Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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APRECIE TAMBÉM:

Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

O que a sociedade distópica, militarista, teocrática e estratificada de “The Handmaid’s Tale” ensina sobre o presente e o futuro da humanidade

I – O NASCIMENTO COMO IRRUPÇÃO DO NOVO

“Nascer é muito comprido”, escreveu o poeta Murilo Mendes (1901 – 1975). O que ele quis dizer com isso? Que nascer é um processo, mais que um momento? Que é um interminável amadurecimento e um vir-à-vida sem fim, e nunca um acontecimento que se pode dar por acabado?

Talvez nascer seja começar a carreira de “eterno aprendiz”, de que nos fala a belíssima canção de Gonzaguinha? Não se cumpre em pouco tempo a missão comprida de nascer, é verdade! Mas será que nascer dura toda uma vida? Assim como nunca se aprende por completo a arte de viver, nascer é um troço que a gente nunca termina de fazer. Os despertos saberão do que falo, pois estão alertas à eterna novidade do mundo.

“E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…”

FERNANDO PESSOA
Heterônimo: ALBERTO CAEIRO
Poema: O meu olhar é nítido como um girassol

A filosofia, acredito, pode ajudar os seres humanos, assim como o fazem grandes poetas, a caminhar com sabedoria-de-Heráclito pelo futuro adentro. A filosofia convida-nos a sermos sábios em nossa caminhada em que vamos ao encontro do futuro, inclusive daqueles eus que seremos. Cada um de nós não é, mas sim está sendo: indivíduos em fluxo, psiquês móveis, metamorfoses ambulantes.

Quem sabe que tudo flui (panta rei) vai pro porvir com a abertura de espírito daqueles que esperam o inesperado. Abertos à potência de transformação que pulsa no cosmos, os sábios caminham rumo àquele outros que serão, àqueles em quem se transformarão quando o rio do tempo tiver fluído adiante mais um pouco, arrastando-nos consigo.

Nascer, para Hannah Arendt, é adentrar no mundo comum e nele chegar como irrupção do novo: aquilo que nasce é o inédito. Diante de cada recém-nascido, pode-se dizer: nunca antes existiu um ente idêntico, a existência humana aqui se manifesta novamente em um exemplar de singularidade, por mais que suas semelhanças com os outros seres humanos sejam também significativas. Ninguém nasce igual a alguém que já tenha nascido, ainda que o nascimento nos seja comum a todos como porta-de-entrada que compartilhamos de maneira explicitada pela pintura “A Origem do Mundo” de Coubert.

“A ORIGEM DO MUNDO”, de Gustave Courbet

Acho bela e verídica a idéia que a filósofa formula, inspirada por Santo Agostinho e sua noção de initium: Hannah Arendt queria fazer de nós pessoas com antenas para o novo, com mentes atentas ao fato de que o nascimento é um fenômeno do mundo que tem a ver com a renovação necessária. 

Estudando os fenômenos históricos escabrosos e brutais do século 20 em Origens do Totalitarismo, em especial comparando o III Reich alemão e o período Stalinista da União Soviética, Hannah Arendt ensinou-nos que se tratam de tiranias políticas sem precedentes, atrocidades inéditas, rupturas brutais com a tradição, situações-limite.

Nada disso impedia que, para ela, o nascimento continuasse sendo uma espécie de Princípio Esperança (para lembrar da monumental obra de Ernst Bloch), ou seja, o nascimento, fator de inovação, colocaria à educação e à política suas maiores responsabilidades, mas também suas mais imensas promessas, permanentemente a inspirar os trabalhos da vontade humana em seu trato com um porvir (inédito) a construir:

“Observa Hannah Arendt que, para santo Agostinho, a vontade é a faculdade integradora das outras aptidões mentais do homem, na sua relação com o mundo das aparências, e é por meio dela que os seres humanos se abrem para o futuro. Na análise agostiniana da temporalidade, além do começo absoluto que assinala a criação do céu e da terra – o principium -, existe para cada homem um começo relativo – o nascimento, o initium – que significa que os homens nascem como noviços num mundo que os precede no tempo. Neste mundo, existe a liberdade da espontaneidade, que se volta para o futuro através da vontade humana.

O initium de Agostinho – pensador sobre o qual Arendt se debruçou desde a sua tese de doutoramento – é uma das raízes da categoria de natalidade, que ela erige como uma das categorias centrais da política em A Condição Humana, nela vendo a explicação sobre a possibilidade de criar coisas novas. Precisamente porque são novas elas não são necessárias, mas contingentes. E é justamente a contingência da política, que frustra a previsão determinante, o que Arent, na sua obra, destaca pela ênfase que atribui à liberdade. Esta se encontra ao alcance de cada homem individual, permitindo-lhe agir de forma nova e dar início a novos projetos…” (CELSO LAFER, A Reconstrução dos Direitos Humanos, Cia das Letras, p. 403)

Esta visão “otimista” sobre o nascimento precisa ser problematizada, pois a novidade não é necessariamente um benefício: há horrores e tormentos inéditos, que nem por isso são amáveis. Podem-se inventar novos modos de torturar e de matar, antes desconhecidos, e podem nascer no porvir seres humanos dotados de capacidades sádico-perversas que ainda não estão mapeadas.

Além disso, para além do indíviduo que nasce, temos que lidar com o nascimento como problema global e coletivo da Humanidade como um Todo, e percebe-se que hoje as distopias biopolíticas dividem-se quanto ao diagnóstico sombrio. Há as distopias que frisam o perigo da Humanidade em seu caminho de explosão demográfica, enquanto outras distopias imaginam a demografia minguando até perto do zero em virtude de uma infertilidade em massa. 

Cada vez são mais fortes, na cultura do século 21, as manifestações de uma virada distópica em relação ao tema do nascimento. Nestas obras, como o curta-metragem World of Tomorrow escancara, nascer pode ser uma desventura desagradável e sofrida, já que estamos falando da possibilidade concreta do nascimento de consciências pós-humanas, como aquelas que estão encarnadas em andróides (vide os dois filmes Blade Runner, dirigidos por Ridley Scott e Dennis Villeneuve) ou em clones.

O risco da governança totalitária – como aquela expressa em Minority Report (história de Philip K. Dick filmada por S. Spielberg) ou V for Vendetta (obra visionária) de Alan Moore – é hoje também retratada com o tema quente do futuro do nascimento. Que tipo de gestão da natalidade será imposta pelos Big Brothers, pelos Partidos Nazis do futuro? Afinal de contas, como estarão nascendo as gentes em 2.100, em 2.500, em 3,960 depois de Cristo?



II) UM IMENSO CENÁRIO DE DEMENTES

Tempos atrás, quando escrevi Nascer é Uma Encrencacomparando o romance Enclausurado (Nutshell) de Ian McEwan com as teorias psicanalíticas de Otto Rank em O Trauma do Nascimento,  eu buscava refletir sobre o acontecimento existencial que é vir-ao-mundo, e suas ressonâncias no sujeito vivente em seu processo de maturação. As reflexões ali compartilhadas vinham impregnadas de um certo sarcasmo melancólico, à la Machado de Assis ou Cioran, e também de uma angústia Shakespeareana, vinculada ao estado afetivo veiculado por frases como: “Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes” etc.

Desde então, cada vez mais percebi que o problema do nascimento precisa ser abordado não apenas na perspectiva de um existencialismo que foque suas atenções no indivíduo, mas essencialmente como um problema político, uma questão coletiva, uma encrenca comum. Nisso acompanho Hannah Arendt, grande pensadora dos temas da natalidade, pois ela diz que é através do “portal” do nascimento que adentramos o mundo comum, e será através do “portal” da morte que deixaremos para trás o mesmo mundo comum. Mundo comum que pode pois ser descrito como o palco para a sucessão das gerações de viventes humanos.

Além disso, Arendt destaca que o nascimento é a irrupção do novo, pois traz ao mundo algo de inédito, o que faz da Condição Humana algo de permanentemente cambiante. Do ser humano, com sua capacidade de agir e de fazer advir o que nunca houve antes, devemos esperar o inesperado, já que não cessam de nascer pessoas como nunca houveram antes. É aí que radica a importância crucial da educação, aquilo que na condição humana dá resposta à constante chegada de novos seres humanos ao mundo comum onde precisam ser integrados.

A explosão demográfica sem precedentes dos últimos séculos, na perspectiva de Aldous Huxley, coloca sérios problemas para a Humanidade e obriga-nos a levar a sério a necessidade urgente de praticar o controle da natalidade. No seu livro de ensaios Brave New World Revisited, publicado em 1958, Huxley destacava que “no primeiro Natal a população do planeta era de cerca de 250 milhões” e que “16 séculos depois o número de humanos havia escalado para um pouco mais de 500 milhões”; “em 1931, quando eu estava escrevendo Admirável Mundo Novo, o número estava perto de 2 bilhões.” A ascensão impressiona:

“At the rate of increase prevailing between the birth of Christ and the death of Queen Elizabeth I it took 16 centuries for the population of the earth to double. At the present rate it will double in less than half a century. And this fantastically rapid doubling of our numbers will be taking place on a planet whose most desirable and productive areas are already densely populated, whose soils are being eroded by the frantic efforts of bad farmers to raise more food, and whose easily available mineral capital is being squandered with the reckless extravagance of a drunken sailor getting rid of his accumulated pay.” (p. 9)

Algumas das melhores obras da arte e do pensamento vem nos colocando a seguinte questão: “qual é o futuro do nascimento?” É um tema que podemos formular em termos demográficos: a Humanidade, que ultrapassou os 7 bilhões de exemplares vivos, está com tendências a continuar expandindo-se no futuro próximo, sendo que estimativas supõe que seremos mais de 9 bilhões algumas décadas no futuro.  Isso desperta nas vertentes ditas Catastrofistas um senso de perigo, de alarme, pois é de se suspeitar que haja um excesso de gente no mundo, em especial pois os recursos naturais que poderiam sustentar tantas vidas estão em crescente estado de desequilíbrio (aquecimento global, oceanos tóxicos, mutações genéticas e transgênicos etc.).

A explosão demográfica se dá no contexto do Antropoceno, das mudanças climáticas, da radical reconfiguração que a Humanidade como força geológica e biofísica impôs à Terra. O que nos torna os contemporâneos daquilo que Isabelle Stengers chama de “a irrupção de Gaia”. Em seu No Tempo das Catástrofes, Stengers diz que o inventor da Teoria Gaia, James Lovelock, chegou a estimar que o número de seres humanos no planeta será reduzido a cerca de 500 milhões devido às transformações sócio-ambientais catastróficas conexas ao desequilíbrio antropogênico dos ecosistemas globais hoje em curso, e que no futuro tende a se agravar.

Neste contexto, surgem obras-de-arte que tematizam o futuro do nascimento com um olhar sombrio e distópico, pintando um retrato de uma Humanidade que vai beirando a extinção. É o caso tanto de Children of Men – Filhos da Esperança, do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, quanto de Snowpiercer – Expresso do Amanhã, do sul-coreano Joon-ho Bong. Em ambos, a Humanidade que um dia pôde se multiplicar de maneira estonteante, está reduzida a uma quantidade assustadoramente pequena. E os últimos exemplares do homo sapiens que separam a espécie da extinção tendo que agir em circunstâncias transtornadas.

O que restou da Humanidade, em Snowpiercer, é tão pouca gente que cabe todo mundo dentro de um trem – e dentro dele, todas as velhas taras e equívocos da velha Humanidade estão reproduzidas em microcosmo, a começar pelo apartheid social imposto pela força bruta, já que o trem é dividido em diferentes “castas”, a dos operários-escravos sendo responsável por uma espécie de Levante Spartaquista do Fim do Mundo contra as classes dominantes repletas de privilégios.



III. O CONTO DA AIA: DISTOPIA DA DITADURA MILITAR TEOCRÁTICA EM ERA DE BIOPOLÍTICA TOTALITÁRIA

Uma das séries mais impactantes e pertinentes dos últimos tempos também lida com a temática do futuro do nascimento: The Handmaid’s Tale, uma produção da Hulu, baseada no romance da escritora canadense Margaret Atwood (Editora Rocco, 2017, 388 pgs), foi a obra televisiva mais premiada do ano de 2017, vencendo 5 Emmys. Além de celebrada como Melhor Série Dramática, levou também os prêmios de Melhor Atriz para Elisabeth Moss e de Melhor Roteiro para Bruce Miller (além disso, as atrizes que fazem as personagens da Ofglen e da Tia Lídia também ganharam prêmios por melhor atriz coadjuvante e melhor atriz convidada).

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A obra de Atwood já havia sido adaptada ao cinema em 1990, ganhando o sugestivo título em português “A Decadência de Uma Espécie”, em um filme dirigido por Volker Schlöndorff (vencedor da Palm d’or Cannes por “O Tambor”) e roteirizado por Harold Pinter (1930 – 2008) (vencedor do Prêmio Nobel de Literatura). A Casa de Vidro facilita a vida de quem quer conhecer este filme e libera o torrent para download gratuito: http://bit.ly/2tkSbI5 (1h 44mn, 1.6 gb, legendas em português, via Fórum Making Off).

Sinopse via Filmow: “A República de Gileade é um estado totalitário que tenta usar a Bíblia para fundamentar seus atos. Kate (Natasha Richardson) foi presa por tentar atravessar a fronteira, seu marido foi morto e ela nunca mais viu a filha. Neste país qualquer mulher que comete um delito – homossexualidade está entre eles -, se é estéril vai para as colônias penais, mas se é fértil se torna uma “serva”. Como só 1% das mulheres são férteis, estas “servas” são obrigadas a terem relações sexuais com quem o governo determina e é bom ficarem grávidas, pois o defeito nunca é do homem. Esta esterilização em massa é consequência do ar ficar cheio de produtos químicos radioativos e as águas das chuvas terem sido contaminadas com moléculas tóxicas. Após ser cruelmente treinada por “Tia” Lydia (Victoria Tennant), ela é designada para ser a serva do comandante (Robert Duvall), o supremo chefe militar. Ao mesmo tempo um movimento de resistência começa a desafiar o regime.” – Veja também Wikipedia – Faça o download do filme na íntegra

Considero totalmente merecida a consagração de The Handmaid’s Tale: sem dúvida, esta é uma das melhores séries dramáticas lançadas recentemente e tem muito a nos ensinar. Oferece um alerta pertinente sobre uma barbárie teocrática e obscurantista que, longe de ser mera fantasia sci-fi, está bem próxima da lamentável realidade de nosso próprio tempo-espaço. A tirania puritana instalada em Gilead pelos usurpadores do poder revela uma prefiguração visionária de um planeta caotizado, uma autêntica Devastolândia. Este é o nome que Paulo Leminski deu à sua tradução do poema “The Waste Land” de T.S. Eliot, poeta que escreveu o verso lapidar, em “The Hollow Men”:

“This is the way the world ends. Not with a bang but a whimper.”

Em uma vibe distópica, The Handmaid’s Tale pinta o retrato de uma Terra futura que foi devastada por catástrofes naturais, mutações genéticas, belicismo sangrento, fanatismo religioso, dentre outros males, o que causou uma infertilidade galopante que ameaça extinguir a espécie não pela via dinossáurica – o meteoro que nos atinge vindo do exterior – mas pela via do que eu chamaria de “o fim do nascimento”. Beco-sem-saída onde a espécie torna-se incapaz de reproduzir-se como efeito de suas próprias manipulações do ambiente natural e de nossos próprios corpos.

Não sei se alguém já se aventurou a especular sobre um fator muito interessante na decifração da obra: Atwood parece ter criado uma distopia futurista indo buscar elementos no passado da colonização dos EUA pelos ingleses puritanos. Nas palavras da própria Atwood, “a República de Gilead é construída sobre a base das raízes puritanas do século XVII que sempre estiveram por baixo da América moderna que pensávamos conhecer.”

Uma chave de decifração para a obra está em compará-la com uma das obras-primas maiores da literatura em língua inglesa: “A Letra Escarlate” de Nathaniel Hawthorne. O próprio escarlate dos uniformes das aias é provavelmente uma referência à letra escarlate usada para estigmatizar a protagonista do romance de Hawthorne. Os horrores do passado – como bruxas sendo queimadas em Salem, tema da notável peça de Arthur Miller, “The Crucible” – servem para que Atwood fabrique a teia-de-aranha tão bem urdida de seu romance-pesadelo, lá onde a pálida luz da Razão já chafurdou totalmente nas violentas dissonâncias entre seitas de fanáticos misóginos.

Atwood imagina uma nova face da Banalidade do Mal, aquilo de que nos fala Hannah Arendt: trata-se do estupro institucionalizado, praticado cotidianamente pelos Comandantes e suas Esposas estéreis, em Cerimônias onde a Bíblia é lida e o nome de Deus invocado, em um rito de perpetração de atos que lançam a dignidade feminina no fundo-do-poço da Escravidão Sexual.

“Jacob Encountering Rachel with her Father’s Herds” by Joseph von Führich

O Comandante, fodendo Offred e invocando os precedentes bíblicos que supostamente o autorizam a isso (a história de Raquel, estéril, que dá permissão a seu marido Jacob para ter filhos com a criada, em Gênesis, 30:1-3), é um símbolo de quão porco pode ser um líder teológico-político na justificação de seus atos de ortodoxismo sectário.

Pendendo dos muros, os cadáveres dos resistentes e dissidentes ficam pendurados pelo pescoço em Gilead, servindo como espantalhos enforcados cuja intenção é assustar os que pudessem se sentir tentados a desobedecer. A Bíblia é a todo momento invocada pelas autoridades para convocar todos à obediência, à subserviência, ao silêncio: “bem-aventurados são os mansos e os calados, pois deles é o reino dos céus…”

Dentre os episódios mais impressionantes, lembro, por exemplo, da visita de Offred ao médico. O médico a examina e confirma que Offred é este recurso raro e precioso: uma mulher fértil. Diz a ela: “A maioria desses velhos não consegue mais ter uma ereção e ejacular. Ou então são estéreis.” Quase “engasgando de espanto”, Offred – narradora em primeira pessoa do livro – pensa: “ele disse uma palavra proibida, estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são estéreis, essa é a lei.” (p. 75)

Esta tendência de lançar toda a culpa sobre a mulher – que tem precedentes mitológicos múltiplos: Eva, na tradição cristão, Pandora, na grega… – também se manifesta na cena em que Janice, durante o Testemunho, conta que “foi currada por uma gangue aos 14 anos e fez um aborto”. Diante dessa confissão, que deveria erguer indignação contra a Cultura do Estupro e suas práticas grotescas, que deveria nos convencer da plena justificabilidade do aborto em casos de agressão sexual, é em Gilead tratada como crime da mulher.

A Tia Lydia, uma espécie de freira fardada que é uma das autoridades que encabeça o status quo teocrático-obscurantista, exige que todas as mulheres apedrejem Janice e digam em uníssono: “a culpa foi dela, a culpa foi dela!” O ensinamento que o regime oferece em seus “institutos educativos” consiste em culpar a vítima para inocentar Deus (é de fato um Eva reloaded…): “Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse? Para lhe ensinar uma lição…” (p. 88)

Muito haveria a dizer sobre o poder de resistência que vai sendo urdido pelas aias e que, na série, tem comoventes momentos de explosão: há a revolta quase niilista, auto-sacrificial, daquelas que simplesmente cansaram-se de sua condição de escravas e que preferem a solução violenta para acabar com tudo, como na cena em que uma das aias assume a direção de um carro e pratica um atropelamento dos soldados. Gilead é um lugar onde também pratica-se o suicídio em alta escala e onde as mulheres não podem ser deixadas no mesmo ambiente com uma gilete.

Mas uma mais comovente das cenas é aquela onde a Desobediência Civil de Offred mostra-se com todo o seu potencial de contágio quando ela, com a coragem que vem de sua empatia, recusa-se a tacar pedras na companheira que o Sistema manda trucidar. Diante das fogueiras de uma Nova Inquisição, ela se recusa a fornecer fogo. Aquelas pedras caindo ao chão, os punhos que deixam de estar retesados e ganham em maciez, as mulheres que dizem não, a irrupção da Desobediência Civil e da coragem de resistir à opressão, tudo isso, no ambiente sufocante de The Handmaid’s Tale, é um sopro de ar puro e renovador.

Offred, líder da desobediência civil, a que se recusa a tacar pedras, contagiando as outras aias com seu gesto, serve como o vento vivificante que traz a boa nova: sob a opressão, jamais adormece o ímpeto de revolução, de contestação, de renovação.

Elisabeth Moss interpreta Offred / June na série “The Handmaid’s Tale”

Quanto mais assistimos e lemos The Handmaid’s Tale, mais evidente se torna que se trata de uma Ditadura Militar, que justifica suas brutalidades com pretextos religiosos, ainda que seja sentida por suas vítimas como um mecanismo diabólico e horrendo. O que Atwood realizou tem certa semelhança com aqueles tratados anti-eclesiásticos típicos do Iluminismo do séc. 18, em combate com o trevoso Antigo Regime, de que o romance A Religiosa de Denis Diderot é um dos mais significativos livros.

Mas também é possível realizar uma analogia interessante entre a Ditadura Militar latino-americana, em especial aquela da Argentina pós-1976, e o plot da teocracia totalitária futurista de The Handmaid’s Tale – conexão estabelecida na reportagem de por Ligia Helena em MdeMulher:

“Offred é identificada como uma mulher fértil – uma raridade nesse futuro em que poluição, radiação e venenos fizeram com que muitos homens e mulheres perdessem a capacidade de ter filhos. Por isso, ela tem algum valor dentro da República de Gilead, o novo país que se formou no lugar dos Estados Unidos. Se torna uma Aia – mulher cuja função é prover filhos para as esposas dos Comandantes do país.

Absurdo? Pois saiba que aqui do nosso lado, na Argentina, em 1976, durante a ditadura militar, cerca de 500 crianças e bebês “desapareceram” – na verdade foram sequestrados e colocados para adoção. Muitas das crianças foram encontradas depois de anos vivendo em famílias de militares. Até hoje, em 2017, as mães de bebês e crianças desaparecidos se reúnem para protestar na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, às quintas-feiras…”

O movimento social argentino Madres de La Plaza de Mayo emergiu como denúncia do terrorismo de Estado e das múltiplas atrocidades perpetradas durante a ditadura militar argentina, capitaneada por figuras como o general Videla, um regime político que causou a desaparição (ou seja, o assassinato seguido do ocultamento dos cadáveres) de cerca de 30.000 cidadãos argentinos. A TV Pública da Argentina já devotou uma série histórica que, em 8 episódios, conta a história dando voz às próprias mulheres que protagonizaram esta significativa e resiliente resistência feminista latino-americana.

“Con profunda emoción y con la fuerza que las caracteriza, las Madres hablan del golpe de Estado, las desapariciones, las denuncias, las primeras marchas, la guerra de Malvinas, la vuelta de la democracia y la reivindicación de la lucha de sus hijos y de los derechos humanos durante la última década.” – TV PÚBLICA ARGENTINA [CLICK PARA ASSISTIR SÉRIES]

Alexis Bledel interpreta Ofglen em “The Handmaid’s Tale”

Ao raiar de sua 2ª temporada, The Handmaid’s Tale nos promete esclarecer melhor porque se deu a ruptura entre os regimes políticos, ou seja, vai narrar como o Estado Teocrático de Gilead alçou-se ao poder após uma espécie de Golpe de Estado justificado como maneira de combater o terrorismo. Relatando em mais detalhes como era a vida da protagonista antes do Golpe e do início de sua servidão como aia, a nova temporada nos revela June Osbourne, loura de cabelos esvoaçantes, depois reduzida à aia trêmula (mas insubmissa e insurgente) cognominada Offred.

Os mecanismos de tortura psíquica e fisiológica utilizados pela Ditadura Teocrática-Militar de Gilead explicitam-se logo na primeira cena da 2ª temporada, em que toda a perversidade da Tia Lydia se manifesta com uma espécie de brilho diabólico. Ao teatralizar a execução em massa das aias desobedientes, ao colocá-las todas na forca, com a corda no pescoço, para no último segundo comutar a pena, Tia Lydia explora o medo extremo para mobilizar a fé num Deus sádico e opressivo. Assistindo aquela cena, pesadíssima e altamente melodramática, em que o espectador é levado às beiras de testemunhar uma chacina de feminicídio, lembrei-me do destino de Dostoiévski, que quando jovem, encarcerado na Sibéria, também foi posto diante do pelotão de fuzilamento.

Após sentir um gostinho do que Dostoiévski passou na Sibéria, Offred/June buscará por todas as maneiras se insurgir contra o sistema, e agora tem em seu ventre a mais preciosa das cargas neste mundo de infertilidade na ascendente. Grávida, Offred não pode mais ser brutalmente judiada pelo sistema. Seus pequenos atos de desobediência ao nomos opressor encarnado em Lydia se mostram ineficazes – quando ela se recusa a comer, é coagida a isso pela ameaça de aprisionamento e outras torturas.

Mas Offred já aprendeu muitas lições: o poder do desobediente individual, na luta contra a opressão organizada, é quase nulo, mas o poder dos desobedientes coligados é muito maior. Uma teia de resistência insurgente e desobediência organizada tece sua teia ao redor de Offred, com a participação ativa de seu amante Nick, até que ela se veja enfim liberta das garras dos Guardiões de Gilead.

Em um momento Van Gogh, ela mete a tesoura na orelha e, em meio ao sangue que jorra em cataratas, extrai de seu corpo o microchip que servia para vigiá-la. Ela rompe com os dispositivos biopolíticos do Estado Teocrático. A roupa escarlate da aia e este odioso microchip queimam nas chamas. The Handmaid’s Tale, afinal, não é apenas o retrato do domínio totalitário em um funcionamento que esmaga os indivíduos e torna a servidão inescapável, mas sim o pungente retrato social da liberdade que batalha para abrir seus espaços nos muros sufocantes da opressão totalitária-puritana.

Tudo isso torna a escritora canadense Margaret Atwood merecedora do apelido The Prophet of Dystopia que lhe concedeu a revista The New Yorker: “Her fiction has imagined societies riddled with misogyny, oppression, and environmental havoc. These visions now feel all too real.” Se as visões sobre o futuro que Atwood escreveu em 1985, em O Conto da Aia, hoje nos parecem assustadoramente possíveis, é pois vivemos em pleno processo de concretização de uma distopia biopolítica onde o domínio totalitário ameaça-nos novamente.

No último capítulo do livro, relata-se que, em 2195, em um simpósio acadêmico sobre Estudos Gileadeano debatia-se com ardor sobre a identidade da narradora do manuscrito hoje conhecido como O Conto da Aia. Conta-se que aquela mulher que recebe do regime o nome de Offred, e que antes havia se chamado June Osbourne,

“fazia parte da primeira leva de mulheres recrutadas para propósitos reprodutivos e fora destinada àqueles que não só requeriam esses serviços bem como podiam reivindicá-los por meio de sua posição na elite.  O regime criou uma reserva imediata dessas mulheres ao declarar adúlteros todos os segundos casamentos e ligações extraconjugais, prendendo as parceiras do sexo feminino, e, com o fundamento de que elas eram moralmente inaptas, confiscando os filhos e filhas que já tivessem, que foram adotados por casais sem filhos dos escalões superiores que eram ávidos por progênie, quaisquer que fossem os meios empregados… Desse modo, homens ocupando altas posições no regime puderam escolher a dedo entre as mulheres que tinham demonstrado ser aptas reprodutivamente ao terem concebido e dado à luz uma ou mais crianças saudáveis, uma característica desejável numa era de índices de natalidade caucasianos em queda livre, um fenômeno observável não só em Gilead, mas também na maioria das sociedades caucasianas do norte na época.” (ATWOOD, p. 357)

O destino de Offred / June nada tem de individual, ela é parte de um “exército” de aias, escravas de um sistema teocrático-totalitário que se mantêm no poder através da ditadura militar. Já os motivos para o declínio da fertilidade caucasiana, é preciso lembrar que Atwood não poupa detalhes em sua descrição de um mundo devastado por epidemias de sífilis e de AIDS, além de repleto de “bebês natimortos e com deformidades genéticas”:

“essa tendência tem sido relacionada aos vários acidentes em usinas nucleares, panes e ocorrências de sabotagem que caracterizaram o período, bem como os vazamentos de estoques de armas químicas e biológicas e de locais de depósito de lixo tóxico, dos quais muitos milhares existiam, tanto legais quanto ilegais – em alguns casos esses materiais eram simplesmente lançados no sistema de esgotos -, e ao uso descontrolado de inseticidas químicos, herbicidas e outras substâncias líquidas pulverizadas.” (ATWOOD, p. 358)

São trechos assim que fazem de Margaret Atwood uma artista do primeiro time dos inventores de distopias, lado a lado com Huxley, Orwell, Zamiátin, Bradbury, K. Dick, dentre outros sagazes artistas sci-fi. Eles nos convidam a pensar que o nascimento, como Arendt já previra, jamais será o mesmo.

Os mais pessimistas colocam até mesmo no horizonte a possibilidade “apocalíptica”, já que é idêntica à extinção da Humanidade, de um fim do nascimento (como argumentamos acima ao comentar os filmes Children of Men Snowpiercer). Mesmo os mais otimistas sabem bem que nascer, no futuro, não será o que é nascer hoje. Isso nos coloca nos ombros, como Hans Jonas bem argumentou, o peso de uma nova responsabilidade, em que nosso dever ético supremo passa a ser a questão: “que mundo estamos legando àqueles que vão nascer?”

O Conto da Aia, explorando esta mesma senda, revela o brilhantismo de Atwood que, no meio dos anos 1980, escreveu algo que talvez terá muito a nos dizer pelo século 21 afora. Os amanhãs cantantes e radiantes dos utopistas não nos parecem mais tão plausíveis. As fantasias de happy end parecem-nos cada vez mais com róseas mentiras. O porvir em direção ao qual nós nos aventuramos provavelmente será repleto de fúria, violência, injustiça, e é neste turbilhão que o nascimento – instância de renovação da condição humana – irá se desenrolar em contextos sem precedentes. Ignorar os alertas e alarmes que fazem soar os artistas distópicos da ficção científica não seria prudente, e muito provavelmente é sábio ouvi-los e ficarmos atentos. Pois o Futuro, é possível, não será doce – e o que pedirá de nós, como diria Guimarães Rosa, é sobretudo coragem.

Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro
Goiânia, Maio de 2018

 

LEIA TAMBÉM EM A CASA DE VIDRO: 

LIVRARIA A CASA DE VIDRO: Promoção: livros do poeta Alexei Bueno, “A Juventude dos Deuses” e “Entusiasmo” por R$9,90 cada

“Há duas definições de poesia que sempre nos pareceram, no limitado de toda definição, das melhores possíveis. Diz a primeira: a poesia é uma indecisão entre um som e um sentido. Afirma a segunda: a poesia é a arte de dizer apenas com palavras o que apenas palavras não podem dizer.” – In: Uma história da poesia brasileira, prefácio de

ALEXEI BUENO

Alexei Bueno (Rio de Janeiro, 26 de abril de 1963) é um poeta, editor e ensaísta brasileiro. Colabora em diversos órgãos de imprensa no Brasil e no exterior, é membro do PEN Clube do Brasil, e foi, de 1999 a 2002, Diretor do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) do Rio de Janeiro, e membro do Conselho Estadual de Tombamento.

Como editor organizou, para a Nova Aguilar, a Obra completa de Augusto dos Anjos (1994), a Obra completa de Mário de Sá-Carneiro (1995), a atualização da Obra completa de Cruz e Sousa (1995), a Obra reunida de Olavo Bilac (1996), a Poesia completa de Jorge de Lima e a Obra completa de Almada Negreiros (1997), a Poesia e prosa completas de Gonçalves Dias (1998), além de uma nova edição da Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes, no mesmo ano, e a Obra completa de Álvares de Azevedo (2000). Publicou, pela Nova Fronteira, uma edição comentada de Os Lusíadas (1993) e Grandes poemas do Romantismo brasileiro (1994).

Traduziu para o português As quimeras, de Gérard de Nerval, editado pela Topbooks, também com edição portuguesa. Traduziu igualmente poemas de Poe, Longfellow, Mallarmé, Tasso e Leopardi, entre outros. Digna de nota sua tradução de O Corvo (The Raven) de Edgar Allan Poe, “grande desafio para os tradutores de poesia, pelo seu extremo virtuosismo formal”,[1] poema que já havia sido traduzido para o nosso idioma por “monstros sagrados” como Machado de Assis e Fernando Pessoa e que integra sua coletânea Cinco séculos de poesia. [SAIBA MAIS NA BIO @ WIKIPÉDIA]


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A Juventude dos Deuses (1996)

Do prefácio de Antônio Carlos Secchin:

Um dos eixos de “A Juventude dos Deuses” é o desejo irrefreado de querer saber, e o alto preço a ser pago na empreitada – verdadeira convocação dos riscos de um saber vital e mortal, áspero roteiro rumo ao conhecimento: conhecer é abismar-se no real. Não se pode entrar a passeio nas páginas dessa Juventude. Elas nos demanda a aventura, o salto, a vertigem para o espaço insuportável do ignorado, armados apenas de um controle – literalmente – remoto de uma realidade que supúnhamos domesticada e constituída.


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Entusiasmo (1997)

“Tocado por Entusiasmo, proclamo: Alexei Bueno sabe que sabe helenizar o Rio de Janeiro. (…) Sem se abrigar no porto seguro dos velhos metros, demonstra uma síntese insuperável de Apolo e Dioniso (ou será Mallarmé e Rimbaud?) porque Bueno sabe se descartar da síndrome de antiquário e buscar os rugidos das altas febres e das altas inquietações. (…) Aqui advirto: Alexei, possuído por deuses diversos, identificando-se com o mendigo conspurcando as esquinas do centro do Rio, não pratica poesia-perfumaria. Paradoxal elegia e ode, agonia e euforia da perda do eu, poesia de substância espermática: Entusiasmo, o produto garante o nome.” (Waly Salomão)


ASSISTA TB:

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A Juventude dos Deuses (1996) [R$9,90 + frete]

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Foto do início do Post: Travessa – Alexei Bueno e Flavia Portela no lançamento da obra “Rio Belle Époque”

MURILO MENDES, “As Metamorfoses” (1938 – 1941) e “Convergência” (1970) – 2 livros de poesia @ Livraria A Casa De Vidro

MURILO MENDES, “As Metamorfoses” (1938 – 1941)
Adquira o seu na Livraria A Casa De Vidro
(Cosac Naify, 2015, novo, 160 pgs)

murilo-meta“Escrito entre 1938 e 1941, durante alguns dos momentos mais dramáticos da Segunda Guerra Mundial, este livro de Murilo Mendes aponta para a necessidade da poesia e da transcendência em um mundo em que elas pareciam ter desaparecido por completo. Foi publicado em 1944, quando a 2ª Guerra Mundial encaminhava-se para o seu final, deixando porém um rastro de destruição nunca antes visto pela humanidade. Figuras da poesia de Murilo Mendes como a mulher, o pássaro, os peixes, o piano e as nuvens, chocam-se com a antipoesia de tanques, granadas e populações emigradas. O poeta dedica seu livro ao gênio da música Wolfgang Amadeus Mozart, pois queria avançar posições simbólicas em território ocupado e dizer que a Áustria não era somente a terra natal de Adolf Hitler – ambos são aludidos no verso em que “as espadas dos tiranos retalham as partituras das sinfonias austríacas”. Através de um lirismo que evoca “auroras que se levantam de muletas”, Murilo Mendes evoca táticas de criação que remetem ao surrealismo e ao mesmo tempo dialoga com momentos altos de nossa lírica moderna (Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade etc). Editado pela Cosac Naify, este volume reúne as obras “As Metamorfoses” (1938) e “O Véu do Tempo” (1941), e contêm ainda um artigo de Lauro Escorel e um posfácio de Murilo Marcondes Moreira.

Compre já na livraria virtual d’A Casa de Vidro na Estante Virtual.

Confira abaixo alguns poemas, na íntegra:

O POETA FUTURO

O poeta futuro já se encontra no meio de vós.
Ele nasceu da terra
Preparada por gerações de sensuais e de místicos:
Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos,
Encerrando no espírito épocas superpostas.
O homem sereno, a síntese de todas as raças, o portador da vida
Sai de tanta luta e negação, e do sangue espremido.
O poeta futuro já vive no meio de vós
E não o pressentis.
Ele manifesta o equilíbrio de múltiplas direções
E não permitirá que algo se perca,
Não acabará de apagar o pavio que ainda fumega,
Transformando o aço da sua espada
Em penas que escreverão poemas consoladores.

O poeta futuro apontará o inferno
Aos geradores de guerra,
Aos que asfixiam órfãos e operários.

* * * * *

FIM

Eu existo para assistir ao fim do mundo.
Não há outro espetáculo que me invoque.
Será uma festa prodigiosa, a única festa.
Ó meus amigos e comunicantes,
Tudo o que acontece desde o princípio é a sua preparação.

Eu preciso presto assistir ao fim do mundo
Para saber o que Deus quer comigo e com todos
E para saciar minha sede de teatro.
Preciso assistir ao julgamento universal,
Ouvir os coros imensos,
As lamentações e as queixas de todos,
Desde Adão até o último homem.

Eu existo para assistir ao fim do mundo,
Eu existo para a visão beatífica.

* * * * *

PATERNIDADE

Desce dos pensamentos de ódio e maldição,
Desce da fronteira do tédio:
Eu te dedicarei uma vida de espanto,
Eu te dedicarei um buquê de estrelas.
Espero-te continuamente no limiar do universo
Com todas as formas acesas,
Com a sinfonia dos elementos e o coro solene.
Por que não te vestes com a roupa das flores,
Por que não prendes ao pescoço o colar da manhã
Para vires até mim?
Ó filha pródiga,
Sei que procuraste o bem no mal.
Sei que procuraste o infinito no finito.
Vem, filha pródiga,
Encontrarás em mim o pai que não tiveste,
Encontrarás em mim, fundidas para sempre,
A loucura e a lucidez.

Saiba mais 

Compre o livro

* * * * *

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“Convergência” (1970) é o último livro de poesia que Murilo Mendes publicou em vida. Ele já era um veterano reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros, mas o volume possui o frescor da novidade. Traz formas e tons completamente novos na trajetória do já então consagrado poeta. Visto como referência central para nossa literatura moderna – assim como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto – Murilo Mendes tomava, desse modo, um caminho paralelo ao da geração dos concretistas, que haviam renovado a cultura brasileira ao longo da década de 60. Ele era personalidade ecumênica, e é justamente a partir de Convergência que esse traço se expõe abertamente no conjunto da sua obra. Por meio dos muitos “murilogramas” que formam um dos núcleos do livro, ele se dirige a um amplo leque de artistas de sua estima, incluindo Bach e Anton Webern, Li-Po e Fernando Pessoa, Maiakóvski e Ezra Pound.  (COSAC NAIFY – 2014 – 254 pgs – COMPRE NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO @ ESTANTE VIRTUAL)

LEIA TRECHOS DE CONVERGÊNCIA

GRAFITO SEGUNDO KAFKA
K:
Todos falam da morte paralém:
Eu falarei da morte paraquém.

Os dois K do meu nome: num só nome.
O F comprimido entre dois A, dois K.
Pobre deste nome sem esfera. Só ângulo.

Nada se explica. Tudo se destrói
E tudo se transforma – para outrem.

Sinto-me a desprazer na casa de um qualquer.
Toda casa é uma praça, e na praça quem sou?

Não pedi para nascer, não escolhi meus pais.
Fui imposto a mim próprio. O enigma permanece.

Murilo Mendes
Roma, 1964
p. 74

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Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

MURILOGRAMA A FERNANDO PESSOA

Regressando sempre do não-chegar,
O gume irônico da palavra
Pronto a estimular-te o sólido ócio
De guarda-livros do Nada.
Não dás o braço a. Dás-te o braço.

Guardas o cansaço de quem palmilhou
Quilômetros de palavras camufladas
Em Ode adversativa: a ti adere
Sob o látego dum céu que não consentes
Donde se debruçam Parcas eruditas:
E ainda a contrapelo atinge o cosmo.

Exerces o fascínio
De quem autocobaia se desmembra
A fim de conhecer o homem no duro
Da matéria escorchada.
Ninguém alisa teu corpo e teu cabelo.

Sebastianista duma outrora gesta, dramaturgo
Retalhas o não-acontecido que te oprime
E determina o eterno contingente
Na área do sem-povo, já que o povo
Ao Fatum reduzido, desnavega.

Por sono sustentado e aspirina,
Sofista manténs a música que não tens
Entre dez dedos dividida. Morse transmitindo o não do sim,
Já isento em vida do serviço de viver. Anúmero.

Quanto a mim adverso ao Nada, teu ímça,
Eis-me andando nas ruas do gerúndio.
Ensaio o movimento, voo portátil.
Devolvo-te grato o que não me deste,
Admiro-te por não dever te admirar,
Na linha da atração reversível dos contrários
Contrapassantes.”

Murilo Mendes
Roma, 1964
Convergência – p. 99
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A VERTIGEM DA FINITUDE ou A CONSCIÊNCIA DA MORTALIDADE- por Drauzio Varella e Fernando Pessoa

:: A Vertigem ::
por Drauzio Varella

A angústia causada pela impossibilidade de comprovar por meios racionais se existe vida depois da morte acompanha a humanidade desde seus primórdios. Imaginar que nos transformaremos em pó e que capacidades cognitivas adquiridas com tanto sacrifício se perderão irreversivelmente é a mais dolorosa das especulações existenciais.

Tamanho interesse no destino posterior à morte, entre tanto, contrasta com a falta de curiosidade em saber de onde viemos. O que éramos antes de o espermatozóide encontrar o óvulo no instante de nossa concepção?

Aceitamos com naturalidade o fato de inexistir antes desse evento inicial, em contradição com a dificuldade em admitir a volta à mesma condição no final do caminho. Como não existíamos (portanto, não fomos consultados para vir ao mundo), consideramos a vida uma dádiva da natureza, e nosso corpo, uma entidade construída à imagem e semelhança de Deus, exclusivamente para nos trazer felicidade, atender aos nossos caprichos e nos proporcionar prazer.

Essa visão egocentrada de quem “não pediu para nascer” faz de nós seres exigentes, revoltados, queixosos, permanentemente insatisfeitos com os limites impostos pelo corpo e com as imperfeições inerentes à condição humana. Assim, acordamos todas as manhãs com tal expectativa de plenitude e de funcionamento harmonioso do organismo que o desconforto físico mais insignificante, a mais banal das contrariedades, são suficientes para causar amargura, crises de irritação, explosões de agressividade e depressão psicológica, não importa que privilégios o destino tenha nos concedido até a véspera ou venha a nos conceder naquele dia.

 Ao contrário da dificuldade em nos livrarmos desses estados emocionais negativos que nos consomem parte substancial da existência, as sensações de felicidade geralmente são fugazes, varridas de nosso espírito à primeira lembrança desagradável. Seria lógico esperar, então, que o aparecimento de uma doença grave, eventualmente letal, desestruturasse a personalidade, levasse ao desespero, destruísse a esperança, inviabilizasse qualquer alegria futura. Mas não é isso que costuma acontecer: vencida a revolta do primeiro choque e as aflições da fase inicial, associadas ao medo do desconhecido, paradoxalmente a maioria dos doentes com câncer ou AIDS que acompanhei conta haver conseguido reagir e descoberto prazeres insuspeitados na rotina diária, laços afetivos que de outra forma não seriam identificados ou renovados, serenidade para enfrentar os contratempos, sabedoria para aceitar o que não pode ser mudado.

 Não me refiro exclusivamente aos que foram curados, mas também aos que tomaram consciência da incurabilidade de suas doenças. Naqueles, é mais fácil aceitar que o fato de ter sobrevivido à ameaça de perder o bem mais precioso e de ser forçado a lutar para preservá-lo confira à vida um valor antes subestimado. Quanto aos que sentem a aproximação inevitável do fim, no entanto, soa estranho ouvi-los confessar que encontraram paz e se tornaram pessoas mais relaxadas, harmoniosas, admiradoras da natureza, amistosas, agradecidas pelos pequenos prazeres, e até mais felizes.

 – Troquei as noites frenéticas, de uma boate para outra até o dia clarear, por minhas plantas, pela algazarra dos passarinhos logo cedo, por meus livros, pelo café-da-manhã com minha mãe e o jornal – disse um de meus primeiros pacientes a descobrir que estava com AIDS.

 Um colega de profissão, mais velho, tratado por mim de um câncer de próstata incurável, certa vez disse:

 – Antes de ficar doente, eu nunca estava no lugar em que me encontrava: vivia alternadamente no passado e no futuro. Quantas coisas boas desperdicei por permitir que meus pensamentos fossem invadidos por memórias tristes ou contaminados pela ansiedade de planejar o que deveria ser feito em seguida. Era tão ansioso que chegava a puxar a descarga antes de terminar de urinar. A doença me ensinou a viver o presente.

 Um rapaz de vinte e cinco anos que tratei de uma forma grave de linfoma de Hodgkin, tipo de câncer que se instala no sistema linfático, uma vez resumiu o amadurecimento prematuro que considerava ter adquirido:

 – Sempre fui explosivo: brigava no trânsito, xingava os outros, ficava irritado por qualquer bobagem, já acordava chateado sem saber por quê. Quando entendi que podia morrer, pensei: não tem cabimento desperdiçar o resto da vida. Virei Albert Einstein, o defensor da relatividade: quando alguma coisa me desagrada, procuro avaliar que importância ela tem no universo. Descobri que é possível ser feliz até quando estou triste.

 No ambulatório do Hospital do Câncer, quando perguntei a um maranhense iletrado, pai de quinze filhos e rosto marcado pelo sol, se a doença havia lhe trazido alguma coisa de bom, ele respondeu:

 – O cavalo fica mais esperto quando sente vertigem na beira do abismo.

 Custei a aceitar a constatação de que muitos de meus pacientes encontravam novos significados para a existência ao senti-la esvair-se, a ponto de adquirirem mais sabedoria e viverem mais felizes que antes, mas essa descoberta transformou minha vida pessoal: será que com esforço não consigo aprender a pensar e a agir como eles enquanto tenho saúde?

[DRAUZIO VARELLA. Por Um Fio]

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“Quando vier a Primavera”
Alberto Caeiro (F. Pessoa)

Pessoa

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

 

POESIA EM OVERDOSE: Ná Ozzetti e Zé Miguel Wisnik lançam álbum “Ná Zé” [2015] Leia o release de Luiz Tatit:

 Na Ozetti e Ze Miguel 2

NÁ E ZÉ por Luiz Tatit

Faz exatamente 30 anos que Ná cantou pela primeira vez composições do Zé. Ele se casava em dia de Iemanjá e a cerimônia começava ao som de “Louvar”, música que encerra este álbum. Pouco depois, Zé compõe a comovente “Tudo Vezes Dois” para o show Princesa Encantada que reuniu Ná Ozzetti e Suzana Salles, duas vozes identificadas com os movimentos musicais paulistanos da década de 1980. Não demorou muito, Ná lança seu disco-solo inaugural com nada menos que 4 canções de Zé Miguel Wisnik, entre as quais as belíssimas “A Olhos Nus” e “Orfeu” que, felizmente, renascem neste álbum.

Há uma particularidade no repertório que ouvimos aqui. Com exceção das últimas canções citadas e de duas mais recentes, as demais são quase segredos de baú. São pérolas do final do século passado que aos poucos respondem a uma espécie de desafio lírico e emocional: como converter poesia em letra, fazendo vibrar aqui e agora, e para todos, a paixão que permanecia em silêncio na mente e no coração do poeta e de seus leitores? Wisnik a fisga com seu poder melódico. Acha sempre a curva ideal para dizer palavras e frases acostumadas com a introspecção. Faz virar letras – e, portanto, sensíveis canções – os poemas de Fernando Pessoa (“Sim, Sei Bem”), Oswald de Andrade (“Noturno no Mangue”), Cacaso (“Louvar”) e Paulo Leminski (“Gardênias e Hortênsias”). E a experiência prossegue nas criações ombro a ombro com poetas como o próprio Leminski (“Subir Mais” e “Sinais de Haikais”) e outros, em plena atividade, como Alice Ruiz (“Sinal de Batom”), Marina Wisnik (“Miragem”) e Paulo Neves (“Alegre Cigarra”, “Som e Fúria” e “A Noite”). Aliás, é deste último o pensamento que Wisnik gosta de evocar: “a poesia é um chamado, a música uma chama”. Vindo de Paulo Neves, creio que música é o termo genérico para dizer canção.

 Ao lado do caráter afirmativo das composições aqui reunidas, da opção pelo “sim” num mundo cheio de incertezas, há um fio melódico condutor de doce tristeza de faixa para faixa que precisa de um canto sóbrio que se sirva dessa dor sem cair em pura melancolia. É o que faz Ná Ozzetti, nossa cantora maior, com sua assinatura vocal inconfundível e com o cuidado de sempre. Dá para entender, então, por que tantas canções significativas não encontraram espaço em discos anteriores. Simples, Zé esperava Ná para a gravação definitiva de suas, agora, novas pérolas.

Na Ze

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“CARNAVAL”, UM POEMA DE ÁLVARO DE CAMPOS // HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA

F Pessoa

“A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira…

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa…

Cada momento é um carnaval imenso,
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisso maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais… Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça…

Automóveis, veículos,
As ruas cheias,
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade…

Uma pândega esta existência toda…
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda…

E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo…
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo…”

ÁLVARO DE CAMPOS

Cia das Letras. 2002.

Pg. 69.

 

Fernando Pessoa

 

Alberto Caeiro: “Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto…”

“Quando vier a Primavera”
Alberto Caeiro (F. Pessoa)

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

:: Quando vier a Primavera… ::

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

(Alberto Caeiro, 1915)

:: Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo… ::

Goya

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda

Que já bebeu na vida,

Para quem tudo é novo

E
imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

RICARDO REIS
19/06/1914