NÃO HÁ REVOLUÇÃO SEM INDIGNAÇÃO MORAL – Reflexões sobre “O Jardineiro Fiel” (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles, na companhia de Jankélévitch

“Para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral.”  JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1903-1985), filósofo francês, em “O Paradoxo da Moral” (Ed. Papirus. Trad. Helena Esser dos Reis. Pg. 35)

 

O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), lançado em 2005 e dirigido por Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a Cegueira), é um belíssimo filme que nos impulsiona a refletir as multiformes injustiças de que o mundo está repleto e, em meio a tanto caos e fúria, o florescimento desta força material ainda misteriosa e mal compreendida: a indignação moral. O cenário para este épico da militância anti-capitalista e anti-corporativa é uma África devastada pelas mazelas: superpopulação e sub-alimentação brutais, analfabetismo extremo, 80% dos casos de AIDS no mundo, corrupção política altamente disseminada, violência tribal fora-de-controle…

Como cereja do bolo macabro, a ganância e inescrupulosidade de mega-corporações farmacêuticas que usam os africanos como cobaias para o teste de seus remédios. Seja bem-vindo às escaldantes latitudes do “perigoso, decadente, pilhado e falido Quênia… que já fora britânico” (nas palavras de John Le Carré, autor do romance no qual o filme é baseado). 

Estamos durante a era do presidente Moi, que ficou no poder por mais de 20 anos (1978-2002). A escaldância do Sol é tremenda: 40ºC na sombra. Hienas e chacais são mais comuns que ratos (“uma boa hiena cheira sangue a 10 km de distância…”, p. 21). “As montanhas estão cheias de bandidos e tem tribos roubando o gado umas das outras. O que é normal… só que há dez anos tinham lanças e agora têm AKs-47s” (p. 19). 

O que seria de se esperar da esposa de um alto diplomata, a serviço da Rainha da Inglaterra, senão que se encerrasse no círculo da “pequena nobreza diplomática” que se esconde detrás de “portões de aço, cercas elétricas, sensores de janela e luzes de alarme para garantir sua preservação” (p. 37)? O heroísmo de Tessa (Rachel Weisz) está justamente em sua recusa desse comodismo preguiçoso, cúmplice dos horrores perpetrados contra os fracos. É este confortável trabalho na segurança de escritórios com vidro blindado o que ela recusa, preferindo a isto ganhar as ruas, adentrar as favelas de Kibera e visitar os mais miseráveis subúrbios de Nairóbi.

Tessa mistura-se às massas, à la Simone Weil, ao invés de lidar com elas somente através do anteparo de relatórios e estatísticas. Mais que isso: fornece abrigo em sua própria casa àqueles que despertam sua compaixão e necessitam de seu auxílio, a ponto de “sua casa parecer um albergue pan-africano para deficientes físicos e miseráveis” (p. 49). 

Há poucas personagens do cinema contemporâneo que ilustre tão bem o que significa ser um “ativista”, que encarne tão bem um ideal ativo de transformação social, e talvez este não seja um ídolo indigno para nossos conturbados tempos. Tessa se engaja nas mais variadas frentes: laboratórios de conscientização dos direitos sexuais; programas mundiais de alimentação; movimentos de homossexuais que brigam contra a discriminação; coletivos de mulheres vítimas de estupro ou violência etc. À medida que se conscientiza das corrupções sistêmicas que corrompem a vida política do governo Moi, vai crendo cada vez mais que o poder precisa ser melhor compartilhado entre os gêneros: em seu “feminismo” crê que é preciso “dar a África às mulheres e a coisa vai funcionar” (p. 23).

É com imensa temeridade que Tessa se engaja na luta contra graúdos inimigos, pondo sua sobrevivência em risco ao mexer no vespeiro corporativo e cutucar a onça com vara curta. A vigorosa dedicação de Tessa a causas assistenciais é amplamente reconhecida pelos diplomatas: “Neste ritmo, terá salvado a África inteira quando sairmos daqui”, diz Justin (Ralph Fiennes), em um momento de ternura hiperbólica, admirando a esposa por “fazer de tudo, desde limpar bundinha de bebês até reunir-se com advogados para tomar conhecimento de direitos civis” (p. 26). 

Nem Meirelles nem Carré poupam no lirismo quando empreendem o retrato desta jovem heroína, corajosa até a temeridade, extremamente ativa na luta contra as injustiças, dotada de “um sorriso sábio demais para sua idade” (pg. 51). E injustiças há em violenta profusão no Quênia, como mesmo o diplomata resignado e submisso aos superiores, Sandy Woodrow, admite: “O governo Moi é extremamente corrupto. O país está morrendo de AIDS. Está falido. Não existe nenhum canto dele, do turismo à vida selvagem, da educação ao transporte, da saúde às comunicações, que não esteja caindo aos pedaços por causa da fraude, da incompetência e do descaso. (…) Ministros e funcionários estão desviando caminhões de comida e de medicamentos destinados a refugiados famintos, às vezes com a conivência de empregados das agências de assistência…” (p. 52) 

A diferença entre Tessa e a grande maioria do corpo diplomático é que ela arregaça as mangas e parte para a batalha. Os outros cruzam seus braços, querendo acreditar, talvez com a mais deslavada má-fé, que o mais importante é proteger os interesses comerciais britânicos: “fazer negócios com os países emergentes os ajudaria a emergir” (p. 53). Contra tal discursinho padrão, Tessa esbraveja: “O comércio não está tornando os pobres ricos. Lucros não compram reformas. Compram funcionários corruptos do governo e contas bancárias na Suíça. (…) A mãe das democracias uma vez mais se revela como uma mentirosa hipócrita, pregando a liberdade e os direitos humanos para todos, exceto onde espera faturar uma grana.” (p. 53) Pedrada.

Gosto que esse seja um filme de impacto global que teve seu leme comandado, e com mãos de mestre, por um diretor brasileiro tão ousado, inteligente, renovador – e que já havia marcado a história do cinema nacional com seu Cidade de Deus. Meirelles estreou com muita dignidade nas produções gringas com Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Aprecio este “ponto de vista de Terceiro Mundo” que domina o filme estrelado por Weisz, escancarando o modo grotesco como as grandes corporações (e os governos federais do primeiro mundo, que frequentemente são coniventes a elas) utilizam a África como um quintalzinho onde a vida é barata e desimportante – e cuja exploração paga muitos dos benefícios da nossa querida civilização ocidental… E isso faz séculos e séculos.

Gosto do fato de que Fernando Meirelles tenha convencido toda sua equipe a filmar realmente no Quênia, ao invés de alguma outra locação fingida, obrigando a equipe a realmente se afogar naquele ambiente sufocante de calor e de miséria, para que pudessem conhecer o real que pretendem representar… Muita da autenticidade do filme vem dos habitantes reais de Nairóbi, aparecendo frequentemente na tela, sem disfarces, sem atuação e sem roteiro. Isso dá um clima de realidade e de improviso a um filme que, também no seu estilo de filmagem e montagem, é sempre vivo, urgente, pulsante como o coração de sua desassossegada protagonista.

O filme demonstra bem o quanto as empresas procuram fabricar uma fachada de preocupações humanitárias (testes gratuitos para tuberculose, remédios gratuitos supostamente distribuídos para a população…), que escondem interesses e atos repugnantes.

A KDH e a Three Bees, as empresas fictícias do filme, à primeira vista parecem preocupadas com a melhora das condições de saúde da população africana, mas depois se torna claro que estão somente usando os quenianos como COBAIAS para o teste de remédios que podem causar sérios e letais efeitos colaterais. Os quenianos aqui não são nada muito diferente de ratos de laboratório que, se acabam por morrer, bem… o cinismo e a arrogância dos ocidentais relega à trivialidade. “Só estamos matando gente que iria morrer de qualquer jeito”, ousa dizer Sandy, um dos empresários. 

Gosto do medo que o filme nos causa a respeito da nossa futura dependência em relação a alguma dessas empresas farmacêuticas – cada dia mais poderosas, tão astronômicas são as vendas dos Prozacs, dos Viagras, das Aspirinas… – na eventualidade de uma grande epidemia global. 

Virando pelo avesso o hino utópico “Imagine” de John Lennon, vamos fazer um exercício de compor um quadro de uma “Imagine” distópica. Imaginem só quão conveniente seria, para o capitalismo em geral, se uma doença perigosa se disseminasse mundo afora e uma empresa multinacional tivesse o monopólio do medicamento para curá-la. Imaginem os preços do produto subindo com o aumento exponencial da procura. Imaginem os estratos mais pobres da população mundial sem condições de comprar o remédio. 

Imaginem os governos nacionais incapazes de intervirem diante das políticas impostas pelas empresas privadas. Imaginem um quinto, um quarto, um terço da humanidade extinta, e justamente os mais pobres… Que formidável ferramenta de “limpeza étnica” não seria esse vírus! Temo ao imaginar que alguma empresa farmacêutica tenha a idéia diabólica de criar uma doença e espalhá-la pelo mundo só para ter o prazer de depois vender os medicamentos para uma Terra que se tornou, inteirinha, uma clínica… 

É exagerar na paranóia? É ver malignidade demais nas multinacionais? Não sei. I wouldn’t be so sure. Gosto que “O Jardineiro Fiel”  seja uma “escola da suspeita” e nos deixe alertas e desconfiados. This way we won’t get fooled again…

Há razões bem mais “pessoais” que explicam porque este filme de Meirelles é pra mim tão querido, altamente prezado: ele me comunica uma energia que talvez provenha da empatia com a indignação alheia. Também é um exemplo inspirador de ousadia a um só tempo moral e física. Um filme que eu ousaria chamar até mesmo de “sábio”, por mais incomum que seja dar este adjetivo a uma obra da sétima arte (mas por que o cinema não deveria aspirar, também ele, à sabedoria?). Leio nele, latentes, estas mensagens de sophia: o excesso de prudência não nos deve impedir de ousar coragens. Que ousemos levantar pedras para ver as sujeiras que há debaixo delas. Que não tremamos na base à voz altissonante das autoridades – armadas até os dentes! – que mandam-nos desviar o olhar, engolir a raiva, não meter o nariz onde não somos chamados… 

Tessa, mestra e professora do afeto sem preconceito, da audácia transformadora, da temeridade jubilosa, da indignação impulsionante, da luta que se enfrenta no ardor da certeza de sua dignidade e de sua urgência, é uma mulher sábia em um mundo transtornado por injustiças multiformes.

 A tragicidade do filme está no fato de que o “jardineiro fiel” vivido por Fiennes é o sobrevivente de uma catástrofe pessoal e coletiva – a exclusão violenta de Tessa deste mundo dos vivos, que não deixa de evocar exemplos concretos, que atravessam a história, como Flora Tristán, Rosa Luxemburgo ou Marielle Franco. A fidelidade que ele deve a Tessa transcende a própria coexistência dele entre os vivos: é lealdade a uma morta, ao legado, à chama moral que a animou enquanto vivia.

É trágico que pessoas assim tenham que pagar com a vida, como formigas bradando contra elefantes e sendo por eles esmagadas. Ou como pássaros selvagens abatidos em pleno vôo pelos rifles dos donos da bufunfa. Mas é bom que tenham existido pessoas assim, e que existam ainda! Espero que povoem os amanhãs.

“Um outro mundo é possível!” não precisa ser um mote de idealistas iludidos, mistificantes, com a cabeça perdida nas nuvens dos ideais: pode ser o grito de guerra de realistas lúcidos e aguerridos. 

Negar esta possibilidade é que é uma loucura: a mudança não é só possível, é obrigatória e necessária! “There is no refuge from change in the cosmos” [“Não há refúgio contra a mudança no universo”], ensinava Carl Sagan. E a Humana História está tão inserida no cosmos quanto todo o resto. Ao confrontar-se com as imensidões siderais, em meio às quais os humanos aparecem em dimensões minúsculas, concretamente “microscópicas”, Sagan sugere que a Natureza “não é nem hostil, nem benigna, mas simplesmente indiferente aos interesses humanos”. Sim: mas não cortemos os pulsos tão cedo! Pulsos servem também para serem erguidos aos brados! E com pulsos unidos também se constroem rodas-de-dança, cordões humanos, cirandas..

Se não formos nós aqueles a lutar pelos interesses humanos, quem irá? Minha convicção, baseada em ampla experiência, é a de que não há ninguém gerindo este planeta lá de cima, sentado nas nuvens, e é quase inacreditável pensar que bilhões e bilhões de pessoas ainda não tenham percebido que o céu de Deus está vazio – apesar de estar repleto de estrelas. Não é de oração que precisamos: é de conscientização, informação, ação coletiva, simpatia, sinergia. Mão na massa ao invés de mão ao crucifixo! 

“Platão, num diálogo intitulado Teeteto, faz Sócrates falar sobre o sábio Tales: ‘Somente o corpo do sábio tem localização e morada na cidade. Seu pensamento voa por toda parte, sondando os abismos da terra e seguindo a caminhada dos astros […] sem nunca se deixar descer de volta ao que está imediatamente próximo. Assim, Tales observava os astros e, olhos fixos no céu, caía num poço. Uma trácia, criada viva e trocista, caçoa de seu zelo em saber o que acontece no céu, logo ele, que não sabia ver o que tinha diante de si, a seus pés. Essa caçoada vale contra todos os que passam a vida filosofando.’ (174 a-b) Esse exemplo mostra portanto que um sábio não deve olhar unicamente para o seu modelo ideal e racional, mas deve igualmente manter um olhar na terra firme, isto é, na realidade.” – JANKÉLÉVITCH, Vladimir.  Curso de Filosofia Moral.  Ed. Martins Fontes, 2008, Pg. 110. Trad. Eduardo Brandão

Rezar é perda tempo: ninguém lá de cima nos auxilia. Não chove jamais um maná, uma graça, um milagre: ter fé é perder a vida na estação, é desperdiçar tempo precioso no aguardo de um trem que não virá. Esperar Deus e esperar Godot, se são Beckett me permite uma blasfêmia, é a mesmíssima coisa… E que tédio!

Esperar Deus é ser o amante frustrado que derrama lágrimas no deserto implorando a vinda daquele que nunca virá. Quero um heroísmo novo! Que seja de uma heroína sem deus, uma heroína que não luta pelo outro mundo mas por este! Que não deseja o Paraíso, mas a Justiça! Que teme menos a morte do que uma vida indigna! Que não se abstêm de pôr sua carcaça em risco na tentativa de auxílio àqueles em situação de urgentíssima necessidade. Sim: por que não fazer de Tessa uma de nossas novas heroínas? Por que não amá-la, imitar seus trejeitos hippies, cair com toda a vida na estrada da alteridade? Por que não ousar este mergulho na realidade, inclusive na mais dura, na mais amarga, na mais letal das realidades?

Tessa é capaz de inflamar nossa apatia, espantar nossa letargia, com os poucos flashs de sua vida que Meirelles nos permite observar pelo buraco de fechadura de seu filme, auxiliado pelo talento e pela beleza descomunais de Rachel Weisz.

 Ela é amor que arde, e que arde tão alto que não consegue conter-se nos limites do privado, de uma relação única, de uma jaula familiar. Ela é aquele raro tipo de pessoa que consegue ir além das dimensões de Eros e Philia e consegue alçar-se até Agapé: tudo indica que é capaz de caridade especialmente por seus dons de empatia, de conexão, de vínculo, de espontaneidade jorrante… 

Tessa é como uma santa laica lutando para salvar alguns despossuídos que estão sendo vitimados pelo capitalismo neoliberal, nova face do velho colonialismo. Neoliberalismo, aliás, que é outro nome para o velho capitalismo selvagem que quer Estados nacionais sendo geridos como fantoches por mega-corporações transnacionais cujos métodos de maximização de lucros não são apenas questionáveis… são criminosos! 

Será que não há situações em que a caridade deva emergir, não porque o Papai-do-Céu mandou nem porque queremos alcançar a salvação de nossas almas, mas sim como a emergência de um vulcão que se inflama de indignação diante dos sofrimentos de outros humanos e de suas necessidades absolutamente urgentes? 

Será mesmo que é digno ficar de bunda na cadeira, mascando chicletes e babando frente à novela, fiel a um trabalho que não se ama e aos mil consumos que não nos satisfazem, ao invés de unir forças e arregaçar as mangas, a fim de lidar com as injustiças grotescas que maculam o planeta? E o que pode o cinema, como mobilizador de afetos, para inspirar a fazermos juntos uma outra realidade possível, menos sórdida, mais camarada, transcendendo a atual condição em que tantas mortes imerecidas e tantas dores desnecessárias ainda imperam?

Se o filósofo Jankélevitch tem razão ao vincular a revolução à necessidade de uma indignação moral que a instigue – “para ter a coragem de fazer a revolução e de descer à rua, para passar da especulação à ordem completamente diferente da ação militante, para atravessar esse limiar vertiginoso, é preciso uma idéia-força, e essa idéia-força não pode nascer senão da indignação moral”, escreve o grande pensador -, então não se pode desprezar o cinema como força que difunde, através da nossa identificação com personagens representados na telona, a possibilidade de incandescência destas indignações sublimes e revoltas magníficas sem as quais a nossa vida coletiva chafurda no lodaçal dos imobilismos cretinos ou dos retrocessos bárbaros.

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – http://www.acasadevidro.com

 

“A simpatia é o ato pelo qual meus irmãos me ajudam a carregar minha cruz, isto é, compartilham ativamente meu destino, participam do nosso destino comum, atestam por sua solidariedade essa comunidade de essência de todas as criaturas que era, segundo Schopenhauer, o fundamento da piedade e, segundo Proudhon, o princípio da justiça.” – Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo francês, professor da Sorbonne (de 1951 a 1979), em seus Cursos de Filosofia Moral. Editora Martins Fontes, 2008, Pg. 211.

A HUMANIDADE DESPEDAÇADA – Lições de Dilaceramento no filme “Em Pedaços”, de Fatih Akin (Alemanha, 2017, 1h46min)

“A desumanidade terá um grande futuro.”
Paul Valéry

Não há porque temer o desaparecimento do despedaçamento humano: prosseguimos divididos e nos matando como se fôssemos feras ferozes. O foco principal do perturbador Em Pedaços (título original em alemão: Auf Der Nichts; título em inglês: In The Fade), do cineasta turco-alemão Fatih Akin (o mesmo de Contra a Parede), é o cruel dilaceramento de uma mãe e esposa vê seu marido e filho serem reduzidos a pedaços por um ato terrorista neonazi.

Nascido de pais turcos em Hamburgo, no ano de 1973, o diretor Akin sedia em sua cidade natal este seu denso conto de desumanização, incompreensão e desatamento incontrolável de violências. Explora a geopolítica européia contemporânea, em especial a re-ascensão de movimentos de extrema-direita xenófoba, em um filme pungente que revela as profundezas abissais do sofrimento humano enquanto denuncia a onda de islamofobia e de crimes conexos à intolerância racista.

A esplêndida interpretação da atriz alemã Diane Kruger, premiada no Festival de Cannes, não permite a nenhum espectador ficar frio e indiferente diante das atribulações da protagonista Kátia. Ela tem sua existência transtornada subitamente e tirada de órbita pela bomba que explode na frente do escritório de seu marido Nuri Sekerci, matando-o junto com o filho do casal.

O filme mergulha em toda a aflição do trauma que se abate sobre esta mulher, repentinamente privada dos amores de sua vida em um crime cujos mistérios o filme tratará de decifrar. Do drama privado em que poderia ter ficado atolado, o filme se alça às alturas de uma tragédia grega adaptada à Alemanha contemporânea. Pinta um retrato de uma Hamburgo onde o supremacismo racista dos neonazis produz monstruosidades que a Justiça, aburguesada e pusilânime, fracassa em punir.

No momento histórico em que a crise dos refugiados está em seu estado mais grave deste a 2ª Guerra Mundial (segundo estudo da Anistia Internacional e da ACNUR), em que as polêmicas sobre políticas de imigração são intensas e as ações segregacionistas da direita se assanham (como ocorre com o discurso encabeçado por Le Pen na França, ou com as crianças-separadas-dos-pais durante a gestão Trump nos EUA), o filme é de imensa atualidade. Pode nos ajudar a debater os rumos futuros da belicosidade humana, do etnocentrismo alterofóbico e das ações extremistas contra imigrantes.

A grande questão que o filme nos faz talvez seja esta: quando aqueles que juraram defender a Justiça, e tem este dever por ofício, fracassam em seus trampos, permitindo a impunidade aos mais atrozes criminosos, temos o direito de agir em prol da punição dos mesmos por fora das instituições? Através da descrição crível do ímpeto emocional e das atividades indignadas desta mãe, que viu seu filho e seu marido terem seus corpos explodidos até não restarem senão pedaços incinerados do que antes foram pessoas vivas e amadas, a questão do filme tem a ver com aquela velha indagação ética-jurídica: tem-se o direito de “fazer Justiça com as próprias mãos” quando as autoridades competentes mostram-se incompetentes?

Triturando todos os estereótipos racistas sobre a figura do terrorista e do delinquente, o filme nos coloca diante do crime horrendo cometido por aquela Cara Gente Branca que é alfinetada no filme e na série Dear White People. Vocês realmente precisam ser tão estúpidos e bestiais, caros espécimens da Cara Gente Branca, a ponto de explodir vidas apenas por serem turcas ou curdas, afegãs ou iraquianas? E vocês realmente querem se vender ao mundo como aqueles que vão ensinar ao “Terceiro Mundo” como se deve comportar no tabuleiro geopolítico, forçando-nos a frequentar sua magnífica Escola Ocidental de Humanitarismo?…

O cineasta Fatih Akin em ação no set de filmagens de “Em Pedaços”, vestindo uma camiseta do álbum “…and Justice for All” do Metallica

O atentado foi perpetrado por um casal de neonazistas, os Möeller, que idolatram Adolf Hitler. As investigações policiais indicam que eles explodiram a bomba caseira em um bairro turco por motivos conexos à xenofobia, ao racismo, ao ódio anti-islâmico etc. Isso acaba se confirmando quando, no tribunal, um grego afiliado ao partido neonazista grego Aurora Dourada (A.D.) testemunha a favor dos réus, procurando fornecer aos juízes um álibi que provaria a inocência dos acusados. Como poderiam eles ter perpetrado o atentado se estavam numa colônia de férias na Grécia?

O advogado de acusação, aliado de Kátia, logo aponta que este grego, militante neonazi, com sua cara carrancuda de pouquíssimos amigos, publicou fotos em suas mídias sociais em um ato em que aparece empunhando a bandeira com a suástica da A.D. em um post curtido pelos assassinos. O advogado mostra evidências das tenebrosas conexões entre a testemunha e os réus, frisa a natureza forjada do pseudo-álibi.

Ainda que dentro da grande tradição dos filmes sobre vingança, Fatih Akin não trilha sendas já exploradas com maestria por antecessores ilustres como Sergio Leone, Sam Peckinpah, Quentin Tarantino ou Chan Wook Park (Oldboy). Constrói sua protagonista, de modo similar à Beatrix Kiddo de Kill Bill, como vítima de injustiças em série; mas Fatih Akin, ao contrário de Tarantino, não tem predileção pela caricatura e pelo humor de HQ, preferindo um tom mais trágico, soturno, com certos acentos punk.

Kátia encarna uma vingatividade justiceira que, no âmbito ético e filosófico, poderia ser compreendida como ação violenta justificável diante da falência do Estado burguês em punir os assassinos. Cansada de não ter saciada sua ânsia por Justiça, ela decide agarrar o problema em suas próprias mãos, já que o Estado se mostrou ineficiente em coibir o crime: ao invés de punição, o casal de assassinos é libertado e absolvido, e logo após o julgamento vai para uma colônia de férias na Grécia, o que só faz o ímpeto vingativo-justiceiro em Kátia se exacerbar.

Que ela tem o direito de tomar o problema da punição dos assassinos em suas próprias mãos é algo que Kátia percebe não no nível da verbosidade sociológica de um linguajar acadêmico, mas em suas próprias vísceras de mãe e de esposa que teve amputados de seu corpo estes outros que constituíam, para ela, um ninho de calor e sentido.

O filme explicita também os mecanismos que buscam culpar a vítima para assim melhor absolver os perpetradores de atrocidades. Tanto Kátia quanto seu marido morto tem suas vidas devassadas pela polícia, suas reputações colocadas em cheque, tanto pelos antecedentes criminais do marido enquanto traficante de drogas ilícitas, quanto pelo uso de drogas variadas que Kátia usa em seu luto para amainar a dor de sua súbita perda.

O advogado dos réus precisa atacar Kátia, acusando-a de ser uma drogada. Levanta dúvidas sobre a capacidade de testemunhar por parte daquela junkie desequilibrada, criando assim uma teia de desconfiança em relação à mulher dilacerada. São cenas angustiantes em que o espectador que se identifica com o infortúnio da protagonista sofre horrores com ela. Encurralada naquela jaula-tribunal, ela subitamente se transmuta de vítima da opressão homicida da extrema-direita em acusada. Contra ela levantam-se os dedos cretinos destinados a humilhá-la e desacreditá-la, o que só favorece a impunidade do casal neonazi perpetrador do crime.

Assim, o tribunal dilacera ainda mais aquela mulher cuja resiliência o filme, de maneira subliminar, descreve e celebra. Não estamos diante de uma mulher frágil, que fosse quebrável com a facilidade do cristal. Estamos sim diante de uma crumbling fortress, uma fortaleza que se desfaz em pó, mas que neste processo prepara-se para sair do mundo dos vivos através de um ato de sacrifício supremo.

O tema do sacrifício, que recebeu de Andrei Tarkovsky uma densa meditação em seus últimos filmes Nostalghia e O Sacrifício (vide a excelente análise de Slavoj Zizek em Lacrimae Rerum), passa por inúmeras variações na obra de Fatih Akin. Ainda no primeiro ato do filme, ela tenta o suicídio, este auto-sacrifício de um sujeito que perdeu o gosto de viver após ser privado de seus vínculos afetivos mais amados. Um suicídio que ela quase consuma: após cortar os pulsos e deitar-se na banheira, cuja água vai rapidamente se tingindo com o escarlate do seu sangue, ela enfim se agarra à última corda que a prendia aos vivos, a mensagem de seu advogado que anuncia a descoberta da autoria do crime – “foram os nazistas, a polícia os prendeu!”.

A sede de Justiça talvez tenha sido a força que a fez levantar daquela banheira onde, alguns minutos depois, estaria afogada e morta. Quando esta ânsia de Justiça é malograda e os réus ganham sua absolvição, ela perde todo o esteio nas instituições jurídicas. A mulher dilacerada, que aprendeu amargas lições na escola do sofrimento recente que o destino lhe impôs, agora é impelida, no terceiro ato do filme, a um processo de vingança que para ela já tornou-se visceralmente inextricável de uma fome de justiça.

Fatih Akin e Diane Kruger

Nesta fome de justiça que transcende a própria racionalidade e torna-se um vulcão de afetos imperiosos está a beleza do ímpeto violento de Kátia. Nisso está a chave para compreender porque o cinema de Fatih Akin é mais profundo, cheio de compaixão e empatia, repleto de compreensão ampla da condição humana, do que o cinema frequentemente raso e pipoquento do Tarantino – que cometeu Bastardos Inglórios, Django Livre e os Kill Bills, fortes referências na produção fílmica recente sobre o tema da Justiça e da Vingança, sempre transformando as cataratas de sangue jorrado numa espécie de lucrativa commodity.

violência animada pela ética, ou a vingança entremesclada com a fome de justiça, aparece de modo muito forte em Aos Pedaços, um filme que atinge alturas que Tarantino nunca soube explorar. O filme também é interessantíssimo quando adere ao “drama de tribunal”, na melhor tradição de Sidney Lumet (Doze Homens e Uma Sentença), Otto Preminger (Julgamento em Nuremberg) e Stanley Kramer (O Vento Será Sua Herança).

A irrupção de ódio de Kátia, no tribunal, após ouvir a médica legista relatar suas experiências no IML com o cadáver da criança explodida pela bomba, é compreensível ainda que tenha prejudicado a causa de Kátia. Quando esta mãe em luto parte pra cima da assassina, pra descer o cacete na neonazi Möller, isto é certamente uma irrupção selvagem naquele ambiente controlado e esfriado do tribunal, uma quebra de protocolo que as mentalidades protocolares não aceitam com facilidade. Mas de todo modo é difícil não se identificar com a justeza do ato em que a indignação represada rompe os diques e se manifesta aos urros.

É esta selvagem irrupção do afeto indignado que se comunica ao espectador e torna esta obra um daqueles raros casos em que a arte é a escola do sentimento, a universidade da ética. Foi assim também com a personagem magnífica interpretada por Rachel Weiss na subestimada obra-prima de Fernando Meirelles, O Jardineiro Fiel (2005), em que Tessa, que no filme é vítima de uma morte injusta, tem sua vida e obra reanimadas pelo ímpeto de seu viúvo dilacerado, o constant gardener do título, que celebra uma vida arrefecida replantando as sementes das lutas que animaram a vida de ativista de Tessa. 

A atuação de Diane Kruger, evocando a linda interpretação de Weiss no filmaço de Meirelles, também transmite muito bem a noção de uma mulher que, rompendo com as correntes do comportamento apropriado, deixa sua emotividade e seu radar ético, sentimentalmente carregado até o talo, guiá-la no sangrento labirinto do mundo.

Não há dúvida de que haverá quem queira tacar pedras condenatórias no comportamento de Kátia no 3º ato do filme: ela estaria sendo louca, incivilizada e aderindo à Lei de Talião. Ela estaria recusando o caminho apropriado concedido pela justiça burguesa, que seria entrar com recursos e apelações contra a absolvição dos assassinos. Não estou entre estes espectadores que sacam as pedras para atirá-las a uma mulher já demasiado dilacerada; é verdade que ela adere à lógica da retaliação, que quer pagar aos assassinos na mesma moeda, que inclusive fabrica uma bomba caseira idêntica à que o casal neonazi usou no atentado.

Mas dois elementos que o filme de Fatih Akin apresenta tornam o quadro bem mais complexo do que o simplismo de julgar que uma Kátia tresloucada, indignada com o veredito baseado no in dubio pro réu (na dúvida, a favor do réu), simplesmente decidiu-se pelo ancestral “olho por olho, dente por dente”.

O primeiro elemento é a belíssima cena em que ela coloca a bomba debaixo do trailer dos assassinos, afasta-se para aguardar que retornem do cooper, quando planeja explodi-los através de um controle remoto. A súbita aparição de um belo pássaro, pousando no retrovisor do veículo, fazendo suas inocentes doçuras aladas na brisa da manhã, faz com que um insight se acenda em Kátia: suponho que ela tenha pensado que aquele beija-flor inocente não tinha nada a ver com os descalabros humanos e que não era justo explodi-lo junto com os alvos de seu atentato vingativo-justiceiro. Ela decide adiar seu ataque e mudar de plano.

O segundo elemento é a conclusão do enredo através do sacrifício supremo, da atitude kamikaze, que enfim Kátia consuma. Isto estabelece uma diferença radical entre os dois atos de bombardeio: quando o casal Möller perpetrou o atentado que matou pai e filho e lançou Kátia à condição de viúva amputada de sua criança, eles permaneceram ilesos e imunes, sem ferimentos. Assassinaram sem que seus corpos tenham sido sequer arranhados. Kátia, de modo contrastante, decide-se por colocar um ponto final em sua existência cuja dor, angústia, solidão e dilaceramento nenhuma droga neste mundo seria capaz de aplacar. E assim, abraçada à mochila que aninha a bomba, decide encarar pela última vez os algozes de sua família, num gesto bastante curioso para uma mulher de aparência em tudo similar ao estereótipo da “ariana”-germânica: é o ato do suicide bomber, terrorista suicida, que costumamos conectar ao soldado jihadista muçulmano.

É um desenlace que, de certo modo, evoca o final de Dogville (Lars Von Trier), quando Grace, após todas as opressões que sofreu naquela Cidade do Cão em que foi abusada sexualmente e escravizada brutalmente, decide decretar: “Se há alguma cidade que, excluída do mapa, deixa como resultado um mundo melhor, é esta aqui.” Grace, utilizando o poder que lhe concede o poderoso gangster que é seu pai, decide-se pelo genocídio e pela limpeza étnica, numa irrupção de vingança cuja única gota de misericórdia se manifesta pelo cachorro, que ela permite que fique vivo.

Já Kátia, com o seu sacrifício supremo, seu suicídio kamikaze, a um só tempo liberta-se da dor intolerável que tornou-se o tema in ritornello de sua dolorida e insuportável existência de dilacerada. Ela também conduz os corpos vivos dos algozes neo-nazis a se tornarem também pedaços incinerados. Talvez seja verdade que na base do olho por olho e do dente por dente terminaremos todos cegos e banguelas. Talvez tenha uma dose de razão quem queira julgar que Kátia agiu de modo errado, do ponto de vista ético e jurídico, na última atividade de sua vida. Mas volto a dizer: nesta personagem, após testemunhar com empatia seus dilaceramentos, eu não ousaria tacar pedras.

Hannah Arendt em 1941. Fotografia de Fred Stein (1909-1967).

Num dos trechos mais surpreendentes de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt argumentou em favor da pena capital que terminou por ser aplicada ao criminoso nazista pelo tribunal israelense. Arendt, reativando um argumento semelhante a “não devemos ser tolerantes com os intolerantes”, disse que ao ter se envolvido, durante anos, em atos de extermínio em massa de pessoas com quem convivia no mundo comum, Eichmann tornou-se veículo da banalidade do mal que massifica e dissemina a atitude tóxica do “não permito que você viva no mesmo mundo que eu”.

São justamente as pessoas que são incapazes de conviver com a pluralidade intrínseca à condição humana, que não sabem respeitar a diversidade que constitui o múltiplo colorido da humanidade, que assassinam este colorido por razões racistas e supremacistas, que tornam-se assim indignas de viver.

Acredito que, sem filosofias, mas com os atos éticos nascidos de suas vísceras dilaceradas e de sua psique transtornada por sofrimentos em demasia, Kátia tenha chegado a uma conclusão semelhante e tenha, com o fim de sua vida, expressado o que Arendt expressou: em tempos sombrios, os exterminadores da diversidade e os propagadores das intolerâncias, que agem pela “limpeza étnica” e pela diminuição da pluralidade do mundo, são os únicos que merecem ser exterminados e os únicos indignos de nossa tolerância. Porém, Kátia sabe também que, ao assassinar os assassinos, torna-se ela mesma uma assassina, e talvez não conseguiria viver consigo mesma na mescla insuportável de luto e culpa. Por isto, o sacrifício supremo de si no ato de sacrificar os outros.

Eduardo Carli de Moraes, jornalista e filósofo, professor do IFG.
Artigo escrito em 11 de Abril de 2019 para a sessão de crítica cinematográfica
Cinephilia Compulsiva de A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com).

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Leia também: Resenha de Aníbal Santiago
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VÍTIMAS & ALGOZES NO CINEMA DE FERNANDO COIMBRA – Sobre “O Lobo Atrás da Porta” (2013) e “Castelo de Areia” (2017)

Chico Buarque, que escreveu a tragédia Gota D’Água em 1975 (em parceria com Paulo Pontes), deu uma ótima resposta à seguinte questão: por que adaptar uma peça trágica grega – a Medéia de Eurípides, no caso – para o contexto brasileiro? “No Rio de Janeiro”, retrucou Chico, “acontecem umas 5 tragédias gregas por dia.”

O longa-metragem de estréia de Fernando Coimbra, O Lobo Atrás da Porta (2013), entrega ao espectador, com pitadas de uma dramaturgia à la Nelson Rodrigues, um thriller que é uma autêntica tragédia carioca. Inspira-se num caso real que chocou o Brasil em Junho de 1960, quando Neyde Maria Maia Lopes, a mulher que ficou conhecida como A Fera da Penha, sequestrou, assassinou e carbonizou o corpo de uma criança de 4 anos, Tânia Maria Coelho Araújo, filha de seu amante Antonio Couto Araujo.

A imprensa marrom debruçou-se intensamente sobre este caso, seguindo os preceitos do jornalismo sensacionalista que tem como lema “espreme que sai sangue!”, e ainda nos anos 1960 o cinema já havia se apropriado da história, com a realização de Crime de Amor (1965), de Rex Endsleigh. Mais do que requentar um enredo de sangue com novos atores, o cineasta e roteirista Coimbra pôde realizar uma obra impactante, memorável, que permite ao espectador fazer profundas reflexões sobre o que leva os seres humanos ao extremo, ou seja, ao mal radical.

O filme O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra, convida a pensar nos complexos meandros das relações humanas que acabam mal, que tem um fim trágico, um desenlace fatal, em que vidas arruinadas são o fruto de um amor cujos efeitos são a ruína e a destruição. Encarnada de maneira muito autêntica por Leandra Leal, a protagonista Rosa envolve-se emocional e sexualmente com Bernardo (interpretado por Milhem Cortaz), homem casado e com filha. Para falar feito um grego: Eros, no caso, cairá em hýbris; e os excessos passionais terão que ser punidos pela Nêmesis que re-estabelece os equilíbrios do mundo, mas com um alto preço a ser pagos pelos humanos desiquilibradores….

Os dois se conhecem em uma estação de trem do Rio e um clima de paquera e tesão logo se instaura, com a aproximação erótica ocorrendo, a princípio, naquela ingênua inconsequência dos amantes que não tem a mínima idéia das consequências futuras daqueles primeiros flertes e encontros. A história tem algo do tempero de Nelson Rodrigues e este caso extraconjugal tem inúmeros análogos nos casos relatados em A Vida Como Ela É. A arte brasileira, aqui, mostra-se novamente afim de sujar de sangue o vestido de noiva…

Já o lobo do título, se inicialmente ficamos tentados a imaginá-lo com figura masculina, como uma figura peluda que quer praticar de seus malefícios e crueldades contra a Chapéuzinho Vermelho (a criança desaparecida / sequestrada), o fluxo narrativo virá embaralhar todas as cartas. Pois se “o homem é o lobo do homem”, na formulação de Hobbes, fica-se tentado a esquecer, pelo próprio masculinismo da frase e pelo vício de linguagem, que a mulher inclui-se dentro do conceito “homem”, e que as mulheres também podem ser lobas – em especial, quando violadas, violentadas, humilhadas, oprimidas, silenciadas, situação existencial propícia para que germine, no solo do ressentimento, a colheita fatal da fúria assassina, da fatal desforra.

A fúria de Bernardo se destrava contra a moça quando ela, ao invés de manter-se na posição submissa e servil da amante eventual, demonstra estar querendo coisa mais séria. Bernardo parece desejar que Rosa se submeta à posição de mera boneca sexual, que aceite seu papel de mulher-secundária. Rosa, porém, não aceita ser posta em segundo plano e começa a tomar medidas para se envolver mais de perto com a família do amante, talvez averiguando a possibilidade de uma intervenção para destruir o casamento e abrir uma brecha para assim fazer de seu amante um marido.

Quando Rosa começa a penetrar perigosamente no lar da família, dando bolas e bonecas para a filha do casal, Bernardo sente-se em risco e precisa impedir a verdade do adultério de vir à tona, por quaisquer meios possíveis. A violência do macho que deseja manter a fachada hipócrita do marido monogâmico fiel, quando sua conduta cotidiana é de um lascivo que deseja se aproveitar de mulheres com as quais não deseja compromissos muito estreitos, irrompe para fora do recalque.

Quando Rosa fica grávida e passa a carregar em seu ventre o filho (ilegítimo) de Bernardo, o macho diante daquele flagrante passa a ver o rebento em potencial como um destruidor de seu Castelo de Areia matrimonial. O feto, futuro filho, não é visto com bons olhos por Bernardo, mas sim como uma evidência perigosa de seu adultério. E é aí que ele comete contra Rosa uma enorme violência: convence-a que deve ir ao médico, fazer uns exames para checar se de fato a gravidez se confirmava. Mas Bernardo estava de conluio com o doutor: ambos já haviam combinado em fingir que tirariam sangue de Rosa, mas na hora H iriam injetar nela uma anestesia geral para consumar, sobre o corpo desacordado da jovem, um aborto forçado.

Em outra uma cena terrível, encarnando o falocentrismo e o patriarcado em suas atitudes repletas de testosterona em excesso e razão em déficit, Bernardo espanca e estapeia Rosa com truculência, de uma maneira que lembra os PMs em seus baculejos contra a juventude pobre-preta-periférica (o filme, aliás, também tem escárnio a despejar sobre os Procedimentos Padrão do delegado de polícia, que ameaça Rosa com a tortura quando a interroga sobre a desaparição da criança).

O machão, para mostrar quem está no comando, ordena com voz grossa que ela tire a calcinha. Com a cinta nas mãos, ameaça Rosa com os punhos levantados, puxa seus cabelos, manda que ela abra as pernas. Rosa chora, treme de pavor, está em pânico diante da besta fera que Bernardo se transformou. O homem delicado e galante dos primeiros encontros agora mostrou-se como lobo que se vestia com pele de cordeiro.

O trauma psíquico, ainda que o estupro não tenha sido consumado, é certamente equivalente a de um estupro concreto, com penetração. Há críticos que evocam, para falar das atitudes de Bernardo com Rosa, o conceito de gaslighting, um estrangeirismo que serve para se referir a táticas de manipulação e humilhação do outro praticadas, em especial, por homens misóginos contra mulheres que são estigmatizadas como loucas.

O termo origina-se numa peça de teatro de Patrick Hamilton, escrita em 1938, depois adaptada pelo menos duas vezes para o cinema, com destaque para o filme Gas Light (1944), dirigido por George Cukor e estrelado por Ingrid Bergman, obra que, segundo o artigo da Vox, é o melhor tratado sobre o gaslighting que temos à disposição. Não faltam, atualmente, críticos do governo de Donald Trump, atual ocupante da Casa Branca, que apontam no presidente-bilionário tendências não só para o racismo, a xenofobia, o elitismo e a misoginia – Trump seria quase um PhD em gaslighting…

Cena do filme “Gaslight” (1944), de George Cukor

No caso de O Lobo Atrás da Porta,  Rosa é penetrada simbolicamente, mas com estragos concretos em sua estrutura psíquica, por uma postura e um discurso machista, de truculência e de apagamento da vontade feminina, um modo de proceder que visa reduzir a mulher a objeto servil e obediente, que abre as pernas quando ordenada pelo chefe da pica grossa.

Quando Bernardo obriga que ela repita a frase que ele ditou – “por favor, eu quero que você me coma pelo resto da minha vida!” -, Rosa só lhe obedece para não tomar mais sopapos, para não pegar um caso grave de olho roxo. Obedece com aquele ódio recalcado com o qual os súditos e oprimidos de todos os tempos obedeceram a seus tiranos, déspotas, reis, imperadores… Rosa, oprimida mas sem poder reagir à altura diante de uma força física que lhe é superior, obedece externamente, mas mantendo dentro de si uma íntima recusa e uma secreta revolta.

Nelson Rodrigues, que como dramaturgo escreveu inúmeras tragédias, volta a ser evocado pelo desfecho de O Lobo Atrás da Porta, em que Rosa comete façanhas dignas de uma heroína trágica como Medéia (uma peça que ganhou um tratamento forte nas mãos de Lars Von Trier). Não se trata, é claro, de uma mãe matando seu próprio filho: Rosa, na verdade, foi privada à fórceps do feto que crescia em sua barriga por uma brutal intrusão do macho, que tratou o bebê-em-potência apenas como prova incriminadora, como índice de seu adultério, e que ignorou completamente o desejo da mulher. O querer de Rosa, nesta relação, é repetidas vezes violado. A vontade da mulher é tida como pouca porcaria pelo Bernardão, que com seu caráter de macho-alfa impõe sua vontade e não aceita tê-la negada.

Vítima de abusos tremendos, Rosa não fica resignada na posição de vítima. Só que seu ressentimento, transbordando com a fúria de uma lava de vulcão artificialmente tampado, acaba vindo à tona como violência vingativa. É da própria natureza do ressentimento que ele se manifeste, tempos depois de uma ofensa que não pode ser respondida na hora (penso no conceito Freudiano de ab-reação); os ofendidos que não puderam levantar-se ou sublevar-se contra seus ofensores, guardam dentro de si uma mágoa que, conforme o tempo passa, contamina a psiquê e espraia-se pelo inconsciente, impulsionando para uma ação tardia, uma ab-reação, um golpe que se dá hoje contra uma ofensa sofrida no passado.

Rosa quer ferir Bernardo, mas ao invés de ir direto a seu corpo, ao crivá-lo de balas ou empurrá-lo em um abismo, ela prefere uma via de sadismo indireto: ferir a filha de Bernardo para que possa feri-lo aonde mais lhe doeria; ela parece querer fazê-lo sentir o próprio terrível ferimento que ela sentiu ao ver-se na situação traumatizante de passar por um aborto importo pela coerção bruta.

O filme de Coimbra consegue, através deste enredo, problematizar o problema do aborto e fornecer muito alimento para debates pós-filme, pois se é perfeitamente legítimo que as mulheres possam ter direito à interrupção da gravidez, caso tenham boas justificativas para isso (como no caso de estarem grávidas por causa de um estupro prévio, ou seja, se são vítimas de uma agressão sexual e não desejam carregar a criança do violador), não conheço vertente do feminismo que justifique a legitimidade de um aborto que possa ser uma decisão de terceiros e não da própria mulher que escolhe interromper sua prenhez.

O Lobo Atrás da Porta concede ao debate público uma espécie de emblema exemplar de um aborto injustificável, pois provêm de uma decisão unilateral e violenta do macho, que impõe à mulher grávida algo que esta, em sua autonomia, não havia escolhido. Que possamos dar às mulheres, como direito cívico, o aborto como escolha, é uma pauta importante, legítima e urgente, mas que seja sempre a partir do máximo de decisão autônoma da mulher sobre seu próprio corpo, e não uma imposição heterônoma e coercitiva que viola a vontade do corpo a sofrer a intervenção…

Bernardo, na perspectiva de Rosa, virou uma espécie de mutilador, uma espécie de besta truculenta que fez uma intervenção horrorosa nas entranhas de seu delicado e complexo corpo de mulher. O crime de Bernardo, para Rosa, beira o imperdoável – e ela talvez nem mesmo saiba como proceder para procurar Justiça nos termos da lei, buscando profissionais do Direito para processarem o infrator. A dor extremada de Rosa a fez atravessar a fronteira fluida entre vítimas e carrascos. Seu trauma psíquico a leva ao mal radical de uma vingança brutal que se realiza sobre uma criança inocente. Ela, vitimada em uma fase de seu relacionamento, em outro momento urde um plano para vitimar seu ofensor. A espiral de decadência moral é chocante: todos vão chafurdando em um mal radical, até que fetos e crianças comecem a ser sacrificados no jogo fatal desses adultos enlouquecidos, que utilizam como armas de seus jogos de tesão e fúria as sacrificáveis vidas dos mais novos e dos ainda não nascidos.

Tudo isso me deixou pensando no seguinte: temos a tendência a pensar em vítimas e algozes como se fossem dois grupos heterogêneos, isolados um do outro, cada um estanque em seu tanque. Porém, a vítima pode tornar-se algoz, e vice-versa, ao sabor das alterações das relações de poder. Lembremos de Adolf Eichmann, que um dia foi um assassino de gabinete a serviço do III Reich, obedecendo à Ordem Hitlerista e sendo um dos operadores da Solução Final: este algoz acabou sendo levado a julgamento e condenado à morte pelo Estado de Israel no Julgamento de Jerusalém (documentado pelo livro-reportagem de Arendt). O mesmo Estado de Israel, nascido após a 2ª Guerra Mundial para acolher os sobreviventes do Holocausto, jamais poderia ser considerado como um Estado de Vítimas, já que tornou-se, por décadas, o cruel algoz do povo palestino, aprisionado e massacrado pelo carrasco sionista em Gaza e na Cisjordânia.

O que me lembra também de uma importante lição de Augusto Boal sobre a opressão: o grande dramaturgo, criador do Teatro do Oprimidosempre disse que um mesmo sujeito pode ser simultaneamente opressor e oprimido, ou seja, algoz e vítima. Um exemplo de fácil compreensão é um pobre operário, explorado e humilhado em seu trabalho pelo patrão burguês, que vivencia todos os dias a condição de oprimido da luta de classes, mas que quando chega em seu lar entra na pose e na postura do Poderoso Chefão, sendo o machista-mandão que oprime a mulher e os filhos.

 Para além de qualquer vitimismo – a noção de que uma vítima é sempre inocente e pura -, o filme de Coimbra desnuda os mecanismos que conduzem Rosa a atravessar situações onde ela é claramente a vítima de um relacionamento abusivo, tornando-se alguém capaz de ser a carrasca de seu antigo amante. Essa assustadora transmutação de vítimas em algozes deveria nos alertar sobre a necessidade de fundar uma ordem social onde multidões de humanos não estejam condenados à cotidiana humilhação, espoliação e exploração, pois esta é a receita da catástrofe e da violência infinita: os ofendidos da terra, em outra configuração de poder, motivados pelo impulso de seu ressentimento e seu ímpeto vingativo, vão à desforra e assim a tragédia não cessa.

Era este um dos ensinamentos de Paulo Freire quando dizia que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor”. Poderíamos parafraseá-lo dizendo que quando a sociedade está repleta de exploradores e algozes, a tendência inevitável dos ofendidos é a brutal vingança que pensa poder equilibrar as balanças ao pagar a maldade com a maldade. É neste lodaçal que repetidas vezes afundamos, são estas as marés cíclicas de violência que derrubam sem piedade aquilo que nossa civilização pretensamente civilizada constrói: nossos Castelos de Areia.

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Convidado pela Netflix a dirigir o filme Sand Castle – Castelo de Areia, o cineasta brasileiro levou para o exterior uma reflexão sobre vítimas e algozes que já era o cerne de O Lobo Atrás da Porta. Após a Invasão do Iraque pelos EUA em 2003, vemos um grupo de soldados do U.S. Army descobrindo as realidades iraquianas transtornadas pela guerra, sendo que nenhum heroísmo patriótico marca os acontecimentos. Mais uma vez, Coimbra inspirou-se em fatos reais: o roteiro foi escrito por Chris Roessner, soldado que esteve lutando em solo iraquiano e relatou experiências autobiográficas.

No centro do enredo, há uma cidade iraquiana cujo sistema de abastecimento de água foi devastado pelos bombardeios dos Yankees. Em uma cena chave, a população está desesperada: com seus galões e garrafas vazias, clamam por água. Com metralhadoras e rifles, os estadunidenses tentam comandar a distribuição de água com caminhões-pipa. Quem assistiu ao filme Até a Chuva (Hasta La Lluvia), de Iciar Bollain, sobre a Guerra da Água de Cochabamba, pode estabelecer os vínculos entre as tragédias hídricas análogas, a do Iraque e a da Bolívia.

O grupo de soldados que protagonizam o filme acabam se envolvendo no trabalho de reconstrução do que acabam de destruir. O protagonista, chamado Soldado Ocre, sente-se um pouco fora-de-lugar naquela conjuntura alucinante e, em meio ao caos das bombas que explodem, busca – em vão – conter sua confusão e seus arroubos de pura fúria irracional.

O diretor brasileiro, Coimbra, estreou bem em sua primeira incursão na carreira gringa – seguindo os passos de outros cineastas brasileiros que tentaram o mesmo, como Fernando Meirelles, que fez O Jardineiro Fiel Ensaio Sobre a Cegueira lá fora, Walter Salles, que cometeu Água Negra Diários de Motocicleta, e José Padilha, que fez o remake de Robocop 7 Days in Entebbe. Coimbra, sem ser panfletário, imprimiu uma sutil veia crítica ao filme, o que o torna bem diferente de uma patriotada que tenderia a justificar a Cruzada dos EUA batizada de “Guerra Contra o Terror”.

Os iraquianos são descritos em seus dramas e urgências, mas só são “humanizados” só até certo ponto, pois são vistos pela ótica deformadora daqueles soldados estadunidenses, brainwashed com o sabão ideológico do militarismo. A empatia é difícil entre estes campos antagônicos, mas ainda assim a experiência direta com os iraquianos concretos faz com que o canto de sereia da ideologia oficial seja soterrado.

Em uma das melhores cenas, um pai tenta atravessar uma estrada com sua filha doente, em busca de uma farmácia, mas é visto como suspeito pelas forças de ocupação. Suspeito não por portar armas ou fazer qualquer coisa ameaçadora, mas sim pela velocidade que imprime ao seu veículo ao acelerar rumo à ajuda médica que tanto precisa. Um pai com pressa para salvar sua filha da doença que a tortura: eis o que é logo convertido, na alucinada “lógica” paranóica dos soldados, em um perigo público, um suspeito de jihadismo… E é por um triz que esse pai aflito não acaba todo estropiado com balas no chão da estrada. É só por pouco que essa criança não testemunha o assassinato de seu pai pelas forças militares de ocupação que dizem estar lá para “ajudar”…

Em outra cena memorável, o diretor de uma escola desespera-se diante da situação insustentável que a guerra trouxe: alunos e equipe de educadores estão sem acesso à água, o que coloca o estabelecimento escolar em estado de colapso humanitário total. Difícil não lembrar dos ensinamentos de Naomi Klein sobre New Orleans devastada pelo Furacão Katrina, quando os business men apaixonados pelas doutrinas dos Chicago Boys viram no desastre… uma oportunidade para uma mega-privatização do sistema público de educação.

“Depois do Furacão Katrina, hordas de prestadores de serviços militares privados chegaram à cidade de New Orleans inundada. Estavam em busca de formas de lucrarem com o desastre, enquanto milhares de habitantes da cidade, abandonados por seu governo, eram tratados como criminosos perigosos apenas por tentarem sobreviver… Com a cidade atordoada e seus residentes espalhados pelo país, incapazes de proteger seus próprios interesses, emergiu um plano para pôr em prática uma lista de desejos corporativos em velocidade máxima. Milton Friedman, então com 93 anos, escreveu um artigo para o Wall Street Journal no qual declarava: ‘A maioria das escolas de New Orleans está em ruínas… É uma tragédia. É também a oportunidade de promover uma reforma radical no sistema educacional.'” (KLEIN, Não Basta Dizer Não, capítulo 8, p. 147 – 171)

A situação que Coimbra escolhe para a sua crônica – esta escola desafortunada, atingida pela guerra, incapaz de seguir seu trabalho educativo, circunstância provavelmente considerada pelo Pentágono como mero Dano Colateral (para lembrar do livro brilhante de Bauman), serve como emblema da estupidez de todo o processo da Guerra Contra Um Terror.

A guerra não constrói porra nenhuma, está lá mesmo é para destruir – com um adendo, um requinte de crueldade: aqueles que destruíram, estarão por perto para oferecer ótimos deals para a reconstrução do que eles aniquilaram. Com excelentes lucros para as empresas norte-americanas, é claro… No Iraque, a própria Zona Verde era administrada pela Halliburton, e as áreas destruídas pelos bombardeios eram depois “rifadas” para empresas interessadas na reconstrução civil ou na construção de penitenciárias privadas…

Por tematizar a questão da educação pública em tempos de guerra, o filme ganha pontos. Em outro momento, um engenheiro mecânico iraquiano estarrece o Soldado Ocre por seu conhecimento técnico e sua maestria no manejo tecno-científico dos equipamentos. É que Ocre sofreu com a lavagem cerebral que o leva ao preconceito dogmático de que os iraquianos são todos os bárbaros, uns selvagens, uns jihadistas medievais, e quando este preconceito desmorona diante das evidências empíricas, ou seja, do testemunho humano do outro, sua mente entra num tilt. Ele percebe que lhe mentiram pra caralho sobre o Iraque e os iraquianos.

Uma das lições mais preciosas que ele tira desta guerra estúpida, neste Novo Vietnã, está nas interações com iraquianos que lhe ensinam algo de bom. O engenheiro mecânico iraquiano, dizendo que aprendeu tudo aquilo estudando de graça na Universidade, estarrece o Soldado Ocre – e o o estadunidense responde com uma síntese da perversão que carcome o cerne de seu país: “In America, nothing’s free.”

A descoberta de que o ensino universitário iraquiano é grátis deixa o soldado em maus lençóis na tentativa de acreditar que os EUA são a Civilização e o Iraque a barbárie. O filme está repleto de alfinetadas na atitude etnocêntrica e narcísica dos Yankees, que vem imbuídos de uma ideologia que conta a lorota suprema: eles estão ali para levar Liberdade e Democracia para um país antes governado pelo doidão-das-armas-de-destruição-em-massa, Saddam Hussein.

Hoje já sabemos que a Coalizão liderada por George W. Bush, apoiada pela Inglaterra e pela Espanha, cometeu alguns dos piores crimes contra a humanidade deste jovem século XXI com o início das agressões ao Iraque em 2003 – já que não havia vínculo demonstrável entre o regime de Hussein e o 11 de Setembro,  e além disso jamais foram encontradas as tais armas de destruição em massa que foram utilizadas para justificar a empreitada militar. De tudo o que já se escreveu sobre o tema, para além de recomendar as análises de Noam Chomsky, considero que Arundhati Roy foi a pensadora-ativista que melhor expressou a verdade sobre o tema.

Em sua estréia como cineasta brasileiro no exterior, Fernando Coimbra soube imprimir uma perspectiva crítica, talvez conectada ao seu status de latino-americano, a esta história em que o protagonista vai deixando de crer na ideologia simplista do “ou você está conosco, ou está com os terroristas”.

É a crônica do colapso da ideologia conexa à Guerra Contra o Terror que Castelo de Areia flagra. As comunidades devastadas pelos bombardeios, sistemas de água e eletricidade destruídos, abastecimento de alimentos caotizado, tudo isso por graça da Intervenção Filantrópica das Forças Armadas dos EUA!

No meio de tal overdose de desespero, crianças iraquianas circundam os tanques made in USA, desprovidas de armas mas fazendo com as mãos o gesto de atirar contra os invasores. Os soldados, por detrás de seu heavy gear militar, protegidos por coletes à prova-de-bala e capacetes anti-choque, às vezes olham para aquilo e tentam se apegar ao discurso oficial: essa criançada não presta, são um bando de jihadistas, não podemos ter piedade!

Para o protagonista Ocre, porém, a máscara da ideologia já está caída no solo, arruinada, rasgada pelas próprias violações constantes e brutais dos direitos humanos cometidas pelo Exército Interventor.

Torna-se impossível crer que os soldados dos EUA estão ali como força filantrópica, para o bem dos iraquianos, pois eles são testemunhas oculares do imenso sofrimento humano acarretado pelo caos bélico instaurado pela invasão. Não se trata de pintar um retrato idílico do Iraque antes de 2003 – o filme destaca que vem de longe, na história, o conflito sangrento entre xiitas e sunitas, com períodos de exacerbamento das rixas que constituem irrupções de guerra civil sectária.

Mas o que Castelo de Areia torna explícito é que os EUA não estavam ali como Anjos da Redenção, mas sim aplicando à risca aquilo que Naomi Klein teorizou sob o conceito de Doutrina do Choque.

Primeiro, uma intervenção militar brutalizante, shock therapy com munição bélica pesada, realizada com todo o poderio de destruição possuído pela nação do mundo de maior orçamento militar do planeta, além de ser a pátria com maior arsenal atômico e a única a já ter utilizado de bombas atômicas contra populações civis (em Hiroshima e Nagasaki). Depois, com o país arruinado pelas bombas, o “Momento da Bondade”: os EUA, delegado pelo próprio Bom Deus misericordioso como agentes de exportação da Freedom and Democracy, oferecem aos Iraquianos umas excelentes oportunidades de negócios na reconstrução do país.

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Junho de 2018


ASSISTA CURTAS-METRAGEM DE F. COIMBRA:

TRÓPICO DAS CABRAS (2007)

POBRES-DIABOS NO PARAÍSO (2005)

[Cinephilia Compulsiva] – O faroeste dark de Alejandro Gonzalez Iñarritu, estrelado por DiCaprio e indicado a 12 Oscars

THE REVENANT (O REGRESSO)
de Alejandro Gonzalez Iñarritu

A ultra-violência é cult. De Laranja Mecânica a Quentin Tarantino, de Cronenberg a Chan Wook Park, os filmes digladiam entre si pelo troféu da violência melhor estilizada. Alguns travestem a carniceria com glamour e deixam-na quase chique (Guy Ritchie?), outros pretendem-se bíblicos ao realizarem filmes-açougue de pregação evangélica (Mel Gibson e seu A Paixão de Cristo). O novo filme do badalado cineasta mexicano Iñarritu (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel, Birdman) investe numa espécie de faroeste dark que flerta com uma estética à la Sam Peckinpah. É um filme “sangue nos olhos” e que contêm algumas cenas altamente GORE – inclusive uma treta-com-urso de uma verossimilhança tão impressionante que deixa o espectador louco pra ver o making off e descobrir como aquilo foi filmado (realmente não fica parecendo que o bicho é feito de CGI…).

Alejandro González Iñarritu

Alejandro González Iñarritu


Para o espectador médio, The Revenant  é só um filme de aventura na natureza selvagem, cheio de correrias, pancadarias e conflitos territoriais, e que tem algo das técnicas narrativas grandiloquentes de um Ridley Scott. É uma obra que destoa da filmografia de Iñarritu, que tornou-se célebre pelos filmes de temporalidade picotada como “21 gramas”, onde o fluxo temporal passado-presente-futuro é totalmente subvertido em prol de outras (des)orientações no tempo. “The Revenant”, apesar de seus eventuais flashbacks e delírios, é uma saga bastante linear. Centra-se na luta pela sobrevivência nas condições mais adversas, a ponto de às vezes parecer que faltou criatividade ao roteiro, que parece apostar na fórmula: “bóra espancar Di Caprio até estraçalhá-lo e depois fazê-lo erguer-se heroicamente de cada surra!”

Aquiles lamenta a morte de Pátroclo; em sua fúria vingativa, em breve matará Heitor (Cenas da epopéia homérica "Ilíada")

Aquiles lamenta a morte de Pátroclo; em sua fúria vingativa, em breve matará Heitor (Cenas da epopéia homérica “Ilíada”)


O filme é veículo de uma ideologia um tanto homérica, um ethos do guerreiro viril e perseverante, sendo que o personagem de Di Caprio parece talhado à imagem e semelhança de Aquiles. A fúria de Aquiles diante da morte de Pátroclo, na Ilíada de Homero, é muito similar à fúria do protagonista de “The Revenant” em sua epopéia vingativa contra Fitzgerald, assassino de seu filho. O que resulta é uma obra com testosterona em excesso e com um certo fedor patriarcal – um filme que se enquadra naquela categoria, de gosto duvidoso, do “filme pra machão”. É uma espécie de “Duro de Matar” com pretensão a filme cult – com a ressalva de que DiCaprio é muito melhor ator que Bruce Willis.

Into the WIldEm comparação com outros filmes de temática semelhante, “The Revenant” soa raso em sua escassez de boas idéias: Into The Wild – Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, adaptação do livro de Krakauer, é imensamente mais eloquente e instigante em sua discussão sobre a dualidade Civilização x Selvageria: a saga de Chris McCandless serve para colocar em questão os valores hegemônicos da ideologia capitalista neoliberal através da Contracultura Encarnada em Chris McCandless.

Já “The Revenant” tem idéia de menos e estilização demais: os personagens parecem desprovidos de maior densidade psicológica para além do conatus mais cru, de modo que o ser humano aparece um tanto animalizado e bestializado – algo que fica explícito na cena hardcore em que DiCaprio relaciona-se intimamente com as entranhas de um cavalo morto. É verdade que esta cena grotesca tem a coragem de ir aos extremos como um bom terror do cinema dito B – parece uma cena de filme do Zé do Caixão… – mas de todo modo parece veicular a noção de um “vale tudo para a sobrevivência” que, num filme de mais de 2h30min, acaba por soar repetitivo, como uma tese demasiado reiterada.

Se há algumas lições a serem aprendidas do filme, talvez elas digam respeito às patologias da masculinidade que desde tempos arcaicos são celebradas em obras de arte que se pretendem “alta cultura”. Transformar em heroísmo a suposta virtude da virilidade, pregar a areté do macho fisicamente forte e perseverante, talvez só coloque mais lenha no lamentável machismo do patriarcado ainda triunfante.

The Revenant ambiciona ser um épico e realmente flerta com a estética da epopéia homérica de modo aberto – inclusive usando como recurso uma espécie de “Helena indígena”, sequestrada pelos branquelos gananciosos que estão colonizando aquela região por causa das peles cheia de “fur” dos bichos peludos (que evoluíram corpos adaptados às friacas e nevascas). Porém, o filme desenvolve mal as interações étnicas e mestiçagens interculturais que poderiam ter deixado a obra interessante do ponto de vista antropológico.

Novo MundoIñarritu fez um filme anti-romântico e supostamente realista – um faroeste “in the wild” onde, na hora do aperto, a comida é carne crua e ensanguentada das feras. Só que, como retrato histórico ou reflexão política, parece-me bem inferior a filmes como O Novo Mundo de Terence Malick e A Missão de Roland Joffe. Estes, sim, desvelam diante de nossos olhos um quadro impressionante sobre o que foi a colonização da América e os múltiplos “encontros” – nem todos violentos – que aconteceram então naquele “choque de civilizações” que o filme de Iñarritu minimiza em prol do duelo entre indivíduos (flertando, de modo que beira o plágio, com o filme de estréia de Ridley Scott, Os Duelistas, adaptação do romance de Joseph Conrad).

De todo modo, é notável que o establishment do cinema norte-americano esteja, nos últimos anos, sendo “hackeado” por cineastas mexicanos cujas obras andam impactando o cenário e papando prêmios de um modo sem precedentes: Alfonso Cuarón (Gravidade, Filhos da Esperança, E Tua Mãe Também) e González Iñarritu já pularam o muro vergonhoso de La Migra e tomaram Hollywood de assalto (ainda que o tenham feito se adaptando parcialmente à “estética hegemônica”) – faturaram os dois últimos Oscar de Melhor Diretor. Os cineastas brasileiros – apesar das empreitadas de Fernando Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira), José Padilha (Robocop) e Walter Salles (Diários de Motocicleta) – ainda não conseguiram o mesmo grau de “penetração” na indústria cinematográfica dos U.S.A. Os cineastas México tem dado aos EUA algumas aulas-magnas de cinema que ajudam a demolir o mito supremacista dos yankees e, para além dos Oscarizáveis, o México é responsável por uma das mais brilhantes sátiras políticas dos últimos anos: “A Ditadura Perfeita”, de Luis Estrada.

 

(Carli, 23/01)
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O Selvagem e o Relógio


O SELVAGEM E O RELÓGIO

(Uma exposição de angústias)

“Quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante.

LEGIÃO URBANA
“Índios”

Era uma vez um índio que nunca havia visto um relógio. Um dia, suas terras são invadidas por conquistadores. Estes, no futuro chamarão esta data de “Dia do Descobrimento”. Eles, os estrangeiros que entram em terra alheia, “descobrindo-a” para colonizá-la, descem de suas caravelas suntuosas carregando cruzes, pólvora, relógios.

 O índio jamais viu nada disso em sua frente e não entende o que há de tão “sagrado” numa cruz, nem com que finalidades aquelas criaturas estrangeiras pretendem usar a pólvora, nem como diabos se faz um relógio. Seria este “selvagem” impulsionado, como sugerem tantos defensores da Teoria do Design Inteligente, a julgar que é obra divina tudo aquilo diante do quê ele se espanta (pois antes desconhecia)? Há de concluir o índio que o relógio é obra do deus dos invasores e que, diante de tal potência tão apta a realizar maravilhas e prodígios, nada resta senão aquiescer e cair de joelhos?…

Não: não acho que baste mostrar ao selvagem um relógio para que ele vire a casaca pro outro time e se apresse a trocar sua nudez desinibida por uma batina. Não é tão fácil assim vencer uma alma “pagã” para o cristianismo, recuperar uma ovelha desgarrada que está “extraviada” longe de Cristo… O índio não se deixa catequisar tão fácil por esta doutrina estranha, autoritária, invasora, que deseja impor seu império à força. Talvez pressinta que há algo de terrificante numa civilização que, cultuando uma cruz, cultua um símbolo da morte, um instrumento de execução, uma ferramenta assassina. Richard Dawkins percebeu bem: o equivalente moderno do hábito sacralizado na Cristandade de usar um crucifixo sobre o peito seria algo como… andar por aí com uma cadeira elétrica em miniatura ornando o peito. E vocês acham que índio têm toda essa vontade de se submeter a potências negadoras da natureza e adoradoras da morte? E vocês acham que índio se impressiona tanto assim com relógios?!?

 Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.” Eis o diagnóstico de Renato Russo. Concordo que uma parte das respostas está por aí: no espelho, no umbigolismo, no egocentrismo. Narcisos inventores de doutrinas inventaram a história de que nós, narcisos, somos o cume absoluto da criação, os predilelos supremos de deus, as únicas criaturas que PRESTAM neste globo inteiro! Ó polegar opositor! Ó tele-encéfalo altamente desenvolvido! Minhoca, barata, porco: tudo bicho escroto. Mas o homem, ah não! O Homem é a Glória da Criação! Feitos à imagem e semelhança de um divino deus, belíssimo e bom! Já boi, frango, peixe: são tudo uns bichos “porcaria” que nem tem alma… “Nem tem alma!”



Narciso inventa-se uma alma e fica se achando muitíssimo importante no esquema geral das coisas. Fica de ego inchado. Ele é, nada mais, nada menos, que o filho predileto da divindade única e toda-poderosa e, se agir direitinho, como manda a cartilha (quero dizer, a Bíblia…), o Papai-do-Céu lhe irá destinar um imenso parque-de-diversões celeste, repleto de infinitas delícias.

Em breve, gostando mais e mais dessa ideia, apegando-se a ela com afinco mais e mais ardoroso, ele chegará um dia a achar muitíssimo conveniente possuir uma alma imortal que ele nega a outros animais (e mesmo a outros humanos!). Ele quer triunfar sobre a morte que cai sobre as bestas, proclamar a si mesmo como a única exceção universal, e pensa tê-lo feito de fato quando imagina seu desejo realizado, quando escreve livros que lhe garantem que a promessa será cumprida!

E é assim que surgem na História humana estes fenômenos tão estranhos e bizarros: que uma religião que prega a fraternidade, como o cristianismo, possa conduzir tantas mentes a romper as relações fraternas com o mundo natural que tantos dos ditos “selvagens” praticam de modo tão espontâneo, fácil e exemplar. Ao invés de se perguntar “o que poderíamos nós aprender com eles?”, o homem que desceu das caravelas com suas bíblias e escopetas, querendo expandir o império de distantes reis europeus, só quis saber de forçar seus dogmas a outros – e a quem se recusasse… o calabouço, o chicote, o fuzil!

Foi assim que a religião que se vende como “fraterna” decidiu convencer seu séquito de fiéis de que índio e negro, como os bois e as minhocas, não tem alma. Os relógios que desceram das caravelas junto com os espelhos e a pólvora calculariam os tempos das jornadas que fariam os navios negreiros, lotados de homens acorrentados e tratados como bestas-sem-alma. Os relógios calculariam também o valor das riquezas que seriam daqui arrancadas, a demora exigida para as caravelas singrarem o Oceano, levando à Europa toda a prata de Potosí, todo o ouro de Vila Rica!

Nós, latino-americanos, não devemos nos esquecer das Veias Abertas da América Latina! Felizmente não tivemos nenhuma experiência histórica sobre fenômenos que nos parecem tão distantes e estranhos quanto as Cruzadas e as Inquisições. Aprendemos o pouco que sabemos sobre o assunto em livros um tanto maçantes, e cuja leitura os padres não nos recomendam. O que nós, aqui na América Latina, pudemos vivenciar, que nossos ancestrais diretos tiveram que encarar na pele, foi o ímpeto imperialista da civilização cristã e protestante européia – que conseguiu não somente impor-se, como também praticar o maior roubo de riquezas da história conhecida das civilizaçãos, e com a utilização dos métodos mais torpes e enojantes, incluindo a escravidão e o genocídio.

À Narciso às vezes agrada muitíssimo a ideia de que ele é capaz de possuir todas as verdades e que um único livro, que ele nem suspeita ter sido escrito por narcisos como ele, contêm tudo o que se precise saber, respostas finais e soluções definitivas para tudo na vida.

O maior perigo do monoteísmo, por isso, me parece ser o seu potencial de tornar o sujeito arrogante, cheio de empáfia, julgando-se absolutamente certo em suas convicções inalabáveis e disposto a degolar os que pensam diferente. O potencial altamente destrutivo do monoteísmo está nesta sua aversão à diversidade que lhe é inerente. Um fiel monoteísta acredita que todo mundo, sem exceções, deve se prostrar diante do mesmo deus. Que deva haver o mesmo culto para 7 bilhões de criaturas. Sonhar que é possível uma tal “unificação” entre os povos, algo que tudo na História nos diz que é absolutamente sem precedentes, me parece mais uma fantasia lunática do que um projeto político realista.

A civilização que inventou o relógio chegou diante dos homens do novo continente com a arrogância autoritária de quem se julga superior. Narciso tinha se convencido que, por ele ter sabido inventar relógios e espelhos, ele tinha direito ao império sobre o resto do mundo natural. E até hoje muito cristão que se julga um excelentíssimo sujeito vai sem um pingo de culpa ao açougue e à churrascaria, plenamente convencido de que bicho não vale tanto quanto um bom cristão e que pode ser tranquilamente tratado como um amontoado de carne sem sentimentos e que os matadouros fazem muito bem em degolar aos milhares.

E até hoje muito sujeito que se considera “santo” e que vai à Igreja todos os domingos apóia que caiam as bombas sobre o Iraque, o Afeganistão e o Irã – afinal de contas, quem crê numa divindade tão falsa como Alá merece mesmo o destino de uma Gomorra ou uma Sodoma. E até hoje muito sujeito que diz professar o cristianismo e ser “pró-vida” espalha por aí que usar camisinha é um pecado e que a AIDS é uma punição divina contra a festa da diversidade sexual e do “permissivismo” – agravando com isso epidemias mortíferas que causam um grau de sofrimento inimaginalvemente grande, impedindo que sejam adotadas medidas racionais e lúcidas contras os males que afligem a humanidade.

Quem espera ajuda dos céus tende a fazer pouco na Terra além de cair de joelhos e rezar, ou pegar em cruzes e pregar, ou agarrar-se em livros supostamente sagrados para tentar convencer toda a humanidade a NÃO LER NADA além dele, o Único Livro Que Presta!

Eu, como amante dos livros, como alguém que se delicia com as orgias que realiza em seu cérebro entre os mais diversos autores, que goza com a combinação sem preconceitos de poetas e músicos, dançarinos e palhaços, romancistas e pensadores, me sinto ofendido por essa gente que prega que só devemos ler um livro. Acho isso um crime contra a cultura humana do passado, que em sua imensa riqueza e diversidade merece ser apropriada o máximo que pudermos. Limitar o nosso horizonte a um único documento, quando as bibliotecas e as locadoras e os sites estão tão repletos de um conteúdo tão fascinantemente diversificado e colorido me parece a mesma coisa que vestir em si mesmo um cabresto. Prender a si mesmo numa jaula. Impedir o próprio cérebro de enxergar mais longe.

No fundo, escrevo este texto sob o impacto do filme Xingu, de Cao Hamburguer, da reação a ele manifestada pela Eliane Blum na Revista Época e por alguns vídeos de YouTube que mostram as tensões sociais em Belo Monte. Sinto uma inquietação vaga diante deste plano faraônico do Brasil de construir uma das maiores hidrelétricas do planeta. Se falei tanto de Narciso, foi por essa inquietação de que possamos estar sofrendo com a doença que um dia foi aquela de nossos invasores europeus e que hoje é a cegueira dos Estados Unidos da América. É arrogância que sobe às nossas cabecinhas narcísicas à ideia de que deixamos a Inglaterra na poeira e somos agora uma das 5 maiores economias do mundo? Não estará o governo federal sendo autoritário em sua imposição de um desenvolvimento econômico que aquelas regiões não solicitaram e que muitos indígenas consideram lesativa à terra e aos ecossistemas?


As questões espinhosas da Eliane Brum ressoam, sem resposta:

“…por que permitimos, pela omissão da maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da democracia, com a nossa cumplicidade? […]

O efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.”

Eu, que não conheço a Amazônia, que só acompanho de longe esses problemas, ainda assim me sinto como que “empurrado” a tentar expressar angústias sobre esse assunto. Tenho medo desse “desenvolvimentismo” que me soa tão… anos 50. A Transamazônica e Belo Monte servem mesmo para “integrar o Brasil”, ou querem mesmo é abrir rotas vantajosas de comércio e possibilidade de enriquecimento infindo para muitas empresas? Precisamos tanto assim de alumínio (que, segundo o Fernando Meirelles, é o deus em glória de quem a hidrelética está sendo construída)? A Amazônia, o pulmão do mundo, peça essencial para sustentar o clima da Terra, para nos livrar de catástrofes naturais hecatômbicas que a insustentabilidade do capitalismo selvagem está nos legando, pode ser tratada, mais uma vez, como um elemento num jogo de capitais ao invés de um ecossistema vivo contendo uma das mais vastas biodiversidades do Universo conhecido? O que o futuro nos reserva: shopping centers pipocando nas margens do Xingu e índios sonhando em vestir tênis Nike e comer no McDonalds?

A minha suspeita é a de que o Brasil possa estar vivendo uma espécie de “imperialismo interno”, em que um modelo de desenvolvimento um tanto tecnocrático e cientificista está sendo imposto a civilizações que, ainda que estejam dentro de nosso território, possuem outros valores, outros estilos-de-vida, outros horizontes. Quiçá possamos, com os horizontes deles, abrindo-nos a eles, ampliar os nossos! Estou convicto de que, se cada bom cristão resolvesse experimentar a Ayahuasca um dia, ao invés de ficar só na hóstia, podia mudar seus parâmetros sobre a “superioridade” da civilização cristã sobre as outras, sobre o “resto”. Quiçá um dia aprendamos a lidar com o diferente num espírito de aprendizado mútuo e não de dominação prepotente. E quiçá um dia os dogmáticos e os fanáticos, os narcisos que se comprazem em crer no que lhes deixa mais contentes, os que só conseguem enxergar um livro e têm os horizontes fechados para todo o resto, possam perceber que relógios não valem muito para aqueles que sabem sentir-se, no presente, como se estivessem na eternidade. E que livros são pouca coisa para aquele que sabe, com as portas da percepção escancaradas, beber com seus sentidos o universo, em grandes goladas, lendo maravilhado o Grande Livro da Natureza!

“To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower
Hold infinity in the palm of your hand
And eternity in an hour.”

WILLIAM BLAKE,
O SELVAGEM 

 

:: Um adeus a Saramago ::

::  UMA QUASE ELEGIA FÚNEBRE ::


Decerto é mais sábio se rejubilar por ele ter vivido do que se entristecer por ter morrido. Mas quem consegue, frente ao desaparecimento de um ente querido, não sentir o buraco que ele deixa ao ir embora, concentrando-se só nas delícias e esmeraldas com que ele nos presenteou em vida? A morte de Saramago (1922-2010) é um furo de ferimento a faca na cultura, um vácuo que fica no pensamento dos vivos. Que um cérebro deste pare de operar, taí a tragédia: o mundo fica toneladas menos lúcido e menos inteligente sem os incríveis processos destes privilegiados miolos e seus frutos suculentos em palavras.

Comunistão, ateu de carteirinha, questionador de todos os dogmatismos e tiranias, Saramago não fugiu da polêmica quando se tratava de sustentar o que acreditava. Os descontentes tem pleno direito de desacordo, parecia dizer, complementando o “no peito dos desafinados também bate um coração”, de João Gilberto. E ele foi um destes nobres descontentes e “ímpios”, levantando-se lá em nossa ex-metrópole, a tão pia Portugal, ela que fincou no Brasil e em suas outras colônias, nos tempos da Coroa, a sangrenta cruz de Cristo, com sua procissão de escravaturas, explorações, pilhagens, revoltas esmagadas a tiro e fome…

Quando imaginou uma epidemia de alguma doença que acometesse a humanidade inteira, fantasiou sobre uma Cegueira Branca que se alastraria como a versão moderna da peste. E o quanto isso não diz! E o belo filme que Fernando Meirelles fez honra ao romance brilhante que o Saramago concebeu.

“A alegria e a tristeza não são como o óleo e a água: elas coexistem”. E ele sabia viver na aceitação desta coexistência, admirador do dito de Pesso:  “Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo”. E que o pôs em prática. E que soube a alquimia que é necessária para fazer com coexistam a alegria de estar no mundo e a crítica ferina dos descalabros que o sujam. Pois, como Bobin, ele sabia que a “aquiescência ao mundo não pode ocorrer sem uma revolta absoluta contra o mal que o acossa de toda parte” (L’Inesperée).

Em Saramago, há essa coexistência do chumbo e da pluma, da acidez e da doçura, da lucidez e da loucura, do vazio e da imensidão. Foi um ironista tão fino quanto Machado, um prosador humorístico tão espirituoso quanto um Sterne ou Fielding, um crítico das cegueiras eclesiásticas tão ousado quanto um Diderot ou um Voltaire, um dos que manteve a chama do Iluminismo acesa no que ela tinha de melhor, um brilhante filósofo do ateísmo que não é menos poderoso e lúcido do que um Nietzsche ou um Feuerbach… E foi amigo precioso de tantos de nós que passamos tão agradáveis tardes entretetidos, fascinados, comovidos, engajados por seus livros!

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei?” No mundo que Saramago enxergava, não: os cegos é que são os reis e senhores do mundo, cegos ditadores entre cegos miseráveis. E quem tem um olho para ver a desgraceira… chora. E faz o que pode para que o suplício pare.

Quem tem visão, como é o caso da personagem de Juliane Moore no filme de Meirelles, a única “vidente” naquela quarentena de “contaminados” pela epidemia, sofre mais que qualquer outro personagem (é a sensação de quase todo espectador) por ter de contemplar a miséria no mundo fabricada pelos desarranjos dos cegos.

Quase impotente, o homem que enxerga tem que se resguardar na cautela para não acabar queimado na fogueira como herege, torresminho do churrasco dos crentes. Quem mostra poder destronar os ídolos dos outros atrai para si a ira daqueles que amam demais estes ídolos e suas próprias cataratas para não odiarem cegamente aqueles que tentam dessacralizá-los e sugerir outras vias.

O filme de Meirelles, que começa numa enfermaria, logo começa a se desenrolar em algum bizarro espaço com características de manicômio, presidiária ou anarquia. É a cegueira trazendo Dogville à tona. Aqueles que tomam controle sobre os recursos naturais necessários para a sobrevivência da “comunidade” preferem, é claro, ao invés da solidariedade e da divisão equânime, faturar em cima da miséria alheia. Deja vu?

Chefiadas pelo “Rei da Ala 3”, tão bem encarnado pelo Gael Garcia Bernal, as auto-nomeadas autoridades exigem os atos moralmente dos mais repugnantes àqueles que estão sob seu jugo. Como no inesquecível episódio em que os “tiranos” daquela monarquia decidem, já que seus servos e súditos já não tinham dinheiro ou ouro algum para fornecer-lhes, usar as mulheres como objetos sexuais, recompensando-as com comida.

O estupro coletivo cometido pelos homens da Ala 3 contra o batalhão de mulheres voluntárias e esfomeadas, que aceitaram sacrificar suas dignidades em troca de algumas migalhas de alimento, é uma das cenas mais chocantes e indignantes que o cinema conseguiu fazer e que a literatura conseguiu nos fazer imaginar com espanto. A “ferida moral” que testemunhar atos assim é capaz de gerar beira o poder das mais fortes cenas de Lars Von Trier em Dogville, Dançando no Escuro ou Ondas do Destino.

E acho que é de encher um brasileiro de orgulho que Fernando Meirelles, em sua incursão pelo cinema americano, tenha levado este frescor do ceticismo questionador, caindo como um sopro benigno numa cultura que privilegia o happy end e que semeia suas cegueiras de shopping center. Ainda que correndo o risco de ser acusado de “misantrópico” ou “pessimista”, Meirelles foi ótimo discípulo de Saramago e se aferrou a sua visão de mundo que eu chamaria muito mais, se fosse preciso etiquetá-la, de “lúcida” e “humanista”. Que é a de Meirelles, a de Saramago, e a de nós que os amamos enquanto viveram e que continuarão amando-os quando se forem.

Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, arrancou lágrimas de Saramago em sua première, fazendo com que Fernando, num ímpeto de doçura, tascasse beijos de filho devoto na careca lustrosa do mestre. A cena é comovedora e não tem um pingo de homoerotismo: é muito mais um beijo de amizade e afeto entre um ancião querido e um jovem aprendiz talentoso. O filme é prova de que os “ensinamentos” do gênio lisboeta, quando ele ainda vivia, já ecoavam por outras artes e artistas, e dando dos mais preciosos frutos…

Saramago foi também um dos mais célebres ateus de nosso mundo. Se alguém nos parasse na rua e nos pedisse o nome de cinco ateus famosos hoje vivos, seu nome teria grandes chances de pipocar rápido na lembrança junto com o de um Richard Dawkins ou de um Salman Rushdie. Como este último, que sofreu violenta repressão do estado teocrático xiita do Irã por causa de seu Os Versículos Satânicos, Saramago também despertou uma onda de indignação em instituições eclesiásticas e pessoas de fé dogmática, especialmente quando da publicação, em 1991, de seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mas não se deixou calar pelos que ameaçaram-no com uma nova Inquisição e prosseguiu, corajoso e obstinado, a nos ofertar, com toda sua maestria literária, seu “banquete de heresias” — como a Gi (je t’aime!!!) muito bem as apelidou quando escreveu sobre Caim, o último romance publicado por Saramago em vida.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou”, professou Saramago poucos dias depois do atentado do terrorismo islâmico contra as Torres Gêmeas da nação que pratica diariamente o terrorismo de mercado. E ele soube ler o 11 de Setembro em todas as suas implicações, não ignorando  o quanto a fé é um móbil poderoso da ação das multidões que a ela aderem, mas enfatizando o quanto isto é bem daninho e perigoso do que digno de elegia.

“Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou. Mas o ‘fator Deus’ está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. (…) E foi o ‘fator Deus’ em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do WTC os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. (…) Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, e esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.”

E não esteve só protestando contra a intolerância do fanatismo; seu apelo à lucidez, à serenidade e à crítica severa de todos os pregadores, de todos os dogmatismos, encontrou quem a ele adicionasse uma voz ao coro dos descontentes. O próprio Rushdie, um dos maiores escritores do século passado na Índia, é bom exemplo. Ele sustenta “saramaguianamente” que…

“É evidente que uma visão de mundo rígida, tacanha e absolutista é a mais fácil de manter; pelo contrário, a imagem fluida, incerta e metamórfica que sempre defendi é bastante mais vulnerável. Todavia, tenho de agarrar-me com todas as forças a esse camaleão, a essa quimera, a esse ser metamórfico da minha alma; devo manter-me fiel a esses instintos irrequietos, iconoclastas e defasados, por mais avassaladora que seja a tempestade. E se isso me mergulhar em contradição e paradoxo, pois que assim seja; toda a minha vida vivi neste oceano confuso. Pesquei nele para a minha arte. Este mar turbulento era o mar que avistava da janela do meu quarto em Bombaim. É o mar pelo qual nasci, e que transporto comigo para onde quer que vá. ‘A liberdade da palavra é uma idéia descabida’, afirma um dos meus oponentes extremistas islâmicos. Não, senhor, não é. A liberdade da palavra é tudo, é todo o jogo. A liberdade da palavra é a própria vida.” [SALMAN RUSHDIE. Pátrias Imaginárias]

Crítico radical da ocupação da Palestina pelos exércitos de Israel, encontrou uma mente afim à sua também num dos grandes escritores israelenses das últimas décadas, Amoz Os, outro espírito saramaguiano tentando enxergar claro no meio do torvelinho.

”O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo. (…) O fanatismo é, com frequência, intimamente relacionado a uma atmosfera de desespero profundo. Num lugar em que as pessoas sintam que não há nada além de derrota, humilhação e indignidade, podem recorrer a várias formas de violência desesperada.” (…) ”O fanatismo está em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também. Conheço bem os antitabagistas que o queimarão vivo, se você acender um cigarro perto deles! Conheço bem os vegetarianos que o comerão vivo por comer carne! Conheço bem os pacifistas dispostos a atirar na minha cabeça só porque advogo uma estratégia ligeiramente diferente sobre como fazer a paz com os palestinos. (…) A semente do fanatismo brota ao se adotar uma atitude de superioridade moral que não busca o compromisso.” [AMOZ OS, Contra o Fanatismo]

Saramago não irá para o céu dos cegos.

Irá, sim, a um posto especial, de amigo venerado, no coração dos lúcidos.

GERAÇÃO PROZAC – Sobre “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões”, de Maria RIta Kehl

— DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES 
Reflexões sobre O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões
de Maria Rita Kehl

Os dados são estarrecedores:

“A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que os ‘transtornos depressivos’ se tornaram a quarta causa mundial de morbidade e incapacitação, e atingem cerca de 121 milhões de pessoas no planeta – sem contar, evidentemente, as que nunca se fizeram diagnosticar. Até 2020, segundo a OMS, a depressão terá se tornado a segunda principal causa de morbidade no mundo industrializado, atrás apenas das doenças cardiovasculares.” (KEHL, 2009, pg. 51)

Só no Brasil, são 17 milhões de pessoas reconhecidas como depressivas; e a comercialização de Prozac no país vem crescendo numa taxa de 22% ao ano, movimentando anualmente 320 milhões de dólares.

Yves de la Taille, por sua vez, analisa outra estatística alarmante da mesma pesquisa da OMS, de 2000, que indicou que

“o que mais mata no mundo, hoje, é o suicídio. Foram 815 mil suicídios naquele ano, contra 520 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil em guerras. Ou seja, seria preciso somar as mortes decorrentes de crimes e guerras para empatar com o número de suicídios. Naturalmente, isso depende da região. Em alguns países, é a guerra que ocasiona mais mortes – como no Iraque. Em outros, como o Brasil, são os crimes. Portanto,  o mal-estar moral e ético, que pode levar a pessoa ao suicídio, manifesta-se de maneira mais forte no hemisfério norte, justamente aquele cuja cultura costuma ser considerada como a mais avançada e a mais desejável do mundo ocidental.” (DE LA TAILLE, 2009, pg. 9)

Curioso e sintomático que este “aumento assombroso dos diagnósticos de depressão”, desde a década de 70, se dê paralelamente à expansão dos tentáculos do império do consumo e do espetáculo, que exigem de todos nós que gozemos sem entraves (com a condição, é claro, de que gastemos no processo muito dinheiro!). A depressão ganha dimensões de epidemia enquanto a sociedade de consumo consegue cooptar e fazer de slogan seu até mesmo um mote de Maio de 68!

A constatação desta epidemia mundial de depressão, além do aumento significativo de pacientes que se declaram deprimidos e que procuram a clínica psicanalítica, levou Maria Rita Kehl a debruçar-se sobre o tema em seu livro  O Tempo e o Cão (ed. Boitempo). Nele, a depressão é descrita como um “sintoma social”, como a expressão generalizada de um “mal-estar na civilização” muito difundido.

“Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta 1a década do século 21. Por isso, os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber.  ‘Entre nós, hoje em dia, o blues não é compartilhável’, escreve Soler. ‘Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a título de doença do discurso capitalista’.” (22)

Os deprimidos, que apesar de seu imenso número são verdadeiros “proscritos” sociais, cujos discursos ninguém parece a fim de ouvir, são descritos por Maria Rita Kehl como pessoas que estão “desajustadas” em relação ao sistema econômico e cultural imperante, e que por isso são tão incômodos: não suportam o sistema ao qual os outros estão tentando se ajustar e aceitar.

“Não há, entre os discursos hegemônicos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa dos estados de tristeza e da dor de viver, assim como do possível saber a que eles podem conduzir. O mundo contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação” (KEHL, 16).


>>> DE HERÁCLITO A BAUDELAIRE: O BLUES ATRAVESSA OS SÉCULOS

Na Antiguidade, excêntricas teorias, hoje obviamente obsoletas, procuravam explicar a melancolia de modo puramente orgânico: a bile negra seria a causadora destes saturninos estados de espírito. E desde então já se contrastavam grandes personalidades da intelectualidade segundo sua predisposição à gravidade ou à leveza — como no célebre contraponto entre o riso de Demócrito, que “seria uma manifestação da impossibilidade de tudo saber e da falta de sentido do mundo”,  e as lágrimas de seu “antípoda” Heráclito (KEHL, pg. 72). Também muito se sugeriu que haveria uma ligação entre melancolia e criatividade, entre depressão e genialidade, tão numerosos os artistas – de Baudelaire a Pessoa, de Virginia Woolf a Clarice Lispector – que criaram em meio à abatimentos, spleens e desassossegos extremos.

Partindo da interpretação de Benjamin sobre Baudelaire, Maria Rita sustenta que

“o heroísmo de Baudelaire não consiste em se fazer defensor da multidão fascinada e consumida pelas mercadorias e pelo trabalho braçal que a aproxima e afasta do brilho das mercadorias. Consiste apenas, o que já é muito, em descrer de tal fascínio.” (KEHL, pg. 75)

Os depressivos de hoje, pois, são como pequenos Baudelaires, apesar de raramente atingirem seu gênio poético e sua potência expressiva, que também não deixam-se fascinar e conquistar pelo cortejo das coisas a consumir nem pela atração do trabalho mecanizado, monótono e mau-pago.

Por isso, do mesmo modo como há um “sentido político no dandismo” de Baudelaire, há um sentido político nos deprimidos que escondem-se debaixo de suas cobertas, como um modo de retirarem-se de um jogo social que são incapazes de jogar. Isto passa também pela Indústria Cultural, tão severamente esmiuçada e criticada por Adorno e a Escola de Frankfurt, e pela Sociedade do Espetáculo teorizada por Guy Debord —

“imagens que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato”, escreve Maria Rita, “uma nova forma de discurso único, fundado sobre razões de mercado, muito mais eficaz do que a dominação da Igreja na Idade Média – já que a norma contemporânea se impõe pela sedução, não pela interdição.” (KEHL, pg. 92)

Vivemos numa sociedade radicalmente constrastante com a medieval, onde o gozo carnal e sensível era condenado e anatemizado — repressão sexual e hedônica sustentada pelo poderio opressor de uma Igreja toda-poderosa. Hoje, o ascetismo e a moderação saíram completamente de moda frente às centenas de canais de TV, a proliferação da pornografia na Internet e fora dela, as técnicas de obsolescência programada dos produtos e às técnicas publicitárias que nos convidam a consumir sem cessar. Este imperativo de gozo se articula, é claro, com os ideais de eficácia econômica:

“Tal articulação subverteu os ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud, convocados a sacrificar suas modestas possibilidades de prazer em favor da produtividade, no período de consolidação do capitalismo industrial.” (KEHL, pg. 92)

Passamos para a fase do “capitalismo consumista” —  sistema que adora propagandear que devemos perseguir a “felicidade”… obviamente comprando-a no hipermercado e no shopping center. Devemos sim desejar ardentemente o gozo, desde que para gozar procuremos as satisfações enlatadas pela Coca-Cola ou por Hollywood! O problema é que todos aqueles que não conseguem “amar tudo isso” ou “ser um tigre”, como pedem alguns slogan publicitários, nem ter uma família Doriana toda-fofura ou um sorriso Colgate de orelha-a-orelha, sentem-se uns fodidos na vida. E deprimem-se ao não poderem encarnar o ideal do consumidor-satisfeito-sorridente-e-saltitante que o capitalismo-consumista solicita que sejam.

“O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado; sua produção imaginária empobrecida não sustenta as fantasias que deveriam promover a crença na combinação aparentemente infalível entre o espetáculo e o capital. Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.” (KEHL, 104)

São eles que “desafinam o coro dos contentes”, para usar o brilhante verso de Torquato Neto, e que “afundam a nau dos bem adaptados ao século da velocidade”, do entretenimento fútil e do consumo desenfreado.

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>>>PROZAC GENERATION!

Outra hipótese que tenta explicar o exponencial crescimento de diagnósticos de depressão é a da ganância da indústria farmacêutica que, estando a fim de faturar milhões no Prozac e demais painkillers, instiga a medicalização de qualquer tristezazinha ou bode passageiro. Mas não será “teoria-da-conspiração” demais julgar que estas empresas multinacionais fabricantes de remédio tem este poder todo? Tão grande oferta de medicação não seria devida à imensa demanda? Ou as multinacionais teriam culpa na própria criação desta demanda? Decerto que já sabemos que ela é capaz de diabólicas maquinarias – escancaradas em filme por Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel, por exemplo, no qual o continente africano serve como fonte de cobaias para o teste de remédios de duvidosas consequências para o organismo humano.

Maria Rita Kehl critica vigorosamente a tendência “medicamentosa” que procura extirpar de modo imediato a depressão (ou algo erroneamente diagnosticado como tal) receitando remédios – sintoma de uma sociedade viciada em soluções rápidas e conflitos quimicamente desfeitos.

“O projeto pseudo-científico de subtrair o sujeito – sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta – a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico – o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana.” (53)

O processo de “cura” da depressão, ao invés do apelo ao imediatismo da farmacopéia, deve ser vagaroso: o deprimido deve aprender a “viver em seu próprio tempo” ao invés de sentir-se fora dos trilhos do tempos dos outros. Isso porque a “experiência subjetiva do tempo” que possuem os depressivos, frisa com insistência Maria Rita Kehl, é extremamente empobrecida. A depressão é vista por Kehl como uma “doença do tempo”, causada por uma certa desarmonia cacofônica entre o tempo subjetivo e o tempo-dos-outros (ou ainda, o tempo imposto pelo sistema econômico atual, frenético e apressado, que não suporta perder os segundos que são centavos…).

Pois se o depressivo sente-se apático, abatido, entediado, como se vivesse num tempo estagnado e onde “nada acontece”, é principalmente devido à sua incapacidade de “distender a temporalidade” — ele encontra-se num presente desvinculado do passado (tanto o pessoal quanto o coletivo) e do futuro (dada a atrofia de sua vontade e de seu desejo). “A duração, para o depressivo, frequentemente adquire a forma insuportável de um tempo estagnado, sem apoio em nenhuma lembrança significativa do passado, sem nenhuma fantasia que torne o futuro desejável.” (KEHL, 140) Lembremos da linda idéia de Virginia Woolf, que dizia que o tempo presente flui como um rio, mas é o passado que confere profundidade às águas…

Neste sentido, a psicanálise representaria uma possibilidade, para o depressivo, de vivenciar uma “temporalidade distendida”, onde o frenêsi e a pressa do “mundo-lá-fora” fossem substituídos pela calmaria e pelo silêncio — um “lugar” onde, mediado pela escuta do analista, a pessoa pode reencontrar sua temporalidade perdida, tanto num mergulho em suas reminiscências quanto na tentativa de construção de objetivos, projetados no futuro, que encham seu horizonte com ilhas cuja conquista pode ser desejada.

“Na duração do tempo diacrônico instaurado por essa ‘magia lenta’ que é a psicanálise, os depressivos se instalam aliviados, sem pressa, seguros de que é dessa temporalidade distendida que eles precisam para se libertar da pressão aniquiladora das demandas do Outro” (KEHL, 119).

Muitas outras explicações e hipóteses sociológicas e psicológicas podem ser arroladas na tentativa de explicar tamanha difusão de depressão e suicídio neste nosso início de século. Eu aqui gostaria de rapidamente sugerir uma, aliás nada original, que a Maria Rita Kehl comenta muito de leve, sem desenvolver a idéia: o fato de que os grandes centros urbanos, além da imposição de um estilo de vida frenético e de imperativos de consumo-feliz que são metralhados de todos os lados, são também formigueiros tão super-lotados que para muitas pessoas o convívio social torna-se um horror.  O inchaço das metrópoles faz com que as pessoas, por serem muitas, acabem por se “chocar” mais, de modos desagradáveis e irritadiços, como os porcos-espinhos de Schopenhauer. Claro que o ser-humano é um animal social, que procura a companhia dos seus, mas nos grandes centros o formigamento é tamanho que a presença dos outros, tornando-se compulsória e invasiva, fere aquela película que protege o que Goethe chamava de nossa “cidadela interior”. O depressivo, se esconde-se no subsolo, como o anti-herói do livro de Dostoiévski, talvez seja para escapar do fardo de pertencer a uma imensa massa, ruidosa e apressada, muitas vezes hostil e irritada, do qual ele não passa de uma ínfima parte… Situação que faz com que ele, ao invés de se sentir “acompanhado” e “acolhido”, sinta uma desagradável anomia e angústia por estar “apagado” em meio aos outros, com um destroço que flutua inotado pelos mares da multidão indiferente… Trancado em seu quarto, ele pelo menos pode ter a revigorante sensação de ser seu próprio centro (ainda que só dor e solidão se irradiem deste centro…).

Como conheço pouquíssimo de sociologia, não posso desenvolver estes argumentos com pesquisas e estatísticas que certamente estão sendo realizadas mundo afora averiguando as relações entre a vida nas grandes metrópoles e as patologias psíquicas como a depressão; mas largo aí estas idéias por sentir que são referendadas pela minha experiência pessoal de 5 anos morando na maior cidade da América Latina, onde eu tantas vezes tenho preferido permanecer no meu “subsolo” assistindo filmes de Bergman ou com um romance russo em mãos a enfrentar este monstro de mais de 15 milhões de cabeças chamado São Paulo…

Para finalizar, deixo uma das conclusões mais marcantes que a Maria Rita tira deste seu longo estudo sobre a relação entre a depressão e nossa cultura, além de uma canção que é uma das melhores expressões de desolação na arte dos últimos anos:

“O que distingue a sociedade de consumo não é o fato de que todos comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a idéia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Dito de outra forma, o que caracteriza a sociedade de consumo é o fato de que o fetiche da mercadoria, acrescido do valor (imaginário) de gozo, seja o verdadeiro organizador do laço social.” (KEHL, 100)