O VÍRUS DO OBSCURANTISMO: O desdém pela ciência, em época de pandemia, é um crime contra a humanidade || Por Eduardo Carli

(Arte por Osama Hajjaj)

O desdém pela ciência, típico dos obscurantistas de todas as épocas, torna-se indefensável em meio a uma pandemia global (segundo decreto da OMS – Organização Mundial de Saúde) como esta que estamos enfrentando em 2020.

Imaginem o grau de irresponsabilidade de líderes religiosos que ousassem dizer a seus rebanhos de crentes que tudo o que precisamos agora é cair de joelhos e rezar em grandes aglomerações públicas de devotos unidos pela fé.

Imaginem quão horrível seria o equívoco supersticioso de crer na eficácia profilática da congregação de vários corpos devotos dentro de um mesmo templo, em franca violação dos conselhos das autoridades sanitárias e de saúde.

Imaginem quão destrutiva seria a esperança dos crentes, inflacionada por seus pastores, de que várias vozes em coro (ainda que tosses e espirros viessem para sujar com dissonâncias esta polifonia da fé) seriam melhor ouvidas por um suposto divino Deus lá na altura dos Céus.

Imaginem a “felicidade” da legião dos coronavírus diante destas ofertas profusas de novos “recursos humanos” a serem facilmente colonizados: cada culto, cada missa, cada reza coletiva, um verdadeiro banquete para o deleite destes micro-organismos famintos por células a penetrar para ali realizar seu frenético trabalho de multiplicação.

Imaginem… Não, não precisam imaginar! Consultem o noticiário e vejam as evidências concretas de uma disseminação do coronavírus em congregações de humanos em encontros religiosos – circunstâncias que o obscurantismo quer perpetuar. Leiam os relatos da RFI sobre a situação na França, ou do DW Deustche Welle sobre a situação no Irã (https://bit.ly/2U4vF6B), e verão o tamanho da irresponsabilidade que seria permitirmos a continuidade “normal” de cultos e missas no Brasil.

Seria insensato ao extremo deixar a saúde pública na dependência de uma intervenção divina que, para além de altamente improvável, conceba como condição para sua realização, que creia que a única chance para o fazer-se carne de um milagre, sejam as aglomerações das pessoas-de-fé. Está aí uma receita para a catástrofe humanitária que cairá como uma bomba sobre nossos sistemas de saúde.

É justamente esta insanidade grotesca da fé obscurantista, anti-científica, temerária e insensata que está sendo praticada por lideranças evangélicas no Brasil: Silas Malafaria, R. R. Soares, Edir Macedo, dentre outros pastores trambiqueiros (como os apelidou o sambista Bezerra da Silva), estão protagonizando um show de horrores da irresponsabilidade (no que acompanham o “Mito”, que atingiu o cúmulo da irresponsabilidade em seus ações no dia 15 de Março).

Informa a reportagem da BBC News Brasil:

O pastor Silas Malafaia, por exemplo, afirmou em um culto que não fechará sua igreja, a Vitória em Cristo, por causa da pandemia. “Não vou fechar igreja coisíssima nenhuma. Se amanhã os governos disserem que vão impedir transporte público, fechar mercados, fechar todas as lojas… Como pastor, acredito que a igreja tem que ser o último reduto de esperança para o povo. Se fechar tudo, numa medida drástica, a igreja precisa estar de porta aberta.”

Na semana passada, o missionário R.R Soares, da Graça de Deus, afirmou que a população “não precisa ter medo de jeito algum” do coronavírus. “Já houve outras ameaças no meio da humanidade. A profecia, lá no Apocalipse, diz que vai chegar um tempo em que uma terça parte das pessoas vai morrer. Mas ainda não estamos nessa época, não estamos na época de ganhar as almas para Jesus”, afirmou.

Já o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, pediu que seus fiéis não leiam notícias sobre o coronavírus. “Ao invés de você ler essas notícias que falam de morte e de quarentena, da epidemia e pandemia, olhe para a palavra de Deus e tome sua fé na palavra de Deus, porque essa, sim, faz você ficar imune a qualquer praga e a qualquer vírus, inclusive o coronavírus”, disse.

Não se trata aqui de afirmar que os líderes evangélicos neopentecostais do Brasil possuem o monopólio da estupidez – outras religiões instituídas, mundo afora, decerto estão prestando à Humanidade o desserviço de disseminar comportamentos obscurantistas assim. Porém, dado o poder que lamentavelmente conquistaram no país, os pastores evangélicos precisam com urgência serem criticados sem medo por todos os cidadãos que se importam com medidas eficazes de contenção da pandemia.

Escreveu Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo:

“Desde a primeira grande peste moderna no Ocidente (1347), e talvez já antes, na peste dita de Justiniano (541), sempre houve mentecaptos para pregar que a pestilência era mais uma praga, tipo as pragas bíblicas do Egito, para humilhar os falsos deuses e mostrar o poderio do Deus do Antigo Testamento. Portanto, não temam o contágio, meus irmãos, só venham para a igreja.

Na hora do medo, há os que compram álcool em gel para revendê-lo a preços absurdos no Mercado Livre ou na Amazon. E há os que oferecem explicações da pestilência segundo as quais a proteção divina é garantida a quem segue a reta via. O mapa está à venda na saída do culto.”

Não é o irracionalismo das fés que vai nos salvar deste gigantesco desafio coletivo, mas sim a força conjugada de nossa lucidez e de nosso trabalho de pesquisa e experimentação científica. O que precisamos é de uma vacina, não de vaticínios; estamos urgentemente necessitados, por exemplo, da popularização do anti-viral que a medicina cubana provou ser eficaz no combate à doença causada pelo coronavírus, e não da crença em águas-bentas ou orações tresloucadas pelo pânico.

Além disso, as religiões instituídas estão programadas para funcionarem de maneira sectária e excludente, tratando aqueles que não comungam de um mesmo corpo de dogmas como pessoas a serem mantidas a distância, sob suspeita, quando não silenciadas, perseguidas ou mesmo assassinadas por seus pecados, heresias e blasfêmias.

Esta combinação de solidariedade limitada a uma bolha sectária e ódio aprendido pela alteridade variante é outra receita para o desastre.

A Ciência, por mais falível que seja, não é uma seita: ela é internacionalista por essência, avança por colaboração entre os pesquisadores espalhados pelo globo, dedica-se à pesquisa dura e difícil da Phýsis de modo a poder modificar este mundo físico (e bioquímico) de acordo com os fins humanos.

Não se trata de fazer da Ciência um novo ídolo, caindo de joelhos para dela esperar a salvação, mas de saber que neste momento qualquer atitude anti-científica contribui para uma hecatombe – ou seja, para o aumento do sofrimento humano, para o incremento do número de infectados, para a “viralização” do coronavírus.

Pelo bem da humanidade, todos vocês que são demasiado cheios de fé e nem suspeitam dos imensos malefícios que uma conduta irracionalista pode acarretar, tenham pelo menos a humildade de tomar algumas doses de dúvida e alguns tragos de respeito humilde por aqueles que, ao invés de rezar, trabalham duramente em laboratórios e universidades para encontrar vacinas e remédios.

Um emblema literário inesquecível da mensagem que este humilde escriba tentou comunicar através destas mal-traçadas linhas está no romance “A Peste”, de Albert Camus (1957): ali, o grande escritor franco-argelino nos concedeu, no destino do Padre Paneloux, um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. (Os parágrafos seguintes contêm spoilers)

Em meio à Oran transtornada pela epidemia, o padre Paneloux faz seus sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí salta à idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus, de modo que a atitude de um autêntico cristão seria a aceitação plena dos decretos do Céu.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-los, sem poupar esforços para salvá-lo.

Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos e permanecer aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduziu a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decidiu imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

Por Eduardo Carli de Moraes, 19/03/2020

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS / CONEXÕES COM A IMPRENSA ONLINE

CALLIGARIS, Contardo. “Quais os efeitos do coronavírus na cabeça da gente?”. In: Folha de S. Paulo, 19.03.2020.

CAMUS, Albert. La Peste. Originalmente lançado por Gallimard, 1947. Edição consultada – Paris: Folio, 1999.

BBC Brasil. “De cultos online a ‘não leia notícias sobre pandemia’: como as religiões estão lidando com o coronavírus no Brasil”. Por Leandro Machado.

DEUTSCHE WELLE. “Iran faces catastrophic death toll from coronavirus”. Por Shabnam von Hein. 17.03.2020.

RFI. “Evento fechado em igreja evangélica espalha coronavírus por toda a França”. 10.03.2020.


LEIA TAMBÉM:

LOS ANGELES TIMES (California) – 08/03/2020: Religion copes with fear of coronavirus spread.

A URGÊNCIA DE ENSINAR A DESOBEDECER – Ensaio de subversão pedagógica com Bell Hooks, Federici, Atwood e P. Freire || A Casa de Vidro

Se é preciso ensinar a desobedecer, fazendo das escolas zonas de insubmissão e das universidades células revolucionárias, é pois a História está repleta de provas de que já ensinou-se por tempo demais, e com consequências desastrosas, para a obediência.

A banalidade do mal – que neste artigo defendo ser um conceito de tenebrosa atualidade – é um subproduto da obediência cega, do respeito submisso e acrítico a hierarquias. E a prole desta banalidade da malévola norma – submeter-se ao opressor, fazer-se dele cúmplice… – são atrocidades em série, da caça às bruxas aos holocaustos (humanos e animais).

Chega de ensinar a obedecer! Agora é tempo de ensinar a transgredir, como ensina Bell Hooks. As mulheres o sabem melhor do que ninguém: sempre se martelou em suas orelhas que a obediência é o primeiro e principal dever de uma boa esposa (“bela, recatada e do lar”). A obediência foi, através da longa e triste história da dominação masculina, celebrada pelo Patriarcado como virtude feminina por excelência – e, como escreve Silvia Federici, era forçada na marra “pela Igreja, pela lei, pela opinião pública, e sobretudo pelos castigos cruéis que foram inventados como o scold’s bridletambém conhecido como branks, um instrumento sádico feito de metal e couro que iria rasgar a língua de uma mulher que tentasse falar.” [1]

A sociedade patriarcal assim mandava uma mensagem a todas as mulheres: sejam obedientes e subservientes, caso contrário serão torturadas e exterminadas. Calem-se quando nós homens exigirmos que se calem, caso contrário suas belas línguas serão destroçadas pelas lâminas de nossas invenções torturantes. Eis um dos emblemas históricos mais impressionantes de uma pedagogia da subserviência, de um ensino da obediência, que a Pedagogia do Oprimido proposta por Paulo Freire tem como uma de suas missões históricas confrontar-pra-superar:

A branked scold in New England, from an 1885 lithograph – Wikipedia

Precisamos da disseminação de uma educação que se insurja contra a cultura do silenciamento (muito bem analisada no artigo do Prof. Venâncio Lima). A cultura do silêncio se manifesta também na escola quando se institui em dogma a cisão entre professor que fala aluno que cala. Por isso acredito que seja preciso recolocar a ênfase da educação na expressão: a escola que ensina o estudante a se expressar melhor pois lhe dá as armas para a compreensão de si mesmo no mundo.

Ler o mundo e expressar-se tornam-se processos simultâneos de auto-transcendência vitalícia: você ajuda o estudante, assim, a parir em si a figura do “o eterno aprendiz” de Gonzaguinha, que aprende sempre… enquanto dura sua vida limitada no espaço e no tempo. Uma educação que dissemine mordaças só presta um desserviço a um mundo, ainda a criar, onde todos tenham vez e voz.

Na prática, isto significa que a educação tem que aproximar-se cada vez mais das artes, a educação como um  todo necessita de um devir-estético, no sentido de revalorizar tudo o que podemos aprender e ensinar através do corpo e da sensorialidade.

Uma avaliação deve se esquivar ao máximo daquele modelo de prova que exige do aluno que apenas vomite uma decoreba, ou seja, não pode avaliar a capacidade de uma mente em armazenar informações que ali foram depositadas. Uma avaliação deve focar na qualidade da expansão da potencialidade expressiva do aprendiz. Pois ensinar é empoderar o outro para que aprenda melhor, e aprende-se melhor quando se expressa, para os outros, as perspectivas próprias que necessitam de correção pra que atinjam melhor grau de autenticidade e lucidez.

A autonomia construída sobre os escombros do servilismo é o que norteia o caminhar do educador que se filia à Pedagogia do Oprimido:

“Dizer a palavra não é um ato verdadeiro se isso não está ao mesmo tempo associado ao direito de auto expressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade. Na cultura do silêncio as massas são ‘mudas’, isto é, elas são proibidas de criativamente tomar parte na transformação da sociedade e, portanto, proibidas de ser”. [2]

Proibidas de ser, por exemplo, foram todas as mulheres silenciadas, torturadas, aniquiladas, incineradas através da História pela acusação de bruxaria ou feitiçaria. Os inéditos viáveis de que fala Freire são inviáveis de se construir coletivamente em uma cultura do silenciamento e do morticínio dos que falam em divergência e em protesto. É inviável qualquer co-criação de um mundo melhor que empodere machos tóxicos, misóginos fanáticos, fãs da tortura de novas bruxas, sádicos propugnadores de paus-de-arara para comunistas estigmatizados como diabólicos.

É devido à injustiça histórica que se perpetua de uma distribuição diferencial do direito à fala que é preciso defender hoje o fim do silenciamento, a ampliação dos “lugares de fala” como se dá nos slams ou na inclusão educacional de grupos historicamente marginalizados: que falem os que foram calados! Que gritem os que foram amordaçados! Entreguemos já os gramofones às bruxas, e deixemos os gays, as lésbicas, as pessoas trans apossarem-se dos mics e amplificadores! Que estejam mais livres para espalharem seus corpos vivos e dançantes em praça pública, e para nos dizerem o que pensam sobre o viver, o conviver, e como devemos melhor urdir nossos vínculos.

A pintura de Rodolfo Morales, um dos grandes pintores mexicanos do século XX, ajuda-nos a ir trazando el camino (título da obra reproduzida acima). Aparentemente apolítica, a imagem pode ser interpretada como emblema do poderio feminino em uma sociedade matriarcal e matricial: onde mulheres são vistas como matrizes e não como meretrizes, onde “o corpo feminino é a fábrica social e material que mantêm a comunidade coesa e unida” (“the female body as the material and social fabric holding the community together” – Federici). [3]

Tanto Freire quanto Federici enxergam um caminho para outro mundo possível nos movimentos libertários campesinos, a exemplo dos zapatistas mexicanos ou do MST brasileiro, em que o modus operandi banal do capitalismo neoliberal atual é contestado em seu âmago patriarcal, sexista, racista, especista e latifundialista. Freire clamará por um Brasil inundado por marchas dos sem-terra exigindo reforma agrária enquanto Federici não cessará de incensar as forças sociais que defendem o commons contra os enclosures através d’um grassroots activism

Rodolfo Morales, “Tus Brazos Son Mi Fuerza” (1997) – Artsy

Se é preciso educar para a desobediência e para a transgressão é pois os opressores não merecem mais ser obedecidos, não merecem nossa submissão, nunca devem contar com a dormência de nosso senso de indignação e rebelião, que deve permanecer alerta e ativo sempre – pois este é o preço da cidadania, ou seja, de um estilo de vida ativo (e não meramente reativo). Quem vive age, pois quem só padece chafurda numa meia-vida. Desobedecer aos tiranos significa também insurgir-se contra os dogmas e preconceitos que os tiranos enfiam a fórceps na cabeça dos que desejam ver submetidos – nós, no caso, todos vítimas, em certa medida, de um aparato educacional silenciador, alterofóbico, opressivo.

A palavra infante, o que não fala, indica bem o quanto um poder que recusa a fala acaba por reinar sobre súditos infantilizados – o que é conveniente, mas nada tem a ver com o avanço da humanidade rumo a um grau superior de maturidade só encontrável na coragem da verdade, na parresía à qual Foucault dedica sua belíssima obra final. Uma vida não é plenamente humana se reduzida ao infantilismo de infantes papagaios, que só vomitam os dogmas e os slogans que os poderosos opressores lhes ordenaram que decorassem. Uma vida humana é plena quando se insurge contra a injustiça multiforme que assola a terra e fala, com a língua em chamas, mordendo com os caninos todas as mordaças. Como as mulheres audazes que ostentam seus seios sob o sol ardente da primavera exigindo seu direito à voz e ao corpo, às vezes lançando aos caçadores de bruxas da atualidade a pontiaguda provocação: “somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar.” E vocês não vão nos calar!


A arte precisa ser aliada da educação, e é precioso que assim o seja, pois na arte nos são apresentadas situações concretas e vivências singulares que nos comovem mais do que as abstrações descarnadas. E poucas obras de arte nas últimas décadas expressam melhor nosso tempo do que a distopia formulada por Margaret Atwood, originalmente um romance publicado em 1984 (The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia), transformado em uma das séries mais importantes da dramaturgia contemporânea, já em sua terceira temporada, e que em 2019 teve publicado o livro que lhe dá sequência, The Testaments – Os Testamentos. 

No que outrora foi os Estados Unidos da América, agora está o país Gilead, no qual a elite da sociedade é composta por fundamentalistas religiosos que instalam uma ditadura teocrática de teor puritano e de firme comando patriarcal.

Emblemas da dominação masculina abundam nas narrativas tecidas com muita habilidade pela escritora canadense, como aquele bela cena em que a adolescente Agnes descreve suas experiências escolares. A escola, em Gilead, é um espaço de doutrinação religiosa onde está explicitamente vigente uma cultura do silêncio e uma pedagogia da submissão e da obediência.

Os jovens de Gilead que são sortudos o bastante para terem acesso à escola – um privilégio ao qual a casta, explorada e escarrada, das Marthas não deve sonhar em conquistar – são ensinados que abençoados são os dóceis e os mansos, pois deles é a república de Gilead e também o Reino dos Céus. Abençoados são os que se calam, pois em seu silêncio ouviram a voz do Senhor.

A distopia descrita por Atwood inspira-se no puritanismo do passado, projetado num futuro de grave crise sócio-ambiental, em que a Humanidade em colapso vê os corpos das mulheres estadunidenses em brutal queda da fertilidade. Este cenário de despovoamento serve de contexto para o pesadelo sci-fi, com muitas similaridades de enredo e de vibe com Children of Men – Filhos da Esperança, um dos grandes filmes da história da science fiction na sétima arte.

Mas voltemos à pequena Agnes, de pai desconhecido e que tampouco conheceu sua mãe de sangue, a Agnes que foi criada por uma família de elite, em um casarão repleto de Marthas bem serviçais e de Aias bem estupráveis, a “família tradicional Gilediana” que busca re-povoar a terra, e fazê-la só com cristãos puro-sangue, abstinentes, puritanos e dóceis como ovelhas ao comando do Senhor dos céus e seus capatazes terrenos.

O que mais Agnes aprende na escola? Aprende a temer. A se calar. A aceitar os ditames dos mais velhos. A engolir os mitos – e as morais-da-história a serem extraídas deles – sem crítica nem ceticismo. Um aparato educacional assim está destinado ao controle dos corpos femininos para transformá-las em uma maquinaria de moer gente para extrair “capital humano”. Aliás, conceito forjado por um neoliberal ferrenho, Mr. Gary Becker, que talvez aplaudisse o sistema de Gilead tanto quanto outros neoliberais aplaudiram a Ditadura de Pinochet no Chile.

Afinal, a sociedade de Gilead, em tempos de crise, consegue através de seu sistema de aias gerar o capital humano indispensável para as atividades econômicas da república teocrática cujos Comandantes são obviamente pintudos, metidos a machos-alfa, e delirantemente convencidos de que tem uma linha direta com Deus, e um mandato divino que lhes dá direitos de plena dominação.

“Aconteceu algo muito perturbador na escola”, relembra a jovem Agnes no capítulo 14 de Os Testamentos. “Estou relatando isso aqui não porque quero ser macabra, mas porque me deixou muito impressionada, e pode ajudar a explica por que certas pessoas naquele tempo e lugar agiam como agíamos. Aconteceu na aula de Religião, ministrada pela Tia Vidala… Ela nos mandou levar nossas carteiras para a frente e deixá-las bem próximas uma das outras. Aí ela disse que já tínhamos idade para ouvir uma das histórias mais importantes de toda a Bíblia – importante porque era uma mensagem de Deus especialmente para meninas e mulheres, então que prestássemos bastante atenção. Era a história da Concubina Cortada em Doze Pedaços.

A concubina de um homem – uma espécie de Aia – fugiu de seu dono, voltando para a casa do pai. Foi uma grande desobediência da parte dela. O homem foi buscá-la, e, sendo do tipo bondoso e compassivo, pediu apenas para tê-la de volta. O pai, conhecendo as regras, disse sim – pois estava muito decepcionado com a desobediência da filha – e os dois homens cearam juntos para celebrar seu compromisso. Mas por causa disso, o homem e sua concubina tardaram em partir dali, e quando escureceu, eles se refugiaram em uma cidade onde o homem não conhecia ninguém. No entanto, um cidadão generoso disse que eles podiam passar a noite na casa dele.

Mas outros cidadãos, repletos de impulsos impuros, vieram a casa e exigiram que o viajante fosse entregue a eles. Queriam fazer coisas pecaminosas com ele. Coisas pecaminosas e depravadas. Mas fazer isso entre homens seria particularmente pecaminoso, de forma que o homem generoso e o viajante colocaram a concubina fora de casa em vez dele.

– Bem que ela mereceu, não foi? – disse Tia Vidala. – Ela não devia ter fugido. Pensem só no sofrimento que causou aos outros!

Mas quando amanheceu, disse a Tia Vidala, o viajante abriu a porta e a concubina estava deitada na soleira… estava morta. Os homens ímpios tinham matado ela.

– Quando muitos homens cometem luxúria com uma mulher de uma vez só, ela morre – disse Tia Vidala. – Com essa história, Deus quer nos dizer que devemos nos contentar com nosso destino e não nos rebelar contra ele.

A mulher deveria honrar o homem que tem direito sobre ela, ela acrescentou. Se não, esse era o resultado. Deus sempre dava o castigo adequado ao crime.” [4]

Neste trecho, vemos a atroz utilização de uma narrativa com fins pedagógicos de gerar medo submissão nas mulheres. A violência sexual dos machos, que cometem um estupro grupal seguido por feminicídio, em nenhum momento é denunciada ou lamentada pela “Tia”-professora. A casta das Aias – escravas sexuais utilizadas como corpos reprodutores a terem sua prole roubada pelos Comandantes e suas Esposas Inférteis – simboliza a exploração em massa e não-remunerada do trabalho feminino reprodutivo em Gilead. Com sua sexualidade sob estrito controle, as Aias são máquinas de produzir filhos, despidas de direitos elementares de auto-determinação, cujo destino é tão miserável quanto a casta das Marthas, as serviçais supremas que fazem todos os trabalhos domésticos neste novo apartheid e sua new slavery.

Já as Tias de Atwood, guardiãs desse sistema de brutalidade machocentrada, são as inoculadoras da ideologia tóxica, as mercadoras de ilusões religiosas e as chefonas da repressão contra a rebeldia – devidamente secundadas pelos “Anjos”, ou seja, os militares, ou seja, caras com pinto a quem foram dadas armas e ordens para obedecer ao patrão, mesmo quando ele ordena o aprisionamento em massa ou o extermínio de toda uma coletividade.

As Tias de Atwood, aliás, tem tudo a ver com a ministra do governo Bolsonaro, Damares Alves, pastora evangélica responsável pelo Ministério da Família e dos Direitos Humanos: Tia Damares poderia ser uma personagem de O Conto da Aia Brasil (ainda por filmar!). Para além das piadas que ela nos fornece por ser tão tacanha em sua defesa da “família tradicional brasileira” e dos binômios de gênero, Damares é um sério sintoma de algo lamentável: mulheres de mentalidade sectária e intolerante, que prestam um desserviço ao feminismo, aliando-se ao Patriarcado e à Teocracia para oprimir corpos e mentes de mulheres ao invés de colaborar no sentido de libertá-las. São mulheres que aniquilam a sororidade, que são cúmplices de um sistema de castas e que são também elas instrumentos nas mãos perversas de uma dominação masculina que elas ajudam a perpetuar.

Aos que querem uma educação serva da religião é preciso que todos nós, educadores comprometidos com a laicidade, com a lucidez e com a busca irrefreável da verdade, precisamos nos levantar para dizer não, não queremos uma escola-catecismo, que faça proselitismo de seita, mesmo que seja de uma seita de milhões. Uma escola que utiliza a mitologia como instrumento para aterrorizar as pessoas, sobretudo as mulheres e as minorias sexuais, está precipitando o futuro da aventura humana no abismo. Não precisamos de uma escola que apavore para reinar sobre trêmulos e subservientes ovelinhas, temerosas até de respirar.

As escolas devem sim ensinar sobre a história da desobediência civil e das insurgências feministas – muito além de movimentos como os das sufragettes inglesas, é preciso mostrar exemplos atuais de mulheres belamente insubmissas, a exemplo de Vandana Shiva, Arundhati Roy ou Naomi Klein, a exemplo de Marielle Franco, Sonia Guajajara ou Eliane Brum, mulheres que iluminam caminhos de resistência, resiliência e transformação cooperativa do mundo. Permaneceremos estacionários, quando não regredindo, enquanto a lunática seita de terraplanistas criacionistas puritanos puder reinar sobre mentes e exercer controle sobre corpos, em nome de um deus manufaturado por machos-alfa com muita testosterona no cérebro.

Que a educação possa contribuir para o colapso final da fantasia tóxica de um Deus pintudo que deseja da mulher apenas a docilidade subserviente da escrava sexual que sempre diz “sim” ao seu senhor. As aias de Atwood, que não são apenas vítimas, que se tornam heroínas quando cruzam a fronteira entre Gilead e o Canadá, são também aquelas que anunciam a insurreição contra a ditadura militar-teocrática: vocês tentaram uniformizá-las e controlá-las, mas elas são potencialmente um exército revolucionário que virá derrubar o reinado já demasiado durável da masculinidade tóxica. Elas são o ponto zero da revolução, e a religião frequentemente a trava reacionária que estaciona a sociedade em velhas tiranias de opressão.

Por isso, defendo que religião se discute, sim: por que ela deveria escapar ao nosso escrutínio crítico? Religião se discute sim, pois aspira a meter o nariz de seu bedelho nas relações sociais, influenciando comportamentos e muitas vezes fornecendo o contexto emocional e as convicções íntimas que são motivos de crimes e holocaustos.

É preciso que a escola não só ensine sobre a diversidade das religiões, ou melhor, sobre a variabilidade e variedade da experiência religiosa humana como fez William James. É preciso também que a escola seja um espaço onde pensamentos e reflexões ateus, agnósticos, céticos, anti-eclesiásticos, anarquistas, também tenham seu lugar e seu direito de se manifestar – a exemplo do horror que manifesta Lucrécio, o genial poeta-filósofo epicurista da Roma do século I a.C., diante do sacrifício de Ifigênia, um dos grandes horrores acarretados pela superstição religiosa já relatados em um mito de alta repercussão histórica.

Ensinar para a obediência e a servidão nunca serviu para nada além de nos dividir e nos manter atolados sob o jugo de seculares opressões. Educar para que os indivíduos possam desobedecer a todo e qualquer status quo que perpetue opressões e imponha dominações injustas é parte do caminho incontornável rumo ao inédito viável d’um mundo menos opressivo e insano.

Eduardo Carli de Moraes – 04/02/2020

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] FEDERICI, Silvia. Witches, Witch-Hunting and Women. Pg. 39.

[2] FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade, 1970. Citado a partir de artigo de Venício Lima em Carta Maior.

[3] Federici, op cit, p. 24.

[4] ATWOOD, Margaret. Os Testamentos. Pg. 89-90.

 

EPÍLOGO
“A Colonização Foi um Estupro”
Por Luiza Romão no Slam da Guilhermina

LEITURA SUGERIDA:

Mal-educado e deseducador, governo Bolsonaro quer impor sua boçal estupidez ideológica ao país

O Brasil atual é como um pesadelo do qual não conseguimos despertar. No Ministério da Educação, o show de horrores é ininterrupto. O Ministro escolhido por Bolsonaro – que “trabalhou em cursos mal avaliados e fechados pelo MEC” (UOL) –  já declarou que o Escola Sem Partido é “providência fundamental” e que o golpe de 1964 é um “evento a ser comemorado”; disse que “é bobagem pensar na democratização da universidade”, o bom mesmo é reservar a educação superior de qualidade para uma minúscula elite a ser “formada” através do “pensamento” de grandes luminares nacionais como… Olavo de Carvalho e Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Agora, a BBC Brasil confirma que o Governo Bolsonaro não consegue descer do palanque e tem como única diretiva a repetição imbecil de seus slogans de campanha: “MEC pede que escolas toquem hino e leiam carta com slogan de Bolsonaro; advogados criticam.” De fato, é gravíssimo que o Ministério da Educação, encabeçado pelo colombiano Vélez Rodriguez, um notório Olavete que andou pregando “faxina ideológica” nas páginas amarelas de Veja, seja capaz desse nível de baixeza cognitiva e desprezo pela democracia. 


É o cúmulo do ridículo que, com tanto trabalho importante para fazer em prol da educação pública brasileira, este Senhor direitoso e delirante esteja endereçando a escolas de todo o país uma carta que contêm o slogan de campanha Bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”.

O repúdio a este absurdo, por parte de todos os educadores, precisa vir com força. Marcelo Freixo e PSOL já se mobilizam neste sentido: segundo O Globo, “Parlamentar do PSOL quer que ministro da Educação responda por crime de responsabilidade após mensagem dirigida a estabelecimentos de ensino.”

O horror desta carta patética é multiforme. Primeiro, pois este lema neofascista evoca o “Deutschland über alles” tão mobilizado pelo III Reich Hitlerista para praticar seus genocídios. Depois, pois “Brasil acima de tudo”, além de chauvinismo tosco e populismo imbecil, é uma piada de mau gosto na boca dessa extrema-direita entreguista e subserviente ao Império Yankee sob a batuta do supremacista branco e troglodita xenófobo Donald Trump.

Como se não bastasse, esse “Deus acima de todos” traz o sabor amargo do fanatismo religioso mais obscurantista, violando todos os ideais de laicidade que herdamos do Iluminismo. Ideais políticos típicos de uma teocracia medieval e pregações de uma fé cristã compulsória não são elementos desejáveis em instituições dedicadas à educação autêntica.

Vélez Rodriguéz inaugura um período tenebroso do MEC, em que prega-se uma subserviência estúpida a ritos mofados: alunos perfilados diante da bandeira, cantando o hino nacional como papagaios amestrados, repetindo o slogan eleitoral tantas vezes pervertido por ter saído da boca infame  de um notório apologista de torturadores e grupos de extermínio.

Em breve, “A Verdade Sufocada” de Ustra será inserido na bibliografia básica de História? Começarão grandes fogueiras de livros em que queimarão Marx, Rosa Luxemburgo, Gramsci e Florestan Fernandes? Em breve, celebrar-se-á a instalação de estátuas em louvor a Olavo de Carvalho em nossas universidades, enquanto comemoram-se, em eventos regados a regalias, o sucesso do “extermínio” de Paulo Freire e da Pedagogia do Oprimido?

Vale lembrar que o candidato Bolsonaro, em campanha, havia dito que ia colocar alguém no MEC que lidasse com Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido na base do “lança-chamas”. Vélez Ródriguez é o escolhido pelo governo de extrema-direita para o deletamento do legado de um dos maiores pedagogos e intelectuais do século 20, reconhecido mundo afora por suas contribuições inestimáveis ao pensamento e às práticas sobre educação.


O Ministro solicita ainda que as escolas filmem os “espetáculos cívicos” e enviem ao Ministério. Talvez para que sejam usados em propaganda lava-cérebros em que o novo regime mente sobre seu “sucesso” enquanto nos enfie goela abaixo a nova versão da Educação Moral e Cívica.

Pior ainda: os vídeos talvez possam servir para que o MEC possa denunciar e perseguir os “marginais vermelhos” que não cantam o Hino, ou que não dizem “Heil Bozo” ao slogan de campanha transformado em lema fascista de governo. As crianças e jovens que se mostrarem irreverentes ou rebeldes serão estigmatizadas como problemáticos e doentios, pois praticam a desobediência civil aos ditames da nova ditadura? Quem se recusar a seguir tais ditados será merecedor dos paus-de-araras do regime Bozoasnal?

Para além do absurdo que é um MEC que passa a estar lotado de militares, fanáticos da disciplina mais autoritária e interessados na militarização das escolas, agora temos um fanático da ideologia ultra-liberal na economia e ultra-conservadora nos costumes encabeçando um processo de idiotia viralizável que ameaça-nos com seu perigoso contágio.

Em um texto de título altamente sarcástico, Um aiatolá assume a educação no Brasil, Clóvis Rossi escreveu na Folha de S. Paulo:

“A ideia do escolhido para ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, de criar ‘ conselhos de ética’ para zelar ‘ ‘pela reta educação moral dos alunos’ tem todo o cheiro da polícia moral adotada no Irã (entre outros países muçulmanos, como a Arábia Saudita).
(…) Quem é que vai definir o que é ‘reta educação moral’? Um ministro que acha que se deve comemorar o golpe de 1964, aquele mesmo que prendeu, sequestrou, matou, torturou, baniu e exilou milhares de pessoas, censurou a imprensa, fechou o Congresso, cassou mandatos políticos e praticou outras barbaridades?
Os aiatolás, no Irã, fazem a mesmíssima coisa e também acham que estão apenas enquadrando a população no que consideram os bons costumes.
O problema principal para a implantação da tal Escola sem Partido passa exatamente por aí: quem vigia o comportamento dos professores para assegurar que eles não se desviem da ‘reta educação moral’? Aliás, primeiro seria preciso haver um razoável consenso na sociedade em torno do que é educação reta.
Para o meu gosto, por exemplo, educação reta é aquela que festeja a democracia, não a ditadura, como pretende o ministro indicado. Sem esse consenso – quase impossível de alcançar dada a imensa variedade de comportamentos que se encontram habitualmente em sociedades complexas –, só a implantação de uma polícia moral para vigiar professores (e alunos, claro).”

Vale lembrar que o famigerado slogan foi mobilizado em uma das campanhas eleitorais mais sórdidas de todos os tempos. As pilantragens praticadas pelo PSL (Partido Suco de Laranja) não param de abalar o início do (des)governo daquele sujeito que, em 27 anos como deputado, nada fez de bom além de enriquecer a si mesmo e a seus filhos.

O partido, que vomitou um monte de perfídias sobre o PT, já revelou-se como um partideco medíocre e sem moral, que abusou de laranjas e de caixa 2 para promover uma campanha ilegal e fraudulenta. O PSL entrará para a História como o pigmeu criminoso que é. O Partido dos Trabalhadores, com seus quase 40 anos de História, saberá sobreviver a este acintoso ataque dos laranjeiros corruptos e amicíssimos de milicianos.

Presidente ilegítimo pois eleito através de fraudes e golpes em série, Bolsonaro está onde está em virtude de vários crimes. A começar pela compra de pacotes para disparo de fake news e propaganda fascista, que foram comprados com capital ilegal, não declarado à Justiça Eleitoral, como denunciado amplamente pela imprensa após furo da Folha de S.Paulo ainda no período eleitoral (#Caixa2doBolsonaro).

Bolsonaro e seus cupinchas jogaram sujo, praticando calúnia e difamação às enxurradas para denegrir a candidatura petista. Espalhando mentiras sobre Haddad, Manu e Lula, mobilizaram através da ira e da mentira, e agora nada tem a propor senão uma catarata de retrocessos que impõe a miséria e a degradação da dignidade à imensa maioria do povo brasileiro. Ilusão crassa deles, usurpadores do poder, acreditar que os trabalhadores da Educação irão aceitar esta enxurrada de desmandos e absurdos.

Além disso, sabe-se que o ex-capitão do Exército, que fez campanha vomitando ódio e intolerância por todos os poros, dizendo que ia “metralhar a petralhada” e que MST e MTST seriam enquadrados como “organizações terroristas”, só venceu estas eleições fraudulentas pois Lula estava injustamente encarcerado pela lawfare de Moro e sua trupe.

Líder disparado em todas as pesquisar de intenção de voto, Lula hoje seria presidente da república caso não tivesse sido golpeado pelos mesmos beneficiários do Golpe de Estado que encerrou prematuramente o mandato de Dilma Rousseff.

Os “novos tempos” de que fala Vélez Rodriguez fedem à velharia: é de novo a reedição do autoritarismo fanático de homens brancos e ricos que pretendem impor ordem aos outros enquanto gozam impunes de seus privilégios injustos e riquezas roubadas.

Na Era das Mamatas, os lambe-botas de Trump querem nossos estudantes bestificados diante da bandeira brasileira, cantando hino nacional e repetindo lema fascista. Querem também uma juventude tão bestificada que se preste ao serviço de ser bucha-de-canhão da intentona golpista e da guerra petrolífera na Venezuela.

Se, no caso de Lula, inexistem provas mas sobram convicções, no caso de Bolsonaro e seu time as provas são inumeráveis de que se trata de um bando de idiotas, mau-educados e deseducadores, que querem impor sua boçal estupidez ideológica ao país. Após berrarem que “nossa bandeira jamais será vermelha”, agora tratam de sujá-la com o nosso sangue derramado. O dia da eleição de Bolsonaro merece ser tido como um dia da vergonha nacional e um preocupante sintoma do grau de insanidade e irracionalidade a que podem ser conduzidos massas de eleitores quando bestificados por um populismo violento e odioso que vomita desumanidade por todos os poros:

A esse festival de barbaridades de um dos governos mais péssimos da história da república, diremos, em coro, em massa, nas ruas e nas redes, nas greves e nas ocupas, o nosso “não!” coletivo a esta campanha grotesca de deseducação. Não passarão!

A Casa de Vidro

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EXPLORE TAMBÉM:

 

“Tratado Sobre a Tolerância”, de Voltaire (1694-1778) [notas de leitura]

voltaire

VOLTAIRE
“Tratado Sobre a Tolerância”
(Ed. Martins Fontes. Tradução: Paulo Neves. São Paulo,1ª ed, 1993)

volDevemos tolerar os intolerantes, ainda que saibamos que “a intolerância cobriu a terra de chacinas”? (pg. 30) E quem seria para a humanidade uma melhor mestra de tolerância senão ela, a filosofia, musa que recebe tantos dos louvores de Voltaire?

Voltaire, este pensador que Victor Hugo dizia ser um “jato contínuo de lucidez”, não economiza nos elogios que faz ao bom senso que a filosofia traz, possibilitando-nos transcender as estreitezas em que nos encerram os fanatismos dogmáticos e as intolerâncias homicidas.

Este luminar do Iluminismo lança numerosos convites aos humanos para que ajam humanamente: “faz muito tempo que praticamos os verdadeiros princípios da agricultura, quando começaremos a praticar os verdadeiros princípios da humanidade?”  (pg. 63). E alega que a  filosofia é agente de humanização, que nos distancia da barbárie:

“A filosofia desarmou mãos que a superstição por muito tempo havia ensanguentado; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se com os excessos a que o fanatismo o havia levado…” (pg. 24)

Ao que parece, ao raiar deste ano que chamamos de 2015 depois de Cristo, o “espírito humano” não cessa de recair na embriaguez do fanatismo e da intolerância – quantos são os mortos na Faixa de Gaza, quantos no Afeganistão e no Iraque? Alguém por aí conseguiu não perder a conta?

Enquanto isso, a filosofia não cessa de se espantar com os excessos do fanatismo – ao menos aquelas filosofias que se esquivam do dogmatismo e procuram atingir a liberdade do pensar, ao invés de serem meras “defesas manhosas de preconceitos batizados de verdades”, como diz Nietzsche (Além de Bem e Mal, #5). Um viva à toda filosofia que deixa as portas bem abertas para a suspeita, a experimentação, a multiplicidade, a diversidade de perspectivas, a revolta contra a fraude, o engajamento em prol de uma humanidade menos sectária e fratricida!

A filosofia, segundo os não-filósofos, que aliás são a amplíssima maioria neste mundo, é vista por muitos como uma atividade improdutiva, beirando a inutilidade: é o caso de Hermann Kafka, ao saber dos planos que tinha seu filho – Franz Kafka – de estudar filosofia, e que teria reagido com o desdém do comerciante que considera a filosofia somente “um modo extravagante de passar fome.” (cf. PAWEL, Ernst: O Pesadelo da Razão).

Ou então a filosofia é tida como algo de acadêmico e formal, difícil e hermético, que se faz detrás dos muros das universidades ou no conforto de bibliotecas climatizadas – e não, como alguns filósofos quiseram, uma força ativa na sociedade ao espalhar compreensão mais ampla e assim desfazer os cabrestos reinantes…

Voltaire é tão entusiasmante de ler pois filosofa como se a filosofia tivesse força transformadora. E quem consegue duvidar que tem, de fato, ao ler as palavras tão cheias de vivacidade e ímpeto que ele nos legou?

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traiteVoltaire escreve seu Tratado Sobre a Tolerância sob o impacto de um acontecimento que ele testemunhou em Toulouse. Nesta cidade francesa, pelos idos de 1762, continua-se a celebrar anualmente uma festa que Voltaire considera execrável: “festa cruel, festa que deveria ser abolida para sempre, na qual um povo inteiro agradece a Deus em procissão e felicita-se por ter massacrado, há duzentos anos, quatro mil de seus concidadãos” (pg. 62).

Duzentos anos antes, em 1562, os reis católicos franceses e as massas por eles manobradas haviam massacrado os protestantes pela França afora. A História jamais pôde esquecer a sanguinolência do Massacre da Noite de São Bartolomeu, “da qual não havia nenhum exemplo nos anais do crime” (pg. 22), quando Paris foi palco de uma colossal matança dos protestantes “huguenotes” – como narrado por Alexandre Dumas em A Rainha Margot (romance já adaptado para o cinema com maestria por Patrice Chéreau). Aponta-se que o número total de pessoas mortas pelos católicos no genocídio dos huguenotes de 1562 esteja entre 30 e 100 mil mortos.

A indignação voltairiana atinge ápices diante dos discursos dos apologistas da Noite de São Bartolomeu e outros massacres: “Se a perseguição contra aqueles com quem disputamos fosse uma ação santa, cumpre admitir que o que matasse o maior número de heréticos seria o maior santo do paraíso… logo, de dois assassinos iguais em piedade, o que tivesse estripado 24 mulheres huguenotes grávidas deve ser glorificado em dobro em relação ao que só tivesse estripado 12.” (p. 72) Este raciocínio torto e perverso, apesar de Voltaire escrevê-lo em tom de pilhéria, é mais que mera piada – e poucos autores na história da filosofia são mais versados em chacinas do que Voltaire, que conhece inúmeros exemplos do “furor das seitas que fez perecer milhares” (p. 149).

 É por isso que Voltaire não consegue conter estes arroubos de indignação: “Digo-o com horror, mas com verdade: nós, cristãos, é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades, com o crucifixo ou a Bíblia na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras, desde os tempos de Constantino…”  (pg. 62)

 Voltaire, como se sabe, não era ateu – e até mesmo dá amostras de ateofobia em certos momentos, ao referir-se por exemplo àqueles que “inclinam-se para o ateísmo e tornam-se depravados” (pg. 64). Ora, desde quando o ateísmo acarreta necessariamente a “depravação”? Não é esta uma tese de padres e monges, que demonstra um preconceito contra os tão perseguidos dos descrentes?

De qualquer modo, Voltaire considera este “um péssimo argumento”: “os católicos liquidaram um certo número de huguenotes, e os huguenotes, por sua vez, assassinaram um certo número de católicos, logo, não existe Deus” (pg. 65). Em outros termos: não se julga da inexistência de Deus a partir das insanidades de seus diferentes fã-clubes. Os fiéis cometem horrores, mas nenhum destes horrores testemunha suficientemente em prol do ateísmo – e eis a profissão de fé de Voltaire:

 “Eu concluiria afirmando que existe um Deus que, após esta vida passageira, na qual o desconhecemos tanto, e cometemos tantos crimes em seu nome, dignar-se-á a consolar-nos de tão horríveis infortúnios: pois, considerando as guerras de religião, os quarenta cismas dos papas,  quase todos sangrentos; as imposturas, quase todas funestas; os ódios irreconciliáveis acesos pelas diferentes opiniões; considerando todos os males que o falso zelo produziu, os homens há muito têm tido o seu inferno nesta vida” (pg. 65).

Mas não seria um argumento fraco querer derivar do inferno terrestre, por sua mera existência atestada pelos fratricídios, parricídios e genocídios que atravessam a história humana, a existência de um Deus consolador de infortúnios?  Em outros termos: a existência do mal e do sofrimento é garantia que um céu-de-recompensa aguarda a todos os sofredores?

O essencial em Voltaire, concordemos ou não com sua crença em um Deus que “terá a dignidade de consolar-nos de tão horríveis infortúnios”, é que encontram-se em suas páginas algumas vívidas descrições de eventos históricos onde a intolerância e o fanatismo conduziram a grandes catástrofes. O “princípio universal” da moral voltairiana, como expressa no Tratado Sobre a Tolerância, aquele princípio moral que vale “em toda a terra”, seria o “não faz o que não gostarias que te fizessem.” E Voltaire se apressa em adicionar, como contra-exemplo, a atitude de muitos fanáticos religiosos, que reivindicam aos brados seu direito à intolerância: “Crê, ou te abomino! Crê, ou te farei todo o mal que puder! Monstro, não tens minha religião, logo não tens religião alguma! Cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província.” (pg. 37-38)

Ora, a história está repleta – e também o estão as páginas de Voltaire e Michelet – de casos de pessoas que foram taxadas de “hereges” e que, “como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na fogueira.” (p. 20) Quantos Giordanos Brunos não foram queimados vivos, junto com suas obras? E quem um dia poderá calcular o valor inestimável de tudo o que se perdeu com o incêndio da Biblioteca de Alexandria?

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Se a intolerância fosse um direito, isso seria a legitimização da barbárie. “Caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos outros.” (pg. 38) Quadro sinistro, e tão mais assustador pois se assemelha ao que ocorre de fato com frequência espantosa na história humana. “O direito à intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos.” (p. 38)

Apenas mais dois exemplos de sinistra intolerância homicida narrados por Voltaire: 1) “Na guerra contra os madianitas, Moisés ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino e todas as mães, e que os despojos fossem partilhados. Os vencedores encontraram 675 mil ovelhas, 72 mil bois, 61 mil burros e 32 mil meninas; fizeram a partilha e mataram o resto.” (p. 77);  2) “Uma seita na Dinamarca sabia que todos os recém-nascidos que morrem sem batismo são condenados e que os que têm a felicidade de morrer imediatamente após receberem o batismo gozam da glória eterna.  Saíam, pois, a estrangular os meninos e meninas recém-batizados que encontrassem. Certamente, era fazer-lhes o maior bem possível: a uma só vez eram preservados do pecado, das misérias desta vida e do inferno, e enviados infalivelmente ao céu…” (p. 111)

Já o cristianismo, conforme o descreve Voltaire, é já em sua gênese uma religião sectária, que emerge como uma espécie de facção do judaísmo, como um ramo que se separa do tronco da tradição hebraica, ganhando com isso a intensa inimizade dos judeus: “os primeiros cristãos tinham como inimigos apenas os judeus, dos quais começavam a separar-se. Sabemos o ódio implacável que todos os sectários sentem pelos que abandonam sua seita.” (p. 46)  “Jesus submeteu-se à lei de Moisés desde sua infância até sua morte. Circuncidaram-no no oitavo dia, como todas as outras crianças. Se, depois, foi batizado no Jordão, tratava-se de uma cerimônia consagrada entre os judeus… Jesus observou todos os pontos da lei: festejou todos os dias de sabá; absteve-se das carnes proibidas; nascido israelita, viveu constantemente como israelita. (…) Levado ao governador romano da província e acusado caluniosamente de ser um perturbador da ordem pública, que dizia não ser preciso pagar o tributo a César e que, além do mais, se dizia rei dos judeus. É da maior evidência, portanto, que foi acusado de um crime de Estado.” (p. 94)

É até defensável que Jesus Cristo, como indivíduo, não tenha “estabelecido leis sanguinárias, ordenado a intolerância, mandado construir os cárceres da Inquisição, instituído os carrascos dos autos-de-fé” (87). Mas, como Nietzsche provoca, “o único cristão verdadeiro morreu na cruz”; e a religião que se construiria sobre o martírio de Jesus crucificado se desenvolverá envolvida em guerras sectárias infindáveis, e assim o permanecerá pelos séculos, com um derramamento de sangue que prosseguia na época de Voltaire – como o prova o caso Calas. O ódio que os judeus tinham por São Paulo, aliás,  é bem simbólico deste conflito de sectarismos: “Os Atos dos Apóstolos nos mostram que, tendo São Paulo sido acusado pelos judeus de querer destruir a lei mosaica em nome de Jesus Cristo, São Tiago propôs a São Paulo que raspasse a cabeça e fosse purificar-se no templo com quatro judeus… Paulo, cristão, foi portanto cumprir todas as cerimônias judaicas durante 7 dias; mas os 7 dias ainda não haviam transcorrido quando judeus da Ásia o reconheceram e, vendo que ele havia entrado no templo, acusaram-no de profanação. Paulo foi preso, levado ante o governador Félix, em seguida enviado ao tribunal… Os judeus em coro exigiram sua morte.” (pg. 45)

Há em todo fanatismo um elemento “imperialista”, um desejo de conversão do mundo inteiro à sua crença, como se fosse possível uma uniformização religiosa da humanidade, algo que Voltaire com toda razão afirma ser quimérico e insano: “Seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica. Seria bem mais fácil subjugar o universo inteiro pelas armas do que subjugar todos os espíritos de uma única cidade.” (p. 121)

Como remédio contra os sectarismos fanáticos e homicidas, que só conseguem lidar com o diferente na base da exclusão ou da extinção, que querem o outro morto ou torturado se este não compartilha da mesma fé, Voltaire receita o bálsamo de um reconhecimento lúcido de nossa posição no seio da Natureza:

A natureza diz a todos os homens: “fiz todos vós nascerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minutos na terra e adubarem-na com vossos cadáveres. Já que sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruí-vos e tolerai-vos. Ainda que fôsseis todos da mesma opinião, o que certamente jamais acontecerá, ainda que só houvesse um único homem com opinião contrária, deveríeis perdoá-lo, pois sou eu que o faço pensar como ele pensa. Eu vos dei braços para cultivar a terra e um pequeno lume de razão para vos guiar; pus em vossos corações um germe de compaixão para que uns ajudem os outros a suportar a vida. (…) Sou eu apenas que vos une, sem que o saibais, por vossas necessidades mútuas, mesmo em meio a vossas guerras cruéis tão levianamente empreendidas, palco eterno das faltas, dos riscos e das infelicidades. (…) Com minhas mãos plantei os alicerces de um prédio imenso; ele era sólido e simples, todos os homens nele podiam entrar com segurança; quiseram acrescentar os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; e o prédio começa a desmoronar por todos os lados; os homens pegam as pedras e as atiram uns contra os outros; grito-lhes: Parai, afastai esses escombros funestos que são vossa obra e habitai comigo em paz no prédio inabalável que é o meu. (pg. 142)

Contra a megalomania de todas as religiões monoteístas, que são todas antropocêntricas e concebem o Homem no centro da Criação, criatura predileta do Criador, cabe frisar nossa pequenez cósmica e o delírio que há em seitas que, apesar de minúsculas no espaço-e-no-tempo, tem a pretensão descabida de serem as beneficiárias principais das graças do Todo-Poderoso. “Este pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos outros globos; estamos perdidos nessa imensidão. O homem, com cerca de um metro e sessenta de altura, é seguramente algo pequeno na criação. Um desses seres imperceptíveis diz a alguns de seus vizinhos: Escutem-me, pois o Deus de todos esses mundos me falou! Há 900 milhões de pequenas formigas como nós sobre a terra, mas apenas o meu formigueiro é bem-visto por Deus; todos os outros lhe causam horror desde toda a eternidade; meu formigueiro será o único afortunado, e todos os outros serão desafortunados.” (p. 126)

Nietzsche, que admirava tanto Voltaire que dedicou seu Humano Demasiado Humano ao grande iluminista francês no centenário de sua morte, re-utiliza a metáfora de formiga em um aforismo brilhante de O Viajante e Sua Sombra, onde o homem é descrito como “O Comediante do Mundo” e a “inventividade espiritual da mais vaidosa criatura, o inventor do inventor”, é exposta com a verve satírica e o faro crítico características do filósofo da “morte de Deus”:

O homem, comediante do mundo – Deveria haver criaturas mais espirituais do que os homens, apenas para fruir inteiramente o humor que há no fato de o homem se enxergar como a finalidade da existência do mundo. (…) Os astrônomos, que às vezes podem realmente dispor de um panorama distanciado da Terra, dão a entender que a gota de vida no mundo é sem importância para o caráter geral do tremendo oceano do devir e decorrer; que um sem-número de astros tem condições similares às da Terra para a geração da vida; que a vida, em cada um desses astros, em relação ao tempo de sua existência, foi um instante, um bruxuleio, com longuíssimos lapsos de tempo atrás de si – ou seja, de modo algum a finalidade e intenção derradeira de sua existência. Talvez uma formiga, numa floresta, imagine ser a finalidade e intenção da existência da floresta, de forma tão intensa como fazemos ao espontaneamente ligar o fim da humanidade ao fim do planeta, em nossa fantasia; e ainda somos modestos, se nos detemos nisso e não organizamos um crepúsculo geral dos deuses e do mundo, acompanhando o funeral do último homem. Mesmo o mais imparcial astrônomo não pode ver a Terra sem vida senão como o luminoso túmulo flutuante da humanidade.”

(O Viajante e Sua Sombra, aforismo 14, pg. 171 e 172.
Ed. Cia das Letras. Trad. Paulo César de Souza.
Em “
Humano Demasiado Humano Volume II”)

Excelente narração do mito de Dioniso, por Jean-Pierre Vernant, um dos maiores helenistas do século XX…

DIONISO EM TEBAS
Por Jean-Pierre Vernant (1914-2007)

No panteão grego, Dioniso é um deus à parte. É um deus errante, vagabundo, um deus de lugar nenhum e de todo lugar. Ao mesmo tempo, exige ser plenamente reconhecido ali onde está de passagem, ocupar seu lugar, sua preeminência, e sobretudo assegurar-se de seu culto em Tebas, pois foi lá que nasceu. Entra na cidade como um personagem que vem de longe, um estrangeiro excêntrico. Volta à Tebas como à sua terra natal, para ser bem recebido e aceito, para, de certa forma, provar que ali é sua morada oficial.

A um só tempo vagabundo e sedentário, ele representa, entre os deuses gregos, segundo a fórmula de Louis Gernet, a figura do outro, do que é diferente, desnorteante, desconcertante. É também, como escreveu Marcel Detienne, um deus epidêmico. Como uma doença contagiosa, quando ele aparece em algum lugar onde é desconhecido, mal chega e se impõe, e seu culto se espalha como uma onda.”

* * * * *

“Cadmo, primeiro soberano de Tebas, herói fundador dessa grande cidade clássica, é ele mesmo um estrangeiro, um asiático, um fenício, que vem de longe. Cadmo teve vários filhos e filhas, entre elas Sêmele e Ágave.

Sêmele é uma criatura encantadora. Zeus terá relações com ela, não de um dia, mas mais duradouras. Sêmele, que vê Zeus deitar-se a seu lado toda a noite com forma humana, mas que sabe que se trata de Zeus, deseja que o deus lhe apareça pessoalmente em todo o seu esplendor, em sua majestade de soberano dos bem-aventurados imortais.

Mas é sempre um perigo para os homens querer que os deuses se apresentem diante de seus olhos tal como são, como fariam parceiros mortais. Quando Zeus acata o pedido de Sêmele e aparece em seu esplendor fulminante, ela é consumida pela luminosidade flamejante, pelo brilho divino do amante. Sêmele queima. Como já está grávida de Dioniso, Zeus faz um corte na própria coxa, abre-a, transforma-a em útero feminino e ali coloca o futuro filho, que é então um feto de seis meses. Quando chega a hora, Zeus abre a coxa e o pequeno Dioniso pula para fora, assim como fora extraído do ventre de Sêmele. O bebê é esquisito, escapa às normas divinas, já que é ao mesmo tempo filho de uma mortal e filho de Zeus em todo o seu esplendor.

Dioniso terá de lutar contra o ciúme tenaz de Hera, que não perdoa facilmente as aventuras de Zeus e sempre implica com os frutos desses amores clandestinos… Um dos grandes cuidados de Zeus é afastar Dioniso do olhar de Hera e confiá-lo a amas que o escondam.”

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“Quando o menino cresce um pouco, também vai perambular e, volta e meia, será vítima de perseguições de personagens bem instalados em suas terras. É o que lhe acontece quando ainda é bem jovem, ao desembarcar na Trácia, levando em seu séquito um cortejo de jovens bacantes. Licurgo, o rei do país, vê com muito maus olhos a chegada do jovem estrangeiro e dessa moças que deliram como adeptas fanáticas de uma nova divindade.

Licurgo manda prender as bacantes, joga-as na prisão. Licurgo persegue o deus e o força a fugir. Dioniso joga-se na água, escapando de Licurgo, e é a deusa Tétis, a futura mãe de Aquiles, que o esconde por certo tempo nas profundezas marinhas.

Quando sai de lá, depois dessa espécie de iniciação clandestina, desaparece da Grécia e vai para a Ásia. É a grande conquista da Ásia. Percorre todos esses territórios com exércitos de fiéis, sobretudo mulheres… Dioniso e seus seguidores põe para correr todos os exércitos que se levantam contra ele, tentando em vão bloquear seu avanço; percorre a Ásia como vencedor. E depois o deus volta para a Grécia.”

* * * * *

“Em seu retorno a Tebas, ele, o errante, o menino perseguido pelo ódio de uma madrasta, o jovem deus obrigado a se jogar na água para evitar a cólera de um rei da Trácia, ei-lo adulto. Chega no momento em que Penteu, filho de sua tia Ágave, irmã de sua mãe Sêmele, é rei de Tebas. Sêmele morreu. Cadmo ainda está vivo, mas velho demais para reinar.

Dioniso chega disfarçado a Tebas, que é um modelo de cidade grega arcaica. Não se apresenta como o deus Dioniso, mas como o sacerdote do deus. Sacerdote ambulante, vestido de mulher, ele usa os cabelos compridos batendo nas costas, tem tudo do meteco oriental, ar sedutor, falante… tudo o que pode perturbar e irritar Penteu, o jovem rei.

Em torno de Dioniso, chegam a Tebas suas seguidoras. Em torno dele gravita um bando inteiro de mulheres jovens e mais velhas, que são as lídias, ou seja, mulheres do Oriente – o Oriente como tipo físico, como modo de ser. Nas ruas de Tebas, elas fazem um escarcéu, sentam-se, comem e dormem ao relento.

Ao ver isso, Penteu fica furioso. O que está fazendo ali esse bando de vagabundos? Quer expulsá-los. Dioniso, de seu lado, quer restabelecer um vínculo com o divino. Restabelecê-lo não durante uma festa ou uma cerimônia, e sim na própria vida humana, na vida política e cívica de Tebas tal como ela é. Pretende introduzir um fermento que abra uma dimensão nova na vida diária de cada um.

Para isso, deve enlouquecer as mulheres de Tebas, essas matronas solidamente implantadas em seu estatuto de esposas e mães, e cujo modo de vida é diametralmente oposto ao das mulheres lídias que compõem o séquito de Dioniso. São essas tebanas que vão enlouquecer com os delírios do deus Dioniso.

Elas largam os filhos, deixam inacabados os afazeres domésticos, abandonam o marido e vão para as montanhas, para as terras incultas, para os bosques. Lá, passeiam em trajes espantosos para senhoras tão dignas, entregam-se a loucuras de todo tipo, às quais os camponeses assistem com pensamentos confusos, admirando-as ao mesmo tempo estarrecidos e escandalizados.

Penteu é informado. Seu ódio é duplo. Para começar, ele se volta contra os fiéis do deus, as devotas seguidoras do deus, tidas como responsáveis pela desordem feminina que se espalhou na cidade. Manda a polícia agarrar todas essas lídias fervorosas do novo culto e jogá-las na prisão.

Assim fazem os encarregados da disciplina urbana. Contudo, mal chegam à prisão, Dioniso as liberta, por magia; ei-las de novo dançando, cantando nas ruas, batendo seus crótalos, fazendo barulho. Penteu resolve atacar o sacerdote itinerante, o mendigo sedutor. Manda prendê-lo, acorrentá-lo, trancá-lo nos currais!

Penteu acha que o caso está resolvida e dá a seus homens a ordem de se equiparem para uma expedição militar, partirem para uma caçada no campo e trazerem todas as mulheres que cometem excessos por lá.

Os soldados da repressão, a mando de Penteu, dirigem-se ao escarcéu das lídias. Aquelas mulheres, enquanto eram deixadas tranquilas, pareciam nadar na felicidade, não eram agressivas nem ameaçadoras; ao contrário, nelas, entre elas e em torno delas, nos prados e nas florestas, tudo parecia maravilhosamente suave; pegavam no colo os filhotes de animais, de todas as espécies, e os alimentavam no seio como a seus próprios filhos, sem que nunca os bichos selvagens lhes fizessem o menor mal…

Segundo afirmavam os camponeses e segundo o que os soldados tiveram a impressão de ver, vivam como num outro mundo, de perfeita harmonia entre todos os seres vivos, homens e bichos misturados, animais selvagens, predadores, carniceiros reconciliados com suas presas, lado a lado, todos alegres, fronteiras abolidas, na amizade e na paz. A própria terra se punha em uníssono. Bastava uma pancadinha com o tirso e do solo jorravam fontes de água pura, leite, vinho. A idade de ouro voltara.

Assim que os soldados apareceram, assim que se exerceu contra elas a violência guerreira, então essas mulheres angelicais se tornaram fúrias assassinas. Com seus tirsos, mais uma vez se jogaram para cima dos soldados, espancaram-nos, mataram-nos, foi uma debandada geral.

Enquanto isso, Dioniso está preso nos currais. Mas, de repente, suas correntes afrouxam e o palácio real se incendeia. Os muros desabam e ele sai ileso.

Vitória da suavidade contra a violência, das mulheres contra os homens, do campo selvagem contra a ordem cívica. Penteu é informado dessa derrota enquanto Dioniso se mantém sorridente diante dele.

Penteu encarna o homem grego num de seus aspectos maiores, convencido de que o que conta é uma certa forma aristocrática de comportamento, autocontrole, capacidade de raciocinar… E, mais ainda, esse sentimento de nunca se rebaixar, de saber se dominar, não ser escravo de seus desejos nem de suas paixões, atitude que implica, em contrapartida, certo desprezo pelas mulheres, vistas, inversamente, como seres que se abandonam com facilidade às emoções. E, por último, o desprezo por tudo o que não é grego: como os bárbaros da Ásia, lascivos…

Penteu nutre a ideia de que o papel de um monarca é manter uma ordem hierárquica em que os homens estão no lugar que lhes cabe, as mulheres ficam em casa, os estrangeiros não são admitidos e em que Ásia e Oriente têm fama de ser povoados por gente efeminada…

Dioniso, o sacerdote, vai agir com uma inteligência de sofista, por perguntas, respostas ambíguas, a fim de despertar o interesse de Penteu pelo que acontece num mundo que ele não conhece e não quer conhecer: o mundo feminino desregrado. Ele pensa que talvez não fosse má ideia ir dar uma olhadinha. Vai manifestar um desejo que não tinha, o de ser um voyeur.

Tanto mais porque acha que algumas das mulheres de sua família entregam-se no campo à vida desregrada, participam de orgias sexuais assustadoras. Ele é pudico, é um jovem sem mulher… Dioniso lhe diz: “Tu podes ir lá sem que ninguém te veja, secretamente, vai assistir ao delírio delas, às loucuras, assistirás a tudo de camarote e ninguém te verá…”

O rei Penteu veste-se como mulher, deixa os cabelos soltos, feminiza-se, torna-se parecido a um asiático. Dioniso pega Penteu pela mão e leva-o até o Citerão, onde estão as mulheres. Penteu trepa no alto do pinheiro. Vê chegar sua mãe Ágave e todas as moças de Tebas, que enlouqueceram com Dioniso e que por conseguinte estão num estado de delírio muito ambíguo. Estão enlouquecidas, sim, mas não são propriamente adeptas do deus. Não são “convertidas” ao culto de Dioniso.

Por não o terem aceitado como fizeram as lídias, as mulheres tebanas estão doentes de dionisismo. Diante da incredulidade, o dionisismo se manifesta na forma de doença contagiosa. Em suas loucuras, ora se comportam como adeptas do deus – em meio à beatitude do retorno a uma idade de ouro, em meio à fraternidade na qual todos os seres vivos, os deuses, os homens e os animais, estão misturados – , ora, ao contrário, uma raiva sanguinária toma conta delas. Assim como desbarataram o exército, assim também podem degolar os próprios filhos ou cometer qualquer loucura. É nesse estado alucinatório de distúrbio mental, de ‘epidemia dionisíaca’, que estão as mulheres de Tebas.

A certa altura, Penteu se debruça um pouco mais para ver melhor, a tal ponto que as mulheres descobrem lá no alto um espião, um vigia, um voyeur. Ficam furiosas e todas se precipitam para tentar vergar a árvore. Penteu cai no chão, elas se jogam para cima dele e o despedaçam. Esquartejam-no como em certos sacrifícios dionisíacos se esquartejava a vítima crua, viva. Assim, Penteu é desmembrado. Sua mãe agarra a cabeça do filho, espeta-a num tirso e passeia, às gargalhadas, com essa cabeça, que em seu delírio ela julga ser a de um leãozinho… Aos poucos, Ágave sai do delírio. Lentamente, fiapos de realidade reaparecem nesse universo onírico, sanguinário e maravilhosamente belo, no qual ela afundara. Finalmente, percebe que a cabeça agarrada ao tirso é a de seu filho. Horror!”

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“A volta de Dioniso, para casa, em Tebas, esbarrou com a incompreensão e provocou um drama durante todo o tempo em que a cidade foi incapaz de estabelecer o vínculo entre as pessoas da terra e o estrangeiro, entre os sedentários e os viajantes, entre, por um lado, sua vontade de ser sempre a mesma, de continuar idêntica a si mesma, de se negar a mudar, e, por outro, o estrangeiro, o diferente, o outro. Enquanto não há possibilidade de combinar esses contrários, produz-se uma coisa aterradora:

Os que encarnam o vínculo incondicional com o imutável, os que proclamam a permanência necessária de seus valores tradicionais diante do que é diferente deles, do que os questiona e os obriga a terem sobre si mesmos um olhar diferente, são exatamente estes – os que afirmam sua identidade, os cidadãos gregos convictos de sua superioridade – que se jogam na alteridade absoluta, no horror, no monstruoso.

Quanto às mulheres tebanas, irrepreensíveis em seu comportamento, modelos de reserva e modéstia, todas, Ágave à frente – a rainha-mãe que mata o filho, o esquarteja e ostenta sua cabeça como um troféu – todas, de repente, assumem a figura da Górgona Medusa: carregam a morte nos olhos.

Quanto a Penteu, ele morre de um modo pavoroso, rasgado vivo como um bicho selvagem, ele, o civilizado, o grego sempre seguro de si, que cedeu ao fascínio do que pensava ser o outro e que ele condenava. O horror vem se projetar na face daquele mesmo que não soube reconhecer o lugar do outro.

Depois desses acontecimentos, Ágave se exila, Cadmo também, e Dioniso prossegue suas viagens pela superfície da terra… Em Tebas haverá um culto a ele, que conquistou a cidade, não para expulsar dali outros deuses, não para impor sua religião contra a dos outros, mas para que no centro de Tebas, em pleno coração da cidade, fossem representados, em seu templo, suas festas e seu culto, o marginal, o vagabundo, o estrangeiro, o anômico. Como se, à medida que um grupo humano se recusa a reconhecer o outro e abrir-lhe espaço, esse próprio grupo se tornasse monstruosamente outro.”

JEAN-PIERRE VERNANT
“O Universo, os Deuses e Os Homens”
Ed. Cia Das Letras
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A Caça às Bruxas (por Carl Sagan & Nietzsche)


BURN THE WITCH!

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“É certo que não havia bruxas, mas as terríveis consequências da fé nas bruxas foram as mesmas que se verificariam se tivesse havido bruxas. […] É verdade que até agora a fé não conseguiu mover nenhuma montanha real… Mas ela consegue pôr montanhas onde não há.”

F. NIETZSCHE, Humano Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres (2º volume. Editora Companhia das Letras. Aforismo #225)

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Santo Agostinho acreditava que as bruxas eram o produto das uniões proibidas entre os demônios, que descem do céu e têm relações sexuais ilícitas com as mulheres. Na Idade Média, quase todo mundo acreditava nessas histórias. Os sedutores demoníacos das mulheres eram denominados íncubos; os dos homens, súcubos.  Há casos em que as freiras falavam, com algum atordoamento, de uma semelhança extraordinária entre o íncubo e o padre confessor ou o bispo… e despertavam na manhã seguinte, segundo um cronista do século XV, “descobrindo-se sujas como se tivessem estado com um homem”. Há relatos semelhantes na China antiga, só que em hárens, e não em conventos…

Em sua famosa bula de 1484, o papa Inocêncio VIII dava início à acusação, tortura e execução sistemáticas de inumeráveis “bruxas” em toda a Europa. Elas eram culpadas do que Agostinho descrevera como “o ato criminoso de bulir com o mundo invisível”. As meninas e as mulheres foram as principais perseguidas. Muitos protestantes influentes dos séculos seguintes, apesar de suas diferenças com a Igreja Católica, adotaram visões quase idênticas. Até humanistas como Erasmo de Roterdã e Thomas More acreditavam em bruxas. “Não acreditar em bruxarias”, disse John Wesley, o fundador do metodismo, “é na verdade não acreditar na Bíblia”.


Inocêncio elogiava “nossos queridos filhos Henry Kramer e James Sprenger”, que “foram nomeados, por Cartas Apostólicas, inquisidores dessas depravações heréticas”. Se “as abominações e enormidades em questão permanecerem impunes”, as almas de multidões enfrentarão a danação eterna. O papa indicou Kramer e Sprenger para escreverem uma análise abrangente. Com citações exaustivas da Escritura e de eruditos antigos e modernos, eles produziram o Malleus maleficarum, o “Martelo das Bruxas” – descrito apropriadamente como um dos livros mais terríveis da história humana.

O que o Malleus significa é que se a pessoa for acusada de bruxaria, ela é uma bruxa. A tortura é um meio infalível de demonstrar a validade da acusação. O réu não tem direitos. Pouca atenção era dada à possibilidade de que as acusações fossem causadas por objetivos ímpios – inveja, vingança ou ganância dos inquisidores, que rotineiramente confiscavam para seu proveito pessoal as propriedades do acusado.

Esse manual técnico para torturadores também inclui métodos de castigo talhados para liberar os demônios do corpo da vítima, antes que o processo a matasse. Com o Malleus na mão e o incentivo do papa garantido, os inquisidores começaram a surgir por toda a Europa.

Os processos logo se tornaram fraudulentos no item despesas. Todos os custos da investigação, julgamento e execução eram pagos pela acusada ou seus parentes – até as diárias dos detetives particulares contratados para espioná-la, o vinho para seus guardas, os banquetes para seus juízes, as despesas de viagem de um mensageiro enviado para buscar um torturador mais experiente em outra cidade, e os feixes de lenha e a corda do carrasco.

Além disso, os membros do tribunal ganhavam uma gratificação para cada feiticeira queimada. O que sobrava das propriedades da bruxa condenada, se ainda houvesse alguma coisa, era dividido entre a Igreja e o Estado. Quando esse assassinato e roubo em massa, legal e moralmente sancionados, se tornaram institucionalizados, quando surgiu uma imensa burocracia para servi-lo, a atenção se desviou das velhas megeras pobres para os membros das classes média e alta de ambos os sexos.

Quanto mais as pessoas, sob tortura, confessavam participar de bruxarias, mais difícil ficava sustentar que toda a história não passava de fantasia. Como cada uma das “bruxas” era forçada a implicar outras, o número crescia exponencialmente. Tudo isso constituía “provas assustadoras de que o Diabo ainda está vivo”, como mais tarde se afirmou na América do Norte por ocasião dos julgamentos das bruxas de Salem.

A Bíblia tinha aconselhado: “Não deves tolerar que uma bruxa viva.” Legiões de mulheres foram queimadas até a morte. […] A crônica dos que foram consumidos pelo fogo, somente na cidade alemã de Würtzburg, apenas no ano de 1598, apresenta estatísticas que permitem que nos confrontemos com um pouco da realidade humana: houve 28 imolações públicas, cada uma com quatro a seis vítimas em média, nessa pequena cidade em um único ano. Isso era um microcosmo do que estava acontecendo por toda a Europa. […] A Santa Inquisição adotava esse modo de execução [a fogueira] aparentemente para garantir uma concordância literal com uma bem-intencionada sentença da lei canônica (Concílio de Tours, 1163): “A Igreja abomina o derramamento de sangue”…

CARL SAGAN
“O Mundo Assombrado Pelos Demônios”
Ed. Companhia das Letras (Cia de Bolso)
Pgs. 141-146

Outras obras recomendadas >>>

MICHELET, Jules. A Feiticeira.
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. 
HAWTHORNE, Nathaniel. A Letra Escarlate.
Sombras de Goya, filme de Milos Forman
As Bruxas de Salem, filme de Nicholas Hytner

“Os mortos retornam ao seio da terra-mãe na esperança de participar da sorte das sementes.” (Mircea Eliade, 1907-1986)

MIRCEA ELIADE
História das Crenças e das Ideias Religiosas
(Volume 1 – Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis)

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A IDADE DA PEDRA E O SENHOR DAS FERAS

O homem é o produto final de uma decisão tomada “no começo do tempo”: a de matar para poder viver. Os homínidas conseguiram superar os seus ancestrais transformando-se em carnívoros. Durante 2 milhões de anos, os paleantropídeos viveram da caça. […] A “solidariedade mística” entre o caçador e suas presas é revelada pelo próprio ato de matar; o sangue derramado é em todos os aspectos semelhante ao sangue humano. […] As primeiras indicações arqueológicas referentes ao universo religioso do caçador paleolítico remontam a 30.000 antes de Cristo. […] Os caçadores primitivos consideram que os animais são semelhantes aos homens; que o homem pode transformar-se em animal e vice-versa; que as almas dos mortos podem penetrar nos animais. […] A matança do animal constitui um ritual, o que implica a crença de que o senhor das feras zela para que o caçador só mate aquilo de que necessita para se alimentar e para que o alimento não seja desperdiçado. […] Foram descobertas ossadas de ursos em cavernas dos Alpes, por exemplo. […] Um culto baseava-se na conservação do crânio e dos ossos largos do urso abatido para que o senhor das feras possa ressuscitá-lo no ano seguinte. […] Crânios e ossos longos são conservados ou como oferendas a um ser supremo/senhor das feras, ou são conservados porque existe a esperança de que serão recobertos de carne… (Cap. 2-3)

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A AGRICULTURA E A FEMINILIDADE SAGRADA

“A primeira – e talvez a mais importante – consequência da descoberta da agricultura provoca uma crise nos valores dos caçadores paleolíticos: as relações de ordem religiosa com o mundo animal são suplantadas pelo que podemos chamar de solidariedade mística entre o homem e a vegetação. […] A mulher e a sacralidade feminina são promovidas ao primeiro plano. […] A fertilidade da terra é solidária com a fecundidade feminina: consequentemente, as mulheres tornam-se responsáveis pela abundância das colheitas pois são elas que conhecem o “mistério” da criação. […] Durante milênios, a terra-mãe dava à luz sozinha, por partenogênese. A lembrança desse “mistério” sobrevivia ainda na mitologia olímpica: Hera concebe sozinha e dá à luz Hefesto e Ares. […] Nascido da terra, o homem, ao morrer, retorna à sua mãe. […] Um simbolismo complexo, de estrutura antropocósmica, associa a mulher e a sexualidade aos ritmos lunares, à Terra (associada ao útero) e àquilo que devemos chamar o “mistério” da vegetação. Mistério que reclama a “morte” da semente a fim de assegurar-lhe um novo nascimento, tanto mais maravilhoso quanto se traduz por uma espantosa multiplicação. (Cap. 12)

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O EGITO CULTUA O SOL… E O FARAÓ.

Pode-se dizer que o Egito era constituído por uma massa rural dirigida pelos representantes de um deus encarnado, o faraó. […] Durante mais de 3 milênios, os faraós foram coroados em Mênfis. […] Como o faraó era imortal, sua morte significa somente sua transladação ao Céu. […] Esse ‘imobilismo’ que caracteriza a civilização egípcia, a fixidez das formas hieráticas e a repetição das gestas e façanhas efetuadas na aurora dos tempos são a consequência lógica de uma teologia que considerava a ordem cósmica uma obra essencialmente divina, e via em toda mudança o risco de uma regressão ao caos e, por consequinte, o triunfo das forças demoníacas.” […] A tendência era para manter intacta a primeira Criação, pois era perfeita… a idade de ouro da perfeição absoluta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desordem fizessem seu aparecimento”. Não havia morte nem doença durante essa era maravilhosa denominada “o tempo de Ré”, ou de Osíris, ou de Horus.

Os egípcios acreditavam que os homens nasceram das lágrimas do deus solar Ré. O deus-Sol fez o ar para vivificar-lhes as narinas… para eles fez a vegetação e os animais, as aves e os peixes, a fim de alimentá-los. […] Depois da morte, as almas iam encontrar as estrelas e compartilhavam a eternidade delas. Uma vez que o Céu era imaginado como uma deusa-mãe, a morte equivalia a um novo nascimento, ou seja, a um renascimento no mundo sideral…

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A REFORMA DE AKHENATON E O PRIMEIRO MONOTEÍSMO SOLAR

O faraó Akhenathon (cerca de 1375 a.C.), pela vontade de libertar-se do domíno do sumo sacerdote, abandonou a velha capital, Tebas, e construiu outra 500 km mais ao norte, a que chamou Akhenaton, onde ergueu palácios e templos para Aton, o disco solar, única divindade suprema. Os santuários de Aton não eram cobertos, não tinham teto: podia-se adorar o Sol em toda a sua glória. Esse faraó raquítico e quase disforme, que morreria muito jovem, descobrira o sentido religioso da “alegria de viver”, a felicidade de desfrutar a Criação inesgotável de Aton, fonte universal de vida. O essencial da teologia de Akhenaton encontra-se em dois hinos que dizem que o Sol é “o começo da vida”, os seus raios “beijam todos os países”. “Embora estejas muito distante, teus raios estão sobre a Terra…”

A prece encontrada no sarcófago de Akhenaton continha estas linhas: “Vou respirar o doce hálito da tua boca. A cada dia, vou contemplar tua beleza. Chama o meu nome no decorrer da eternidade: ele jamais faltará a teu apelo!” O curso do Sol representa o modelo exemplar do destino humano: passagem de um modo de ser a outro, da vida à morte e, depois, a um novo nascimento. (Capítulos 32-33)

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A PEDRA E A BANANA (MITO INDONÉSIO)

Não podemos deixar de recordar um mito indonésio: no começo, quando o Céu estava muito próximo da Terra, Deus recompensava o casal primordial com presentes suspensos à extremidade de uma corda. Um dia, enviou-lhes uma pedra, mas nossos ancestrais, surpreendidos e indignados, a recusaram. Depois de algum tempo, Deus desceu novamente a corda; desta vez, com uma banana, que foi prontamente aceita. Então se fez ouvir a voz do criador: “Já que escolhestes a banana, vossa vida será como a vida desse fruto. Se tivésseis escolhido a pedra, ela teria sido como a existência da pedra, imutável e imortal.”

Como vimos, a descoberta da agricultura mudou radicalmente a concepção da existência humana: ela se revelava tão frágil e efêmera quanto a vida das plantas. Mas, por outro lado, o homem compartilhava o destino cíclico da vegetação. […] Os mortos retornam ao seio da terra-mãe, na esperança de participar da sorte das sementes.

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JAVÉ, ABRAÃO E O DESPERTAR DO FANATISMO

O primeiro artigo do Decálogo, “Não terás outros deuses diante de mim!”, demonstra que não se trata de monoteísmo no sentido estrito do termo. A existência de outros deuses não é negada. Pede-se, porém, a fidelidade absoluta. E a luta contra os falsos deuses começa…

Pois Javé é imaginado como só e único. Devemos ver outro traço antropomorfo no fato de ele solicitar aos fiéis uma obediência absoluta, como um déspota oriental? A intolerância e o fanatismo, característicos dos profetas e dos missionários dos três monoteísmos, têm seu modelo e justificativa no exemplo de Javé. […] Sua raiva revela-se às vezes de tal maneira irracional que se pôde falar no “demonismo” de Javé. […] Trata-se de uma nova expressão, e a mais impressionante, da deidade como absolutamente distinta da Criação…

O 12º capítulo do Gênese nos introduz em um mundo religioso novo. Javé [Jehovah] diz a Abraão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, vai para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome… Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem.”

[…] A concepção religiosa implícita na “eleição” de Abraão prolonga crenças e costumes familiares no Oriente Próximo do segundo milênio. […] A fé abraâmica se tornará com o tempo a experiência religiosa específica do judaísmo e do cristianismo.

No Gênese, apenas um sacrifício – o de Isaac (22:1-19) é minuciosamente descrito. Deus pedira a Abraão que lhe oferecesse o filho em holocausto… Abraão sentia-se ligado a seu Deus pela “fé”. Não compreendia o sentido do ato que Deus acabava de lhe solicitar, mas de modo algum duvidava da santidade, da perfeição e da onipotência de seu Deus. Por conseguinte, se o ato prescrito tinha todas as aparências de um infanticídio, era pela impotência da compreensão humana…

E a guerra realizada em seu nome era uma guerra santa…

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A ÍNDIA VÉDICA E A BEBIDA SAGRADA SOMA

…nenhuma tradição religiosa se prolonga indefinidamente sem modificações, produzidas seja por novas criações espirituais, seja por empréstimo, simbiose ou eliminação.

Os indianos védicos praticavam a agricultura, mas sua economia era sobretudo pastoril. O gado desempenhava a função de moeda. […] O ferro só começou a ser utilizado por volta de ~1500. Os hinos revelam que os indianos da época védica apreciam a música e a dança: tocam flauta, alaúde e harpa. Apreciam as bebidas embriagantes, soma e surâ. […] No Rig Veda, Indra é o mais popular dos deuses. Cerca de 250 hinos lhe são consagrados. Indra é o herói por excelência, modelo exemplar dos guerreiros, demiurgo e fecundador, personificação da exuberância da vida, da energia cósmica e biológica. Infatigável consumidor de soma, arquétipo das forças genesíacas, ele desencadeia os furacões, derrama as chuvas e comanda todas as umidades. O mito central de Indra é o mais importante mito do Rig Veda: narra seu combate vitorioso contra Vrtra, dragão gigantesco que retinha as águas no “oco da montanha”. Fortificado pelo soma, Indra parte-lhe a cabeça e liberta as águas. O combate de um deus contra um monstro ofídio ou marinho constitui, como se sabe, um tema mítico bastante difundido… (Cap. 68)

A bebida sagrada soma provavelmente substituiu a bebida indo-européia madhu, o “hidromel”. Todas as virtudes do soma são solidárias da experiência extática ocasionada pela sua absorção. “Bebemos o soma”, lê-se num hino célebre, “e nos tornamos imortais”. Implora-se ao soma que prolongue “o nosso tempo de vida” pois ele é “o guardião de nosso corpo”. […] O soma estimula o pensamento, reanima a coragem do guerreiro, aumenta o vigor sexual, cura as enfermidades. Bebido em comum pelos sacerdotes e pelos deuses (ele é o amigo de Indra…), ele aproxima a Terra do Céu, reforça e prolonga a vida, garante a fecundidade. Na verdade, a experiência extática revela ao mesmo tempo a plenitude vital, o sentido de uma liberdade sem limites, a posse de forças físicas e espirituais apenas suspeitadas. […] A revelação de uma existência plena e beatífica, em comunhão com os deuses, continuou a obsedar a espiritualidade indiana muito tempo depois do desaparecimento da bebida original. Procurou-se, pois, alcançar tal existência com auxílio de outros meios: a ascese, os excessos orgíacos, a meditação, as técnicas da ioga, a devoção mística…” (Cap. 70)

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OS GREGOS E O MITO DAS PRIMEIRAS RAÇAS: CRONOS, PROMETEU & PANDORA…

Segundo Hesíodo (em Os Trabalhos e os Dias), houve cinco raças de homens: as raças de ouro, de prata e de bronze, a raça dos heróis e a raça de ferro. Ora, a primeira raça vivia sob o reinado de Cronos, ou seja, antes de Zeus. Essa humanidade da idade de ouro, exclusivamente masculina, vivia perto dos deuses, “com o coração isento de cuidados, a salvo de dores e misérias” (Teogonia, 112s.). Não trabalhavam, pois o solo lhes oferecia tudo aquilo de que necessitavam. A vida transcorria-lhes em meio a danças, festas e divertimentos variados. Não conheciam a doença nem a velhice. Essa época paradisíaca – da qual encontramos paralelos em numerosas tradições – terminou com a queda de Cronos. […] O mito da “perfeição dos primeiros tempos” e da felicidade primordial, perdidos em consequência de um acidente ou de um “pecado”, é bastante difundido.

Prometeu trouxe o fogo do céu. Enervado, Zeus decidiu punir de uma só vez os homens e seu protetor. Prometeu foi acorrentado e uma águia passou a devorar-lhe, todos os dias, o “fígado imortal”, que se recompunha durante a noite. Um dia ele será libertado por Héracles, filho de Zeus, a fim de que a glória do herói aumente ainda mais. Quanto aos seres humanos, Zeus enviou-lhes a mulher, essa “bela calamidade” (Teogonia, 585), sob a forma de Pandora, “armadilha profunda e sem saída destinada aos homens, tal como a denuncia Hesíodo, “pois foi dela que proveio a raça, a corja perniciosa das mulheres, terrível flagelo instalado entre os homens mortais…” (Teogonia, 592s).

Em suma, longe de ser um benfeitor da humanidade, Prometeu é o responsável pela sua atual decadência. Ao furtar o fogo, irritou Zeus, suscitando assim a intervenção de Pandora, isto é, o aparecimento da mulher e, por conseguinte, a propagação de todas as espécies de tormentos, atribulações e infortúnios. Para Hesíodo, o mito de Prometeu explica a irrupção do “mal” no mundo; em última análise, o “mal” representa a vingança de Zeus. Para Ésquilo, que substitui o mito da idade de ouro primordial pelo tema do progresso, Prometeu é o maior herói-civilizador. Foi Prometeu quem ensinou aos homens todos os ofícios e todas as ciências. […] Só Prometeu ousou opor-se ao plano do senhor do mundo. […] Na Atenas do século V, Prometeu já tinha sua festa anual…

O gesto de Prometeu, crime de lesa-majestade contra Zeus, o deus supremo, representa um titã que toma o partido dos homens contra os olímpicos. […] Zeus não toleraria uma humanidade poderosa e altiva. […] Se Ésquilo, por um lado, exaltara a grandeza ímpar desse herói-civilizador, protetor dos homens, por outro lado também ilustrara a benevolência de Zeus e o valor espiritual da reconciliação final, elevado a modelo exemplar da sabedoria humana. Prometeu só recuperará sua estatura sublime – vítima eterna da tirania – com o Romantismo europeu. (Capítulos 85-86)

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OS GREGOS E O DESTINO (MOÎRA)

Julgada na perspectiva judaico-cristã, a religião grega parece constituir-se sob o signo do pessimismo: a existência humana é, por definição, efêmera e sobrecarregada de preocupações. Homero compara o homem com as “folhas que o vento lança por terra” (Ilíada, VI, 146s.). A comparação é retomada pelo poeta Mimnermo de Cólofon (século VII a.C.) em sua longa enumeração dos males: pobreza, doenças, mortes, velhice etc. “Não existe um único homem a quem Zeus não envie mil males”. Para seu contemporâneo Simônides, os homens são “criaturas de um dia”, que vivem como o gado, “sem saberem porque caminho Deus conduzirá cada um de nós ao seu destino”. […] Teógnis, Píndaro e Sófocles proclamam que a maior ventura para os homens seria não nascer, ou, tendo nascido, morrer o mais cedo possível.

A morte, porém, nada resolve, já que não traz a extinção total e definitiva. Para os contemporâneos de Homero, a morte era uma pós-existência diminuída e humilhante nas trevas subterrâneas do Hades. […] O bem realizado na Terra não era recompensado, e o mal não sofria punição. Os únicos condenados às torturas eternas eram Íxion, Tântalo e Sísifo, porque tinham ofendido Zeus em pessoa.

Essa concepção pessimista impôs-se irremediavelmente quando o grego tomou consciência da precariedade da condição humana. […] Ele não tem a ousadia de esperar que suas preces possam estabelecer certa “intimidade” com os deuses. Por outro lado, sabe que sua vida já está decidida pelo destino (moîra) e que é o próprio Zeus quem determina as sortes.

O próprio Zeus reconhece a supremacia da justiça (díkê), que nada mais é que a manifestação concreta, na sociedade humana, da ordem universal. […] O primeiro dever do homem é ser justo e demonstrar “honra, consideração” com relação aos deuses. […] Em suma, os deuses não ferem os homens sem motivo, enquanto os mortais não transgridem os limites prescritos. Porém, é difícil não transgredir os limites impostos, pois o ideal do homem é a aretê, a “excelência”. Ora, uma excelência excessiva corre o risco de suscitar o orgulho desmedido e a insolência (húbris). Foi o que sucedeu a Ajax… A húbris provoca uma loucura temporária que “cega” a vítima e a leva ao desastre.

A sabedoria começa com a consciência da finitude e da precariedade de qualquer vida humana. Trata-se, pois, de aproveitar tudo aquilo que o presente pode oferecer: juventude, saúde, alegrias físicas ou oportunidades de exercer as virtudes. É a lição de Homero: viver totalmente, mas com nobreza, no presente.

Esse “ideal” surgido do desespero nunca se apagou. Em vez de inibir as forças criativas do gênio religioso grego, essa visão trágica conduziu a uma revalorização paradoxal da condição humana. […] O homem redescobriu o sentido religioso da “alegria de viver”, o valor sacramental da experiência erótica e da beleza do corpo humano, a função religiosa de todo júbilo coletivo organizado – procissões, jogos, danças, cantos, competições esportivas, espetáculos, banquetes etc.

É sobretudo a valorização religiosa do PRESENTE que importa destacar. O simples fato de existir, de viver no tempo, pode encerrar uma dimensão religiosa. A “alegria de viver” descoberta pelos gregos não é um gozo de tipo profano: ela revela a satisfação de existir, de participar – mesmo de maneira fugidia – da espontaneidade da vida e da majestade do mundo. Como tantos outros antes e depois deles, os gregos aprenderam que o meio mais seguro de escapar do tempo é explorar as riquezas, à primeira vista insuspeitáveis, do instante vivido.” (Capítulo 87)

(Capítulo 87: O homem e o destino. Sentido da “alegria de viver”)

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A SER CONTINUADO…

Cenas dos próximos capítulos: ZARATUSTRA, DIONÍSIO e OS MISTÉRIOS DE ELÊUSIS

Raul Seixas – Maluco Beleza em Metamorfose Ambulante

Raul Seixas – Maluco Beleza em Metamorfose Ambulante

Um retrato do mito após “O Início, o Fim e o Meio” (Walter Carvalho)

originalmente publicado no blog Depredando o Orelhão

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O nome escrito no RG perdura do nascimento à morte, talvez modificado vez ou outra por casório, mudança-de-sexo ou ida-pro-estrangeiro. Já a criatura que este nome batiza é bem mais fluida e líquida do que sugere a fixidez dos documentos. Somos seres mutantes, criaturas inescapavelmente metamórficas. As barbas sucederam aos meus dentes-de-leite do mesmo modo como os cabelos alvos da velhice hão de esbranquiçar estas madeixas temporariamente morenas. E não será melhor aquiescer à roda-viva dos tempos ao invés de aspirar por impossíveis imutabilidades?

Não se entra duas vezes no mesmo rio”, dizia Heráclito uns 2.500 anos atrás. A ancestralidade do dito, seu caráter de “clássico” sacramentado na história da filosofia, não significa que o rio de que falava o filósofo – o rio cósmico, o rio universal, o rio de Tudo o que escorre – cessou de correr. Prosseguem as marés em sua dança com a Lua. Seguem os planetas respondendo fielmente aos chamados invisíveis das gravitações planetares.

Se a própria Natureza ao nosso redor é dinâmica eterna e imparável mobilidade, seríamos loucos se quiséssemos, apegando-nos a dogmas e nos engessando em ortodoxias, sermos fixos como as “pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Raul, como canta-nos em “Medo da Chuva”, “aprendeu o segredo da vida vendo essas pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Conheço poucos versos mais lindos na história da poesia e da música brasileira: Raul Seixas nos comove e nos encanta tanto, me parece, pois não quis ter um destino de pedra, estagnada em sua solidez, e preferiu ser rio. “Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.
E isso, pra mim, é rock’n’roll até o osso. Pedras que rolam não criam limo. Melhor que ser pedra que rola é ser um autêntico homem-rio, humano escorrente. Não é à toa que Walter Carvalho inicia seu filme com um dos símbolos-mor da contracultura hippie sessentista: os dois motoqueiros de Easy Rider, encarnados por Dennis Hopper e Peter Honda. Raul Seixas, seguindo essa metáfora, teria sido um easy rider tupiniquim. Um desses que põe o pé-na-estrada ao invés de ser samambaia. Um maluco beleza sem medo de ver o misticismo misturado com a lucidez, nem o rock com o baião. Antropófago oswaldiano, comeu e mixou Jimi Hendrix com Luiz Gonzaga, Satanás com Cristo, Crowley com Shiva, a Bíblia e o Baghavad Gita… A ousadia das mesclas, a leveza desse saltar eclético em várias “ilhas” da cultura, faz de Raul um desbravador de novas sendas para a liberdade! “Faze o que tu queres… há de ser tudo da lei!”
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Que esse anarquismo estético todo seja altamente subversivo eu não duvido. E é ótimo que seja. Raul Seixas permanece um remédio necessário contra o caretismo. Longe de mim bancar aqui o bully dos caretas, ainda mais considerando que tenho, com certeza, minhas próprias caretices, como todos. O problema é que o caretismo não é tão inofensivo como parece: estou convencido de que muitos “homens de poder”, muitas altíssimas autoridades políticas, militares, religiosas, policiais, enfim muitos destes que são responsáveis por criar as nossas leis e vigiar nossos comportamentos e nossas interações sociais, são caretas dogmáticos.
Um exemplo: a sangrenta Guerra às Drogas, baseada em ortodoxias proibicionistas, por exemplo, já deixou 50.000 mil mortos no México nos últimos 6 anos… A mesma guerra absurda, levada a cabo faz algumas décadas pelo DEA norte-americano, segue seguindo à risca a cartilha do czar Anslinger. O que já causou trilhões e trilhões de desperdício de verba pública e o encarceramento em massa de um imenso contingente populacional: 25% dos presos do planeta estão nos Estados Unidos da América, o maior Estado policial e militar do mundo. Quanto aos assassinados no Rio de Janeiro ou na Colômbia, bem… quem é que está contando os cadáveres? E como não perder a conta diante de um genocídio tamanho?* * * * *  
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Não haveria um certo eufemismo no próprio termo “Guerra às Drogas”? Como se as perseguidas fossem só as substâncias, e não… as pessoas que as utilizam e comercializam! Esta guerra contra pessoas, movida por preconceitos que se agarram com a obstinação de sanguessugas às nossas legislações, tem a ver – e me arrisco agora em psicologia social raul-seixista! – com o caretismo institucionalizado dos fanáticos pela ordem. E Raul Seixas é um providencial antídoto.
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O que eu quero dizer é que acho ótimo que tenha existido uma figura como Raul para ser uma mosca na sopa de tudo quanto é discursinho pró-DOPS, pró-Opus Dei, pró-Caveirão do BOPE… Raul foi, de fato, uma das maiores figuras da contracultura brasileira na segunda metade do século passado. Um artista de criatividade exuberante, que nos mostrou a beleza da ousadia, da quebra de paradigmas, do comportamento destoante. Ouvir Raul é uma cura contra a normopatia, termo que empresto do psicanalista José Ângelo Gaiarsa, talvez o mais brilhante e mais célebre dos nossos psicólogos sociais reichianos.

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“Normopata” é aquele tipo de neurótico – comuníssimo aliás! – que deseja, acima de tudo, ser normal. Somos todos um pouco normopatas: em situações sociais, especialmente, modelamos nosso comportamento de acordo com o que nos foi ensinado sobre o que é normal e o que é patológico, o que aceito e o que é ilícito. Ah, esses sininhos de Pavlov que não cessam de bater, infernais e aporrinhantes, dentro de nossos cérebros!
A normopatia, neurose de massa, talvez ajude a explicar fenômenos tão atuais, e tão justamente combatidos por tantos movimentos sociais, como a homofobia, o racismo, o bullying. Pessoas que possuem uma “imagem ideal” do que seja a normalidade – por exemplo, normal é quem é branco, católico, heterossexual e “democrata” – tendem a soltar seus anátemas (e às vezes seus cachorros e sua polícia…) pra cima de quem destoa desse ideal do “Normal”. E dá-lhe pauladas e preconceitos pra cima de comunistas, negros, homossexuais, ateus, anarquistas, índios, “hippies” e tantos outros “desviantes” (na perspectiva dos fanáticos pelo normal, claro…).* * * * *

No Brasil, como prova a onipresença e onirecorrência do “Toca Rauuul!” em qualquer show, boteco, pub, roda-de-samba ou concerto de música clássica, Raul Seixas virou uma espécie de mito nacional. Um neo-Macunaíma, objeto de um culto equivalente em terras de Pindorama àquele prestado à Che Guevara em outras plagas (cubanas ou argentinas, por exemplo).
Raul é muito mais que música: é um “modelo” de comportamento, um ideal de personalidade, alguém que muita gente se põe a imitar e reverenciar como se se tratasse de um novo Cristo. E bem peculiar, aliás, dadas as propensões de Raul para o satanismo e seu amor muito maior pelo escritos sagrados dos indianos e chineses do que pela Bíblia do catolicismo romano…
O pivete baiano que se encantou com Elvis Presley e Litte Richard, que puxou a gola pra cima e começou a rosnar e uivar com “Tutti Frutti” ou “Be-Bop-A-Lula”, acabou sendo, junto com os Mutantes, um dos principais agentes da mistura entre a música brasileira e o que estava na crista da onda no panorama musical internacional. Raul não tinha medo de “importar” que havia de melhor no rock gringo – e sem pagar direitos autorais ou ter que responder processos por plágio. Ele não copiava – ele expropriava. Quer dizer: apropriava-se de modo muito próprio do que suas espertas antenas captavam e acabava por realizar uma síntese absolutamente original e inaudita de elementos antes considerados imisturáveis. Um antropófago!* * * * *  

Com Raul, acontece na cultura brasileira um dos mais poderosos fenômenos do que eu chamaria de idolatria secular. O pop star, afinal de contas, é uma espécie de ídolo a vagar fora das igrejas. Cultuado, como outrora Dionísio e Baco, nos locais de dança e carnaval, nos agrupamentos clandestinos de entusiastas, nos locais onde emergem zonas autônomas temporárias e onde os sujeitos experimentam as “delícias do deslimite” (Rüdiger Safranki).

Como quantificar o impacto de uma figura carismática dessas nos sonhos de milhares de homens e mulheres? Como calcular quantas personalidades são moldadas, ao menos em parte, tendo o raul-seixismo como modelo e ideal? Quando John Lennon soltou aquela que deixou de cabelos em pé os fundamentalistas religiosos (“Os Beatles são mais populares do que Jesus Cristo”), estava só dando amostras de seu apuradíssimo senso social. Pois de fato, em nossas sociedades do espetáculo, pra usar a expressão consagrada por Guy Debord, os pop-stars talvez tenham mais impacto social do que alguns mofados símbolos religiosos de milênios atrás.** * * * * 

Raul Seixas, arauto da contracultura brasileira, padroeiro de todas as lutas anti-manicomiais e anti-dogmáticas, sátiro e palhaço de uma sociedade gerida por elites doentes, é também aquele que nos ensinou que para desafinar o coro dos contentes não é necessário ser soturnamente triste.
Com que contentamento e com que jovial audácia Raul não encarnava a ovelha negra! Esta é uma mosca risonha pousando nas intragáveis sopas dos dogmáticos, dos fanáticos, dos caretas. Como a Mafalda de Quino, Raul é um quixotesco protestador contra as sopas azedas deste mundo.
E, nos antípodas do inseto nauseante e repugnante no qual o Gregor Samsa de Kafka se viu transformado, Raul Seixas é uma mosca feliz e saltitante. Provoca e alfineta, introduz a dissonância no coro dos normais, questiona as autoridades autoritárias, abre novas vias de interpretação do mundo e da vida, escancarando portas e janelas com pontapés de poeta…
O estrago que causou, a influência que gerou e os encantamentos que despertou prosseguem agindo e ecoando, anos e anos depois que os primeiros vermes roeram as frias carnes de seu cadáver alcoólatra e de pâncreas mutilado. E hoje em dia, fantasma entre nós, frequenta nossos pesadelos e sonhos, anima nossas festas e nossos cinemas, é semente nos solos de nossa cultura e inspiração para o desabrochar de nossa criatividade. Aquele que bradava que “falta cultura pra cuspir na estrutura”, o imorrível Raul, parece uma figura que saiu da carne só para gozar, altaneiro, da notável sobrevida dos mitos.
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:: Um adeus a Saramago ::

::  UMA QUASE ELEGIA FÚNEBRE ::


Decerto é mais sábio se rejubilar por ele ter vivido do que se entristecer por ter morrido. Mas quem consegue, frente ao desaparecimento de um ente querido, não sentir o buraco que ele deixa ao ir embora, concentrando-se só nas delícias e esmeraldas com que ele nos presenteou em vida? A morte de Saramago (1922-2010) é um furo de ferimento a faca na cultura, um vácuo que fica no pensamento dos vivos. Que um cérebro deste pare de operar, taí a tragédia: o mundo fica toneladas menos lúcido e menos inteligente sem os incríveis processos destes privilegiados miolos e seus frutos suculentos em palavras.

Comunistão, ateu de carteirinha, questionador de todos os dogmatismos e tiranias, Saramago não fugiu da polêmica quando se tratava de sustentar o que acreditava. Os descontentes tem pleno direito de desacordo, parecia dizer, complementando o “no peito dos desafinados também bate um coração”, de João Gilberto. E ele foi um destes nobres descontentes e “ímpios”, levantando-se lá em nossa ex-metrópole, a tão pia Portugal, ela que fincou no Brasil e em suas outras colônias, nos tempos da Coroa, a sangrenta cruz de Cristo, com sua procissão de escravaturas, explorações, pilhagens, revoltas esmagadas a tiro e fome…

Quando imaginou uma epidemia de alguma doença que acometesse a humanidade inteira, fantasiou sobre uma Cegueira Branca que se alastraria como a versão moderna da peste. E o quanto isso não diz! E o belo filme que Fernando Meirelles fez honra ao romance brilhante que o Saramago concebeu.

“A alegria e a tristeza não são como o óleo e a água: elas coexistem”. E ele sabia viver na aceitação desta coexistência, admirador do dito de Pesso:  “Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo”. E que o pôs em prática. E que soube a alquimia que é necessária para fazer com coexistam a alegria de estar no mundo e a crítica ferina dos descalabros que o sujam. Pois, como Bobin, ele sabia que a “aquiescência ao mundo não pode ocorrer sem uma revolta absoluta contra o mal que o acossa de toda parte” (L’Inesperée).

Em Saramago, há essa coexistência do chumbo e da pluma, da acidez e da doçura, da lucidez e da loucura, do vazio e da imensidão. Foi um ironista tão fino quanto Machado, um prosador humorístico tão espirituoso quanto um Sterne ou Fielding, um crítico das cegueiras eclesiásticas tão ousado quanto um Diderot ou um Voltaire, um dos que manteve a chama do Iluminismo acesa no que ela tinha de melhor, um brilhante filósofo do ateísmo que não é menos poderoso e lúcido do que um Nietzsche ou um Feuerbach… E foi amigo precioso de tantos de nós que passamos tão agradáveis tardes entretetidos, fascinados, comovidos, engajados por seus livros!

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei?” No mundo que Saramago enxergava, não: os cegos é que são os reis e senhores do mundo, cegos ditadores entre cegos miseráveis. E quem tem um olho para ver a desgraceira… chora. E faz o que pode para que o suplício pare.

Quem tem visão, como é o caso da personagem de Juliane Moore no filme de Meirelles, a única “vidente” naquela quarentena de “contaminados” pela epidemia, sofre mais que qualquer outro personagem (é a sensação de quase todo espectador) por ter de contemplar a miséria no mundo fabricada pelos desarranjos dos cegos.

Quase impotente, o homem que enxerga tem que se resguardar na cautela para não acabar queimado na fogueira como herege, torresminho do churrasco dos crentes. Quem mostra poder destronar os ídolos dos outros atrai para si a ira daqueles que amam demais estes ídolos e suas próprias cataratas para não odiarem cegamente aqueles que tentam dessacralizá-los e sugerir outras vias.

O filme de Meirelles, que começa numa enfermaria, logo começa a se desenrolar em algum bizarro espaço com características de manicômio, presidiária ou anarquia. É a cegueira trazendo Dogville à tona. Aqueles que tomam controle sobre os recursos naturais necessários para a sobrevivência da “comunidade” preferem, é claro, ao invés da solidariedade e da divisão equânime, faturar em cima da miséria alheia. Deja vu?

Chefiadas pelo “Rei da Ala 3”, tão bem encarnado pelo Gael Garcia Bernal, as auto-nomeadas autoridades exigem os atos moralmente dos mais repugnantes àqueles que estão sob seu jugo. Como no inesquecível episódio em que os “tiranos” daquela monarquia decidem, já que seus servos e súditos já não tinham dinheiro ou ouro algum para fornecer-lhes, usar as mulheres como objetos sexuais, recompensando-as com comida.

O estupro coletivo cometido pelos homens da Ala 3 contra o batalhão de mulheres voluntárias e esfomeadas, que aceitaram sacrificar suas dignidades em troca de algumas migalhas de alimento, é uma das cenas mais chocantes e indignantes que o cinema conseguiu fazer e que a literatura conseguiu nos fazer imaginar com espanto. A “ferida moral” que testemunhar atos assim é capaz de gerar beira o poder das mais fortes cenas de Lars Von Trier em Dogville, Dançando no Escuro ou Ondas do Destino.

E acho que é de encher um brasileiro de orgulho que Fernando Meirelles, em sua incursão pelo cinema americano, tenha levado este frescor do ceticismo questionador, caindo como um sopro benigno numa cultura que privilegia o happy end e que semeia suas cegueiras de shopping center. Ainda que correndo o risco de ser acusado de “misantrópico” ou “pessimista”, Meirelles foi ótimo discípulo de Saramago e se aferrou a sua visão de mundo que eu chamaria muito mais, se fosse preciso etiquetá-la, de “lúcida” e “humanista”. Que é a de Meirelles, a de Saramago, e a de nós que os amamos enquanto viveram e que continuarão amando-os quando se forem.

Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, arrancou lágrimas de Saramago em sua première, fazendo com que Fernando, num ímpeto de doçura, tascasse beijos de filho devoto na careca lustrosa do mestre. A cena é comovedora e não tem um pingo de homoerotismo: é muito mais um beijo de amizade e afeto entre um ancião querido e um jovem aprendiz talentoso. O filme é prova de que os “ensinamentos” do gênio lisboeta, quando ele ainda vivia, já ecoavam por outras artes e artistas, e dando dos mais preciosos frutos…

Saramago foi também um dos mais célebres ateus de nosso mundo. Se alguém nos parasse na rua e nos pedisse o nome de cinco ateus famosos hoje vivos, seu nome teria grandes chances de pipocar rápido na lembrança junto com o de um Richard Dawkins ou de um Salman Rushdie. Como este último, que sofreu violenta repressão do estado teocrático xiita do Irã por causa de seu Os Versículos Satânicos, Saramago também despertou uma onda de indignação em instituições eclesiásticas e pessoas de fé dogmática, especialmente quando da publicação, em 1991, de seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mas não se deixou calar pelos que ameaçaram-no com uma nova Inquisição e prosseguiu, corajoso e obstinado, a nos ofertar, com toda sua maestria literária, seu “banquete de heresias” — como a Gi (je t’aime!!!) muito bem as apelidou quando escreveu sobre Caim, o último romance publicado por Saramago em vida.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou”, professou Saramago poucos dias depois do atentado do terrorismo islâmico contra as Torres Gêmeas da nação que pratica diariamente o terrorismo de mercado. E ele soube ler o 11 de Setembro em todas as suas implicações, não ignorando  o quanto a fé é um móbil poderoso da ação das multidões que a ela aderem, mas enfatizando o quanto isto é bem daninho e perigoso do que digno de elegia.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou. Mas o ‘fator Deus’ está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. (…) E foi o ‘fator Deus’ em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do WTC os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. (…) Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, e esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.”

E não esteve só protestando contra a intolerância do fanatismo; seu apelo à lucidez, à serenidade e à crítica severa de todos os pregadores, de todos os dogmatismos, encontrou quem a ele adicionasse uma voz ao coro dos descontentes. O próprio Rushdie, um dos maiores escritores do século passado na Índia, é bom exemplo. Ele sustenta “saramaguianamente” que…

“É evidente que uma visão de mundo rígida, tacanha e absolutista é a mais fácil de manter; pelo contrário, a imagem fluida, incerta e metamórfica que sempre defendi é bastante mais vulnerável. Todavia, tenho de agarrar-me com todas as forças a esse camaleão, a essa quimera, a esse ser metamórfico da minha alma; devo manter-me fiel a esses instintos irrequietos, iconoclastas e defasados, por mais avassaladora que seja a tempestade. E se isso me mergulhar em contradição e paradoxo, pois que assim seja; toda a minha vida vivi neste oceano confuso. Pesquei nele para a minha arte. Este mar turbulento era o mar que avistava da janela do meu quarto em Bombaim. É o mar pelo qual nasci, e que transporto comigo para onde quer que vá. ‘A liberdade da palavra é uma idéia descabida’, afirma um dos meus oponentes extremistas islâmicos. Não, senhor, não é. A liberdade da palavra é tudo, é todo o jogo. A liberdade da palavra é a própria vida.” [SALMAN RUSHDIE. Pátrias Imaginárias]

Crítico radical da ocupação da Palestina pelos exércitos de Israel, encontrou uma mente afim à sua também num dos grandes escritores israelenses das últimas décadas, Amoz Os, outro espírito saramaguiano tentando enxergar claro no meio do torvelinho.

”O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo. (…) O fanatismo é, com frequência, intimamente relacionado a uma atmosfera de desespero profundo. Num lugar em que as pessoas sintam que não há nada além de derrota, humilhação e indignidade, podem recorrer a várias formas de violência desesperada.” (…) ”O fanatismo está em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também. Conheço bem os antitabagistas que o queimarão vivo, se você acender um cigarro perto deles! Conheço bem os vegetarianos que o comerão vivo por comer carne! Conheço bem os pacifistas dispostos a atirar na minha cabeça só porque advogo uma estratégia ligeiramente diferente sobre como fazer a paz com os palestinos. (…) A semente do fanatismo brota ao se adotar uma atitude de superioridade moral que não busca o compromisso.” [AMOZ OS, Contra o Fanatismo]

Saramago não irá para o céu dos cegos.

Irá, sim, a um posto especial, de amigo venerado, no coração dos lúcidos.