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AS BACANTES SEMPITERNAS – Sobre a atualidade perene da celebração comunal e do êxtase coletivo
I. XAMANISMO COM AMPLIFICADORES
Há um capítulo magistral de Dançando nas Ruas (Dancin’ In The Street) em que Barbara Ehrenreich fala sobre as raízes arcaicas do êxtase coletivo. “Arcaicas”, no caso, é uma palavra para referir-se não a algo de velho, mofado, já caído em desuso e aposentado da História. Arcaico – é também uma das lições fundamentais de gurus psicodélicos como Terence McKenna e Alan Watts – é aquilo que tem enraizamento em um passado muito distante, mas cuja raiz ainda hoje nutre uma árvore viva e nossa contemporânea, com sua eclosão vivificante de folhas, frutos, sementes.
O tempo arcaico segue agindo no tempo contemporâneo como um rio que flui lá do passado mais remoto e penetra com suas águas torrenciais no território do presente. É um passado que conflui com o agora, conectando-nos ao que passou, vinculados ao que foi ao invés de alienados de qualquer tradição e pertença. Unidos e solidários aos que hoje descansam seus ossos debaixo desta terra onde labutamos e dançamos, ao invés de trancados na estreiteza de um fluxo nonsense de momentos efêmeros e desconexos.
“No antigo mundo ocidental, muitas deidades serviam como objeto de adoração extática: na Grécia, Ártemis e Deméter; em Roma, as deidades importadas: Ísis (do Egito), Cibele, a Grande Mãe ou Magna Mater (da Ásia Menor), e Mitas (da Pérsia). Mas havia um deus grego para o qual a adoração extática não era uma opção, mas uma obrigação… Esse deus, fonte de êxtase e terror, era Dioniso, ou, como era conhecido entre os romanos, Baco. Sua jurisdição mundana cobria os vinhedos, mas a responsabilidade mais espiritual era presidir aorgeia (literalmente, ritos realizados na floresta à noite, termo do qual derivamos a palavra orgia), quando os devotos dançavam até chegar a um estado de transe.
Ainda mais do que as outras deidades, Dioniso era um deus acessível e democrático, cujo thiasos, ou elo sagrado, estava aberto tanto aos humildes como aos poderosos. Nietzsche interpretava esses ritos da seguinte maneira: ‘O escravo emerge como homem livre, todos os muros rígidos e hostis erigidos entre os homens pela necessidade ou pelo despotismo são despedaçados.’
Foi Nietzsche quem reconheceu as raízes dionisíacas do drama grego antigo, ao ver a inspiração louca e extática por trás da majestosa arte dos gregos – que, metaforicamente, ousavam levar a cabo não apenas a imortal simetria do vaso, mas as loucas figuras dançantes pintadas em sua superfície. O que o deus demandava, segundo Nietzsche, era nada menos que a alma humana, liberada pelo ritual extático do ‘horror da existência individual’ e transformada na ‘unidade mística’ do ritmo proporcionado pela dança.” (EHRENREICH, p. 48)
Longe de ser apenas de interesse para helenistas ou estudiosos de religiões antigas, a celebração comunal, vinculada no mundo greco-romano aos cultos a Dioniso e Baco, prossegue ativa em tempos contemporâneos. O livro de Barbara Ehrenreich é uma das melhores visões panorâmicas da busca pelo êxtase coletivo através da história e tem entre seus méritos uma postura simpática aos fenômenos estudados. Ela não condena, com fúria puritana, os rituais dionisíacos, o vodu haitiano, a capoeira ou o samba afrobrasileiro, os festivais de rock da Geração Hippie etc., mas busca compreender com empatia uma necessidade humana, que existe desde tempos imemoriais, de celebração coletiva e de vitória sobre o terrível confinamento na solidão de um eu isolado.
Dançando Nas Ruas, pois, parece-me um livro magistral, de alto potencial libertário, que une-se aos esforços de um Terence McKenna, que propugnava um revival do arcaico, ou de uma Emma Goldman, pensadora política anarquista célebre por dizer: “Não é minha revolução se eu não puder dançar”.
Além disso, Barbara Ehrenreich realizou uma obra de interesse filosófico, ou mesmo teológico, afirmando que a experiência de re-encontro com o arcaico, de re-ligação com a fonte, é descrita por muitos que a vivenciam como uma revolução em nossa percepção temporal, uma percepção imediata ou insight súbito da eternidade do aqui-agora.
O livro contribui assim, imensamente, para o estudo e a compreensão do misticismo, podendo iluminar e elucidar a leitura de obras cruciais como a de William James, AsVariedades da Experiência Religiosa, e Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, que talvez sejam as mais impressionantes reuniões de testemunhos sobre a experiência mística. Para uma visão mais contemporânea, que vincula a unio mystica ao consumo de substâncias enteógenas, vale sondar as reflexões de Aldous Huxley em Moksha e de Alan Watts por sua obra afora.
Quando transcendemos a prisão do eu, a jaula do isolamento, a percepção falha que nos leva a crer na possibilidade de nossa existência independente e separada do cosmos que a circunda e a inclui, aí então podemos abraçar um aqui-agora que têm densidade temporal. Que tem peso de eternidade. Aí percebemos – ainda que para ter este insight às vezes necessitemos de muito estudo do budismo, de muita prática da meditação e do yôga, de algumas gotas de um bom ácido lisérgico ou DMT… – que a interconexão é a verdade do real.
“Wonder”, uma obra de Alex Grey
Não somente somos todos interconexos, ligados a toda a teia da vida; além disso, isto não se esgota no presente imediato. O rio do passado vem regar-nos o presente e vivificar nossa construção comum de um presente futurível. Somos efêmeros contemporâneos da eternidade onde estamos incluídos – a Energia no Universo, garantem os cientistas, pode se transformar, mas jamais ser nadificada; os átomos e o vazio, desde Epicuro, são tidos por indestrutíveis! Esta percepção é aquilo que bacantes e mênades buscam – e às vezes acham – em seus rituais musicais, dançantes, psicodélicos. Buscam habitar um tempo de êxtase coletivo, de joy na vivência da interconexão. É uma utopia que propõe a re-união e a comum celebração, é um hedonismo sábio que propõe que não cortemos todas conexões com o rio do “foi-se e acabou-se”, prendendo-nos em um imediatismo niilista que nos deixaria apenas vagando ao léu, como náufragos agarrados a um pedaço de madeira que flutua no mar após a embarcação ir a pique.
Arcaicas – antigas mas ainda ativas! – são as variadas “técnicas do êxtase”. Esta, aliás, era uma das expressões prediletas que Mircea Eliade usava como ferramenta conceitual crucial para a compreensão e caracterização dos misticismos, do mais variado colorido, reunidos às vezes sob o nome de “xamanismo” e outras vezes sob a alcunha de “paganismo” ou termo semelhante. No tal do xamanismo, com enorme frequência, as técnicas do êxtase – o caminho que é preciso realizarmos junto até que sejamos uma coletividade capaz de celebração extática e auto-transcendência – são inseparáveis da dança e da música.
Este é um dos argumentos centrais do livro genial de Ehrenreich: êxtase tem tudo a ver com dança, com música, com expansão da consciência, com transcender o eu e abraçar o coletivos. que atravessa a História, da tragédia grega de 25 séculos atrás até os festivais hippie à la Monterey e Woodstock, para mostrar que os laços sociais vinculados à busca humana, trans-histórica e trans-cultural, de êxtase coletivo, são umbilicalmente vinculados com música, dança e alteração da percepção intelectual-sensível através do consumo de substâncias (naturais ou sintéticas) ditas estupefacientes. Apesar de toda repressão, de todo o sangue derramado por Inquisições, de toda a perseguição autoritária, Pan, Baco, Deméter, Dioniso, Shiva e toda a trupe dos deuses dançantes e orixás bailantes que seguem vivendo e atuando nos corações e mentes de seus carnais celebrantes.
Aquilo que Ehrenreich chama de collective joy, ou que Durkheim chamava de efervescência coletiva, é aquilo que sente-se no meio da torcida em um estádio de futebol quando explode um gol; mas também o que toma conta da vivência da platéia de um show do Jimi Hendrix Experience ou de Janis Joplin e o Big Brother Co. em pleno “Verão do Amor”. É aquela vivência que nos faz transcender a jaula do ego, rumo à inenarrável e estarrecedora experiência de estar acompanhados sob as estrelas, queimando sob o Sol, “todos juntos reunidos numa pessoa só” (como canta Arnaldo Baptista em canção d’Os Mutantes).
Os viventes precários que somos, que tentam somar e solidarizar-se, porém tanto separam-se e segregam-se, podem estar boquiabertos ou apáticos diante dos mistérios do mundo e de nossos vínculos secretos, com ele, mundo, e uns com os outros; a dança, a música e os estupefacientes são o caminho, o tao, uma maneira eficiente através da qual as culturas vão em busca de fazer acontecer o êxtase comunal. São técnicas para a realização das utopias, e não sua mera espera passiva. São técnicas do êxtas que hoje tem o auxílio da eletricidade, do ciberespaço, dos mega-amplificadores, das salas de cinema digital, de todo o aparato tecnológico-científico ainda tão desperdiçado com a estupidez bélica hi-tech… Invistamos, pois, nas arcaicas técnicas do êxtase!
“A dança grupal é a grande niveladora e conector das comunidades humanas, unindo todos os que participam no tipo de communitas que Turner encontrou nos rituais nativos do século XX. (…) Submeter-se corporalmente à música por meio da dança é ser incorporado por uma comunidade de uma maneira muito mais profunda do que o mito compartilhado ou os costumes comuns podem atingir. Nos movimentos sincronizados com o ritmo da música ou de vozes que cantam, as rivalidades mesquinhas e as diferenças de facções que podem dividir um grupo são transmutadas em uma inofensiva competição de quem é o dançarino mais hábil… “a dança”, como coloca um neurocientista, é a “biotecnologia da formação do grupo.”
Desse modo, grupos – e os indivíduos que os constituem – capazes de se manter juntos por meio da dança teriam possuído uma vantagem evolucionária em relação aos grupos ligados por laços menos fortes. (…) Nenhuma outra espécie jamais conseguiu fazer isso. Pássaros têm suas músicas características; vagalumes podem sincronizar a luz que emitem; chimpanzés às vezes podem bater os pés juntos e balançar os braços fazendo algo que os etologistas descrevem como um “carnaval”. Mas, se quaisquer outros animais conseguiram músicas e se mover em sincronia com ela, mantiveram esse talento bem escondido dos humanos.” (EHRENREICH, 2006, p. 37, trad. Julián Fuks)
A dança e a música, apesar de reduzidas, nas idéias estreitas de muitos de nossos contemporâneos, a meras mercadorias ou a reles entretenimentos, são algo que conecta-nos, hoje, à arcaica e ancestral peculiaridade humana, no seio da natureza, que é o fato de estarmos em busca de collective joy, êxtase comunal ou coletivo. Este é um fio que atravessa a história da espécie e que é inapagável, inextipável, incapaz de ser assassinado por quaisquer repressões autoritárias. É uma força resiliente, que sobrevive a todos os tiranos, e que têm como um de seus símbolos mais memoráveis, na história da arte, a batalha épico-trágica das Bacantes com o tirano de Tebas, Penteu, na peça de Eurípides.
As Bacantes, mais do que apenas uma obra-prima da dramaturgia universal, pode ser debatida como documento histórico, etnográfico, transmutado em obra-de-arte pelo engenho daquele que foi, com Ésquilo e Sófocles, um dos autores de dramas que sobreviveu a 25 séculos de transmissão histórica, da Grécia de IV a.C. até o Bixiga paulistano deste 2017 depois do Nazareno. Algo há aí, na resiliência de As Bacantes, na sua capacidade de manter-se com um monte a dizer e ensinar aos nossos próprios tempos, que explica como José Celso Martinez Côrrea pôde reativar a potência da peça nestes anos de 2016 e 2017, com os resultados acachapantes e geniais que já nos acostumamos a esperar do Teatro Oficina, Uzyna Uzona.
O Teatro Oficina é uma pérola refulgente neste pântano esmerdeado de nossa lambança nacional. É resistência e celebração – arte reXistente – que ativa um cyber-terreiro, uma arena-dionisíaca, um microcosmo-da-utopia, onde o Brasil mostra ao mundo o que tem de melhor: a exuberância irreverente de um povo que ginga em busca de um êxtase coletivo, traçando seu próprio caminho, no ritmado enraizado que lhe infundiram séculos de miscigenação e convívio entre gente de culturas do mais pluridiverso colorido.
Nas peças do Oficina, aparece sempre – mesmo quando trata-se de adaptações de autores gringos como Antonin Artaud (Para Dar Um Fim No Juízo De Deus) ou Schiller (Os Bandidos) – dá as caras um Brasil que está sempre recaindo em antagonismos, em querelas, em ríspidas lutas e mortíferas guerras.
As bacantes brazucas nunca podem celebrar em paz, pois são, a despeito de suas vontades, empurradas para uma arena de combate (ah, tiranos! elas só queriam beber vinho, dançar, celebrar! Por que cabeças teriam que rolar?!?); as mênades, proto-hippies da paz e do amor, dançantes e cantantes, re-ativadoras da força sempiterna do conatus, chocam-se contra os poderes do autoritarismo puritano e seus braços armados. A resiliência, a capacidade de sobrevivência da peça de Eurípides – vivíssima no Brasil de 2017! – está também na persistência. no nosso processo histórico, da batalha que o aquele fight – Bacantes versus Penteu – simboliza.
A utopia que vem conectada ao trampo do Oficina ou à antropofagia de Oswald de Andrade, empreendimentos de sintonia íntima, tem a ver com um renascimento do dionisismo, ou seja, de uma cultura onde a celebração coletiva, a alegria dos vínculos estabelecidos sobre as ruínas da egolatria, seja mais potente do que a cultura, imposta de cima pra baixo com a voz grossa e bruta do Patriarcado repressor, que manda sempre postergar todos os gozos, desistir de campanhas inovadoras ou revolucionárias, conformar-se com a monocromia de uma vida cinza, de tédio e monotonia, de servil obediência aos que mandam mortificar a carne e sacrificar o presente, em nome de um tíquete de entrada prum futuro paradisíaco no além-túmulo…
As bacantes – mulheres que saem dos trilhos da cotidianidade, deixando suas posições obedientes na hierarquia de comando masculinista, machista, autoritária… – e vão para a floresta, não só para fugir por um pouco da dureza do dia-a-dia, mas para celebrar a existência e a liberdade, para buscar a força em uma imersão num coletivo que, com forças reunidas, pode muitos, mas muuito mais, do que qualquer indivíduo solitário, por mais fortão e musculoso que seja. A ética e a estética homéricas, que celebram em Aquiles ou Ulisses um heroísmo muito marcado pelas fúrias bélicas, têm nas bacantes, nas celebrantes dionisíacas, nas mênades dançantes e de cabelos esvoaçantes, a celebração da paz, não da guerra; da harmonia e da sincronia, não do antagonismo; do êxtase, não do massacre.
“Friedrich Nietzsche, o clássico indivíduo solitário e atormentado do século XIX, talvez tenha entendido a terapêutica do êxtase melhor do que qualquer outro. Em um tempo de celebração universal do ‘eu’, ousou falar sobre o ‘horror da existência individual’ e vislumbrou o alívio nos antigos rituais dionisíacos que só conhecia por meio de leituras – rituais em que, ele imaginava, ‘cada indivíduo não apenas se reconcilia com o outro, mas une-se a ele – como se o véu de Maya tivesse sido rasgado e só restassem retalhos flutuando ante a visão de uma Unidade mística. (…) Cada um sente a si como a um deus e caminha a passos largos com o mesmo júbilo e o mesmo êxtase dos deuses que viu em seus sonhos.” (EHRENREICH, op cit, pg. 184)
Zé Celso e sua trupe são no país aquelas forças que com mais exuberância servem como porta-vozes destas idéias, entremescla de Nietzsche com Oswald de Andrade, de Artaud com Brecht, e apesar do impiedoso tempo que nos arrasta à velhice e ao inevitável túmulo esta figuraça quintessencial de nossa cultura parece continuar em eterno verão – para citar o título de excelente reportagem e entrevista do El País:
Um dos grandes mestres do teatro brasileiro está prestes a completar 80 anos. Lúcido, sorridente, atuante. Muitos se perguntam qual é o segredo de José Celso Martinez Corrêa (Araraquara, 1937), o Zé Celso, para preservar tamanha energia e criatividade depois de 58 anos à frente do icônico Teatro Oficina – símbolo de resistência artística (e política) cravado no Bixiga, em São Paulo. Mas a verdade é que desse “xamã do teatro”, como ele gosta de se definir, não há segredos para se arrancar. Na entrevista concedida ao El País com os pés ao alto, em meio a uma nuvem de erva queimada, o dramaturgo vestido de um branco alvo como os fios de seus cabelos mostra que não tem assuntos proibidos, respondendo a esta altura da vida com voz suave tudo o que lhe é indagado. Isso, sim: sem fim, nem começo e pelos caminhos que lhe parecem.
A um desses caminhos ele volta sempre: a encenação de Bacantes, o clássico grego de Eurípedes montado pela primeira vez no Oficina em 1995 (em versão brasileira do diretor, no gênero “tragicomédia orgia”), que reestreou no Sesc Pompeia e logo passou ao Bixiga em outubro de 2016. A peça, de quase seis horas e com 52 atuadores em cena, reconstitui o ritual de origem do teatro na Grécia em 25 cantos e cinco episódios e tem música composta por Zé Celso (que também assina autoria e direção).
Encenada como ópera de Carnaval para cantar o nascimento, morte e renascimento de Dionísio, o deus do teatro, do vinho e das festas, ela tem lotado a casa tanto com habitués, como com novos assistentes – atraídos pela nudez libertária do elenco e às vezes também do público, pela genialidade do diretor, pela história ou por tudo ao mesmo tempo. A ideia é que os espectadores se integrem ao bacanal, e alguns deles terminam despidos pelos atores. Na primeira versão, isso aconteceu com Caetano Veloso. Por causa do sucesso orgiástico de Bacantes, Zé Celso ganhou ainda mais força e voz, voltando à carga em seus temas preferidos: teatro, política e xamanismo – que para ele são um só.
Para Zé Celso, duas coisas podem salvar o país da crise política em que começou a mergulhar em 2014: o xamanismo, claro, e a arte. O que ele procura é juntar as duas coisas, rumo à “revolução cultural” que o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica prega como a única saída para esses tempos obscuros.” (MORAES, Camila. O Eterno Verão de Zé Celso. El País.)
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II. VIVACIDADE DA ANTROPOFAGIA OSWALDIANA
“Todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser feitas dentro do bonde da civilização importada. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde.” OSWALD DE ANDRADE, “Contra Os Emboabas” (via Bia Azevedo, p. 68)
Se digo que 2016 não foi de todo um ano catastrófico neste país golpeado e achincalhado por suas escrotas elites canalhocratas, mas teve sim seus esplendores e glórias, é pois a nossa arte e nossos artistas mais relevantes e geniais não nos decepcionaram. Em 16 de Abril de 2016, na véspera da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, então presidida por Eduardo Cunha, estivemos na peça do Teatro Oficina, Para Dar Um Fim No Juízo De Deus.
Saí do teatro de alma lavada e com os ímpetos dionisíacos re-turbinados, orgulhoso dos artistas desta terra e certo de que a política, enfim, não é tudo – que um lamaçal ético sem fim, na Esplanada dos Ministérios, não impede a refulgência de uma contracultura que não se cala, que manifesta-se com exuberância, que abraça a resistência com todo a verve, todo o ímpeto, toda interconexão de uma trupe de mênades e sátiros. E, além disso, saí do teatro com a impressão de ter vivenciado uma imersão não só no universo de Artaud, mas, é claro, no de Oswald de Andrade, constantemente evocado por Zé Celso e sua trupe. Desde os anos 1960, quando encenou O Rei da Vela, o Oficina tem sido talvez o mais resiliente e fiel coletivo que honra o legado da utopia antropofágica oswaldiana.
Também em 2016, caiu no mercado um livro – Antropofagia: Palimpsesto Selvagem, de Beatriz Azevedo – que foi de imediato saudado por Eduardo Viveiros de Castro como “destinado a se tornar referência obrigatória para todo estudioso da obra deste que é, sem a menor sombra de dúvida, um dos maiores pensadores do século XX”. Viveiros de Castro pode até soar hiperbólico em seu elogio a Oswald como figura crucial no panorama do conhecimento global no século que se acabou, mas isto mostra o quanto este pensamento, longe de ser paroquial ou nacionalista, pode ser também uma espécie de produto de exportação autenticamente original gestado e gerado no solo fecundo da cultura brasileira. Queimando o bode da submissão e da subserviência às civilizações importadas e imperialistas.
Quem enxergou isso muito bem, como lembra Bia Azevedo, foi o Roger Bastide, sociólogo francês, que lecionou na USP e publicou em 1950 o livro clássico Brasil: Terra de Contrastes: “Oswald devora as teorias estrangeiras como a cidade devora os imigrantes, transformando-os em carne e sangue brasileiros.” (BASTIDE, apud Azevedo, p. 70) O antropófago Oswald “comeu” toda a diversidade das culturas estrangeiras, mas na hora do vamos ver foi lá e criou algo de novíssimo, algo de revolucionário. “O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que ‘a Antropofagia Oswaldiana é a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina até hoje. Era e é uma teoria realmente revolucionária.” (VIVEIROS DE CASTRO, apud Azevedo, p. 24)
A antropofagia é descrita como utopia no título de um dos livros de Oswald que a Ed. Globo recolocou no mercado e que traz textos clássicos como A Crise Da Filosofia Messiânica. Filosoficamente, Oswald tinha muitas similaridades e alianças com o pensamento de Nietzsche, e pode-se dizer que a antropofagia dialoga com o “dionisismo” como este aparece na obra do autor de Assim Falava Zaratustra. Oswald também é um crítico mordaz da civilização ocidental racionalista e repressora, que dá todas as honras a Apolo, a Sócrates, a Descartes, soltando os cachorros de sua feroz repressão contra Dioniso, contra Baco, contra mênades e bacantes, contra feiticeiras e heréticos… Oswald defende o caminho da “valorização do lúdico e da arte”, aproxima-se das teses de Huizinga em Homo Ludens no que diz respeito à presença em todas as culturas, de quaisquer latitudes e longitudes, da “constante lúdica”:
“O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica. O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos – o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema.” – OSWALD DE ANDRADE, “A Crise da Filosofia Messiânica” (Globo, 2001, p. 144)
por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Fevereiro de 2017
A ser continuado….
SIGA VIAGEM:
CONFLUÊNCIAS – Festival de Artes Integradas. 2ª Edição: Evoé Café Com Livros, Domingo, 26/02, a partir das 17 horas. Com poesia encenada e pocket show com Luiza Camilo, show percussão-e-coral com o quinteto Cocada Preta, exposição de artes visuais da Lua Plaza, performance poética de Morgana Poiesis, além de discotagem e feirão de livros. Página do evento @ Facebook Brasil.
A editora Globo acaba de relançar – depois de revista e atualizada pela autora – a mais importante biografia de um dos maiores nomes da cultura brasileira moderna. Oswald de Andrade: biografia é obra de Maria Augusta Fonseca, que vem se dedicando há décadas à vida e à obra do grande modernista. Um dos maiores nomes da cultura brasileira, e não somente da literatura, porque Oswald de Andrade foi um daqueles raros homens certos no lugar certo na hora certa: nas palavras de Antonio Candido, “sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o meio com a simples presença.” Esse meio era o da provinciana vida cultural brasileira do começo do século XX, que Oswald de Andrade ajudaria a ir ao encontro do mundo moderno.
Mente Espontânea reúne uma série de entrevistas, concedidas entre 1958 e 1996, revelando em minúcias a vida e a obra do poeta beatnik e pensador da cultura, Allen Ginsberg.
Autor daquele formidável Uivo, em larga medida composto sob o efeito psicodelizante do peiote, que tantos de nós consideram um magnum opus na história da poesia contemporânea, Ginsberg foi uma figura de proa da cultura global na época em que viveu. Estes bate-papos, alguns deles antes considerados impublicáveis, foram organizados cronologicamente e fornecem um excelente painel sobre a visão de mundo deste luminar da contracultura no século XX.
Ginsberg foi mais do que o autor de um one hit wonder literário; foi mais do que um ícone da Geração Beat junto com Kerouac, Burroughs, Ferlinghetti, Corso; foi mais do que um cara que influenciou Bob Dylan (agora reconhecido com o Nobel de Literatura 2016); foi uma espécie de sábio-místico-xamã, em busca perene de uma mente em profunda e constante expansão. “Através de suas opiniões podemos ter uma noção da grandeza, força, revolta e gratidão desse pensador que tanto respeito e admiro”, como escreve Lourenço Mutarelli na orelha desta edição publicada pela ed. Novo Século em 2013.
Em sua introdução, Edmund White avalia que, no decorrer de suas entrevistas, Allen Ginsberg “reafirma sua alta consideração por William Blake e Walt Whitman. Obviamente, ele ama o Blake visionário e o Whitman democrático sensualista; de fato, a sua personalidade literária pode ser interpretada como uma união dessas duas forças.” (p. 15)
Para Ginsberg, dar uma entrevista era um ato criativo e ao mesmo tempo uma ocasião para ensinar e disseminar suas idéias. Temas recorrentes em suas conversas, aponta E. White, são “a ecologia (ele já alertava sobre o aquecimento global duas décadas antes do alarme geral ter sido acionado), a expansão mental por intermédio das drogas e, mais tarde, do ioga, um engajamento ao pacifismo e à gentileza interpessoal, a homossexualidade, o papel fundamental da espontaneidade na criação artística” (p. 16).
Apologia da cannabis: Ginsberg e sua placa-poema “POT IS FUN” (“MACONHA É MASSA”)
Como o próprio Ginsberg enfatiza, em suas entrevistas e conversas ele sempre tratava os interlocutores como seres sencientes e capazes de iluminação: “conversava com as pessoas como se elas fossem futuros Budas.” Costumava derramar sua gratidão sobre artistas e pensadores do presente e do passado que admirava, caso de figuras como Gregory Corso, Kenneth Rexroth, Lawrence Ferlinghetti, Gary Snyder, Jack Kerouac, William Burroughs, Lenny Bruce, Timothy Leary, Carl Solomon, Chogyam Thungpa, dentre outros.
A leitura deste precioso material permite compreender melhor o formidável Uivo, que chaqualhou o cenário poético dos anos 1950, quando publicado em San Francisco pela City Lights Books de Ferlinghetti. Julgado “obsceno e indecente”, o livro logo seria envolvido numa batalha judicial e teria 520 cópias confiscadas pelas autoridades. Hoje, apesar das polêmicas empedernidas que se seguiram à sua publicação e que são narradas no filme estrelado por James Franco – o Howl and Other Poems – é tido como uma das obras-primas no cânone literário dos beatniks.
Ginsberg conta que, nesta época em que começa o bafafá em torno de seu livro e da a tentativa de censura ao Uivo, ele havia passado pela vivência de morar junto com Burroughs e Gregory Corso, por 8 meses, em Paris. As diversões da trupe incluíam visitar escritores malditos como Louis-Ferdinand Céline (autor de Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito). Não tenham dúvida de que nesta micro república beat as vitrolas tocavam muito free jazz e bebop, enquanto os moradores viajavam e criavam sob a influência de substâncias estupefacientes das mais variadas.
Retornando a Nova York, em 1960, Ginsberg conclui o poema Kaddish – “em parte graças a pílulas de dexedrina” (como revela Ernie Barry, p. 27). No mesmo ano de 1960, sob supervisão do doutor Timothy Leary, tomou LSD e, voltando da trip, começou a bolar planos sobre a Revolução Psicodélica.
Cosmonauta da galáxia interior e exterior, Allen Ginsberg uivou diante do dínamo estrelado da noite. Em suas viagens mais pé-no-chão, suas trips no sentido literal do termo, o poeta foi excêntrico e aventureiro em suas explorações do planeta Terra. Esteve em Tel Aviv, onde conheceu Martin Buber e Gershom Scholem. Passou longa temporada na Índia, fase relatada em seus Indian Journals, o que talvez tenha contribuído para torná-lo fissurado em sabedoria oriental e “cofundador da Escola de Poesia Desencarnada no Instituto Naropa, o primeiro renomado colégio budista do mundo ocidental”, segundo a minibiografia incluída neste livro.
Em 1963, sua escolha de turismo foi o Vietnã: foi a Saigon para ver as ruínas de Angkor Wat e ali “se informou com jornalistas e pessoas próximas acerca da situação daquele país e sobre o papel dos norte-americanos em solo vietnamita.” (BARRY, p. 28) Em 1964, em entrevista ao periódico da livraria e editora City Lights (de Ferlinghetti), Allen Ginsberg já falava como ativista de um movimento social dissidente, pacifista, crítico da presença dos EUA no Vietnã – e protestava “vestido” com placas repletas de versos como “man is naked without secrets, armed men lack this joy” “(o homem está nu sem segredos /homens armados carecem dessa alegria). Escrevia clamando – às vezes até mesmo profetizando! – “no more hell in Vietnam” (p. 29).
De Walt Whitman, o poeta das Leaves of Grass, libertador da poesia em relação às correntes do cânone, Allen Ginsberg aprendeu muito, mas sobretudo a coragem da ternura. Ao afirmar o valor da ternura, e a necessidade de coragem para ser termo, de certo soma a sua voz à de Ernesto Che Guevara (“hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”) e prenuncia Morissey e a vibe do verso dos Smiths: “it takes strenght to be gentle and kind”. Ginsberg, grato e devotado a um dos maiores poetas estadunidenses ever, diz que para Whitman
“foi preciso muita coragem para demonstrar ternura livremente, e pela primeira vez, nos EUA; isto está na base inconsciente de nossa democracia, não é? (…) Só através do afeto e da ternura é que teremos um mundo mais seguro para a prática da democracia. Seja gentil com os policiais; eles não são policiais, são apenas pessoas disfarçadas que foram enganadas pelos próprios disfarces.” (GINSBERG, 1964, San Francisco’s City Lights, p. 31-34)
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SINOPSE: “Uivo” (1956), de Allen Ginsberg, um dos poemas mais importantes da Geração Beat, é um épico irado contra a sociedade desumanizante, que venceu ações de censura e acusações de obscenidade para se tornar um dos poemas mais lidos do século. Admirado por figuras como Bob Dylan e Patti Smith, Allen Ginsberg é um dos mais importantes poetas estadunidenses do século XX e sua obra recebeu nova propulsão com este livro, ilustrado pelo artista Eric Drooker. As ilustrações de Drooker também marcam presença em cenas do filme “Howl”, protagonizado por James Franco (veja o trailer: https://youtu.be/m5U3f-g4WPk). Confira esta graphic novel deslumbrante, inteiramente colorida, 222 pgs. Livro gráfico novo, em perfeito estado. Acesse na Estante Virtual.
Nunca foi tão oportuna quanto agora a discussão sobre os efeitos cerebrais e fisiológicos da Cannabis, popularmente conhecida como maconha. Se por um lado uma parcela da sociedade começa a questionar a pertinência das políticas públicas que criminalizam seu uso, por outro a ciência avança a passos largos para decifrar a enorme variedade de efeitos fisiológicos e psicológicos induzidos por seus princípios ativos. […] A maconha é uma das drogas recreativas mais usadas no mundo e está entre as mais antigas plantas domesticadas pelo homem. Esteve presente nos primórdios da agricultura, tecnologia, religiões e medicina. Testemunhos eloqüentes de seu impacto na civilização estão presentes nas escrituras sagradas e nos mais antigos documentos médicos das mais diversas culturas.
O número de artigos científicos publicados sobre o sistema canabinóide cresce linearmente a cada ano, de forma que a maconha protagoniza uma verdadeira revolução, representando uma das mais promissoras fronteiras no desenvolvimento da neurobiologia e da medicina. A descoberta dos endocanabinóides, ou seja, moléculas análogas aos princípios ativos da maconha, mas produzidas pelo próprio cérebro, é a grande novidade por trás dessa guinada científica. Neste início de século XXI, acredita-se que os canabinóides possam estar envolvidos na remodelação de circuitos neuronais, na extinção de memórias traumáticas, na formação de novas memórias e na proteção de neurônios. […] A desregulação do sistema canabinóide pode estar envolvida nas causas da depressão, dependência psicológica, epilepsia, esquizofrenia e doença de Parkinson.
I. A HISTÓRIA NATURAL DA MACONHA
Acredita-se que a Cannabis seja originária da região central da Ásia, onde ainda é encontrada em sua forma silvestre. Hoje em dia, uma extensa faixa de estepes entremeada por desertos recobre esta região seca e gelada. Entretando, há evidências de que a planta já existia por ali numa época em que o clima era mais úmido e quente, o que confirma sua extraordinária capacidade adaptativa. Desta região a planta teria se espalhado pelo mundo graças aos movimentos migratórios de nômades e à atividade de comerciantes. A milenar relação do homem com esta planta acabou por gerar inúmeras variedades das três subespécies da Cannabis (indica, sativa, ruderalis), selecionadas segundo o interesse de quem as cultivava, tais como a qualidade da fibra e a quantidade da resina que produziam.
Vêm da China as mais antigas evidências da relação do homem com a Cannabis. Em 1953, numa vila chamada Pan-p’o, às margens do Rio Amarelo, trabalhadores escavavam as fundações de uma fábrica moderna sem imaginar que retiravam do chão a terra que os separava da pré-história de seu povo. Ali, sob sedimentos acumulados por mais de 6 mil anos, eles encontrariam indícios de que a Cannabis já fazia parte daquele cotidiano da idade da pedra: peças de cerâmica caprichosamente decoradas com marcas de tramas feitas de fibras de Cannabis.
O achado arqueológico sugere que a Cannabis era usada na tecelagem rudimentar e na confecção de cordas e redes de pesca pelos ancestrais dos chineses. Outros sítios arqueológicos espalhados pela China e na Ilha de Taiwan revelaram que ao longo dos séculos a versatilidade dos usos da Cannabis tornou seu cultivo imprescindível para a vida nas vilas do leste asiático. Seus pequenos frutos se tornaram um dos mais importantes grãos usados na alimentação, e uma fonte primordial de óleo comestível e combustível. […] A qualidade das fibras da Cannabis também possibilitou aos chineses a invenção do papel.
Segundo o botânico e geógrafo russo Nicolay Vavilov (1887-1943), o homem primitivo experimentava todas as partes das plantas que pudesse mastigar, de forma que os brotos e inflorescências de variedades de Cannabis ricas em resinas aromáticas e pequenos frutos oleosos deveriam lhe parecer especialmente atraentes. Evidentemente, para aqueles que vieram a comer da planta, foi inevitável ingerir também os princípios psicotrópicos abundantes na sua resina, transformando a despretensiosa refeição numa experiência certamente inesquecível, com enormes consequências para a humanidade. Naquele contexto, os efeitos mentais da maconha teriam representado para esses coletores incautos nada menos do que um mergulho profundo em uma realidade completamente fora deste mundo, produzindo intensas sensações místicas.
….o homem antigo gradualmente aprendeu a reconhecer as propriedades farmacológicas das plantas por tentativa e erro, experimentando-as. Esse tipo de conhecimento empírico foi sendo adquirido e preservado pelos antigos xamãs asiáticos.
[…] Em 2006, foi encontrada na divisa entre China, Mongólia e Rússia a tumba de um xamã que viveu a cerca de 2.500 anos. Com ele foi enterrada, além de um instrumento musical, uma cesta de ouro contendo um farto suprimento de brotos e inflorescências de maconha que, devido ao frio, ainda presevavam um alto teor de canabinóides. Para xamãs como este, as propriedades psicotrópicas e medicinais dos mais diversos princípios da natureza, inclusive a maconha, eram sagradas e constituíam valiosas ferramentas farmacológicas necessárias ao ofício diário de diminuir as dores do corpo e dialogar com as diferentes dimensões da consciência.
A mais antiga farmacopéia (enciclopédia de medicamentos) do mundo, o Pen-ts’ao ching, foi escrita no primeiro século depois de Cristo a partir da compilação desse conhecimento tradicional, passado de geração em geração. […] A maconha era ali indicada para o tratamento de dor reumática, constipação, problemas femininos associados à menstruação, beribéri, gota, malária e falta de concentração…
O grego Heródoto (484-425 a.C.) nos legou em sua História o mais vívido e explícito relato que existe sobre os efeitos psicoativos da maconha na antiguidade. Segundo este relato, como parte de um ritual de purificação após enterrarem seus mortos, os citas entravam em uma tenda no centro da qual colocavam um caldeirão de bronze contendo pedras aquecidas. ‘Os citas então jogam as sementes de maconha nas pedras em brasas: as sementes queimam como incenso e produzem um vapor tão denso que nenhuma sauna grega poderia superar. Ao se deliciarem com esses vapores, os citas uivam como lobos’.
[…] A Cítia eventualmente desapareceu como nação, mas seus descendentes se espalharam pela Europa oriental, legando costumes presentes até hoje no folclore dessa região, sobretudo no norte dos Bálcãs, onde, por ex., se toma sopa com sementes de Cannabis no dia de ano-novo.O filósofo grego Demócrito, contemporâneo de Heródoto, relatou que ‘a maconha era bebida ocasionalmente, misturada com mirra e vinho, para produzir um estado visionário’. […] “…o uso médico e religioso da maconha sob a forma de uma bebida chamada bhanga já fazia parte da cultura dos persas na época de Heródoto… a bhanga teria a capacidade de revelar aos mortais os mais altos mistérios.
É bem possível que os hebreus já soubessem da existência da maconha antes mesmo de sua fuga do Egito, tendo em conta que os historiadores acreditam que o êxodo descrito no velho testamento possa ter ocorrido durante ou pouco antes do reinado do faraó Ramsés II (1195-1164 a.C.), o qual provavelmente conhecia muito bem os efeitos da maconha, conforme se pôde constar pela grande presença de canabinóides nos cabelos de sua múmia.
Em nenhuma outra civilização a maconha teve um prestígio religioso e medicinal tão expressivo quanto na Índia. De acordo com o Vedas, conjunto de textos que compõem as bases filosóficas do Hinduísmo, os deuses teriam mandado a maconha ao homem para que este pudesse alcançar mais coragem, libido e prazer.
Uma fábula conta que, em um dia ensolarado, Shiva, o deus mais importante do Hinduísmo, estava aborrecido por causa de um desentendimento com sua família e saiu sozinho para caminhar nos campos, até que resolveu buscar proteção do sol sob a sombra de um majestoso arbusto de maconha. Curioso a respeito da planta que lhe dera abrigo, Shiva comeu de suas folhas e se sentiu tão revigorado que adotou a planta como sua favorita. […] Um livro sagrado escrito entre 2000 e 1400 a.C. reconhece a propriedade que a maconha tem de aliviar a ansiedade. O Vedas também se refere à maconha, uma das cinco ervas sagradas do Hinduísmo, como sendo uma fonte de alegria, regozijo e liberdade.
Diz uma lenda da corrente mahayana do Budismo tibetano que Siddharta Gautama, a primeira encarnação de Buda, se alimentou exclusivamente de sementes de maconha, uma por dia, durante os seis anos de preparação que precederam sua chegada ao Nirvana. Já na tradição do Budismo Tântrico… a maconha é utilizada para facilitar a meditação e potencializar as percepções sensoriais envolvidas em cada aspecto das cerimônias tântricas. Nos ritos sexuais, uma boa quantidade de bhang é ingerida com antecedência, de forma que os efeitos potencializadores dos sentidos coincidam com o auge da prolongada cerimônia sexual cujo objetivo final é o de alcançar a comunhão espiritual com a deusa Kali.
Foi somente por consequência da ocupação britânica da Índia, já no século XIX, que a Europa veio a tomar contato com as propriedades medicinais da maconha…. seu uso se espalhou pela Europa e EUA de tal forma que, já nas primeiras décadas do século XX, dezenas de remédios à base de maconha estavam sendo produzidas pelos mais importantes laboratórios farmacêuticos, sendo recomendadas pelos médicos para os mais variados problemas, incluindo: enxaquecas, dor-de-dente, cólicas menstruais, hemorragia menstural e pós-parto, risco de aborto, úlcera gástrica, indigestão, inflamação crônica, reumatismo, eczema, estímulo do apetite e tratamento de anorexia.
Paralelamente, contudo, desenvolviam-se vacinas e antibióticos contra doenças infecciosas, além de novos remédios com indicações mais específicas, que passaram a ser de maior interesse para a indústria farmacêutica do que aqueles com efeitos múltiplos, como os que continham extrato de maconha… Finalmente, em 1941, a maconha saía oficialmente das páginas da farmacopéia norte-americana para figurar nas páginas policiais daquele país.
(…) O uso da maconha foi consagrado como símbolo do pacifismo hippie e da defesa das liberdades individuais, estabelecendo-se a partir de então como um ícone da cultura pop norte-americana. Em 1980, nada menos do que 68% dos norte-americanos já haviam experimentado a maconha ao menos uma vez.
No Brasil, escravos e campesinos usavam-na socialmente no final do dia de trabalho, quando se reuniam de forma quase ritualística para relaxar em rodas de fumo… a planta era fumada para facilitar o transe místico… Mas o efeito relaxante da maconha não era visto com bons olhos por patrões e senhores de escravos. […] O uso da maconha passou a ser combatido como vício pela elite econômica […] e sofreu perseguição de cunho fortemente racista, e sua proibição eventualmente passou a servir de pretexto para a opressão de indivíduos de origem africana que, sobretudo após a abolição da escravatura, eram vistos pelos brancos como uma parcela perigosa da população.
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Um aspecto que distingue a maconha de muitas outras plantas medicinais é o conjunto de efeitos mentais que seu uso provoca. As relações milenares do homem com a Cannabis certamente decorrem de estados psicológicos prazerosos associados a seu consumo, e da possibilidade de obter tais efeitos de forma rápida e transitória. A maconha em doses não excessivas geralmente provoca uma experiência de alteração mental livre de náusea, vômito, diarréia, dor de cabeça, pânico, fortes alucinações ou perda de consciência. O ‘barato’ causado pela maconha, embora não seja normalmente estudado por ser valor terapêutico, está associado à melhora do humor, à redução da ansiedade e à sedação moderada, qualidades desejáveis no tratamento de diversas doenças.
Contudo, se é certo que muitos dos efeitos psicológicos da maconha estão direta ou indiretamente relacionados aos seus usos terapêuticos, também é certo que o interesse do homem por eles vai muito além da esfera medicinal. Assim, em diferentes tempos e culturas, as propriedades psicoativas da maconha têm sido utilizadas para finalidades religiosas, artísticas e recreativas.
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Um dos efeitos imediatos mais mencionados é o alívio do estresse mental e físico. […] De forma geral, a maconha funciona como um ansiolítico, causando um relaxamento que é frequentemente acompanhado da sensação de bem-estar e euforia, muitas vezes evidenciada por longos acessos de gargalhadas. Aumentam também a sensação de paz interior e empatia, facilitando as interações interpessoais. É comum ainda a alteração na percepção do tempo, que parece passar mais lentamente.
As emoções e percepções se intensificam, aprofundando a apreciação estética, lúdica e sensual dos sentidos. A percepção visual se enriquece, sendo marcada por cores mais vibrantes, com diferentes nuances, contornos que se destacam com mais clareza do fundo e variações mais nítidas de luz e sombra, realçando a percepção da tridimensionalidade. Assim, elementos visuais sutis ganham vivacidade sob efeito da maconha, permitindo ao usuário enxergar com clareza texturas, padrões, formas e estruturas complexas que não lhe seriam perceptíveis sem o uso da droga.
Com relação à audição, os relatos frequentes dos usuários indicam que a maconha aumenta a acuidade auditiva, facilitando, por exemplo, a percepção de mudanças sutis de ritmos, timbres e notas musicais. É facilitada também a identificação das palavras cantadas e de cada instrumento tocado e a separação espacial dos instrumentos se torna mais clara.
[…] Sob efeito da maconha o raciocínio muitas vezes adquire mais velocidade e fluidez, resultando em associações mais flexíveis de conceitos, idéias e emoções. Além disso, imagens mentais ganham maior vividez. Se por um lado esses efeitos favorecem a criatividade e a elaboração de metáforas, por outro lado, sobretudo em usuários pouco experientes, dificultam o raciocínio lógico e objetivo. […] Tais alterações na forma de pensar, associadas aos efeitos relaxantes e ao aumento da capacidade imaginativa, certamente contribuem para um aprofundamento da introspecção reflexiva.
Se por um lado a maconha diminui a ocorrência de sono REM e por extensão diminui efetivamente a oportunidade de sonhar, seus efeitos sobre a vigília são de certa forma oníricos, promovendo um afrouxamento perceptual e lógico que é descrito por muitos usuários como similar ao sonho. Vista por esse lado, a ação da maconha seria a redução do sonho noturno (night-dream) e o aumento da divagação da vigília (day-dream). Seu uso facilita o processo criativo e a geração de insights. Além de ser um poderoso estimulador do apetite, a maconha é também utilizada como relaxante ou mesmo como afrodisíaco.
O aprofundamento geral da experiência sensorial enriquece a apreciação e produção das artes, fazendo da maconha uma droga especialmente utilizada pelos que vivem da sensibilidade artística. Não é por acaso que o cantor e compositor de reggae Peter Tosh, líder (assim como Bob Marley) do movimento Rastafari globalizado nos anos 1970, afirma em seu hino pela legalização da maconha (Legalize It) que a maconha é usada por muitos na sociedade, como juízes e médicos, mas começa sua lista pelos cantores e instrumentistas.
Além de favorecer a veiculação de emoções através das artes e estimular a comunicação verbal, a maconha também favorece estados de baixa ansiedade, como a contemplação lúdica, a introspecção, a empatia e o transe místico.
Trechos extraídos do livro:
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Alguns documentários cannábicos de alta relevância:
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The illegality of cannabis is outrageous, an impediment to full utilization of a drug which helps produce the serenity and insight, sensitivity and fellowship so desperately needed in this increasingly mad and dangerous world.
Carl Sagan
If the words “life, liberty and the pursuit of happiness” don’t include the right to experiment with your own consciousness, then the Declaration of Independence isn’t worth the hemp it was written on.
ESTADOS MÍSTICOS DE CONSCIÊNCIA
por WILLIAM JAMES (1842-1910) in: “Varieties of Religious Experience”
Formado em medicina, “um dos fundadores da psicologia moderna e importante filósofo ligado ao Pragmatismo”, William James escreveu no começo do século XX um livro já clássico, As Variedades da Experiência Religiosa. Na sequência, compartilhamos um texto desta obra em que James versa sobre o misticismo (entendido como um estado “expandido” de consciência), tece relações com o conceito de “consciência cósmica” de Bucke e filosofa sobre as substâncias químicas facilitadoras destes “transes místicos” (Aldous Huxley será profundamente influenciado por este estudo em suas próprias viagens na tentativa de decifrar os estados mentais desencadeados pelo consumo da mescalina, por exemplo). James faz ainda um belo elogio da música, da poesia e da arte em geral, avançando a hipótese ousada de que nossa susceptibilidade estética, ou nossa capacidade para fruir obras-de-arte, depende do frescor e da vivacidade das potencialidades místicas de nossa consciência. Um texto denso, profundo e belíssimo que vale a pena ler com calma, refletir sobre e viajar em cima. Have a nice trip!
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“MYSTICISM” (BY WILLIAM JAMES)
What does the expression ‘mystical states of consciousness’ mean? I’ll propose to you four marks which, when an experience has them, may justify us in calling it mystical:
1. Ineffability.- The handiest of the marks by which I classify a state of mind as mystical is negative. The subject of it immediately says that it defies expression, that no adequate report of its contents can be given in words. It follows from this that its quality must be directly experienced; it cannot be imparted or transferred to others. In this peculiarity mystical states are more like states of feeling than like states of intellect. No one can make clear to another who has never had a certain feeling, in what the quality or worth of it consists. One must have musical ears to know the value of a symphony; one must have been in love one’s self to understand a lover’s state of mind. Lacking the heart or ear, we cannot interpret the musician or the lover justly, and are even likely to consider him weak-minded or absurd. The mystic finds that most of us accord to his experiences an equally incompetent treatment.
2. Noetic quality.- Although so similar to states of feeling, mystical states seem to those who experience them to be also states of knowledge. They are states of insight into depths of truth unplumbed by the discursive intellect. They are illuminations, revelations, full of significance and importance, all inarticulate though they remain; and as a rule they carry with them a curious sense of authority for after-time.
3. Transiency.- Mystical states cannot be sustained for long. Except in rare instances, half an hour, or at most an hour or two, seems to be the limit beyond which they fade into the light of common day. Often, when faded, their quality can but imperfectly be reproduced in memory; but when they recur it is recognized; and from one recurrence to another it is susceptible of continuous development in what is felt as inner richness and importance.
4. Passivity.- Although the oncoming of mystical states may be facilitated by preliminary voluntary operations, as by fixing the attention, or going through certain bodily performances, or in other ways which manuals of mysticism prescribe; yet when the characteristic sort of consciousness once has set in, the mystic feels as if his own will were in abeyance, and indeed sometimes as if he were grasped and held by a superior power. This latter peculiarity connects mystical states with certain definite phenomena of secondary or alternative personality, such as prophetic speech, automatic writing, or the mediumistic trance. When these latter conditions are well pronounced, however, there may be no recollection whatever of the phenomenon and it may have no significance for the subject’s usual inner life, to which, as it were, it makes a mere interruption. Mystical states, strictly so called, are never merely interruptive. Some memory of their content always remains, and a profound sense of their importance. They modify the inner life of the subject between the times of their recurrence.
The simplest rudiment of mystical experience would seem to be that deepened sense of the significance of a maxim or formula which occasionally sweeps over one. “I’ve heard that said all my life,” we exclaim, “but I never realized its full meaning until now.” (…) This sense of deeper significance is not confined to rational propositions. Single words, and conjunctions of words, effects of light on land and sea, odors and musical sounds, all bring it when the mind is tuned aright. Most of us can remember the strangely moving power of passages in certain poems read when we were young, irrational doorways as they were through which the mystery of fact, the wildness and the pang of life, stole into our hearts and thrilled them. The words have now perhaps become mere polished surfaces for us; but lyric poetry and music are alive and significant only in proportion as they fetch these vague vistas of a life continuous with our own, beckoning and inviting, yet ever eluding our pursuit. We are alive or dead to the eternal inner message of the arts according as we have kept or lost this mystical susceptibility.
The next step into mystical states carries us into a realm that public opinion and ethical philosophy have long since branded as pathological, though private practice and certain lyric strains of poetry seem still to bear witness to its ideality. I refer to the consciousness produced by intoxicants and anaesthetics, especially by alcohol. The sway of alcohol over mankind is unquestionably due to its power to stimulate the mystical faculties of human nature, usually crushed to earth by the cold facts and dry criticisms of the sober hour. Sobriety diminishes, discriminates and says no; drunkenness expands, unites, and says yes. It is in fact the great exciter of the Yes function in man. It brings its votary from the chill periphery of things to the radiant core. It makes him for the moment one with truth. Not through mere perversity do men run after it. To the poor and the unlettered it stands in the place of symphony concerts and of literature; and it is part of the deeper mystery and tragedy of life that whiffs and gleams of something that we immediately recognize as excellent should be vouchsafed to so many of us only in the fleeting earlier phases of what in its totality is so degrading a poisoning. The drunken consciousness is one bit of the mystic consciousness, and our total opinion of it must find its place in our opinion of that larger whole.
Our normal waking consciousness, rational consciousness as we call it, is but one special type of consciousness, whilst all about it, parted from it by the filmiest of screens, there lie potential forms of consciousness entirely different. We may go through life without suspecting their existence; but apply the requisite stimulus, and at a touch they are there in all their completeness, definite types of mentality which probably somewhere have their field of application and adaptation. No account of the universe in its totality can be final which leaves these other forms of consciousness quite disregarded. How to regard them is the question,—for they are so discontinuous with ordinary consciousness. Yet they may determine attitudes though they cannot furnish formulas, and open a region though they fail to give a map. At any rate, they forbid a premature closing of our accounts with reality. Looking back on my own experiences, they all converge towards a kind of insight to which I cannot help ascribing some metaphysical significance. The keynote of it is invariably a reconciliation. It is as if the opposites of the world, whose contradictoriness and conflict make all our difficulties and troubles, were melted into unity.
Even the least mystical of you must by this time be convinced of the existence of mystical moments as states of consciousness of an entirely specific quality, and of the deep impression which they make on those who have them. A Canadian psychiatrist, Dr. R.M. Bucke, gives to the more distinctly characterized of these phenomena the name of cosmic consciousness.
“The prime characteristic of cosmic consciousness is a consciousness of the cosmos, that is, of the life and order of the universe. Along with the consciousness of the cosmos there occurs an intellectual enlightenment which alone would place the individual on a new plane of existence- would make him almost a member of a new species. To this is added a state of moral exaltation, an indescribable feeling of elevation, elation, and joyousness, and a quickening of the moral sense, which is fully as striking, and more important than is the enhanced intellectual power. With these come what may be called a sense of immortality, a consciousness of eternal life, not a conviction that he shall have this, but the consciousness that he has it already.”
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