da vida doente, mas cuja vontade e intelecto estavam intensamente votados à tarefa de conquista da “grande saúde”.

Por ter muito aprendido com o sofrimento, por ter dado a luz a tantas de suas ideias em meio a dores de parto excruciantes, Nietzsche não poderia ser um pensador para os “acomodados”, os fanáticos por “conforto”, aqueles que desejam manter a dor à distância de qualquer jeito. Segundo Nietzsche, a dor ensina-nos lições fundamentais que não poderíamos aprender se dela não cessássemos de fugir. A sabedoria de Nietzsche nasce de uma longa convivência – fecunda e frutífera! – com o sofrimento da doença, com a depressividade do pensamento, com tudo o que puxa para baixo e quer nos prostrar e nos reduzir à impotência dos fracos. Abismos de dor e de doença serviram para que Nietzsche se erguesse até os mil achados poéticos e críticas certeiras e passos-de-dança que constitui A Gaia Ciência!

“Retorna-se renascido de semelhantes abismos, de semelhantes doenças graves… retorna-se como se se tivesse trocado de pele… com um gosto mais sutil para a alegria, com uma língua mais sensível para todas as coisas boas, com o espírito mais alegre, com uma segunda inocência, mais perigosa, na alegria… retorna-se mais criança e, ao mesmo tempo, cem vezes mais refinado do que nunca se havia sido antes” (21).

Surge daí uma “visão de mundo” extremamente afirmadora, no sentido de que consiste no esforço consciente da vontade em dizer-sim à realidade, a tudo que se passa, a tudo que o tempo possa trazer, em aceitação jubilosa do existir, incluindo aí os sofrimentos, partes integrantes necessárias do viver. Nietzsche, no fundo, diz-nos algo de bem simples: não saia correndo do sofrimento como se ele fosse o mal encarnado, a coisa mais horrenda deste mundo, o mais demoníaco satanás . O sofrimento pode ensinar. Pode “aprofundar” nossa percepção. Pode mudar nossa “tábua de valores”. Podemos viver certas experiências sofridas que serão absolutamente cruciais para que nos tornemos capazes de alguma genuína felicidade! Em outras palavras: quem acha que vai ser feliz sem antes ter sofrido um bom bocado… este se ilude, se auto-inebria com uma quimera romântica, se engana no sonho de uma “felicidade perfeita” que só existe nos contos-de-fada.

“E se o prazer e o desprazer estivessem de tal modo solidários um com o outro que aquele que quer saborear ao máximo de um deve saborear ao máximo do outro – que aquele que quer chegar até a “felicidade do céu” deve também se preparar para ser “triste até a morte”? (#12)

O que Nietzsche procura realizar é uma completa “transmutação” no valor conferido ao sofrimento. Nietzsche quer que paremos de considerar o sofrimento como o inimigo e que comecemos a acolhê-lo com mais hospitalidade, como se faz quando vai se receber a visita de um… professor. O sofrimento é maldito pela maioria dos homens, Nietzsche bem o sabe: “se odeia agora o sofrimento mais do que antigamente… dele se diz mais mal do que nunca… e se vai mesmo ao ponto de já nem sequer se poder suportar a ideia dele… disso se faz uma questão de consciência e uma censura à existência em sua totalidade…” (p. 82)

Esta experiência individual de ser “erguido” pelo sofrimento, de aprender com as dores, de sair com “sabedoria” suplementar a cada ferida e cada cicatrização, Nietzsche a generaliza e a aplica à própria “vida das civilizações”, por assim dizer. Salta da psicologia para a sociologia, da experiência poética subjetiva à tentativa de meditar sobre a história da humanidade, ou mesmo sobre a história natural, e alega:

“Examinem a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos, e perguntem se uma árvore que deve elevar-se altivamente nos ares pode viver sem o mau tempo e as tempestades; […] veneno que mata o mais fraco é um fortificante para o forte – por isso ele não o chama veneno.” (#60)

* * * * *

O “juízo dos homens fatigados”, conta-nos a pequena poesia do prelúdio #46, é a seguinte: “Todos os esgotados amaldiçoam o sol: para eles o valor das árvores… é a sombra!” (#46). Nietzsche, portanto, enxerga que estas “maldições”, que lançam os exaustos, contra os sóis da existência, é uma doença. E uma doença que diagnostica como comum aos cristãos, aos budistas, aos schopenhauerianos, aos românticos, a Wagner e Sócrates… O amaldiçoamento da existência é aquilo que Nietzsche quer criticar e superar: quer bradar um grande “SIM!” depois de ter, na história do pensamento, trombado com excessivos, taciturnos e rabugentos “NÃOS”. A todos que queiram sustentar que “esta vida não presta!” e que “seria melhor não ter nascido!”, slogans prediletos dos niilistas de todos os tempos, Nietzsche confronta dizendo que não, o sofrimento não é uma razão para caluniar a existência!

Nietzsche, se queixou-se tão recorrentes vezes de sentir-se “extemporâneo”, estrangeiro em sua própria época, incompreendido por seus contemporâneos, talvez seja pois não conseguia identificar-se com estes “homens de alma cotidiana que à noite, em vez de se parecerem como vencedores no carro do triunfo, têm o ar de mulas cansadas, demasiado fustigadas pelo chicote da vida…” (#111). Há em Nietzsche um pouco daquilo que nós brasileiros conhecemos por “não reclame de barriga cheia!” Um filosófo que sofreu pra caralho (só um palavrão cabe para sugerir quantias tão colossais de sofrimento!) nos diz que larguemos mão de ficar choramingando e amaldiçoando a existência por ninharias, por dorzinhas, por picadinhas de insetos…

A Gaia Ciência pretende ensinar o riso aos carrancudos. Pois “para rir como conviria os melhores não tiveram até agora bastante autenticidade, os mais dotados bastante gênio! Talvez ainda haja um futuro para o riso!” (#01) Nietzsche sabe muito bem o quanto os “professores de moral”, ou seja, pregadores, padres e pastores, são sérios e pomposos quando “se impõe como professores do objetivo da vida” (#42). Falam com muita empáfia e solenidade suas doutrinas sobre o “fim último da existência humana”, tentando convencer-nos, por exemplo, que o “sentido” está no sacrifício à uma divindade transcendente, numa vida humilde e retraída, voltada ao extermínio das propensões naturais do organismo, toda voltada ao ódio contra o corpo, a sexualidade e as alegrias terrestres… O “sentido da vida” não é gozar na terra, mas conquistar os céus! Assim dizem estes risíveis papagaios de altar! Riamos na cara deles!

Ora, segundo Nietzsche os “maiores progressos da humanidade” não foram os papagaios moralistas que promoveram! Mas sim aqueles “espíritos que reacenderam sem cessar as paixões que adormeciam – toda sociedade organizada adormece as paixões – despertaram sem cessar o gosto pelo novo, pelo ousado, por aquilo que ainda não foi tentado…” (#4). Ou seja: são os espíritos livres que contribuem para a “derrubada dos marcos fronteiriços”, para uma expansão do horizonte de possibilidades humanas.

Esta “abertura” nova produz temor naqueles que são fanáticos por reduzir tudo ao estado estável e duradouro de conhecido. A humanidade gostaria de adormecer no conhecido. Gostaria de crer que “sabe tudo”. Religiões são tentativas de “explicar tudo”, de tentar convencer os homens a terem fé na lorota de que há explicação para tudo, e que todas as explicações… se encontram na Bíblia, no Corão, na Torá!

Nietzsche nos convida a ir além desta estreiteza de horizonte, desta fé cega na ideia de que um Livro possui todas as respostas e todas as verdades. Quer nos fazer refletir e pensar num “âmbito” bem diferente daquele a que estamos acostumados: quer que pensemos “além do Bem e do Mal”, ou seja, sem maniqueísmo, sem “rachar” o mundo em bandidos e mocinhos, pondo sob suspeita o dogma de que os homens ou vão para o Céu ou queimam como frango-assados no Inferno…

Risível superstição! Que concebe um deus capaz de ser um juiz tão míope e tão injusto que seria como um professor que, diante do “alunado” humano, isto é, diante da Humanidade inteira, distribuiria apenas duas notas: zero e dez. Quão injusto seria este deus, se existisse, que só conheceria os extremos, que seria cego às flutuações, às gradações, aos degradês! Ou você é um santo, ou é um capeta! Ou presta, ou não presta. É 8 ou 80. Com este Poderoso Chefão não tem conversinha: ou você é a perfeição mais perfeita e imaculada, ou você é um calhorda vicioso e funesto que merece arder em chamas eternas e sofrimentos infinitos. Que delírio! Na História, tais delírios, infelizmente, não se restringem a permanecer fantasmas dentro de cérebros humanos, mas servem para motivar ações e influenciar a História. 

Nietzsche pode até se referir a si mesmo como um “imoralista”, vez ou outra, mas isto não significa que ele não tenha suas preferências morais, ou seja, um certo ideal de “nobreza” ou de “liberdade de espírito” que ele procura… sugerir, definir os contornos, evocar poeticamente. O “espírito livre” é, certamente, alguém que se libertou das cegueiras e superstições da fé religiosa e que agora está entregue à aventura heróica de buscar, sem Deus, a gaia ciência, a grande saúde, a sabedoria terrena. “O que faz a nobreza de um ser é que a paixão que se apodera dele é uma paixão peculiar, sem que ele o saiba; é o emprego de uma medida singular e quase uma loucura; é a adivinhação de valores para os quais ainda não foi inventada balança; é o sacrifício em altares dedicados a deuses desconhecidos; é a coragem sem o desejo das honras; é um contentamento de si que transborda e que prodigaliza sua abundância aos homens e às coisas...” (#55)

Nietzsche, pois, deseja uma ciência que seja gaia, que alegre, que fortaleça, que dê mais saúde, mais luz, mais potência. Sabe que o sofrimento que às vezes nos atropela, as dores que a vida necessariamente nos reserva, todos os “golpes do destino” e todas as facadas das desventuras, podem contribuir para os aprendizados e as experiências que farão este savoir-vivre, esta sabedoria dionisíaca e afirmativa. Ao fim do Livro I, é como se Nietzsche ousasse abrir um sorriso de orelha a orelha, feliz em seu papel de convalescente e transbordante de saúde: “tive a ousadia de rabiscar no muro minha felicidade!”

Palavras extraordinárias, quando saídas da boca de um… filósofo! Nietzsche bem o sabe: é esta, a dos filósofos, uma “raça” enfermiça. Com tendências a alienar-se em “loucuras metafísicas”, em esquecer dos pés grudados-ao-chão para “viajar” por Cucolândia das Nuvens. É que a perspectiva de Nietzsche em A Gaia Ciência é mais a da exaltação da vida do que do elogio do conhecimento; é o ponto-de-vista de um filósofo que superou a filosofia e que permite-se ser também poeta, dançarino, palhaço, profeta… Nietzsche foi um dos primeiros que ousou erguer um brado contra os “homens racionais” que estão “encouraçados contra a paixão” (#57): a filosofia nietzschiana poderia ser vista como uma vasta campanha de reabilitação da paixão e tentativa de injetar vida nova às veias da filosofia, retirando-a das mãos dos zumbis e dos pregadores. Paixão deixa de ser vista como “pecado” – não é mais coisa suja, imoral e feia. Não é coisa que deva ser reprimida, podada, exterminada e culpabilizada de modo tão rígido e fanático quanto querem muitos homens-de-fé. Talvez seja… energia vital, utilizável de preferência em mil jorros vulcânicos de criatividade artística, de infindos tipos de passos de dança, de rimas e melodias, de piadas e sorrisos, de uivos e espantos…

...e aqueles que foram vistos dançando foram tidos por insanos por aqueles que não podiam escutar a música...

:: Camus e Nietzsche ::


Albert Camus
 (1913-1960) falando sobre Nietzsche no clássico “O Homem Revoltado”(originalmente publicado em 1951 pela Gallimard). Tradução de Valerie Rumjanek. Editora Record, 5ª edição, 2003.

“Nietzsche: com ele, a revolta parte do ‘Deus está morto’, que ela considera fato consumado; volta-se em seguida contra tudo aquilo que visa substituir falsamente a divindade desaparecida e desonra o mundo. (…) Nietzsche não meditou o projeto de matar Deus. Ele o encontrou morto na alma de seu tempo. Foi o primeiro a compreender a dimensão do acontecimento, decidindo que essa revolta do homem não podia conduzir a um renascimento se não fosse dirigida. Qualquer outra atitude em relação a ela, quer fosse o remorso, quer a complacência, devia levar ao apocalipse.” (pg. 89)

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“Qual é a corrupção profunda que o cristianismo acrescenta à mensagem de seu senhor? A ideia de julgamento, estranha aos ensinamentos do Cristo, e as noções correlativas de castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e história significativa: nasce a ideia da totalidade humana. Da boa-nova ao juízo final, a humanidade não tem outra tarefa senão conformar-se com os fins expressamente morais de um relato escrito por antecipação. (…) O cristianismo acredita lutar contra o niilismo, porque ele dá um rumo ao mundo, enquanto ele mesmo é niilista na medida em que ao impor um sentido imaginário à vida impede que se descubra o seu verdadeiro sentido: ‘Toda igreja é uma pedra que se coloca sobre o túmulo do homem-deus; ela tenta evitar sua ressurreição à força.” (pg. 90)

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“O espírito livre destruirá tais valores [judaico-cristãos] ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam, a barganha que implicam e o crime que cometem ao impedir que a inteligência lúcida realize a sua missão: transformar o niilismo passivo em niilismo ativo. (…) Por ser um espírito livre, Nietzsche sabia que a liberdade do espírito não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, uma vez ou outra, com uma luta extenuante. (…) Compreendeu que o espírito só encontrava sua verdadeira emancipação na aceitação de novos deveres. (…) O essencial de sua descoberta consiste em dizer que, se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. (…) O próprio caos também é uma servidão. (…) Sem lei, não há liberdade. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é rei, eis a marcha para as trevas, a terrível liberdade dos cegos.” (pg. 92)

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“NIETZSCHE: ‘Se não fizermos da morte de Deus uma grande renúncia e uma perpétua vitória sobre nós mesmos, teremos que pagar por essa perda.’ (…) Se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe, criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição. ‘Quando não se encontra a grandeza em Deus’, diz Nietzsche, ‘ela não é encontrada em lugar algum; é preciso negá-la ou criá-la.’ Negá-la era a tarefa do mundo que o cercava e que ele via correr para o suicídio. Criá-la foi a tarefa sobre-humana pela qual se dispôs a morrer.” (pg. 93)

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“Nietzsche grita-nos que a terra é a única verdade, a qual é preciso ser fiel, na qual é preciso viver e buscar a sua salvação. Mas ensina-nos, ao mesmo tempo, que é impossível viver em uma terra sem lei. (…) A partir do momento em que se reconhece que o mundo não persegue nenhum fim, Nietzsche propõe-se a admitir a inocência do mundo, a afirmar que ele não aceita julgamentos, já que não se pode julgá-lo quanto a nenhuma intenção, substituindo, consequentemente, todos os juízos de valor por um único sim, uma adesão total e exaltada a este mundo. Dessa forma, do desespero absoluto brotará a alegria infinita… A mensagem de Nietzsche é que o revoltado só se torna Deus ao renunciar a toda revolta, mesmo à que produz os deuses para corrigir este mundo. (…) Há, na verdade, um Deus, que é o mundo. Para participar de sua divindade, basta dizer sim. ‘Não rezar mais, mas dar a bênção’, e a terra se cobrirá de homens-deuses. (…) Da mesma forma que Empédocles, que se atirava no Etna para ir buscar a verdade onde ela está, nas entranhas da terra, Nietzsche propunha ao homem mergulhar no cosmos…” (pg. 93)

:: Nietzschianismos! (Meu Projeto de Mestrado…) ::


Além da Metafísica e do Niilismo:
Nietzsche e uma ética para espíritos livres

…as consequências mais próximas [da morte de Deus], suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora… De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’. — NIETZSCHE. A Gaia Ciência, aforismo #343.

Um dos fenômenos humanos mais profundamente estudados por Nietzsche é a moral, objeto de uma consideração prolongada e pormenorizada que perpassa muitas obras do filósofo alemão, a ponto de seu “interesse e preocupação com a questão dos valores” ser descrita por Brobjer como “the centre of gravity of all his writings”1. Alguns dos escritos nietzschianos já revelam em seus títulos as ambições de seu autor: Aurora – Reflexões Sobre os Preconceitos Morais e A Genealogia da Moral, por exemplo, esclarecem que algumas das principais tarefas a que se propôs Nietzsche eram averiguar as origens das estimações humanas a respeito do Bem e do Mal, criticar as ilusões ou preconceitos que subjazem a estes juízos, num empreendimento que acaba pondo em questão o valor de sistemas de moralidadeque norteiam condutas humanas e definem culturas e civilizações: “enquanto para toda a tradição o valor dos valores morais era visto como um dado inquestionável, agora se colocará sob suspeita o próprio valor desses valores.”2

Estes são alvos que Nietzsche atinge seja através de um procedimento genealógico (que busca compreender as raízes históricas das avaliações morais, uma vez que todo código de moralidade ou tábua de valores é concebido pelo filósofo não como dádiva ou revelação divina, mas como construto humano), seja através de uma análise psicológica (reveladora de afetos e motivações ocultos nos posicionamentos morais, com a inclusão de elementos fisiológicos e impulsos inconscientes, procedimento exemplificado pela “dissecação” nietzschiana da figura do sacerdote ascético). Por essas e outras, Nietzsche chegou a ser descrito por seu conterrâneo Thomas Mann, influente literato do século XX e Prêmio Nobel de Literatura, como “o maior crítico e psicólogo da moral conhecido na história da mente humana”.3

A filosofia de Nietzsche, célebre por seu caráter crítico e polêmico (a ponto de seus procedimentos serem descritos como análogos a marteladas destinadas a “demolir ídolos”), procede a uma crítica conjunta tanto da metafísica de inspiração platônica quanto da moralidade judaico-cristã (consideradas como intimamente implicadas, já que o cristianismo não passaria de “platonismo para o povo”4). Como elucida Moura, “o cristianismo é apresentado como uma das peles com as quais a serpente platônica se revestiu… a ‘morte de Deus’ é, assim, um estágio da morte do platonismo”5. O vínculo entre a crítica à metafísica, de um lado, e à moralidade a ela acoplada, de outro, é íntimo. Tanto que o procedimento genealógico é descrito como um antídoto contra a pretensão universalista de certas moralidades específicas, que pretendem falar de modo absoluto e universal, independentemente de tempo histórico ou espaço geográfico, cometendo o “erro habitual” de concluir que há uma “obrigatoriedade incondicionada”6:

 A verdadeira genealogia pretenderá antes marcar as diferenças do que forjar identidades, ela será atenta às mutações das significações e desconfiada diante dos conceitos supostamente unívocos. Por isso, ela não decretará a existência de nenhuma finalidade meta-histórica a orientar o vir-a-ser, ela investigará a história sem a pretensão de reencontrar ali a realização de qualquer ideal eterno. Afinal, a história dos historiadores, ao procurar ler nos eventos a realização progressiva de uma finalidade imutável, é apenas uma metafísica travestida. Por isso Nietzsche oporá o ‘filosofar histórico’ a toda pretensão metafísica de reencontrar dados eternos, e insistirá na denúncia de que qualquer teleologia é construída sobre o erro de se imaginar um homem eterno, em torno do qual todas as coisas do mundo estariam alinhadas desde o começo. Assim, a genealogia será a história desembaraçada da metafísica. (…) Segundo Nietzsche o verdadeiro sentido histórico é aquele que reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado eterno.7

O procedimento genealógico-crítico empregado por Nietzsche em sua investigação da moral, portanto, faz parte de um projeto mais amplo de desmantelamento da metafísica de raiz platônica-cristã (à qual o filósofo tão enfaticamente se opõe). Ao versar sobre o fenômeno da “morte de Deus”, isto é, do crescente descrédito lançado sobre as crenças cristãs na Europa de seu século, Nietzsche destaca que não se pode desvincular esta decadência da fé da concomitante crise damoral ligada a ela: “depois de solapada essa crença”, não é somente a religião que se vê posta no banco dos réus, mas “tudo quanto estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraigado nela; por exemplo, toda a nossa moral européia.” 8 Nietzsche assim resume tudo que se esboroa com a “morte de Deus” e a “vitória do ateísmo científico”:

Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da bondade e custódia de Deus; interpretar a história em honra de uma razão divina, como constante testemunho de uma ordenação ética do mundo com intenções finais éticas; interpretar as próprias vivências, como a interpretavam há bastante tempo homens devotos, como se tudo fosse providência, tudo fosse aviso, tudo fosse inventado e ajustado por amor da salvação da alma: isso agora passou… isso, para toda consciência mais refinada, passa por indecoroso, desonesto, por mentira, efeminamento, fraqueza, covardia…9

 Scarlett Marton resume assim as “oposições” nietzschianas:

 Nietzsche desautoriza as filosofias que supõem uma teleologia objetiva governando a existência, desabona as teorias científicas que presumem um estado final para o mundo, desacredita as religiões que acenam com futuras recompensas e punições. Recusa a metafísica e o mundo supra-sensível, rejeita o mecanicismo e a entropia, repele o cristianismo e a vida depois da morte.10


A moral judaico-cristã, além de baseada numa concepção metafísica platônica que Nietzsche rejeita como ilusória, é criticada com severidade por várias razões: por ser “hostil à vida” (“dirige o olhar, verde e maligno, contra o próprio prosperar fisiológico”11), sexualmente repressora (“conseguiu fazer de Eros e Afrodite duendes infernais”12), nascida de afetos reativos como o ressentimento e a crueldade internalizada (a ponto de ser equiparada a um “levante de escravos na moral”):

A Igreja combate as paixões através do método da extirpação radical; seu sistema, seu tratamento, é a castração. Não se pergunta jamais: como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Em todas as épocas o peso da disciplina foi posto a serviço de extermínio.” (…) “Mas atacar a paixão é atacar a raiz da vida; o processo da Igreja é nocivo à vida.13

 Nietzsche diagnostica na moralidade judaico-cristã uma “calúnia” contra a realidade terrena, uma aversão a tudo que é “mundano”, e esta tábua de valores anti-naturais não passaria de um “doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos”14. Dois trechos, um da Genealogia e outro d’O Anticristo, sintetizam tais opiniões:

 Ódio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparência, mudança, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo – tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma má-vontade contra a vida…” 15 “Não encontramos nenhum deus, nem na história nem na natureza, nem por trás da natureza – mas sim sentimos aquilo que foi venerado como Deus, não como ‘divino’, mas como digno de lástima, como absurdo, como pernicioso, não somente como erro mas como crime contra a vida…16

Como aponta ainda Deleuze, Nietzsche concebe todo o pensamento metafísico como uma depreciação do mundo e da existência: “Il n’y a pas de métaphysique qui ne juge et ne déprecie l’existence au nom d’une monde supra-sensible.”17 Ora, superar a metafísica equivaleria a uma superação da cisão entre uma dimensão supra-sensível (concebida como “morada” e fonte de todo valor) e uma sensível (tida como falsa, transitória, “corruptora”). Trata-se de romper com a separação entre estes dois “mundos”, o que equivale a libertar a filosofia do império do platonismo e do ideal ascético. Pois também a filosofia, segundo Nietzsche, viveu sob o jugo do ideal ascético, como aponta o 3º ensaio da Genealogia, e “Nietzsche identifica esse traço ascético como uma espécie de pecado original da metafísica; como metafísica, a filosofia se institui a partir da negação e desvalorização do sensível, do corpo, da materialidade, do movimento, do transitório, do devir, do histórico.” 18 Trata-se, ademais, no âmbito da filosofia nietzchiana, de afirmar que este vir-a-ser não pode ser julgado (nem aprovado, nem condenado) a partir de modelos ideais, de modo que, para Nietzsche, “ni l’existence n’est posée comme coupable, ni la volonté ne se sent elle-même coupable d’exister.”19

Fica claro, a partir do exposto até aqui, o quanto a filosofia de Nietzsche é radicalmente crítica tanto da metafísica quanto da moralidade características do cristianismo. Esta dimensão “destrutiva” da obra do filósofo, porém, não esgota seu empreedimento filosófico, de modo que cabe perguntar: não haveria um esforço nietzschiano em sugerir novas vias, isto é, a obra de Nietzsche não conteria uma vasta reflexão sobre a necessidade de instituir novas tábuas de valores e novas virtudes? Em outras palavras, como sustenta Brobjer20, não estaria presente uma faceta construtiva e afirmativa na filosofia moral nietzschiana? Nietzsche, que com tanto empenho iconoclasta tratou de criticar a moralidade dominante em seu tempo, não o teria feito com o intento de expor a “maldição” que certos ideais lançavam sobre a realidade e sugerir a possibilidade de uma outra ética, digna de “espíritos livres” e dionisíacos, afirmadores da vida e fiéis à terra, cuja imagem modelar é o sábio Zaratustra, que dança em celebração da inocência do devir?

Em nossa pesquisa, portanto, temos como objetivo principal investigar as reflexões de Nietzsche no que concerne a uma ética afirmativa capaz de superar tanto a metafísica quanto o niilismo. Tendo esta ética para espíritos livres como fio condutor de nosso estudo, pretendemos analisar conceitos de Nietzsche como a transvaloração dos valores, o eterno retorno, o amor fati, a afirmação da vontade de potência, o Além-do-homem, dentre outros.

  2. JUSTIFICATIVA

Julgamos de primeira importância investigar a fundo a faceta positiva ou construtiva da filosofia moral nietzschiana, defendendo-a contra uma interpretação equivocada de que Nietzsche realizaria apenas uma crítica devastadora que conduziria a um “imoralismo” absoluto. Parece-nos relevante enfatizar, através de nossa pesquisa, que a obra nietzschiana comporta um empreendimento filosófico que busca refletir sobre ética de modo a ir além tanto da metafísica quanto do niilismo, de modo que não nos parece adequado desvincular seus procedimentos críticos dos criativos. Esta convicção de que a filosofia de Nieztzsche não se esgota em seus procedimentos destruidores, indo além da mera iconoclastia, fundamenta-se na opinião de comentadores que apresentaremos concisamente na sequência.

O projeto nietzchiano de “derrubar ídolos”, como elucida Moura, não se deve a

algum gratuito furor iconoclasta, mas sim porque a realidade ‘foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal… A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro.’ (Ecce Homo, Prólogo, #02, p.18). Ao invés do tácito platonismo de todos os ‘professores da meta da existência’, o que se busca agora é desenraizar a exigência mesma de um ideal – não instituir um novo ideal, mas voltar para aquilo que Nietzsche chamará de ‘inocência do vir-a-ser’: antes de tudo, a decisão de não medir mais a realidade segundo normais ideais das quais ela está afastada, em direção às quais ela deveria caminhar – uma estratégia que sempre terá por consequência condenar o mundo do vir-a-ser em nome desses ideais.21

Scarlett Marton

É o que Marton destaca, por sua vez:

Se a ruína do cristianismo trouxe como consequência a sensação de que ‘nada tem sentido’, ‘tudo é em vão’, trata-se agora de mostrar que a visão cristã não é a única interpretação do mundo – é só mais uma. Perniciosa, ela inventou a vida depois da morte para justificar a existência; nefasta, fabricou o reino de Deus para legitimar avaliações humanas. Na tentativa de negar este mundo em que nos achamos, procurou estabelecer a existência de outro, essencial, imutável, eterno; durante séculos, fez dele a sede e a origem dos valores. É urgente, pois, suprimir o além e voltar-se para a terra. 22

Gilles Deleuze

 Deleuze destaca ainda que o procedimento crítico-genealógico de Nietzsche não está preso nas malhas do ressentimento e da vingança (afetos essencialmente reativos): “La critique n’est jamais conçue par Nietzsche comme um réaction, mais comme une action. (…) La critique n’est pas une ré-action du re-sentiment, mais l’expression active d’um mode d’existence actif”23.Nietzsche ao opõe-se àqueles que caluniam o mundo, a vida e a natureza por estarem ainda presos na “teia de aranha” metafísica ou ao ideal ascético (“em vez de unidade de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, vemos o pensamento dar-se por tarefa julgar a vida, de lhe opor valores pretensamente superiores, de a medir com esses valores e de a limitar e condenar”, explica Deleuze). A isto Nietzsche propõe uma alternativa, assim exposta por Deleuze: “as duas virtudes do filósofo legislador eram a crítica de todos os valores estabelecidos, quer dizer, dos valores superiores à vida e do princípio de que eles dependem, e a criação de novos valores, valores da vida que reclamam outro princípio. Martelo e transmutação.” 24 Esta concepção nietzschiana também está muito bem exposta na parábola das Três Transmutações, em Assim Falava Zaratustra, que destaca que não basta que o leão rebele-se contra o camelo, mas é crucial que torne-se, como uma criança, um novo começo.

Em nossa pesquisa, portanto, pretendemos esclarecer que a obra nietzschiana não é justamente interpretada quando faz-se dela um elogio do “imoralismo” completo, de um niilismo axiológico sintetizado pela fórmula “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”. É o que Moura nega com veemência, enfatizando que Nietzsche jamais preconizou o laxismo do “tudo é permitido”:

Justo ele, que sempre se manifestou contra qualquer versão do laisser-aller; ele que, ao criticar os valores morais vigentes (…) atribuía como tarefa, ao filósofo do futuro, precisamente a criação de valores; ele, enfim, que já indicara expressamente aos seus leitores que seu trabalho de toupeira, para minar a confiança na moral, era realizado em nome da… moralidade!25

 Parece-nos de importância fundamental frisar, pois, o quanto a filosofia nietzschiana, longe de conceber-se como mera destruição de antigos ídolos e valores venerados, comporta também uma outra dimensão: construtiva e criativa. Com recorrência o filósofo destaca a necessidade de escrever novas tábuas de valores, tendo em vista o porvir do homem, a ponto de julgar que é justamente esta a tarefa do autêntico filósofo: tornar-se legislador. Como Brobjer aponta, “Nietzsche’s references to himself and Zarahustra as immoralists and his critique of morality can be understood as referring to essentially one kind of morality which Nietzsche regarded as having been paradigmatic during the last two thousand years or so”. 26 Também Leiter comenta que o ataque de Nietzsche à moralidade dominante era baseada no diagnóstico nietzschiano de que o florescimento da excelência humana e o desabrochar do gênio criativo eram obstaculizados pelas concepções morais vigentes:

Nietzsche attacks morality, most simply, because he believes its unchallenged cultural dominance is a threat to human excelence and human greatness. (…) In a posthumously published note of 1885, he remarks that ‘men of great creativity, the really great men according to my understanding, will be sought in vain today’ because ‘nothing stands more malignantly in the way of their rise and evolution… than what in Europe today is called simply ‘morality’ (WP: 957) 27

O projeto de investigar a fundo, pois, a faceta “positiva” e “construtiva” da filosofia moral nietzchiana parece-nos plenamente justificada, uma vez que, como aponta ainda Nussbaum, o propósito de Nietzsche, através de sua crítica à moralidade, foi “limpar o terreno para novas possibilidades de criação”: “Indeed, this was the whole purpose of genealogy as Nietzsche, Foucault’s precursor here, introduced it: to destroy idols once deemed necessary, and to clear the way for new possibilities of creation.” 28

3.  HIPÓTESES DE TRABALHO

– A obra nietzschiana procura oferecer não somente uma crítica radical do ideal ascético (descrito no Ecce Homo como “o ideal nefasto par excellence, um ideal de décadence”), mas a tentativa de fazer frente a ele com um “contra-ideal” que poria fim ao reinado da moralidade de auto-renúncia29. Aí se desvela o projeto nietzschiano, para além da crítica e da demolição, de oferecer uma alternativa a este “monstruoso método de avaliação” característico dos sacertodes ascéticos e que “não está inscrito na história humana como uma exceção ou curiosidade: é um dos mais disseminados e longevos fatos que há”30. Nietzsche, após fazer uso do martelo e da dinamite, não se dá por satisfeito: cabe aos espíritos-livres construir novas tábuas de valores que façam com que a terra deixe de ser a “a estrela ascética”. Tendo como fio condutor a caracterização de uma “ética para espíritos livres”, analisaremos como se relacionam conceitos como além-do-humano (Übbermensch), amor fati, segunda inocência, eterno retorno, afirmação dionisíaca etc.

– Se Nietzsche tanto criticou e rejeitou os “pessimistas” e “niilistas”, foi também por vislumbrar a possibilidade de que a “morte de Deus” pudesse representar um auspicioso recomeço, como tão bem sustenta o trecho de A Gaia Ciência que citamos em nossa epígrafe. “Não devemos rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira]. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis.”31 Pretendemos sustentar que a superação da metafísica e do niilismo representaria, segundo Nietzsche, o que Giacóia chama de um “ultrapassamento” em relação a um horizonte cultural limitado: “No mundo contemporâneo, com o aprofundamento e a máxima intensificação do niilismo europeu, abrem-se novamente horizontes para uma repetição ímpar desse resgate de uma virtualidade cultural que corresponderia a um ultrapassamento dos mais sagrados ideais vividos até o presente.”32.

– Cientes de que não há em Nietzsche nada que se assemelhe a um sistema prescritivo dogmático, tentaremos investigar que concepção tinha o filósofo a respeito das virtudes ou “traços de caráter” que conduzem à excelência humana, à sabedoria terrena. A hipótese que pretendemos sustentar, com auxílio dos textos nietzschianos e de alguns de seus comentadores, é a de que existe sim uma intensa preocupação de Nietzsche com uma reflexão a respeito de uma tábua de valores ou sistema de moralidade que oferecesse ao potencial humano um maior florescimento. Como aponta Moura, o homem “sábio” ou “virtuoso”, para Nietzsche, não pode ter um rosto definido, isto é, uma definição demasiado estreita; mas isto não impede que encontre-se vários elementos na obra nietzschiana que possibilitam explorar as características da excelência humana como Nietzsche a concebe:

Com o conceito de além-homem se estará designando uma perpétua superação de si, e por isso esse além-homem nunca terá rosto definido, nem poderia tê-lo. Com esse conceito não se traça nenhuma imagem de um novo homem divino, a idéia de superação de si proíbe toda e qualquer cristalização de uma figura determinada, algo do qual se possa repertoriar os traços, e por isso o espírito livre – viajante sem porto de chegada – era a sua melhor prefiguração.” (…) “…o espírito livre é um personagem que não se fixa em convicções e experimenta as mais variadas perspectivas… ele jamais se fixará em alguma certeza, superando-se perpetuamente em direção a novas opiniões, novas perspectivas. É porque a vontade de potência é superação de si que as convicções são prisões, e o espírito livre estará condenado a ser um experimentador.33

– Em suma, nossa investigação pretende analisar a hipótese de que, após o trabalho de “dinamitação” realizado por sua filosofia, há decerto uma tentativa de Nietzsche de sugerir um novo “regime ético”, não mais dominado pelo ideal ascético, que rompe com a metafísica platônica-cristã, não mais baseado na promessa de uma recompensa ou de uma punição extra-terrenas, não mais hostil à vida e caluniadora do mundo. Em resumo: uma ética que supera tanto a metafísica quanto o niilismo, cuja tábua de valores não é baseada em ideais transcendentes em contraste com os quais a realidade é caluniada, mas sim numa “sabedoria da imanência”, digna daqueles espíritos livres a quem Zaratustra conclamava a “permanecerem fiéis à Terra”:

Eu vos exorto, meus irmãos! Permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não! São menosprezadores da vida! (…) Em outros tempos, blasfemar contra Deus era o maior dos ultrajes, mas Deus morreu e com ele morreram esses blasfemadores. De ora em diante, o crime mais atroz é ultrajar a terra e ter em maior conta as entranhas do insondável do que o sentido da terra!34



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 BROBJER, T. Nietzsch’s Ethics of character. Suécia: Uppsala University, 1995. P. 12.

2 MOURA, C.A.R. Nietzsche: Civilização e Cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Introdução, XVI.

3 MANN, T. Nietzsche’s Philosophy in The Light of Contemporary Events. Washington: library of Congress, 1947. Pg. 17.

4 NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal. Prólogo. Cia das Letras, 1992, p. 8

5 MOURA. Nietzsche: Civilização e Cultura. Martins Fontes, 2006. Pg. 30.

6 NIETZSCHE. A Gaia Ciência. Livro V, §345. In: Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores). Pg 198.

7 MOURA. Op Cit. Pg. 114-115.

8 NIETZSCHE. Op Cit. Pg 195.

9 NIETZSCHE. A Gaia Ciência. Livro V, §357. In: Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores). Pg 203.

10 MARTON, Scarlett. “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético”. In: Ética, org: Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. pg. 218.

11 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. Terceira Dissertação, §11. p. 358.

12 NIETZSCHE. Aurora, §76. P. 149.

13 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos. A Moral Como Manifestação Contra a Natureza. §01.

14 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. II Dissertação. §7.

15 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. III Dissertação. §28.

16 NIETZSCHE. O Anticristo, §47.

17 DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. Pg. 40.

18 GIACÓIA, O. Nietzsche Como Psicólogo. São Leopoldo (RS): Unisinos. Pg. 48.

19 DELEUZE, G. Op Cit. Pg. 41.

20 “…ethics is a fundamental concern for Nietzsche and his affirmative ethics is closely associated with, and represents the other side of, his critique of morality and it is no less important” . In: BROBJER, Thomas. Op Cit. Pg. 41.

21 MOURA. Op Cit. Introdução, XIX.

22 MARTON, Scarlett. “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético”. In: Ética, org: Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. pg. 218.

23 DELEUZE, G. Op Cit. Pg. 3.

24 DELEUZE, G. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2009. P. 19.

25 MOURA. Op Cit. Pg. 239

26 BROBJER, T. Op Cit. P. 25.

27 LEITER, B. Nietzsche On Morality. Routledge: London, 2002. Pg. 25 e 114.

28 NUSSBAUM, M. Citada por Brobjer, op cit. p. 49.

29 NIETZSCHE. Ecce Homo. Pg. 140.

30 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III Dissertação.

31 NIETZSCHE. Genealogia da Moral. II Dissertação, #20, p.73.

32 GIACÓIA. Nietzsche Como Psicólogo. São Leopoldo (RS): Unisinos. Pg. 149.

33 MOURA. Op Cit. Pg. 201.

34 NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra. Primeiro Livro. Pg. 23.