Da angústia solitária à revolta solidária: sobre a filosofia de Albert Camus || A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta.”
ALBERT CAMUS em “Núpcias” [1]

CAPÍTULO 1: A Indesejada das Gentes

Confinados na implacável finitude da vida, nós, os mortais, temos acesso a poucas certezas inabaláveis, dignas do estatuto de verdades absolutas. A mais irrecusável das certezas, para cada um e todos, é a de que todos nós um dia vamos morrer – como diz o provérbio: morte certa, hora incerta.

Por ser aquilo que nos é comum, não importa em que latitude e longitude vivamos, nossa finitude nos une. No entanto, sermos finitos não é simplesmente algo aceito e acolhido como um fato bruto, mas sim algo que é “vestido” pela consciência humana com as mais variadas roupas, embalado nas vestes de crenças multiformes. O único bicho que sabe que vai morrer é também o animal simbólico, faminto por sentido. A vivência do perceber- se mortal é de extrema diversidade conforme as crenças (ou ausência destas) que a pessoa nutra (ou que tenha destroçado em si).

Além disso, é variável o grau de realização da morte [2], ou seja, o sujeito considera como real tal condição num gradiente que vai da negação de quem finge que a morte nunca virá, à obsessão mórbida de quem pensa-se como “cadáver adiado” (Fernando Pessoa) [3] a todo momento de todos os dias. As dinâmicas psíquicas do recalque / repressão desta consciência de nossa radical limitação espaço-temporal, socialmente consolidadas em ideologias destinadas ao negacionismo da finitude, são tema do clássico A Negação da Morte (The Denial of Death) de Ernest Becker [4].  

O fato de sermos mortais, ao mesmo tempo que nos une na mesma condição que nos é comum, também nos separa radicalmente: assim como “ninguém vive por mim” (cantou lindamente Sérgio Sampaio) [5], também podemos dizer a qualquer um: ninguém vai morrer no teu lugar, a tua própria morte é algo que você vai ter que encarar, cedo ou tarde, querendo ou não. Cada um encara o processo de morrer num estado onde a solidão se manifesta de modo mais extremo do que em outras vivências humanas. Pode ser que o poeta chileno Nicanor Parra tenha razão ao propor que “a morte é um hábito coletivo” [6], mas cada sujeito a vivencia de maneira singular. E arrasta para o túmulo e seu eterno silêncio o segredo incomunicável do que se passou por dentro naqueles últimos momentos vitais antes do fatal ponto-final.

Pedra irremovível no caminho do desejo de imortalidade que muitas vezes os humanos nutrem, a morte existe sobretudo como horizonte. Está presente por sua iminência. O que nos condena à angústia como parte integrante da condição humana. Costuma-se dizer que somos os únicos animais no planeta Terra que sabem que vão morrer, mas talvez fosse mais preciso dizer que o sentimos mais que sabemos. A angústia é este afeto em nós que atesta a nossa finitude.

Na história da filosofia, a reflexão sobre o futuro estado de esqueleto de cada um de nós já foi alvo de muitas reflexões: a sabedoria Epicurista pretendia curar o medo da morte e dos deuses, causadores de intranquilidades da alma que impedem a sábia ataraxia, com uma argumentação que a Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade) sintetiza assim: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações.” [7] Quase dois milênios depois, Michel de Montaigne, em um de seus mais célebres ensaios, exploraria a noção de que “filosofar é aprender a morrer” [8].

É preciso aprender que, querendo ou não, a morte é nosso quinhão e que dar sentido a uma vida que acaba é nossa perpétua tarefa. A sensação de absurdo que às vezes se espraia pela existência tem a ver com o fato de que a foice às vezes pode arrasar com um vivente em momento inoportuno, em hora precoce, quando ele ou ela ainda estava cheio de sonhos, planos e forças.

Por isso, raros são aqueles que enfrentam a vida sem medo algum: a possibilidade da morte, sobretudo injusta, súbita, dolorida, tira-nos o sossego. Talvez nunca tenha nascido e completado sua trajetória finita entre os vivos nenhum animal humano que possa dizer, do berço ao túmulo: “atravessei o tempo sem nunca temer a morte”. Para o poeta Manuel Bandeira, a morte é “a indesejada das gentes”, a “iniludível” (aquela que não se pode burlar ou enganar) [9]:

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Pintura de Arnold Boecklin


CAPÍTULO 2: A CLARIVIDÊNCIA, IMPRESCINDÍVEL VIRTUDE CAMUSIANA 

Para Albert Camus (1913 – 1960), não há escapatória: “a angústia é o ambiente perpétuo do homem lúcido” – e a questão das questões, como o príncipe Hamlet sabia, consiste em escolher entre o sim à vida (ainda que angustiada) ou o não à ela (o caminho do suicídio) [10]. Quem vê claro, nesta vida, não escapa de sentir o fardo de afetos angustiantes. O que importa é que a angústia não nos paralise, que possa inclusive servir à nossa ação e ao nosso Combat – nome do jornal com o qual Camus colaborou, crucial na cobertura de eventos históricos como a Resistência à ocupação nazista da França, a Guerra de Independência da Argélia e o Maio de 1968.

Neste livro (Folio, 2013, 784 pgs), estão reunidos 165 artigos publicados por Camus no jornal Combat, onde ele atuou como editor chefe entre agosto de 1944 e junho de 1947. Saiba mais.

Publicado em 1947 pela Editora Gallimard, o romance “A Peste” expressa a atitude existencialista Camusiana diante dos flagelos que parecem querer soterrar a humanidade sob os escombros de um sentido arruinado. Diante da irrupção do absurdo coletivo que é a peste, esta máquina mortífera que ceifa vidas de animais humanos como se estes fossem moscas, o que propõe o artista-filósofo franco-argelino?

Para começo de conversa, o absurdo, para Camus, é um ponto de partida e não de chegada. Não se deve ficar estagnado diante do absurdo, como se ele fosse uma barreira intraponível que deveria nos fazer desistir de qualquer ação, abandonando-nos à passividade. A percepção do absurdo deve conduzir à revolta solidária dos humanos em luta contra os males de seu destino. Se, de fato, a revolta e a solidariedade são valores basilares do ethos camusiano, é preciso destacar ainda o posição de destaque que a virtude da clarividência ocupa no universo temático de Camus.

Isto que a língua francesa chama de clairvoyance tem um sentido próximo ao de lucidez. A lúcida clarividência está fortemente presente em A Peste, como se Camus quisesse ensinar que é preciso ver claro em meio ao horror se não queremos aumentá-lo ou colaborar com ele. Perder a lucidez, deixar ir pelo ralo a clarividência, em nada ajuda a frear a expansão das epidemias, nem auxilia a vencer as infestações do fascismo. O médico Bernard Rieux, narrador do romance, trabalha arduamente em meio à proliferação da doença, ainda que sinta seu cotidiano de combatente anti-peste como um trabalho de Sísifo, repleto de “intermináveis derrotas”.

É preciso compreender que Bernard Rieux é uma espécie de Sísifo em tempos de flagelo coletivo, numa época em que há a irrupção do absurdo em escala massiva. O rochedo que ele tenta arrastar montanha acima é a saúde de seus pacientes. Muitos de seus esforços médicos são em vão: a peste vence frequentemente e o paciente morre. Mas a batalha perdida não finda a guerra. Novos infectados não param de chegar aos hospitais, como novos rochedos a tentar empurrar montanha acima rumo à saúde sempre precária.

Rieux jamais desiste da luta, por mais que seja muitas vezes derrotado em seu intento de curar os adoentados ou de diminuir o sofrimento dos agonizantes. Rieux, apesar do tom afetivo que o domina ser o de um pessimismo de homem ateu, não cai nunca no derrotismo ou na resignação imóvel. Rieux é um trabalhador: não fica de braços cruzados diante dos males concretos que afligem os corpos de seus concidadãos. Não espera ou pede nenhum auxílio divino ou sobrenatural. Por isso, apesar de tantas derrotas diante da peste mortífera, o Doutor Rieux não se torna nunca um derrotado no sentido que dá a esta palavra o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para quem “os únicos derrotados são os que baixam a cabeça, que se resignam com a derrota.  A vida é uma luta permanente, com avanços e retrocessos”. [11]

Imaginem se Mujica, em algum momento de angústia extrema, durante o período de 12 anos em que esteve confinado nos cárceres da Ditadura Militar uruguaia, tivesse desistido da luta. Se tivesse gasto até a última fibra de sua coragem e resiliência de tupamaro, se tivesse utilizado a saída do suicídio para escapar dos horrores de estar entre os vivos em tais condições horríficas, aí sim teria sido um derrotado – e não o futuro presidente do Uruguai e um ícone das esquerdas latinoamericanas. Por isso, no poster do filme Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner, que retrata as vivências de Mujica e outros dois prisioneiros, destaca-se a frase: “los únicos derrotados son los que bajan los brazos”. [12]

História semelhante se poderia contar sobre Nelson Mandela, Oscar Wilde, Antonio Gramsci ou Luiz Inácio Lula da Silva: na prisão, eles não abaixaram a cabeça, não se renderam à opressão deixando a resiliência cair estilhaçada ao solo, seguiram determinados em sua luta, clarividentes e revoltados em face de absurdos insultantes. Atravessando a noite que parece interminável. Nunca aderindo à preguiça dos passivos ou à inação dos resignados.


CAPÍTULO 3: A LITERATURA DAS ENCRUZILHADAS

Vários debates filosóficos atravessam o romance de Camus: A Peste é um romance repleto de difíceis encruzilhadas em que os personagens tentam escolher entra as alternativas que o destino lhes impõe. O jornalista Rambert, por exemplo, está separado da mulher que ama, preso na Oran empesteada, de onde as autoridades não permitem que ninguém entre ou saia. Tomando medidas para pagar por uma fuga, Rambert entra em negociações com contrabandistas, mas os acordos não avançam muito bem. Retido na cidade em quarentena, Rambert decide-se a trabalhar junto com o Dr. Rieux enquanto aguarda ocasião mais oportuna de escapar dali para se re-encontrar com sua amada.

Depois de muito refletir, quando enfim se apresenta a ocasião da fuga, Rambert prefere ficar ao invés de partir. Explica que “se partisse sentiria vergonha”. Ao que Rieux responde com firmeza que isto é uma “estupidez” e que “não há vergonha em preferir a felicidade”. Ou seja, em meio à desgraça toda, os personagens debatem sobre o hedonismo enquanto doutrina ética, a noção de que uma prazeirosa felicidade é o fim último (télos) da existência humana.

Rambert, nesta sua encruzilhada ética, sopesa as alternativas: fugir em direção à mulher de quem sente saudades é sua tentação mais forte, sua vontade quase irreprimível, pois é este o caminho que lhe aponta sua ânsia de felicidade, sua fome relacional, seu ímpeto de gozo afetivo, sexual, de estima carnal. Porém, o outro caminho que se desenha na encruzilhada é o de ficar na cidade para trabalhar, junto com os outros, em prol de uma melhoria da condição de todos. Rambert prefere ficar, argumentando, contra Rieux e seu hedonismo, que pode sim ser motivo de vergonha “querer ser feliz sozinho” (être heureux tout seul) [13].

Em contexto de flagelo coletivo, Rambert acaba por concluir que não tem direito à fuga na direção de sua felicidade individual. Terceira voz neste diálogo, Tarrou percebe bem que a natureza da escolha na qual Rambert se debate envolve um desejo de empatia para com os que sofrem durante a peste. Porém, esta empatia pode mergulhar o sujeito numa tal maré de compaixão que ameaça destruir completamente sua possibilidade de vivenciar afetos alegres e vivificantes. Para Tarrou, se Rambert “quisesse partilhar da infelicidade dos homens, não haveria jamais tempo para a felicidade. Era preciso escolher.”

Rambert, apesar do sofrimento da separação, que às vezes o conduz a gritar a plenos pulmões (op cit, item 13, p. 185) em montes desertos da cidade, acaba por decidir-se que não quer suportar a vergonha de fugir tentando ser feliz alhures, argumentando que “essa história nos concerne a todos”. Sua atitude tem pontos de contato com Sócrates tal como descrito no diálogo platônico Crítono filósofo se recusa a fugir da prisão de Atenas onde está condenado a morrer pela cicuta, argumentando que ser vítima de uma injusta é preferível a ser injusto violando as leis da pólis.

O Dr. Rieux, de maneira similar ao jornalista Rambert, está separado de sua esposa, com quem se comunica por cartas e telegramas, mas nunca lhe ocorre a tentação de escapar: ele chega a trabalhar 20 horas por dias nos meses de auge da peste, como heróico médico que vê sua fadiga e exaustão crescerem até os extremos, sem nunca desistir de seus deveres ou “amarelar” diante do fardo de sua responsabilidade.


CAPÍTULO 4: CAMUS E NIETZSCHE: UM DIÁLOGO FECUNDO

Ganhador do Nobel de Literatura de 1957, Camus devotou muitos esforços a um diálogo fecundo e crítico com a obra de Nietzsche (1844-1900): “o filósofo alemão agiu como um álcool forte sobre Camus”, defende Michel Onfray [14].

No Brasil, um livro brilhante de Marcelo Alves, pesquisador graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explora com maestria o tema: Camus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche (um livro que nasce de sua tese de mestrado disponível na íntegra) [15].

Unidos na “fidelidade à terra”, como dizia Zaratustra, Nietzsche e Camus estão sintonizados no interesse que compartilham pelo amor fati, o amor ao destino. O ethos do espírito livre consiste em amar a vida  exatamente como ela é, sem exclusão de tudo que existe nela de contraditório, problemático, horrendo e assustador. Camus fala assim das “núpcias” do homem com a natureza:

“Aprendo que não existe felicidade sobre-humana, nem eternidade fora da curva dos dias. Esses bens irrisórios e essenciais, essas verdades relativas são as únicas que me comovem. (…) Não encontro sentido na felicidade dos anjos. Só sei que este céu durará mais do que eu. E o que chamaria de eternidade, senão o que continuará após minha morte?

A imortalidade da alma, é verdade, preocupa a muitos bons espíritos. Mas isso porque eles recusam, antes de lhe esgotar a seiva, a única verdade que lhes é oferecida: o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas ou, ao menos, eles conhecem a única solução que ele propõe: é uma verdade que deve apodrecer e que por isso se reveste de uma amargura e de uma nobreza que eles não ousam encarar de frente.” (CAMUS) [16]

Alves comenta:

“O corpo é a medida do homem lúcido diante da sua condição. Amar a natureza é reconhecê-la, antes de tudo, enquanto limite e possibilidade da vida humana. Amor trágico esse, na medida em que se ama o que por fim nos aniquila. Muitos homens, no entanto, preferem recusar essa sabedoria trágica e transformar o seu medo da morte na esperança de outra vida… Mas custa caro desprezar a verdade do corpo, ser infiel à terra, deixar-se iludir por uma esperança, isto custa o preço da própria vida, ‘porque se há um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por uma outra vida e se esquivar da implacável grandeza desta’, como escreve Camus. (…) Fidelidade à terra é justamente o que Zaratustra não cessa de pedir encarecidamente a seus discípulos, alertando-os ao mesmo tempo sobre a ‘enfermidade’ característica dos ‘desprezadores do corpo’, dos ‘transmundanos’ e dos ‘pregadores da morte’.” (M. ALVES) [17]

Esta valorização do corpo, da vida encarnada, das verdades relativas, da sensorialidade palpável, nada tem a ver com uma idealização do corpo que apagasse tudo que há nele de problemático e trágico: Camus chama o corpo de “uma verdade que apodrece” e não cessa de refletir sobre a revolta humana diante da morte, ou seja, da finitude deste corpo matável e adoecível. Camus quer manter-se fiel à Terra e à virtude da lucidez, o que exige vivenciar nossa condição corpórea em tudo que ela comporta de delícia e de tragédia: é com o corpo que se pode entrar no êxtase das núpcias dionisíacas com a natureza, mas é com o corpo que se pode também sofrer os horrores da angústia e as indizíveis dores da agonia.

“Para Camus ser fiel à terra inclui ser fiel aos homens de carne e osso que conosco compartilham, aqui e agora, a experiência de viver. (…) A solidariedade assim praticada é uma chance ao possível, uma chance àquilo que só através dos homens em luta comum contra sua condição pode vir à existência: a liberdade, a justiça, a felicidade e o amor.” (ALVES, op cit., p. 90-91) [18]

Ao analisar “A Peste”, Marcelo Alves destaca que Camus está ali “trabalhando literariamente as críticas formuladas nas Cartas sobre o nazismo” (em especial a Carta a Um Amigo Alemão), de modo que “é preciso tomar o mal como o símbolo maior do romance: o mal que o nazismo produziu e o mal a que o homem está condenado a sofrer por sua própria condição. Trata-se do mal no sentido trágico, do mal que se expressa através do sofrimento físico e moral daquele que vive sob o peso inexorável da mortalidade. É nesse sentido que Camus pode afirmar que a peste é a mais concreta das forças.” (op cit, p. 97) [19]

Escrevendo sobre o tema, o autor português Hélder Ribeiro aponta outras similaridades e sintonias entre Camus e Nietzsche:

“A origem da ética de Albert Camus está na monstruosidade que consiste em sacrificar os corpos às ideias. Encontramos talvez aqui o segredo do laço que une as concepções de Camus e de Nietzsche. Se Nietzsche empreende uma genealogia da moral cristã, para compreender como esta veio a produzir a negação da própria vida, e isto no contexto da sociedade burguesa do século XIX, Camus empreende uma genealogia da moral política do século XX, para compreender como esta veio a produzir a negação hitlerista e estalinista da vida.

Como na Genealogia da Moral, Camus pensa que a cultura e a moral do Ocidente chegaram a um envenenamento inexorável da vida e trata-se de tirar a máscara. (…) Que deve Camus a Nietzsche? Mais do que afirmações, o clima do seu pensamento, e acima de tudo a recusa global da ficção platônico-cristã dos dois mundos. Não há Além que repare a decepção multiforme de cá-de-baixo e que nos conduza ao Uno. Quando Camus suspira pela unidade, não a refere à ideia platônica que supõe o ultrapassar das aparências. As aparências são a única verdade. O Uno deve descobrir-se na própria dispersão do sensível e a tentação mística só pode ser naturalista.

“Todo o meu reino é deste mundo”, escreve Camus. É a fórmula mais flagrante desta convicção. O corolário é a exaltação do corpo e das verdades que o corpo pode tocar. A verdade do corpo ultrapassa a verdade do espírito. Ora, o mais alto poder do corpo é a arte, que opera uma transmutação do sensível sem o recusar.

O niilismo de Nietzsche, procedendo de uma experiência extrema do desespero, quebrando todos os ídolos do progresso com o mesmo cuidado com que recusava a sombra de Deus, chega, no entanto, a um consentimento radioso, dionisíaco, ao Todo do ser real do mundo, na sua totalidade e em cada realidade particular. O consentimento que dorme na revolta de Camus e lhe dá um sentido, esse “amor fati” que no sim à vida inclui a própria morte, de modo que chega a chamá-la de “morte feliz”, provém em parte de Nietzsche…”. (RIBEIRO, H.) [20]


CAPÍTULO 5: RELEVÂNCIA DE CAMUS NA ATUALIDADE PANDÊMICA

Diante da pandemia de covid-2019 que assola o mundo em 2020, “A Peste” teve uma notável re-ascensão e tornou-se um dos livros mais procurados na Europa, como relata a reportagem da BBC Brasil [21]. Seu status de best-seller na conjuntura deste evento traumático do séc. 21 é prova inconteste não só da atualidade da literatura Camusiana, mas também do brilhantismo com que seu autor sobre tratar dos flagelos da doença somados aos horrores da política. Pois se sabe que a obra nasce sob a influência da Ocupação Nazifascista de Paris, onde Camus escrevia no jornal libertário Combat e participava da Resistência contra a extrema-direita alemã.

O paralelo com o Brasil de 2020 é extremamente possível: a “peste” da covid-19 já é uma lástima terrível por si só, mas a ela se soma o fato de estarmos sob o desgoverno neofascista da seita obscurantista do Bolsonarismo. O chefe da seita, durante toda a pandemia, foi criminosamente irresponsável, acarretando milhares de infecções e mortes ao negar a gravidade do problema, boicotar medidas de isolamento e dar preferência a CNPJs e não a CPFs – ou seja, preferindo agradar empresários, banqueiros e rentistas, aderindo ao “matar ou deixar morrer” no que diz respeito aos trabalhadores empobrecidos pela crise. Além disso, o ocupante do Palácio da Planalto notabilizou-se globalmente por ser o líder do negacionismo do coronavírus, desdenhando de uma doença que em Maio de 2020 já havia ceifado mais de 300.000 vidas, mas que segundo Seu Jair não passa de um “resfriadinho” que não deve preocupar ninguém que tenha “histórico de atleta” e que não deve fazer parar as rodas da economia.

No romance de Camus, o fenômeno do negacionismo da peste, típico do Bolsonarismo na atualidade, também dá as caras. Alves escreve: “A primeira dificuldade dos homens diante da peste é a de reconhecer a sua existência. Por todos os meios procuram negá-la. Muitas vezes simplesmente dando-lhes as costas, outras encarando-a como uma abstração. Primeiro, a administração pública hesita em tomar as providências para não alarmar a população…. Depois, mesmo diante dos sintomas, muitos recusam-se a admiti-la: ‘Mas certamente isso não é contagioso.’, diz um personagem. Por fim, mesmo após o reconhecimento oficial do flagelo e do isolamento importo à cidade, os habitantes ainda resistem a aceitar o fato…” (ALVES, M. p. 98) [22]

A seita necrofílica dos Bolsonaristas tornou-se mundialmente famigerada justamente por este tipo de funesta e macabra irresponsabilidade das ações negacionistas.  Ao seguirem como ovelhas obedientes os ditames do Grande Líder, muitos cidadãos Bolsominions acabaram sabotando medidas de contenção, aglomerando-se para manifestações golpistas, fazendo coro à pregação de Jair de que algumas milhares de mortes eram preferíveis à diminuição dos lucros empresariais. Tudo isso tornou Bolsonaro uma figura internacionalmente repudiada como um dos piores presidentes do mundo em seu trato com a peste, tendo sido denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade em tribunais penais internacionais.

Neste contexto, a leitura de Camus torna-se ainda mais relevante ao grifar sempre a importância crucial de transcendermos a angústia solitária e isolada, rumo à solidariedade na revolta:

“A vitória sobre a peste só acontece quando o homem reconhece que se trata de uma tragédia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz da sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e lucidamente dá início à sua tarefa de Sísifo: ‘colocar tanta ordem quanto possa em uma condição que não a possui’. É verdade que nesse caso a vitória é sempre provisória, jamais definitiva, mas é a única vitória possível e desejável para aqueles que procuram nada negar nem excluir: nem a condição humana, nem a dor do homem. O médico Rieux, personagem e narrador do romance, encarnará o homem camusiano que vive entre o sim e o não: aquele que não se esquiva da condição humana, mas não se resigna às suas misérias; aquele que aceita o peso da existência, aceita rolar a sua pedra, que é o espelho opaco da sua virtude, mas se recusa a aumentar o mal, tanto através da ação quanto da omissão.” (ALVES, M., op cit, p. 101) [23]

O Dr. Bernard Rieux, encarnação da lucidez e da solidariedade, age em A Peste com um ethos de Zaratustriana fidelidade à terra e a seus viventes. Mesmo que na época em que o romance se passa a cidade argelina de Orã esteja empestada, mergulhada nos flagelos da doença e do sofrimento, Rieux permanece aferrado a este princípio: “O essencial era impedir o maior número possível de mortes e de separações definitivas. E o único meio para isto era combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente.” (CAMUS, A Peste, I, 1327) [24]

Na verdade, Bernard Rieux não é um Übbermensch super-heróico, mas um médico de carne-e-osso, sujeito à fadiga e ao desespero, mas que decide suportar o peso de sua lucidez e agir incansavelmente com base na sua ética da solidariedade, da empatia e da revolta contra a peste. Esta peste é tanto doença em si quanto, de maneira metafórica, a política fascista, aquilo que chamaríamos hoje, a partir de conceito proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, de necropolítica [25].


CAPÍTULO 6: A AGONIA DE UMA CRIANÇA DIANTE DE UM MÉDICO E UM PADRE

No enredo, o médico Rieux também aparece como o antípoda do padre Paneloux. Onde o cristianismo prega oração e resignação, o médico ateu defende a ação coletiva solidária e obstinada contra o mal. Alves comenta: “Rieux combate ídolos, contesta abstrações, não a marteladas, mas através de sua obstinação em cuidar dos corpos… O médico é aquele que sabe dos limites da condição humana, mas não se submete a eles; sabe que não salvará tudo ou a todos, mas decide agir segundo as suas forças para salvar o que pode ser salvo: alguns corpos, por algum tempo.” (Alves, p. 106) [26]

No destino do Padre Paneloux, Camus nos fornece um memorável memento do que significa o desprezo pela Ciência em tempos de peste. Em meio à Orã transtornada pela epidemia, o padre Paneloux fazia sermões pregando que o flagelo era uma punição divina pelos pecados de alguns de seus concidadãos. Daí saltava para a idéia de que a vontade divina utilizava-se da peste como seu instrumento. E daí foi só um passo até que passasse à noção de que seria heresia ir contra a vontade de Deus: a atitude de um autêntico cristão consistiria na aceitação plena dos decretos do Céu.

No capítulo 3 da parte IV, uma cena-chave de A Peste se desenrola: uma criança gravemente enferma será cobaia para um teste de uma vacina (sérum), uma das esperanças de conter a epidemia. O sofrimento horrendo desta criança dá ensejo para que os personagens reflitam a fundo sobre a condição humana, os males do mundo e as injustiças de que nossa situação existencial está repleta. A tentativa de curar a criança não é bem sucedida e após uma longa agonia, extremamente sofrida, o menino morre. Ao redor do leito, Dr. Rieux, padre Paneloux, Tarrou realizam um debate crucial nesta situação excruciante.

O que está em questão, em última análise, é a dor infligida aos inocentes, em todo seu escândalo. A agonia de uma criança parece causar o desmoronamento da argumentação teológica exposta no primeiro sermão do Padre Paneloux (cap. 3, parte II), segundo o qual a infelicidade (malheur) seria sempre merecida, pois toda peste é punição contra pecadores, um purgativo enviado por Deus (p. 91). Caso aceitássemos o argumento do padre, Orã seria similar a Sodoma e Gomorra e “a peste teria origem divina e caráter punitivo” (p. 95). Daí decorre que o padre recomende a seus concidadãos que se ajoelhem, se arrependem e orem aos céus por misericórdia. Com fé, Deus os ouvirá e salvará. Seu discurso traz o dedo em riste, acusatório, lançando sobre os pecadores a culpa pelo flagelo vivido pela cidade. Assim, inventa-se um sentido como antídoto para o absurdo num procedimento que Slavoj Zizek chama de “the temptation of meaning” [27].

Esta cena d’A Peste em que a agonia da criança é sentida diferencialmente pelo médico e pelo padre está entre as obras-primas da dramaturgia Camusiana e aí também se jogam os lances decisivos para a apreciação plena do que pensa o autor sobre a fé. O sofrimento horrendo de uma criança que agoniza põe em crise o discurso do padre Paneloux, sua noção de que os afligidos pela peste eram pecadores: para manter tal ideologia, seria preciso dizer que a criança era culpada, ou mesmo que nasceu com a culpa provinda do princípio dos tempos, ou seja, do Pecado Original de Adão e Eva. É assim que a fé judaico-cristã pretende nos convencer que é merecido o sofrimento na infância?

O Dr. Rieux opõe-se a esta ideologia religiosa que culpabiliza para que possa manter a fé, ainda que num Deus abjeto e que se sirva da agonia infantil como um de seus perversos instrumentos de vingança contra os pecadores. O Dr. Rieux é muito mais ateu e a vivência da peste só aprofunda seu ateísmo. O suplício e a agonia de uma criança lhe parecem um escândalo injustificável, uma absurdidade que estilhaça a possibilidade de crer em Deus.  Porta-voz do ateísmo Camusiano, o Dr. Rieux se recusa em amar uma criação onde crianças são torturadas, ou seja, recusa a própria noção de um Criador que pudesse ter aceito, como parte do mundo criado, a agonia injusta de pequenas pessoas que vieram ao mundo recentemente e que acabam por ser expulsas dele em meio a um absurdo sofrer.

Na história da filosofia contemporânea, o filósofo Marcel Conche inspirou-se em argumentos muito próximos aos Camusianos para formular suas provas da inexistência de Deus com que abre sua obra Orientação Filosófica. [28]

O ateísmo, em Camus, parece ser a decorrência necessária da lucidez daqueles que não escamoteiam o absurdo da existência e que, através da revolta, alçam-se do “eu sou” ao “nós somos”: superando o racionalismo idealista de René Descartes e seu cogito (“penso, logo existo”), Albert Camus propôs o cogito existencialista-ateu, digno de virar bandeira de todos nós que nos solidarizamos na revolta contra os males de que o mundo terrestre está repleto: “eu me revolto, logo somos”.

Ao adoecer, o padre Paneloux recusa-se terminantemente a chamar um médico – ainda que soubesse que o Doutor Rieux estaria a postos, prestativo, para atendê-lo, sem poupar esforços para salvá-lo. Para o padre Paneloux, há uma contradição insolúvel entre a fé e a ciência: para manter-se crente, ele precisa recusar a medicina. No extremo do delírio desta fé auto-destrutiva, prefere fechar as portas ao socorro que poderia lhe vir dos terráqueos, permanecendo aberto apenas ao socorro que lhe viria do divino. Agarra-se ao crucifixo, recusando hospitais e remédios.

A desastrosa escolha de Paneloux o conduz a uma agonia horrorosa, sem analgésicos nem morfina, em que ele decide imolar a saúde num altar imaginário onde pensava estar encontrando a salvação. Encontrou apenas a morte absurda dos que desdenham daquilo que o ser humano pôde inventar, neste mundo, em prol do auxílio mútuo e da solidariedade concreta.

No livro de George Minois sobre A História do Ateísmo, Camus aparece como um artista-pensador que jamais recomenda que percamos tempo de vida com a ânsia de ascensão a um Paraíso transcendente, prometido aos “eleitos”, aos que tenham sido dóceis e obedientes nesta vida. Camus convoca para que trabalhemos juntos neste mundo para torná-lo menos opressivo e mais amável, o que exige que possamos assumir nossas responsabilidades. Não aquela responsabilidade de “servir a um ser imortal”, mas sim a de livrar-se desta subserviência para assim “assumir todas as consequências de uma dolorosa independência”. (MINOIS: p. 671) [29]

Como diz Marcelo Alves, na obra A Peste está ilustrado que “o pessimismo de Camus, longe de ser resignado ou valorar negativamente a vida, pretende, através da revolta diante da peste, culminar num lúcido sim à vida.” (ALVES, M. Pg 98) [30] De modo que a lucidez é uma das virtudes que Camus celebra entre as supremas. Não a lucidez derrotista, resignada ou solitária, mas a lucidez clarividente, a capacidade de enxergar com clareza, inclusive e sobretudo os males concretos que nos afligem e aos quais só a solidariedade das revoltas pode fazer frente.


 

CAPÍTULO 7: A CONCRETUDE EM CARNE-E-OSSO DE NOSSA CONDIÇÃO

A tarefa de ver claro torna-se mais difícil diante dos flagelos da peste, da pandemia, da guerra, pois enxergá-los em toda sua horrífica realidade é perturbador para a psiquê humana, que vê-se em apuros para “digerir” tais experiências. Preferimos então recusar a concretude dos sofrimentos das pessoas de carne-e-osso para olhar o problema através do prisma de pálidas abstrações e estatísticas. Pode-se ler em livros de História que umas 30 pestes que o mundo conheceu fizeram cerca de 100 milhões de mortos, mas quem nunca viu nem conheceu sequer um desses vivos transformados em cadáveres pode se ver tentado a deixar-se esse número torna-se uma fumaça na imaginação, sem carne e sem sangue.

Por isso a literatura é tão crucial e imprescindível: ao ler uma obra como A Morte de Ivan Ilítch, de Tolstói, podemos ter acesso a uma morte concreta e individualiza, que nos comove pelo que tem tanto de idiossincrática quanto de expressiva da condição humana geral. A Peste de Camus também funciona maravilhosamente como um dispositivo literário de concretização, um livro destinado a nos ensinar como os seres humanos de carne-e-osso lidam com o flagelo pestífero. A certo ponto, o Doutor Rieux relembra da peste de Constantinopla, que em seu pico fazia 10.000 vítimas fatais por dia, e pede que imaginemos o público de 5 grandes cinemas sendo assassinado na saída do filme (pg. 42).

Dar concretude às estatísticas, fornecer carnalidade aos números, fazer-nos sentir visceralmente aquilo que se esconde por trás de relatórios burocráticos ou meditações abstratas, é uma das funções essenciais da literatura. Rieux está impedido por seu ofício de médico de “abstrair” em meio à peste pois é obrigado a lidar com a concretude de doentes e mortos, de tosses e catarros, de agonias e cadáveres. Sua lucidez é trágica! E a única salvação que concebe é a união solidária de pessoas que trabalham juntas contra o flagelo. Pois isolar-se, fechar-se na mônada e no monólogo, não é nenhuma solução contra o absurdo. Separação e isolamento nunca serão panacéias.

O ator William Hurt, que interpreta o médico Rieux na adaptação cinematográfica do romance de Camus realizada por L. Puenzo em 1992

Rieux recusa a resignação, a prece, a passividade. Tampouco deseja fazer pose de herói. Sua humildade lúcida está em saber que não salvará todo mundo, apenas alguns corpos por algum tempo. Este médico sabe que suas vitórias são sempre provisórias mas que esta não é uma razão para cessar de lutar. Trata-se sempre de adiar a morte para mais tarde, pois restabelecer a saúde de alguém jamais significa livrá-lo da incontornável finitude.

– Já que a ordem do mundo é regrada pela morte, talvez convenha a Deus que não se creia nele e que se lute com todas as forças contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se esconde. (ALVES, op cit, p. 106) [31]

Este ateísmo Camusiano, que se manifesta em Rieux, tem a ver com uma crítica que o autor de O Homem Revoltado faz ao processo de sacrifício de pessoas concretas em nome de um ideal, um valor absoluto, uma abstração descarnada. Até mesmo Marx e Nietzsche são denunciados por Camus por terem instituído uma espécie nova de idealismo em que a sociedade sem classes do futuro comunismo ou os espíritos livres e Übermensch do porvir serviriam como ideais laicizados. Assim, substituem a noção religiosa de outra vida, acessível pela morte, por uma outra vida a ser construída e concretizada mais tarde – trocam o além pelo mais tarde. Chamo isto de uma oposição entre uma transcendência vertical (as pessoas que crêem numa ascensão ao céu, após a vida terrena) e a transcendência horizontal (as pessoas que crêem numa transfiguração desta vida terrena nos amanhãs cantantes de um futuro que está no horizonte). 

Se o entendo bem, Camus propõe uma imersão na imanência em que possamos celebrar as núpcias com a vida e a natureza, nas quais devemos amorosamente nadar como peixes deleitando-se na imensidão do mar. É óbvio que este mar está repleto de tubarões, que há predação e peste, sofrimento e finitude, injustiça e opressão, mas também extremas belezas e deleites, uma grandeza implacável que devemos aceitar e abraçar com toda lucidez e clarividência que pudermos. Viver é mergulhar no absurdo mas não deixar-se afogar aí. Este banho de absurdo só pode ser redimido pela cumplicidade revoltado dos solidários, dos justos, dos que trabalham juntos em prol de uma realidade menos absurda. A medicina, para Rieux, é um trabalho de Sísifo ateu – e é preciso imaginá-lo feliz, empurrando pedregulhos montanha acima, no aprendizado perene com todos os esforços e tombos.

Em O Mito de Sísifo, Camus escreveu: “Se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos contra sua vontade. Se ele não existe, tudo depende de nós.” [32] A fé em Deus desempodera o ser humano, coloca-nos na dependência de uma vontade alheia e de uma autoridade transcendente, condenando-nos à “minoridade” tutelada de uma criança que não ousa fazer uso pleno da força de sua razão [33]. Já o ateísmo nos liberta para as difíceis tarefas da responsabilidade, da solidariedade, das construções coletivas de sentido que façam frente aos absurdos que sempre ameaçam nos submergir.

Confinados na finitude de uma vida que fatalmente terminará, condenados à angústia que é o ambiente perene do ser humano lúcido, temos somente esta vida, este mundo, este espaço, este tempo, para celebrar nossas fenecíveis núpcias com o real. Quem não se revolta contra as injustiças e opressões que impedem estas núpcias, quem não se solidariza diante dos males que nos afligem em comum, este é um semi-vivo ou um zumbi, sempre necessitado de ser despertado pelas amargas mas salutares verdades que a arte e a filosofia podem conceder.

Sem além nem deus, espíritos livres Camusianos plenamente fiéis à terra, sejamos Sísifos felizes! Estejamos aqui-e-agora solidários, lúcidos, clarividentes e reunidos na revolta. Somando forças, alentos, beijos, amplexos, vozes e obras que permitem nossas núpcias com a vida, a natureza e os outros. Sem nunca esquecer que a angústia solitária precisa ser transcendida por uma revolta solidária que seja o emblema em ação de nossa “insurreição humana” – aquela que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, “em suas formas elevadas e trágicas não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” [34]

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro [www.acasadevidro.com]
Goiânia, Maio de 2020

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REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS, CINEMATOGRÁFICAS E FONOGRÁFICAS

[1] CAMUS, Albert. Núpcias  / O Verão. Editora Círculo do Livro, 1985.

[2] THE FLAMING LIPS. Ao usar a expressão “grau de realização da mortalidade”, penso sobretudo nos versos de uma canção da banda estadunidense de rock alternativo The Flaming Lips, chamada “Do You Realize?” (também interpretada por Sharon Von Etten), presente no álbum Yoshimi Battles The Pink Robots, em que o ouvinte é interpelado pela questão: “você realmente percebe que todo mundo que você conhece um dia vai morrer?” The Fearless Freaks é um excelente documentário sobre a trajetória da banda.

“Do you realize that everyone you know someday will die?
And instead of saying all of your goodbyes, let them know
You realize that life goes fast
It’s hard to make the good things last
You realize the sun doesn’t go down
It’s just an illusion caused by the world spinning round…”

[3] PESSOA, Fernando. Mensagem. O trecho completo diz: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. A mesma expressão aparece nas Odes de Ricardo Reis:

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas feitas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A quem um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

— Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Odes”.

[4] BECKER, Ernest. A Negação da Morte (The Denial Of Death). Vencedor do prêmio Pulitzer, o livro também inspira o documentário The Flight From Death (2005), que compartilhamos na íntegra a seguir:



[5] SAMPAIO, Sérgio. Canção “Ninguém Vive Por Mim”. Em: Tem Que Acontecer. Saiba mais neste artigo em A Casa de Vidro.
[6] PARRA, Nicanor. O poeta chileno que viveu 103 anos (1914 – 2018), irmão da lendária cantora, compositora e folclorista Violeta Parra, escreveu muitas profundas reflexões sobre a morte.
[7] EPICURO. Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu). Sobre o tema, acesse em A Razão Inadequada o artigo Epicuro e a Morte da Morte.
[8] MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Capítulo XX. Em: Os Pensadores, Abril Cultural.
[9] BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Publicado originalmente em 1930.
[10] CAMUS, AlbertO Mito de Sísifo. Ed Record, 2004.
[11] MUJICA, José. Em: Rede Brasil Atual.
[12] BRECHNER, Alvaro. La Noche de 12 Años (2018), filme uruguaio que retrata ações do militantes Tupamaros, que lutavam contra a ditadura militar, e suas vivências na cadeia.
[13] CAMUS, ALa Peste. Folio: 1999, Pg. 191.
[14] ONFRAY, Michel. A Ordem Libertária – A Vida Filosófica de Albert Camus. Flammarion, 595 págs. Citado a partir de artigo na Revista Cult.
[15] ALVES, MarceloCamus: Entre o Sim e o Não a Nietzsche. Florianópolis, 2001, Ed. Letras Contemporâneas.
[16] CAMUS. Essais, Paris: Gallirmard, 1993, 75 – 80.
[17] [18] [19] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[20] RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade: A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Pg. 89-90.
[21] BBC News Brasil. ‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus.
[22] [23] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[24] CAMUS, A. La Peste. Op cit.
[25] MBEMBE, AchilleNecropolítica. Saiba mais em A Casa de Vidro.
[26] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[27] SLAVOJ ZIZEK fala em “the temptation of meaning” ao responder as questões de Astra Taylor, realizadora do filme documental Examined Life: “Meaning allows us to create fantasies which defend ourselves from the awful truth that we’re bags of meat who can never escape death. That is, the turn towards subjectivity is itself a defense mechanism against the fact that the universe doesn’t care. God, whether He be loving or vengeful, is a way of turning this utter indifference into a fantasy of mattering.”

[28] CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. Ed. Martins Fontes. Coleção Mesmo Que O Céu Não Exista.
[29] MINOIS, George. História do Ateísmo. Ed. Unesp, pg. 671.
[30] [31] ALVES, M. op cit, idem nota 15.
[32] CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Citado em: MINOIS, op cit, idem item 29.
[33] A conclusão atéia não condiz com as apostas kantianas na necessidade de Deus como “apêndice” da razão prática, mas aqui penso no auxílio salutar que o ateísmo concede ao sapere aude tal como descrito por Immanuel Kant em seu texto sobre o Iluminismo / Esclarecimento.
[34] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Capítulo: “Niilismo e História”. Ed. Record, 2003, p. 125.

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Um combate contra o Absurdo | Albert Camus (documentário completo e legendado)

PERDIDOS ENTRE MONSTROS DE NOSSA PRÓPRIA CRIAÇÃO || Por Eduardo Carli em A Casa de Vidro

Pandemias mortíferas e catástrofes sócio-ambientais tornaram-se o novo normal. Entre mortos e feridos, nossas certezas se esmigalham e caem ao pó, ficando só a tarefa de lidarmos com as marcas traumáticas nos sobreviventes. Dos cataclismos que fizeram história (como Bophal, Índia, 1984 ou Chernobyl, Ucrânia, 1986) aos desastres mais recentes (Brumadinho, Minas Gerais, 2019 ou a covid-19 grassando pelo globo em 2019-2020, ou os arrasadores incêndios recentes na Amazônia e na Austrália), uma das poucas certezas é a de que momentos históricos de disrupção cataclísmica da vida “civilizada” e “normal” geram como frutos muitos traumas coletivos.

O modo como estas fraturas no esqueleto da “normalidade” ressoam na 7ª Arte [1] está sendo bastante pesquisado ultimamente diante da fenomenal maré montante do que uma coletânea de artigos publicadas pela Routledge chamou de Cinema do Eco-Trauma [2]:

“Film has taken a powerful position alongside the global environmental movement, from didactic documentaries to the fantasy pleasures of commercial franchises. This book investigates in particular film’s complex role in representing ecological traumas. Eco-trauma cinema represents the harm we, as humans, inflict upon our natural surroundings, or the injuries we sustain from nature in its unforgiving iterations. The term encompasses both circumstances because these seemingly distinct instances of ecological harm are often related, and even symbiotic: the traumas we perpetuate in an ecosystem through pollution and unsustainable resource management inevitably return to harm us.

Contributors to this volume engage with eco-trauma cinema in its three general forms: accounts of people who are traumatized by the natural world, narratives that represent people or social processes which traumatize the environment or its species, and stories that depict the aftermath of ecological catastrophe. The films they examine represent a central challenge of our age: to overcome our disavowal of environmental crises, to reflect on the unsavoury forces reshaping the planet’s ecosystems, and to restructure the mechanisms responsible for the state of the earth.”

O Hospedeiro, filme sul-coreano lançado em 2006 e dirigido por Bong Joong-Ho (o mesmo de O Expresso do Amanhã, Okja, Parasita, dentre outros), inicia explicitando um crime ambiental cujas consequências a narrativa irá delinear na sequência. Falada em inglês, a cena revela uma pessoa – com fenótipo de anglo-saxão, um representante do homem cis branco ocidental – ordenando a seu subordinado – com fenótipo de coreano, “oriental”, de olhos puxados e postura subserviente – que faça dumping de formaldeído tóxico no Rio Han de Seul.

– The Han River is very broad, Mr. Kim. Let’s try to be broad-minded about this.

O filme é um pesadelo distópico que revela o avesso do “boom econômico” sul coreano frequentemente descrito como O Milagre Do Rio Han. Nesta ideologia “milagreira”, a Coréia do Sul é celebrado como um tigre capitalista rugindo forte no cenário do capitalismo globalizado: a Coréia do Sul teria “milagrosamente” superado os traumas da Guerra do Coréia (que teve no M.A.S.H. de Robert Altman sua magnum opus de representação crítica), tornando-se um dos epicentros do sucesso (I’d rather call it suck-sess) da Globalização Capitalista propulsionada pelos “tigres asiáticos”.

Por incrível que pareça, o episódio com que se inicia O Hospedeiro – o despejo de formol no Rio Han – é baseado em fatos reais: “This scene is based on a notorious incident involving Albert McFarland, an American civilian mortician at the Yongsan military base, who in 2000 ordered his staff to pour 120 liters of formaldehyde into the morgue’s plumbing. Although the chemicals passed through two treatment plants before reaching the Han, source of Seoul’s drinking water, the scandal sparked an anti-American uproar in South Korea.” [3]

Quando o subordinado obedece a seu patrão, e vai em frente com o crime ambiental, este evento trará trágicas consequências: numa nova forma de banalidade do mal em que o crime não é mais assemelhando ao Holocausto praticado pelos nazis nas câmaras de gás Zyklon B, mas sim fruto da irresponsabilidade socioambiental de alguns psicopatas corporativos [4]. Aquele gesto, na cadeira de mando-e-obediência, será capaz de acarretar no encadeamento de causas e consequências um gigantesco holocausto na metrópole.

Capital e maior metrópole da Coréia do Sul, Seoul tem 10 milhões de habitantes e estes irão sofrer as consequências das toneladas de formol despejadas em suas águas – o Rio Han, para incremento da tragédia, é a fonte de água potável para a população.

Em seu excelente artigo para o livro Cinema do Eco-trauma (https://bit.ly/2t8BOnd), Hsuan L. Hsu chamou a atenção para vários fenômenos sócio-políticos interconectados que marcam presença no filme: os suicídios de empresários arruinados, que se lançam ao Rio Han, são chamados na imprensa sul-coreana de “IMF Suicides” [Suicídios do FMI], uma referência ao cenário de choque neoliberal imposto pelo Fundo Monetário Internacional após a crise de 1997.

No filme, surge um monstro mutante que emerge do Rio Han com apetite voraz e nenhum escrúpulo moral. Eis um filme que evoca clássicos sobre o combate de humanos contra a monstruosidade, a exemplo de Tubarão e Jurassic Park (ambos de S. Spielberg), Alien (trilogia original por Ridley Scott, James Cameron e David Fincher), Moby Dick (romance de Melville com magistral adaptação cinematográfica de John Huston em 1956), dentre outros.

Na história do cinema, O Hospedeiro parece se alinhar também à multidão de obras centradas em monstros gigantes e aterrorizadores que fizeram sucesso a partir dos anos 1950, na esteira dos impactos da bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Nasci ali, no começo da Guerra Fria, enquanto o mundo temia um holocausto nuclear caso o conflito entre EUA e União Soviética esquentasse, um subgênero de blockbusters que lida com as mutações genéticas causadas por radiação, gerando big bugs e outros monstrões, tema de alguns dos principais arrasa-quarteirões de 1954 e 1955: Godzilla, Them!, O Monstro do Mar Revolto (It Came FroM Beneath the Sea).

Este seria um trend do cinema B que não cessaria de causar frisson popular, seja através da aranha gigante do filme Tarântula, seja através da mescla genética bizarra que faz emergir uma mistura de cientista e de mosca na obra-prima de David Cronenberg, A Mosca – The Fly (1984).

O filme de Bong não se restringe à luta humana contra o monstro, mas envereda pelas áreas exploradas pelos dramas de epidemia, em que um vírus letal se dissemina pela sociedade alimentando o pânico, o medo da extinção e as mais desesperadas estratégias de imunização, quarentena e extermínio de infectados.

O cinema esteve atento a várias irrupções de doenças epidêmicas, em obras que falam sobre doenças reais – como o vírus Ebola, nos anos 1990, tema do filme Outbreak (Epidemia), de Wolfgang Petersen, 1995, e também do livro de Richard Preston, The Hot Zone. Também dedicou-se a pandemias imaginadas, como a aniquilação da capacidade reprodutiva das mulheres humanas em um dos melhores sci-fi do séc. XXI, Children of Men, de Alfonso Cuarón.

O título do filme, O Hospedeiro, pode se referir ao soldado dos EUA que é o primeiro a ser declarado pela mídia como hospedeiro de um vírus perigoso por ter tido contato com o Monstro do Rio Han. A narrativa da epidemia potencial de um novo vírus acaba recalcando e ocultando a verdadeira causa da catástrofe, a irresponsabilidade do yankee que ordenou o dumping tóxico nas águas públicas do Rio Han.

O pânico gerado pelo Monstro à solta é incrementado por vias ideológicas através de um complô político-midiático, que dissemina as fake news referentes ao vírus como justificativa para as medidas típicas de um estado de exceção autoritário e brutal. Afinal de contas, não havia nenhum vírus a não ser aquele imaginário, utilizado pelas autoridades para justificar suas intervenções.

Só que estas intervenções são como pseudo-remédios que revelam-se como venenos muito piores do que a doença que pretendem curar. Gênio dos unhappy endings – como ficará ainda mais claro no apocalipse sobre trilhos de Snowpiercer -, Bong termina seu filme sugerindo que a monstruosidade humana supera em muito a daquele monstro anfíbio. Pois borrifar uma megalópole com Agente Amarelo ataca a possibilidade de 10 milhões de cidadãos de terem acesso a um ar respirável e à água potável. Cria-se assim uma bomba para o aparato de saúde e potencialmente um morticínio de câncer para os próximos anos. As “medidas de biosegurança acabam sendo os verdadeiros perpetradores de monstruosidades no filme de Bong” (HSU, p. 123). [5]

Seul torna-se aquilo que Naomi Klein conceituou como sacrifice zones, as zonas de sacrifício onde a vida humana é tratada como descartável e sacrificável [6]. O Hospedeiro mostra muito bem o vínculo entre as corporações irresponsáveis e as catástrofes sócio-ambientais, o que é bastante realista: não se explica a tragédia de Bophal sem falar na Union Carbide, nem a tragédia de Mariana e Brumadinho sem mencionar a empresa Vale (do Rio Doce), etc. Talvez ciente disso, em um filme futuro como Okja, a psicose corporativa será descrita por Bong com tintas ainda mais fortes e caricaturas super contundentes.

O Hospedeiro também traz o retrato do Monstro para a era das mutações genéticas. Estas também serão tema de um de seus filmes posteriores, Okja, centrado nos Superporcos criados pela indústria da carne como suposta solução para hambúrgueres baratos que façam a festa das cadeias de fast food.

O filme foca em uma família, dona de uma pequena lanchonete-trailer, que vende salgadinhos, refris e frutos do mar. Os problemas da família no cotidiano são dos mais simplórios: o pai-patrão briga com o filho-subordinado quando o cliente recebe uma lula de 9 pernas, reclamando pela perna que estava faltando. O pai puxa as orelhas do filho, mas o fato de filho ter devorado uma perninha da lula frita antes de servi-la ao cliente irá logo deixar de ser algo que os preocupa.

Pois haverá a disrupção súbita da normalidade com a primeira aparição da Besta: a princípio, a galera se junta toda curiosa e taca cervejas, amendoins e pipocas na direção daquela novidade que emerge das águas. Mas quando ela emerge do rio com fúria irrefreável instaura o caos na cidade. Devora algumas dúzias de pessoas com seu voraz apetite bestial. Deixa muitos outros feridos e desmaiados. O tecido social é esgarçado pelo pânico. A família protagonista será diretamente afetada: o sequestro de sua filha Hyun-seo faz com que o pai-de-família, desesperado, se lance nas águas, território do inimigo monstruoso. Tudo indica que a mocinha Hyun-seo morreu devorada, e no enterro dela há um traumático encontro familiar, com luto extremado e brigas irracionais, é descrito com tintas satíricas e muita hipérbole pelo cineasta.

Jonas e a Baleia — Pieter Lastman

Depois descobre-se que Hyun-seo está viva, nos esgotos cheios de bichos escrotos, após ter escapado do destino fatal de virar comida de monstro. Vomitada como Jonas da baleia bíblica, a menina estará presa num espaço onde o Monstro guarda a carne humana que ele quer devorar depois. Pois o monstro, pouco tecnológico, não tem um freezer, como tem os humanos, para guardar os cadáveres de bichos mortos a serem devorados em tempos vindouros.

O filme terá muitos momentos sinistros envolvendo este local asqueroso: se o cinema tivesse cheiro, ou seja, caso pudesse nos fornecer estímulos de olfato, sentiríamos todo o horror do fedor da putrefação e de ossos recentes que tiveram sua carne devorada.

O que este filme “fantástico” nos diz sobre o real? Fala sobre catástrofes ambientais, podendo servir de reflexão sobre o que ocorreu em Fukushima (Japão), Bophal (Índia), Chernobyl (Ucrânia), Goiânia ou Minas Gerais (Brasil). O “Monstro” é subproduto da ação humana e nenhum Diabo o criou senão nós mesmos.

O mais interessante dos ensinamentos sobre o real, porém, está na ideologia que se constrói ao redor do Monstro: espalha-se, na mídia, para que a sociedade inteira comungue nesta ideologia fajuta, que a Besta monstruosa está contaminada com o vírus SARS. Dissemina-se a notícia de que todos que entram em contato direto com um infectado também ficam contaminados, o que se descobre a partir do estado clínico de um soldado do Exército dos EUA que sobrevive a uma “treta” com a Bestona. Aí, listas de infectados servem para justificar a “guetificação” de gente colocada em quarentena, impedida em seu direito de ir e vir, e no limite extremo passível de sofrer, nas mãos do estado, processos de lobotomia.

O Hospedeiro serve então como material de reflexão sobre o pânico e suas relações com as ideologias dominantes (o que merece uma análise similar àquela dos filmes dissecados por Slavoj Zizek, em seu O Guia dos Pervertidos da Ideologia). Neste caso fica claro que a ideologia serve para ocultar o crime corporativo por trás da crise sócio-ambiental. O caos provêm de uma irresponsabilidade dos que despejaram o formol no rio e causaram a mutação genética que “gerou” a monstruosidade assassina em série.

Este parente do “T Rex”, babando faminto em toda sua selvageria que rompe com a normalidade civilizacional, coloca-nos também a necessidade de pensar na conexão entre o local e o global: a treta que aflige Seul localmente advêm de um problema sistêmico e global: o poderio exagerado e a hýbris gananciosa das corporações psicopatas. Um problema que se agrava com a governança neoliberal que acaba com regulações ambientais e impede o Estado, reduzido a seu “mínimo”, de agir como protetor ambiental ou garantidor de direitos trabalhistas.

O filme culmina com a provocação pontiaguda: o Agente Amarelo que se espalha por Seoul. Trata-se evidentemente de uma referência semi-cifrada ao Agente Laranja, arma química criada pela Monsanto (hoje fundida com a Bayer numa mega-empresa global), utilizada pelos militares dos EUA durante a guerra imperialista contra o Vietnã e o Camboja. É muito irônico que a princípio a mídia em Seoul anuncie os U.S.A. como o herói dotado da “salvação química” para o problema, quando provavelmente foi um cidadão estadunidense quem cometeu o crime ambiental causador da catástrofe toda – o filme não destaca isso, mas deixa sutilmente subentendido.

Grandes protestos dos cidadãos de Seul ocorrem, contrários à borrifação de Agente Amarelo, pois a cidadania informada e consciente sabe que aquilo destinado a matar o Monstro certamente tornaria o ar tóxico e letal também para muitos humanos. Matar a Besta acarretaria uma catástrofe humanitária, uma bomba para o sistema de saúde, uma epidemia de câncer e doenças respiratórias etc.

A nuvem de Agente Amarelo é a consumação da distopia, uma espécie de remédio pior que a doença. Tentando bloquear a catástrofe do Agente Amarelo, cidadãos tomam a resolução do imbróglio em suas próprias mãos, com garrafas de coquetel molotov, galões de combustível inflamável e flechas flamejantes pra tentar botar fogo na bestialidade produzida pela insensibilidade ambiental dos humanos. Mas o estrago está feito. E muitos não querem ver este estrago – o filme acaba com o noticiário da TV sendo desligado por um adulto e uma criança que não se interessam por aquilo que está sendo confessado ali: que o vírus era uma mentira e fez parte de uma massiva desinformação, uma propagação de fake news gigante.

Por isso o filme se torna emblema do poder da ideologia: p. ex, na cena em que, após ser lobotomizado, o personagem do pai-de-família (com a filha sequestrada pelo monstro) foge do hospital-prisão em que está encarcerado em quarentena, e onde é tratado como louco. Ele usa uma seringa com sangue supostamente “contaminado” como uma espécie de arma para assustar todos a seu redor, como se fosse um revólver. Mas o vírus é fake e aquilo que ele empunha é perfeitamente inofensivo. Tão inofensivo quanto um pouquinho de sangue humano sadio dentro de uma seringa. No entanto, ele logra mobilizar o medo daqueles a seu redor, que comungam com a ideologia dominante, e foge em direção à tentativa de resgate da filha.

O filme traz muito forte este emblema do poderio de uma ideologia falaciosa, mentirosa, quando a maioria da sociedade comunga dela, unidos no delírio oprimidos e opressores (com exceção, talvez, dos opressores que, por razões explicáveis pela hýbris da ganância ou por desejo de usar massas como cobaias científicas em experimentos sinistros, inventaram e disseminaram a mentira ideológica que se transforma, ela mesma, em algo muito mais ameaçador que qualquer Monstro do Lago Ness). A monstruosidade humana, afinal de contas, supera a de qualquer Moby Dick. A monstruosa baleia branca pôde até destruir o Pequod, mas não nos fornece nenhuma razão para que pensemos em sua malevolência. Já a espécie a que pertence Ahab, esta de fato é capaz de uma prole pra lá de monstruosa – como Hiroshimas e Nagazakis, Fukushimas e Bophals, Chernobyls e Guernicas testemunham.

“Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação.”
LEGIÃO URBANA, Será?

Obra de Javcho Savov, “Guernica do Egeu” (2015)

 

REFERÊNCIAS

[1] A expressão Sétima Arte deriva da obra do teórico e crítico de cinema, participante da vanguarda futurista, o italiano Ricciotto Canudo (“Manifesto das Sete Artes“, de 1912).

[2] Vários autores. Eco-Trauma Cinema (Routledge Advances in Film Studies, 2014).

[3] Do site de Roger Ebert.

[4] Refiro-me aqui ao livro de Joel Bakan, The Corporation (também um documentário).

[5] Hsuan L. Hsu, In: Eco-Trauma Cinema.

[6] Naomi Klein. This Changes Everything (Isto Muda Tudo), livro e documentário.

Imagem destacada no início do post: “Los últimos años de la Bestia” – obra do artista espanhol Miguel Brieva.

PROIBIDO ESQUECER – Os deveres da memória em tempos de genocídio: O caso “Black Earth Rising” (BBC/Netflix)

“A million candles burning
For the help that never came
You want it darker
We kill the flame…”
LEONARD COHEN

Ruanda, 1994: cerca de 800.000 pessoas são assassinadas em 100 dias de carnificina. Recontada no cinema em Hotel Ruanda (de Terry George, 2004), em livro-reportagem no Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas Famílias de Philip Gourevitch (Cia das Letras) e nos romances de Scholastique Mukasonga (três deles publicados no Brasil pela Editora Nós), a história do genocídio ruandês agora volta à tona: Black Earth Risingsérie de 8 episódios produzida pela BBC e que está no acervo da Netflix, retrata os traumas e cicatrizes que marcam os sobreviventes, as testemunhas e os perpetradores deste monumental e trágico evento histórico. Ao fim do século 20, a violência ainda inundava a História Humana, este pesadelo do qual tentamos acordar (para lembrar do personagem de James Joyce, S. Bloom, que afirma no Ulisses: “History is a nightmare from which I am trying to awake”). [1]

Escrita, produzida e dirigida por Hugo Blick (também responsável pela minisérie The Honourable Woman (A Mulher Honrada), Black Earth Rising foca no trabalho de uma equipe de juristas que dedicam suas vidas ao esforço de penalização de genocidas e criminosos-de-guerra, processados em tribunais penais internacionais como o de Haia (Holanda). A personagem principal, Kate Ashby (interpretada por Michaela Coel), atravessa radicais transformações de identidade em uma trajetória para desocultar os segredos de seu passado: ela era uma criança em meio à matança generalizada deflagrada em 1994 lá em sua terra natal Ruanda, e que se estendeu pelos anos seguintes no país vizinho (Zaire / Congo).

Sem memórias claras de sua primeira infância, Kate – que foi adotada pela advogada inglesa Eve Ashby – só poderá compreender muito mais tarde os maiores mistérios de seu destino prévio. Transformada numa mulher em ação, na luta pela memória e pela justiça, ainda que tardias, Kate Ashby vai numa jornada em busca do tempo perdido bastante peculiar, desvelando os nós que entrelaçam seu destino pessoal com os destinos coletivos dos povos do Continente Matriz da humanidade, a África.

Em entrevista à BBC, Blick revelou um pouco do que o inspirou a realizar a série:

“Onde eu cheguei não é o destino que eu esperava. Alguns anos atrás, olhei para os julgamentos de Nuremberg como parte de uma pesquisa de fundo para a série “A mulher honrada “. Consequentemente, fiquei interessado em explorar como perseguimos hoje os criminosos de guerra internacionais. Comecei com o Tribunal Penal Internacional (TPI) e fiquei surpreso ao descobrir, no momento da minha pesquisa, que a maioria, senão todas as acusações formais, eram contra africanos – negros africanos. Isso então me atraiu para o Congo. O TPI não estava apenas perseguindo os perpetradores do genocídio de Ruanda, fiquei ainda mais intrigado ao descobrir que ele também estava perseguindo indivíduos que ajudaram a pôr fim ao genocídio. Ambos os lados eram procurados pelo TPI por supostas atrocidades cometidas na República Democrática do Congo após o genocídio em meados da década de 2000. Eu queria entender por que aparentes vilões e heróis estavam sendo perseguidos. E quanto mais eu olhava, mais fundo eu tinha que ir. ” (BLICK, Hugo. BBC.) [2]

A compreensão do que ocorreu em Ruanda, em 1994, é um desafio cognitivo tremendo. As dificuldades começam pelo fato de que poucos tem estômago para mergulhar no estudo de fenômenos que são tão chocantes e angustiantes, devido à escala monumental do horror e da violência que envolvem. Philip Gourevitch escreve, sobre aquela época, de maneira bem punk, que “o governo ruandês adotara uma nova política, segundo a qual todo mundo do grupo majoritário hutu era convocado a matar todo mundo da minoria tutsi. O governo e um impressionante número de seus súditos imaginavam que exterminando os tutsis poderiam fazer do mundo um lugar melhor – e o assassinato em massa começou.” (GOUREVITCH, P. Cia das Letras, leia um trecho) [2]

O trecho de Gourevitch estabelece uma distinção entre a minoria Tutsi e maioria Hutu, afirmando que a maioria, através do assassinato em massa da minoria, “imaginavam que poderiam fazer do mundo um lugar melhor”, o que é o supra-sumo do contra-senso: utilizar um meio como o assassinato em massa para atingir a finalidade de um mundo melhor é algo estapafúrdio. Só temos a lamentar a crença de muitos na tese de que “o fim justifica os meios”, quando na verdade meios atrozes e cruéis sempre hão de conspurcar os fins, mesmo os supostamente mais elevados. Creio, porém, que o buraco é mais embaixo, que o ímpeto idealista de fabricar uma realidade social melhorada através da purificação, da limpeza étnica, está calcada num dos mais sérios problemas a desgraçar a caminhada humana sobre o planeta – o racismo. Tema que Black Earth Rising evita encarar de frente.

Outra dificuldade que se interpõe como obstáculo na nossa tentativa de compreensão das ocorrências em Ruanda, em 1994, parece-me ser a seguinte: por comodismo e facilidade, ou seja, pela lei-do-mínimo-esforço que preside o trabalho de muitas mentes que se abandonam ao Império da Preguiça, temos uma certa tendência a simplificar as coisas através da perigosa prática do binarismo – e também do maniqueísmo que muitas vezes o acompanha. Usualmente, desejamos enquadrar o mundo e a história em um esquema em que separamos o joio do trigo de modo bastante tosco: há vilões e heróis, bandidos e mocinhos, a luta entre o Bem e o Mal, “ou você está conosco ou está contra nós” (recentemente, um presidente genocida como George W. Bush reciclou esta desgraça de maniqueísmo binário ao lançar sua Guerra Contra o Terror).

A realidade, porém, é muito mais complexa e destroça nossos binarismos maniqueístas. Jamais faríamos o mínimo de Justiça, nem honraríamos os deveres da Memória, tentando enquadrar, em massa, Tutsis e Hutus em uma dessas categorias: Vítimas e Carrascos. Precisamos ir além do simplismo de opor uma “coitada minoria massacrada” e uma “desumana maioria assassina”. Temos que complexificar o quadro e olhar de frente no rosto da Besta Humana. Pois a Humanidade sabe muito bem ser desumana. Nossa união ainda está por ser inventada.


PARA ALÉM DO BINARISMO E DO MANIQUEÍSMO

Um dos ensinamentos de Black Earth Rising é que não podemos cair no binarismo fácil de classificar estas etnias como vítimas (Tutsis) carrascos (Hutus) – as posições de vítimas e carrascos são muito mais intercambiáveis. Ser um Tutsi não é um atestado de vítima, nem imuniza a pessoa contra o cometimento de atrocidades, nem tampouco ser um Hutu é um atestado de genocida, nem impede a pessoa de militar em prol da convivência pacífica.

É isto que Kate Ashby não consegue compreender a princípio: ela está aferrada à noção de que os Tutsis são as vítimas, os Hutus os genocidas. Aferrada, além disso, à crença sobre si mesma: está certa de que é uma Tutsi sobrevivente do genocídio, e tudo fará para que os responsáveis pelo morticínio escapem da impunidade de que ainda gozam. Por isso Kate suporta tão mal que sua mãe tente incriminar em Haia o General Simon Nyamoya, um chefe Tutsi que ajudou a pôr fim ao massacre, em 1994, mas depois se envolveu em crimes de guerra e tráfico de minérios no Congo, além de ter participado de uma carnificina contra um campo de refugiados Hutu em território congolês.

Baseado em fatos reais que o Mirror reconta, assim como a reportagem da BBC, Black Earth Rising merece ser vista na íntegra para que se possa ter uma experiência plena das metamorfoses de Kate Ashby no decorrer da série. Ema espécie de 1º ato, Kate Ashby reluta em ver seu herói Nyamoya sendo destronado, caindo do pedestal em que ela, e tantos outros, mantinham-no. É uma primeira amarga lição, que a impede de idealizar cegamente os chefes Tutsis que lutaram para pôr fim ao genocídio em 1994: apesar de “libertador” dos Tutsis que estavam sendo massacrados, revela-se que Nyamoya também é culpado por crimes contra a humanidade e limpeza étnica – sobretudo no episódio do “desmantelamento” (eufemismo para extermínio!) do campo de refugiados Hutus no Congo.

Mais para o fim da série, será revelado que a própria Kate esteve neste campo, sendo dele resgatada por um ativista de ONG. Quase no desfecho da série, Kate está dentro de uma cova coletiva, temendo por sua vida, como se tivesse ganho algumas décadas de sobrevivência para finalmente perecer no buraco onde deveria ter ficado enterrado seu cadáver infantil, mas percebe que um mutirão de pessoas decidiu, como ela, trabalhar para trazer à tona no presente os ossos enterrados de uma História mal contada e ocultada.

Não é possível compreender as ocorrências de que fala a série com o nosso foco exclusivamente em Ruanda em 1994: os precedentes do genocídio incluem necessariamente as ações das grandes nações imperialistas do Ocidente. Não é fora de propósito averiguar quanto do sangue derramado em Ruanda tem origens numa insanidade racista que foi inicialmente propagada pelo colonizador europeu e pelas ideologias supremacistas que marcaram não apenas o nazifascismo, mas também o escravismo nos EUA calcado na white supremacy. Sim, precisamos falar sobre ideologias racistas típicas do imperialismo “ocidental” – aquele que praticou por séculos a escravidão contra milhões de africanos – para chegar perto de entender melhor o destravamento das carnificinas ruandesas de 1994.

No fim do século XX d.C., a Humanidade descobria, atônita, nossa resiliente capacidade para o pior, somada à nossa incapacidade de autenticamente aprender com erros passados e suas funestas consequências. Parecíamos condenados a repetir, com Maslow: “O Horror! O Horror!”, frase com que se encerra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, retrato do Congo belga no livro que depois se transformou em Apocalypse Now (filme de F. F. Coppola). O pesadelo do fratricídio entre Tutsis e Hutus segue desafiando nossa Razão a decifrar seus porquês – e diante de vidas humanas reduzidas em massa à morte, é preciso cuidado redobrado naquilo que dizemos e escrevemos. Aqui estou na postura de quem se estarrece que acontecimentos assim estejam entre nossos possíveis, mas não na postura de quem traz todas as respostas em uma bandeja.

Pelo contrário, trago uma bandeja cheia de questões: nós, que nos acostumamos a pensar sobre o racismo como um fenômeno vinculado ao “preconceito de cor”, para lembrar um samba de Bezerra da Silva, como podemos reconfigurar nossa compreensão do racismo diante daquilo que parece ocorrer entre grupos humanos que não estão separados pela barreira epidérmica das dosagens de melanina? O III Reich hitlerista assassinou em massa judeus e bolcheviques, homossexuais e ciganos, mas não consta que tenha visado, como alvos, as populações de descendência africana que estavam naquela Europa que o nazismo pretendeu subjugar a seu sinistro império. Porém, o Holocausto – o genocídio imposto pelo governo nazifascista alemão a mais de 6 milhões de judeus europeus – não é menos racista pelo fato de que, olhado através de um viés bem superficial, trata-se de brancos matando brancos, europeus chacinando europeus.

Algo semelhante me angustia diante do contexto em Ruanda nos anos 1990: Tutsis e Hutus não são distinguíveis por sinais visíveis – similarmente, olhando através de um viés epidérmico, de uma perspectiva que pára na pele, trata-se de negros matando negros, africanos chacinando africanos. O racismo estaria, portanto, riscado da lista de motivações possíveis para estes genocídios? Não creio. O que exige repensar o racismo de modo mais aprofundado, como uma espécie de crença coletiva que um grupo social compartilha e que inclui a desumanização de um outro grupo social. Um dos elementos mais interessantes de Black Earth Rising está na flutuação identitária que o seriado retrata ao descrever as descobertas bombásticas que realiza, em sua vida, a personagem Kate Ashby.

Para todos os efeitos, Kate Ashby aparece-nos, no começo da série, como uma cidadã britânica, uma falante da língua inglesa, uma londrina que cresceu sob os cuidados de sua mãe adotiva, a célebre jurista Eve Ashby. Porém, Kate Ashby é um nome postiço e tardio que vem para encobrir o anonimato de uma criança que sobreviveu sozinha ao genocídio: sem familiares nem amigos que pudessem dizer seu autêntico nome, privada das informações sobre seu batismo africano originário, ela se torna uma sobrevivente do genocídio ruandês a quem se oferece um novo começo no United Kingdom: cresce acreditando, a partir das narrativas que lhe contaram, que é uma Tutsi, sobrevivente de um massacre cometido pelos Hutus.

Qual não será a sua surpresa quando descobrir, conforme avançam suas investigações relacionadas com a tentativa de condenação em Tribunal Penal Internacional do general Hutu Patrice Ganimana, que na verdade Kate Ashby foi em sua primeira infância algo bem diferente de uma criança Tutsi sobrevivente de um genocídio: era uma criança Hutu que deixou o país após o fim da carnificina, tornando-se uma emigrante e depois uma refugiada no país vizinho, então o Zaire, hoje a República Democrática do Congo. A mulher que se conhece por Kate Ashby, cujo nome africano nunca se soube, descobre que lhe mentiram sobre as circunstâncias em que foi resgatada em meio à insana matança dos adultos que a rodeavam: ela acreditava ser um Tutsi que perdeu tudo devido a sanguinários Hutus, e descobre que era uma Hutu que sobreviveu a um massacre perpetrado contra um campo de refugiados no Congo onde estavam 50.000 pessoas, cerca de 9.000 delas crianças.

O que pensar sobre o tema da identidade diante deste caso? Apesar de fictício, o enredo de Black Earth Rising pode nos instigar a seguinte reflexão: nossa identidade não é independente das narrativas que interiorizamos sobre quem somos e sobre a qual grupo social pertencemos. Kate Ashby, em Black Earth Rising, é sempre descrita como uma pessoa sob o risco de colapso psíquico: no primeiro episódio, ela consegue pílulas para tentar controlar seus ímpetos suicidas e faz uma piada com a obra de Primo Levi, judeu sobrevivente do Holocausto. O fato de ser uma sobrevivente de genocídio é essencial à sua identidade, mas os fragmentos de seu passado que ela usou para compor sua auto-imagem revelam-se falsos.

Ela se vê então envolvida numa teia de acontecimentos em que seu destino individual se mescla com o destino de sua pátria e de todo o continente africano: Kate Ashby não está apenas numa viagem de “auto-descoberta”, mas também presa numa teia coletiva e histórica em que terá que reconsiderar radicalmente tudo o que acreditou sobre si, sobretudo a crença de sua pertença à raça/etnia Tutsi.

Um dos grandes temas de Black Earth Rising é o direito à memória e à verdade. A essência dos discursos da personagem Alice Munezero vão neste sentido, o de conclamar-nos para que acessemos o passado em sua verdade, pois em nada contribui para a reconciliação você recalcar o passado coletivo, não permitindo que venham à tona certos episódios que certos grupos não julgam convenientes tornar conhecidos e públicos. A lição que tiro disto é que não devemos “essencializar” a diferença entre Tutsis e Hutus, nem entre nazistas e judeus, como se houvesse de fato uma diferença de essência entre eles que justificasse a noção de que cada grupo pertence à uma diferente raça. Se a diferença não é de essência, é preciso que ela esteja em outra parte, que a diferença seja de pertença, de cultura, de aprendizado, de interiorização narrativa, em suma: de educação. Nurture, not nature.

O racismo, pois, é um construto: não existem raças humanas, mas sim grupos humanos capazes de acreditar na supremacia étnica ou racial. Não parecem existir justificativas para cindir a humanidade em raças superiores e inferiores por razões genéticas, como quiseram fazer os eugenistas de todos os tempos, o que nos conduz à tese de que o problema está de fato na presunção de superioridade que certos grupos acabam interiorizando como uma espécie de item narcísico identitário. Esta crença supremacista – que leva o sujeito à fé de que pertence a um grupo social, ou casta, ou raça, que é melhor, mais superior, mais civilizado, mais humana que o grupo, casta ou raça inferiorizado e desumanizado – está na raiz do problema.

Por isto a educação também está: se não “genes-Tutsi” nem “genes-Hutus”, ou seja, se ninguém nasce com um DNA Tutsi ou Hutu, estas diferenças são construídas, ou seja, as pessoas são ensinadas a aderir a uma certa pertença comunitária que define sua identidade. Se foram ensinadas, ou seja, culturalmente determinadas, isto significa, como é evidente, que a educação e a cultura, transformadas e revolucionadas, são as forças principais para que o racismo construído cesse de sê-lo. Raças humanas nunca existiram, agora é nossa tarefa desconstruir, criticar e aniquilar os racismos para que também eles cessem de ser.

O racismo a que me refiro, ou seja, esta presunção de superioridade e este supremacismo étnico-racial motivado por uma pertença identitária, pode se amparar em características corporais ou epidérmicas – como foi no racismo instituído no Sul dos EUA durante o domínio da white supremacy ou na África do Sul na vigência do apartheid. Mas a crença supremacista pode se amparar em outros elementos, menos epidérmicos, aparentemente desvinculados de questões cromáticas e das aparências do corpo humano.

Hoje, não resta muita dúvida de que Adolf Hitler e o regime que chefiou era alicerçado no racismo instituído, na fantasia de domínio dos “arianos”. E tampouco me parece contestável a tese, defendida por Domenico Losurdo (entre outros), de que há muita similaridade entre os nazis arianistas e os supremacistas brancos dos EUA; há mais em comum entre a Ku Klux Klan e o nazismo do que sonha a liberal filosofia… A insana “originalidade” do hitlerismo foi tratar judeus e bolcheviques como se fossem negros no Sul dos EUA na era escravagista. Se as raças humanas não existem de fato, como podem garantir muitos cientistas, o racismo de fato existe como fenômeno ideológico e como práticas instituídas, de modo que o combate ao racismo permanece necessário e urgente, sendo um dos grandes desafios educacionais que deve mobilizar os esforços de todos nós que trabalhamos com educação, comunicação social e mobilização de massas. Como disse Nelson Mandela:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” –
Nelson Mandela, “Long Walk to Freedom”, 1995. [3]

Genocídio é uma palavra nova, um fruto macabro da época que o historiador Hobsbawm chamou de “A Era dos Extremos”. Através de livros como A Problem From Hell, de Samantha Power, e de filmes como Watchers of the Sky, de Edet Belzberg (2010), podemos aprender que o termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin (1900-1959) e une o cide (assassinato em latim) e o genos (família, tribo ou raça em grego) para forjar um conceito que se refere ao assassinato em massa cometido por ódio étnico-racial. O antropólogo anarquista Pierre Clastres posteriormente irá distinguir o conceito de genocídio do conceito de etnocídio, em Arqueologia da Diferença. Aqueles que acompanham o cenário musical também sabem dos esforços de artistas atuais como M.I.A. (rapper inglesa, de origens no Sri Lanka), na denúncia de processos genocidários que ocorrem hoje contra os Tamil do Sri Lanka ou os Rohingya de Mianmar, ou do System of Down, banda de heavy metal que sempre quis relembrar episódios de m passado esquecido por muitos, como o Holocausto armênio de 1915 – 1923, tema também do filme The Cut de Fatih Akin.

Diante do genocídio ruandês, a pior das explicações é aquela que culpabiliza os próprios ruandeses por terem descido à barbárie de “uma insanidade tribal”, como diz um burocrata governamental inglês em Black Earth Rising. Esta explicação, de um racismo velado, parece atribuir toda a culpa às insanidades do tribalismo africano, conduzindo à noção eurocêntrica e supremacista de que as afiliações e pertenças étnicas dos ruandeses “atrasados” e “primitivos” são as culpadas pelo horror. Na verdade deveríamos estar nos perguntando qual é o grau de responsabilidade do Imperialismo Ocidental – que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, sendo que foram necessários muitos movimentos anticolonialistas na África e na Ásia após 1945, em luta por libertação!

As ideologias de supremacismo étnico-racial são bastante típicas de países que foram impérios escravocratas sediados na Europa, e não é fora de propósito supor que estas ideologias racistas possam ter sido exportadas pelos imperialistas colonizados, acabando por contaminar os povos colonizados: a Bélgica, a França, a Alemanha, a Grã-Bretanha, não podem se eximir de toda a responsabilidade pelo que se passou em Ruanda em 1994. Além disso, diante de 800.000 mortos em 100 dias, precisamos nos perguntar também: Estados Unidos da América, que pretendia ser após o colapso da URSS e da queda do Muro de Berlim, uma espécie de Xerife Global e o Super-poder de um mundo Unipolar, em um contexto em que Fukuyama previa o “fim da História” com o triunfo final do capitalismo liberal globalizado, por que diabos o Tio Sam, ou melhor, suas maiores autoridades, fizeram tão pouco e foram tão ineficazes para conter a carnificina, para amainar sua fúria, para salvar dezenas de milhares de vidas? A resposta de Samantha Power, vencedora do Prêmio Pulitzer, é chocante mas me parece verdadeira:

Romeo Dallaire, a Canadian major general who commanded UN peacekeeping forces in Rwanda in 1994, appealed for permission to disarm militias and to prevent the extermination of Rwanda’s Tutsi three months before the genocide began. Denied this by his political masters at the United Nations, he watched corpses pile up around him as Washington led a successful effort to remove most of the peacekeepers under his command and then aggressively worked to block authorization of UN reinforcements.The United States refused to use its technology to jam radio broadcasts that were a crucial instrument in the coordination and perpetuation of the genocide. And even as, on average, 8,000 Rwandans were being butchered each day, the issue never became a priority for senior U.S. officials. Some 800,000 Rwandans were killed in 100 days. No U.S. president has ever made genocide prevention a priority, and no U.S. president has ever suffered politically for his indifference to its occurrence. It is thus no coincidence that genocide rages on…” SAMANTHA POWER [4]

É bem-vinda a chega entre nós de Black Earth Rising, que demonstra que BBC e Netflix eventualmente se interessam por temas tão importantes quanto o direito à memória, a difícil concretização de uma justiça penal internacional e os mecanismos de prevenção ao genocídio. A série é ótima, no geral, apesar de algumas falhas – dentre estas, eu mencionaria que a série jamais revela porquê Kate Ashby teria sido iludida com mentiras explícitas por todos ao seu redor, sendo convencida de que era uma Tutsi e não uma Hutu. Qual o sentido desta teia de mentiras que depois será duramente desfeita? Apesar destes pontos obscuros, Black Earth Rising é uma obra potente, repleta de protagonismo feminino, que retrata também o empoderamento da mulher negra em espaços de poder, inclusive através da personagem da presidenta de Ruanda e seus dilemas no sentido de avançar no sentido da justiça social, tendo como uma das dificuldades maiores o neo-imperialismo que se manifesta pela fome ocidental por minérios. Sabemos que as minas de cobalto e outros minérios, em Ruanda e no Congo, estão na mira de várias corporações internacionais que fabricam celulares e computadores (vejam o documentário Blood in The Mobile).

Em uma das cenas mais inesquecíveis, Kate Ashby revisita em Ruanda uma igreja onde centenas de Tutsis foram massacrados. Transformada em Museu, a igreja agora acolhe apenas as roupas ensanguentadas dos que pereceram no massacre, assim como o Museu do Holocausto em Berlim visa dar uma noção do tamanho do extermínio perpetrado pelos nazis ao empilhar sapatos, aos milhares, dos que pereceram nos campos da morte erguidos pelo III Reich.

Diante de uma estátua de Cristo sem cabeça, Kate Ashby parece ter sua vida invadida pelos fantasmas de todos os massacrados, num transbordamento psíquico tão insuportável que ela precisa, na saída da igreja, chorar convulsivamente e buscar amparo no peito daquele que ela foi ensinada a odiar, um Hutu – que também foi ensinado a odiá-la. Instantes depois, conduzida ao local onde os refugiados Hutus no Congo foram massacrados pelos Tutsis, ela se surpreende com a aparição de centenas de pessoas da comunidade que decidem cavar para revelar, através da cruel pedagogia dos ossos, uma verdade que estava enterrada.

“She risked her future to uncover her past“, diz a frase no cartaz de Black Earth Rising: de fato, Kate Ashby tornou-se um emblema, concedido à Humanidade por uma competente teledramaturgia, de alguém que tem a ousadia de ir atrás do desocultamento de verdades, por mais amargas e cruéis que sejam, arriscando seu futuro para desocultar seu passado. Ensina, assim, sobre a importância suprema de cumprirmos com nossos deveres de memória e com nossos trabalhos de justiça, pois a possibilidade dos genocídios do futuro dependem de nossa negligência presente em aprender com o passado. Se nos recusarmos à lembrança e não buscarmos trazer à justiça carrascos e genocidas, só estaremos contribuindo para que nosso futuro esteja tão repleto de atrocidades quanto nosso passado.

Na canção tema da série, o bardo canadense Leonard Cohen canta um sombrio folk que fala sobre “um milhão de velas queimando por uma ajuda que não veio”. Sinistro, Cohen evoca o serviço atroz daqueles que se engajam nas tarefas do obscurantismo e querem tornar tudo, para todos, mais escuro (“you want it darker? we kill the flame…”). Diante disso, precisamos ser os que re-acendem a Iluminação plena para que esta se espraie pela História, aumentando nossa compreensão corajosa dos horrores que se passaram, de modo a evitar os genocídios do porvir – infelizmente prováveis, possíveis e plausíveis em uma época em que estão empoderados genocidas-em-potencial como Jair Bolsonaro, racista, misógino, homofóbico, notório defensor de Ditaduras Militares, fã de criminosos-contra-a-humanidade como Ustra, Pinochet e Stroessner, que prega o extermínio de opositores políticos e jamais escondeu suas posturas de supremacista branco que mede “afrodescendentes” em “arrobas”.

Em meio à pandemia de covid-19 em 2020, vimos Bolsonaro ser denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional de Haia que é cenário para Black Earth Rising. O presifake brasileiro, denunciado por incitação ao genocídio, demonstrou através de sua criminosa irresponsabilidade perante à crise da saúde coletiva, e também por sua participação em atos públicos que demandavam o colapso das instituições democráticas, que é um atroz agente de uma necropolítica do assassínio-em-massa e do ocultamento da História.

O Bolsonarismo deseja desmantelar o direito do povo brasileiro à memória e à justiça, cuspindo naqueles que trazem à luz os ossos de nosso passado real como se não passassem de cães, quando na verdade são figuras como o “Seu Jair” que, através da História, propiciaram as condições para os “massacres administrativos” e para a “banalidade do Mal” de que nos fala Hannah Arendt. Black Earth Rising nos ajuda a aprender que a atrocidade terá longo futuro enquanto formos incapazes de iluminar, com nossa compreensão e lucidez, com a coragem de nosso conhecimento, as atrocidades passadas e hoje ainda infelizmente tão possíveis. Só o passado iluminado pela lucidez atual é capaz de dar força e energia para que a geração atual possa ir mudando os rumos que já se mostraram que conduzem ao abismo e à carnificina.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020

Link para este artigo:
https://wp.me/pNVMz-6p1.

REFERÊNCIAS

[1] JOYCE, JamesUlisses.

[2] BLICK, Hugo. Entrevista à BBC.

[3] GOUREVITCH, Philip. Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas FamíliaCia das Letras.

[4] MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom, 1995.

[5] POWER, Samantha. A Problem from Hell: America and the Age of Genocide. 

VÍDEOS RECOMENDADOS:

SAMANTHA POWER:

LINKS DE INTERESSE: The GuardianCineset

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Conheça o thriller distópico “Soylent Green: À Beira do Fim” (1973), que representa NYC na década de 2020

por Eduardo Carli para A Casa de Vidro

Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Greendirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).

Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!, Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.

Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”:  o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.

A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.

Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.

Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.

O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.

Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).

Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.

In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)

No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.

O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…

O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”

O artigo excelente de Maria Ramos em Bitch Flicks destaca muito bem os elementos de crítica do sexismo / machismo que a obra traz:

Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”

Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.

Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.

Supostamente fabricados a partir de planktonsos alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.

Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal. 

Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news marketing. 

Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.

O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em ParasitaO Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.

Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)

É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.

O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.

A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.

Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.

Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.

O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.

SOYLENT GREEN

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 19/04/2020
http://www.acasadevidro.com

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Beijar o pó, flertar com a ruína, ir à falência, tudo isto pode destruir uma carreira artística de modo que ela nunca mais se levante. Mas pode também – o que é mais raro – ensinar preciosas lições para que da queda se faça uma reviravolta. Uma re-ascensão.

Se o sujeito é capaz de suportar vivo a seu queda, se sabe atravessar o declínio e não se deixar destruir por completo por sua fall from grace (para lembrar da bela canção do Blackberry Smoke), se conseguir tirar disso lições, pode voltar a subir. Como um Ícaro que tivesse recolado suas asas após o primeiro tombo para alçar vôo de novo.

A punk rocker Becky Something – em interpretação magistal de Elisabeth Moss – encarna este aprendizado com a queda em Her Smell (2018), o pulsante filme de Alex Ross Perry.

Atriz das mais impressionantes em atividade nos últimos anos, Elisabeth Moss (uma das protagonistas da série The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia) empresta a Becky toda uma confusão de espírito e cacofonia de ideias que evoca aquela interpretação de Gena Rowlands no clássico A Woman Under The Influence – Uma Mulher Sob Influência (1974). Este filme, uma das obras-primas de Cassavetes, compartilha com Her Smell o desejo de erguer uma catedral fílmica onde o espectador possa mergulhar na decifração de um enigma em forma de mulher.

Mas o que em Cassavetes era focado na domesticidade, numa crônica das excentricidades domésticas da personagem pouco conformista de Rowlads (em uma das mais incríveis performances de uma atriz na história do cinema), em Her Smell torna-se um rolê pelos submundos da cultura rocker alternativa. Um passeio audiovisual que nos leva, aos turbilhões, aos camarins de backstage de uma estrela-do-rock em decadência.

Becky, afinal, é flagrada pelo filme em um momento de crise: tendo abandonado qualquer tipo de vida doméstica, ela está em uma turnê tensa e atribulada, liderando sua banda Something She, mas tretando feio com as outras duas minas que compõe o power-trio. A filha de Becky está sendo criada pelo pai, e este não tem recebido quase nenhuma ajuda de sua ex-esposa Becky – nem da financeira, nem da afetiva. Aquela criança, violentamente jogada ao turbilhão de um relacionamento difícil que ferve de mágoas e recriminações, que pega fogo em brigas nos camarins, também me evocou lembranças do enrolado enlace de Kurt Cobain e Courtney Love que gerou como prole Frances Bean Cobain.

Na época da gravidez, Courtney Love foi escorraçada na imprensa, sobretudo numa reportagem da Vanity Fair que denunciava que a vocalista do Hole teria usado heroína com Frances ainda em seu útero (saiba mais lendo o célebre artigo “Strange Love” de Lynn Hirschberg). O texto comparava o casal mais célebre do grunge com Sid Vicious e Nancy Spungen – e contribuiu para que Frances, por um breve período, tivesse sua custódia retirada dos pais pela justiça.

Em Her Smell, Becky também é flagrada em situações em que pode acarretar malefícios à sua prole – como naquela cena bem doida em que, interpretando as palavras de seu xamã, ela aponta o dedo para a criança, em atitude de Medéia, dizendo que aquela criatura seria a causa de sua queda.

Becky é descrita quase sempre num estado de chapação, de incontinência verbal e comportamental, a própria encarnação da falta de auto-controle. Mas aí está também seu charme, aí está o segredo de sua potência expressiva: ela se prodigaliza, ela não se economiza. Mas, continuando assim, vai se reduzir logo a cinzas. A menos que aprenda outra via. Queimando com este fogo, ela ameaça causar queimaduras na filha, além de quebrar os ossos das companheiras com quem tem tido dificuldade de coligar em autêntica aliança.

Na verdade, a causa da queda não é outra senão o egotismo: aquilo que leva o pop star a se achar o fodão ou a fodona, a crer que não precisa de ninguém em específico, que pode brilhar sozinho e todos ao seu redor são peças substituíveis. O filme é uma escola em que Becky aprende, a duras penas, a superar seu ego inflado, seu narcisismo doentio, que a faz ser tão desagradável a todos ao redor em várias cenas do filme.

Dinâmica, inquieta e ansiosa, a câmera acompanha a incontinência e a intemperança das atitudes de Becky, mostrando-nos sua ânsia insaciável por atenção e aplauso, flagrando seus choques e conflitos com os agentes culturais a seu redor. Com frequência ela destrata as outras musicistas, trata-as como se fossem substituíveis e pouco importante – já que ela, Becky, a fodona, seria a alma e a essência da banda, a única insubstituível.

As outras podem vazar, caso queiram, pois logo se encontram replacements. Nestas ocasiões, ela age como a patroa de uma banda vista como empresa – e o resto da sua banda é tratado como proletário que se pode despedir, pois tem muita gente na fila, padecendo no desemprego, que toparia este trampo.

Ao mesmo tempo que peca pelo excesso de auto-celebração e desprezo pelas outras, Becky está na escola da vida – e quando tomba ao chão, rasgando a testa, consegue re-erguer-se com a ajuda de outros. Ela saboreia esta experiência amarga e doce – amarga pois ninguém gosta de derramar o sangue da própria cabeça no chão após um tombo, mas doce pois é bom descobrir que, quando caímos, tem alguém que se preocupa o bastante para ir lá nos levantar, limpar nosso vômito e nos ajudar a encontrar uma estrada menos destrutiva.

E assim Becky vai aprendendo que os outros não são os meros coadjuvantes de sua história. Ela vai descobrindo, com crescente clarividência, que cada um é o protagonista de sua própria vida. Mas que qualquer vida pode certamente ir ao naufrágio quando este protagonista deseja que os outros sirvam apenas como coadjuvantes, submissos e subservientes diante da vontade tirânica da “estrela”.

Por isso, Her Smell nos joga no meio de toda a lama da fama. Uma lama que se recalca e se oculta nas narrativas tradicionais da Indústria Cultural, interessada em nos fazer crer em contos de fadas sobre as “estrelas”, em especial para que, através do consumismo, sejamos os idólatras que engordam os lucros destas empresas.

Keyart for Last Days.

Cabe aos cineastas de talento nos fornecerem um quadro mais realista da vida real dos famosos – como fez Gus Van Sant ao narrar os últimos dias antes do suicídio de Cobain em Last Days. Apesar da similaridade do contexto dos dois filmes, Her Smell Last Days distinguem-se enormemente: é que Her Smell, apesar de ser dirigido por um homem, é elevado, pelas atuações de Moss e suas companheiras de elenco, a uma espécie de emblema da sororidade (do latim soror, irmã, que torna-se, em francês, souer, e em inglês, sister). O filme é sobre a busca, através da música e usando como instrumento a “banda”, de um ruidosa sisterhood. 

De certo modo, o filme retrata um Samsara: Becky quase sempre ególatra, solitária em meio à multidão, criando obstáculos para a afeição com suas companheiras de banda, afundando-se em auto-destruição etc. Ela vai levando seus nervous breakdowns até perigosos limites, a ponto de, numa cena hiperbólica, acabarem por algemá-la. Como uma fera acuada por aqueles ao seu redor, que frequentemente se mostram oportunistas e control freaks, ela se revolta: Becky esperneia contra qualquer vontade que se oponha ao seu projeto egóico e grandiloquente de “brilhar”.

A tal da sororidade, da sisterhood, fica sendo, no filme, uma espécie de Nirvana inencontrável. Ou melhor: um ideal que paira no horizonte, em direção ao qual o aprendizado de Becky caminha, trôpego e cambaleante, e cuja vivência o filme reserva para poucos momentos de êxtase grupal sobre o palco.

Pois se Her Smell reserva ao espectador um final semi-feliz, uma catarse dos sofrimentos prévios, se após nos conduzir pelo labirinto, angustiados com Becky, nos conduz às explosivas cenas finais, onde as mulheres sobre o palco tornam-se unas através da música punk e dos bonds invisíveis entre elas, este desfecho-em-felicidade só é possível pelos sofrimentos que Becky pôde transformar em sabedoria. Ainda que esta possa ser provisória, precária e perdível, Her Smell nos entrega um final que comunica esperança: da cacofonia de irracionalismos em que estava atolada, em seu Samsara pessoal, Becky encontra jeitos de abrir caminhos para a união solidária através da arte. Descobre que sem suas amigas ela não é nada. Que ninguém é porra nenhuma sozinho.

Donde aquele “ritual” de sororidade que precede a entrada no palco para a cena final, ritual que aquece o organismo coletivo para o glorioso revival de uma “estrela” que, se segue a queimar, é pois aprendeu que ninguém queima sozinho – que uma fogueira artística exige incendiários unidos.

O ritual consiste numa roda de mulheres que expressam sua co-dependência e sua co-confiança, cada uma diz às outras: estou aqui para você, e agradeço por estarem aqui comigo. É uma terapia contra as solidões do egotismo, contra tudo que nos prende no desastroso desejo de gozar dos privilégios excludentes, ao invés de investir no benévolo acordo de compartilhar com outros dos bens comuns e dividíveis.

Esta punk rocker, falível, imperfeita e cheia de explosões, no rollercoaster de sua gangorra de ânimos, quase sempre chapada e um pouco confusa com seu próprio mundo subjetivo, aprende na sarjeta a valorizar os outros que, pela vida afora, destratou, feriu e magoou.

Através do filme, ela é mostrada no processo dinâmico e confuso de atravessar este seu Samsara não apenas como espectadora de uma catástrofe, mas como a protagonista de sua própria existência, responsável por forjar vias para algum satori possível. Aprendendo, na escola cruel e salutar das feridas, que um excesso de “protagonismo” aniquila qualquer projeto de coletivismo comunitário. Que querer ser protagonista demais expulsa os outros para a condição de subservientes coadjuvantes, mas que esta experiência, para os outros, por dentro deles, é inaceitável – pois são, como já dito, os protagonistas de suas próprias vidas e não querem ser relegados às sombras.

Aprendendo, como uma rolling stone do movimento riot grrrl, que o mais importante não é estar solitária sobre um pedestal frio, mas sim o estar solidária em um projeto de comunhão estética com suas amigas, Becky acaba se tornando símbolo de amadurecimento emocional.

Becky precisou tomar aquele tapão na cara de Marielle para dar uma acordada para o fato de que sozinha ela nunca estaria num pedestal, mas sim numa sarjeta. Se insistisse em seu egotismo, em sua vaidade, em seu pesado eu samsárico, ela seria ceifada pelo sistema e seria abandonada como uma uva passa podre, para que os próximos pop stars pudessem avançar na fila e ter seus 15 diazinhos de fama.

Elisabeth Moss plays Becky Something, a punk singer struggling with substance abuse, in the new film Her Smell. “It was the hardest dialogue I’ve ever had to learn,” she says.

O filme nos lança a este Samsara, a este labirinto, desta mulher lidando com seus demônios em público, rodeada por câmeras, com várias ocasiões em que está sob as atenções dos holofotes e permeada pelos gritos, uivos, vaias e palmas de uma platéia cacofônica.

Her Smell não consegue se alçar mais alto por causa da música, que não está à altura da performance da atriz – faltou, para Elisabeth Moss, uma trilha sonora à altura de sua atuação. Faltaram composições melhores, letras mais fortes, de modo que o filme vale mais por seu lado dramatúrgico do que propriamente por seu valor musical – em minha opinião, faltou ao projeto conseguir gerar uma trilha-sonora que tivesse algo daquilo que fez de Live Through This, do Hole, o lendário álbum grunge-punk de 1994, uma espécie de obra-prima da angústia feminina musicada.

“Even if you have serious reservations about punk-rock brats living on major-label largesse or believe profanity is the last refuge of the inarticulate, the sheer force of Love’s corrosive, lunatic wail — not to mention the guitar-drum wrath unleashed in its wake — is impressive stuff, a scorched-earth blast of righteous indignation as feral and convincing as anything in Johnny Rotten’s bark-and-spittle repertoire. (…) Even before she ascended to celebrity spousehood, Love was the scarred beauty queen of underground-rock society, a fearless confessor and feedback addict whose sinister charisma — part ravaged baby doll, part avenging kamikaze angel — suggested the dazed, enraged, illegitimate daughter of Patti Smith.” – DAVID FRICKE NA ROLLING STONE

Becky Something é de fato uma figura Courtney Lovesca: a gente não sabe se a ama ou se a odeia. Ambas são figuras polêmicas e polarizadoras. Estranhamente, apesar de sermos incapazes de contar com as mãos os defeitos destas mulheres pois acabam faltando dedos, em ambos os casos há algo extremamente sedutor, algo de irresistível mesmo, nas jornadas expressivas destas mulheres em seus Samsaras. Há o charme de subjetividades em incandescência que se recusam ao destino triste do mutismo.

Em um artigo para a Pitchfork em que deu nota 10.0 (máxima) para o álbum com que o Hole acabou por tatuar pra sempre a história da cultura de 1994, após o suicídio de Cobain e a morte súbita e precoce do Nirvana, Sasha Geffen explorou outro tema importantíssimo que está em Live Through This: o modo como a sociedade, machista e patriarcal, busca estigmatizar a expressão feminina de afetos como a fúria, a revolta ou a indignação como se fossem sinais de loucura, meros sintomas histéricos.

Courtney Love supostamente tirou o nome da banda – “Buraco” – da peça Medéia de Eurípides. Ao menos esta é a explicação intelectual que ela deu para um nome que também ressoa, como é evidente, repleto de conotações sexuais (uma piscadela de olhos para os orifícios genitais) e que pode evocar também algo da vida punk e sarjetosa de quem vive numa casa tão podre, tosca e insalubre que mais merece o nome de buraco.

A questão que Sasha Geffen destaca é o quanto, desde a tragédia grega, figuras como Medéia servem para encarnar o desatino feminino, a incapacidade de controle passional, a hýbris perigosa de criaturas pouco racionais, incapazes de sophrosyne, que cairiam frequentemente nos excessos funestos dos amores loucos e dos ódios selvagens. Visão masculina da mulher, permeada de paranóia falocêntrica.

Sasha, lendo Courtney Love como uma espécie de Medéia do grunge, afirma que ali não há delírio, mas sim anger. Se há hýbris (e como negar que haja?), pode ser o excesso de uma angústia justificada que quer se expressar. Como fez Cobain – e a história da música nunca seria a mesma. Courtney Love – que pôs sua foto de criança na contra-capa do álbum – foi em 1994 um emblema de mulher que ousa confrontar estereótipos de uma sociedade da dominação masculina que quer sempre domar a female anger através de estratagemas como a presunção de loucura. É mais fácil “tacar pedras na Geni” do que compreendê-la. Similarmente, é mais simples xingar Courtney Love de doida varrida, ao invés de ouvir o grito primal de catarse da angústia que atravessa sua arte em Pretty on the Inside, Live Through This e Celebrity Skin.

Evidente que a própria Courtney, rodeada pelas tentações de encarnar a boneca loura e sexy que faz sucesso nas paradas, muitas vezes se portou como a Marilyn Monroe do grunge, e até hoje vive dos louros e lucros de ter “se vendido” ao sistema, ao menos parcialmente. É esta gangorra entre o vender-se e o revoltar-se, e as contradições também de uma revolta cooptada e mercantilizada pelo próprio sistema que está sendo criticado pelas atitudes grunge-punk, que torna o destino de Courtney Love tão interessante.

“There’s no lunacy on Hole’s records. But there is anger, female anger, which, to a man’s ear, historically scans as madness. Lead singer Courtney Love often told reporters that she named her band after a line in Euripides’ Medea. “There’s a hole that pierces right through me,” it supposedly goes, though you won’t find it in any common translation of the ancient play. It’s apocryphal, or misremembered, or Love made it up to complicate the name’s obvious double entendre—either way, it makes a great myth. A band foregrounding female rage takes its name from the angriest woman in the Western canon, a woman so angry at her husband’s betrayal she kills their children just so he will feel her pain in his bones.

Like all female revenge fantasies written by men, Medea carries a grain of neurosis about how women might retaliate for their subjugation. It is easier, still, for men to express these anxieties by way of violent fantasy than it is for women to communicate their anger at all. ” – SASHA GEFFEN NA PITCHFORK 

Em Her Smell, temos algo bem similar ao universo Love-Cobainiano, e somos lançados também, por um cinema que parece honrar a tradição de Cassavetes, à tarefa difícil da empatia com uma mulher que seria mais simples – e mais cruel – simplesmente rotular de louca e pedir a camisa-de-força. É a tática dos poderes que, diante de mulheres excêntricas, diante de corpos insubmissos, diante de línguas com a lábia em chamas, tomam medidas para não ter que escutá-las, acolhê-las, ouvi-las em toda sua assustadora e maravilhosa dissonância.

Chamar uma mulher de louca é um subterfúgio canalha dos machos para não ter que reconhecer a legitimidade da expressão feminina, para forçar a tendência autoritária para que a mulher seja recalcada, trancada nos lares (ou nos hospícios), silenciada por psicotrópicos, tratado como mera louca, bruxa, feiticeira, a ser enjaulada para o bem da Sociedade dos Cidadãos de Bem…

Em Her Smell, este processo de expressão está no centro do foco: Becky Something não quer fazer apenas música pop chiclete, ela está em busca de algo explosivo, de algo impactante – e quando conhece as três Akergirls, que vão lhe servir de banda de apoio, ela revela toda a sua ambiguidade psíquica. A um só tempo, mostra-se extremamente ególatra e mandona, de um lado, mas intensamente ciente da importância do bonding entre as mulheres que ali tentavam fazer músicas juntas, por outro. Ela ali vacila, de modo humano demasiado humano, entre o egotismo e a sororidade.

Como jornada de aprendizagem da sororidade, o filme mostra de que maneira o ego polvilha obstáculos que nos prendem no labirinto do Samsara, sugerindo que a empatia e a solidariedade da sisterhood são o único caminho para a conquista, ainda que precária, de um êxtase ruidoso d’um Nirvana-mulher. O machismo estrutural reinante e a sociedade da dominação masculina não gostam de ser lembrados, mas é uma verdade autêntica: as mulheres muitas vezes aprendem melhor do que os homens as lições da escola da vida, conquistando uma sabedoria relacional que está vedada a todos os machos ainda presos na bolha horrenda e solitária da toxicidade machista, misógina e homofóbica.

Afinal de contas, todo o sofrimento samsárico de Her Smell é um processo purgativo, uma catarse fílmica, que a Psiquê de Becky atravessa, vivendo através disso como Courtney em 1994. Este atravessar de um Samsara, para sair transformado do outro lado desta mesma vida, parece-me ter tudo a ver com a descoberta de que a arte deve unir e não isolar. O aprendizado de que ser uma rock star sozinha com os ouropéis da glória é uma ganância cega e estúpida. Aquilo que conta de verdade é o que fazemos juntos, com forças somadas e vozes em coro, com instrumentos em sintonia e timbres em interrelação, no colorido caótico e lindo de vidas-em-teia, que só quando unidas tornam-se um organismo coletivo de energia indomável.

E aí, diante de filmes assim, dá vontade de lembrar ao Macho Man tóxico, ou ao Macho Palestrinha, ou ao Metaleiro Hiper Ogro, figuras que muitas vezes vomitam babaquices sobre a “masculinidade do rock”, que seria “viril em sua essência” ou alguma baboseira assim, que na verdade esta porra chamada rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer chamada Sister Rosetta Tharpe. E, desde então, através de Bessie, de Aretha, de Janis, de Big Mama, de Patti, de Siousxie, de Corin, de inúmeras outras mulheres roqueiras, revelaram-se ao mundo caminhos rock’n’roll para a expressão de uma atitude na vida onde a união faz a força (de fato e fora do slogan) – e onde a empatia é a única religião, já que tudo que realmente importa é fruto da ação coletiva e não da “genialidade” individual.

Sister Rosetta Tharpe, uma das precursoras do rock’n’roll.

Os movimentos punk e riot grlll empoderaram a voz feminina dissonante e subversiva. Propiciaram a ruptura dos estereótipos, em altos decibéis, fazendo arte belíssima através de artistas geniais como o Sleater-Kinney; como os projetos da galáxia Kathleen Hanna (Bikini Kill e Le Tigre) e da constelação Brody Dalle (The Distillers e Spinnerette); como o cometa The Gits (de trajetória tragicamente encurtada pelo assassinato contra Mia Zapata); do terromoto-popgrungy do Garbage (liderado por Shirley Mason); dentre tantos outros exemplos. São mulheres que ousaram romper com o modelo da beauty queen, que ousaram levar o tal do “lugar de fala” para um local bem menos delicado e domado do que os machistas desejavam.

E, no entanto, Samsara e Nirvana transcendem o gênero – e uma sabedoria que transcenda a egolatria, e que se abra para a ciência da interconexão entre nós, diz respeito a todos a despeito de nossas variadas genitálias e nossas diversas identidades de gênero e orientações sexuais. Obras de arte como Her Smell ecoam a mensagem de grandes álbuns da história da condição humana musicada por mulheres como Live Through This (Hole), como Sing Sing Death House (Distillers), como One Beat (Sleater-Kinney). Álbuns que amo e que muito me ensinaram – infelizmente, pouco ouvidos por aqueles que mais precisariam aprender com eles.

São álbuns que são monumentos à resiliência. Mas são também álbuns em que a mulher é protagonista não como indivídua isolada, mas como força coletiva. Mulheres pulsando na mesma batida, vivendo através dessa tragédia toda, aprendendo na prática os desafios de uma sororidade sempre por reconstruir. Lutadoras de um Samsara que só se faz Nirvana quando a força solidária do nós lança por terra a egolatria isolacionista do eu.

Esta encruzilhada fala algo sobre o destino trágico do Clube dos 27 (Kurt, Jimi, Janis, Jim, Amy…), mas aqui o que nos interessou foram as sobreviventes, as resilientes, as Ícaras. As que souberam pegar um ego que as conduziria à auto-destruição, que souberam estraçalhar este ego em pedacinhos e, de seus estilhaços no chão, souberam criar, com a ajuda dos cacos de outras, um cacofônico mosaico não só da condição feminina, mas da condição humana como vivida pelas mulheres. É arte que nos interessa a todos – e pobre de quem pensa que isso é “música para meninas”!

Nestas obras, manifestam-se mulheres que são diversas mas não dispersas – como gostava de dizer Marielle Franco. Mulheres cuja beleza se torna indomável e irresistível quando conseguem, enfim, na consumação da sisterhood através da arte que as coliga, atingir uma polifonia através da qual falam – sem mais medo, agora tão mais livres! – como mulheres ingaioláveis. Bucetas ingovernáveis. Forças de renovação em festa.

Quebrando as correntes da tragicomédia de uma existência onde não faltam forças alheias querendo reduzi-las à submissão, elas levantam-se juntas, pois pode ser clichê mas não deixa de ser o cerne do rolê: together we stand, divided we fall. Todo este grunge explodindo dos amplificadores, eletrizando o público, matando a apatia eletrocutada, é uma espécie de prova viva (e elétrica) de que sempre haverá anger de sobra para elas, mulheres insubmissas como Ana Tijoux e como Patti Smith, como Rebecca Lane e como Larissa Luz, como Joan Baez e como Bia Ferreira…

Mulheres que sabem da força que há na irmandade e que vão sempre se recusar, juntas, a aceitar caladas a subserviência. Elas seguirão, para o bem de todos nós (inclusive dos que pensam que estão sendo prejudicados ao terem feridos seus injustos privilégios), afirmando em alto e bom som uma autonomia sempre negada e sempre re-afirmada, sempre combatida por adversários escrotos e sempre renascida, do seio e das vísceras delas, refazendo seu vôo a partir de todas as cinzas.

Por Eduardo Carli de Moraes pra A Casa de Vidro
Goiânia, 16 de Março de 2020

“When women get angry, they are regarded as shrill or hysterical…One way around that, for me, is bleaching my hair and looking good,” Courtney Love told the New York Times in 1992. “It’s bad that I have to do that to get my anger accepted. But then I’m part of an evolutionary process. I’m not the fully evolved end.”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRICKE, DavidLive Through This. In: Rolling Stone.

GEFFEN, Sasha. Hole’s Live Through This. In: Pitchfork.

HIRSCHBERG. Strange Love: The Story of Kurt Cobain and Courtney Love. In: Vanity Fair. 

O último filme de Ken Loach faz uma radiografia da pandemia de “Uberização” laboral || A Casa de Vidro

A tragédia da riff-raff britânica na era da Uberização laboral: eis o cerne de Sorry We Missed You (Você Não Estava Aqui), novo filme do mestre Ken Loach (UK, 2019, 100 min), duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Partindo de uma narrativa que foca suas atenções sobre uma família específica, o filme manda seu recado sobre uma situação geral daquela fração da classe trabalhadora, em constante expansão, que inclui aqueles apelidados de infoproletários e de “Precariado” (analisados em minúcias, no Brasil de hoje, por cientistas sociais como Ruy Braga e Ricardo Antunes).

No roteiro escrito por Paul Laverty, o destino da família protagonista serve como emblema para a condição do Precariado na atualidade. Esta classe sofre com a insegurança extremada conectada à informalidade, com o colapso da jornada de trabalho de 8 horas e com a perda de direitos elementares à saúde, à educação e à previdência. Estes trabalhadores precarizados frequentemente são enforcados pelas dívidas, sendo assim algemados a neo-servidões e neo-escravidões.

Conquistas dos movimentos sindicais, sociais e revolucionários do passado vão se perdendo no grande desmonte privatista neoliberal conforme a crueldade capitalista adere às núpcias sinistras com o fascismo. Como ensinou Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio” – hoje, neofascismo e neoliberalismo tem transado em praça pública e sua prole é tenebrosa.

As linhas de montagem não são mais aquelas dos Modern Times de Chaplin (1936). São as linhas de montagem invisíveis do Ubercapitalismo, que cada vez pretende estender seu império a ponto de tornar-se ubíquo. Os prazos a cumprir no delivery de mercadorias são as novas cadências de velocidade brutal, linhas de montagem lançadas para fora das fábricas e adentrando cada vez mais o trânsito caótico dos grandes centros urbanos.

O “novo” patronato vai agindo contra o proletariado com a velha mentalidade escravista que as elites do atraso recusam-se a abandonarno mundo afora e não só no Brasil radiografado por Jessé Souza. O escravismo dá lucro, e por isso tanta adesão a ele por parte de patrões que, em termos éticos, estacionaram na História e desejam sobretudo a continuidade obscena de seu gozo de privilégios excludentes. Elites que agem com a sádica alegria com a desgraça alheia e o senso de superioridade de quem, na relação entre a bota e a face que ela pisa, está do lado de quem é o dono do pé pisoteante.

A rotina massacrante quebra a espinha do trabalhador uberizado e ifoodido. O protagonista de Sorry We Missed You é um emblema do pai de família que não consegue mais sentar direito a bunda na mesa-de-jantar de casa, tamanha a correria de seu trampo. Um trabalhador que atinge no filme um tal grau de exaustão que ele flerta com a auto-destruição. O cara chega a tal fundo de poço que está às beiras de enfiar sua van num muro e morrer no crash, deixando uma viúva e dois órfãos. O protagonista vai sendo lançado, por este sistema insano, a uma situação de nervous breakdown. 

Eis uma sociedade governada por elites econômicas que querem ensinar ao trabalhador que ele não deve crer na sua dignidade intrínseca – e ele muitas vezes interioriza este desrespeito alheio e torna-se auto-depreciativo. Como no diálogo em que o pai elogia a filha dizendo que ela é inteligente e esperta demais, e lhe diz: “com certeza você não herdou meu cérebro”.

Esta auto-derrisão também se manifesta quando ele exorta o filho a ser disciplinado na escola ao invés de pintar grafites pela cidade (ultimamente, inclusive com spray roubado): “não quero que você termine como eu”. O filho, que tem agido com uma atitude punky, num espírito à la Banksy, atua como a consciência crítica da família e despreza a perspectiva de entrar na universidade. Não que ele esteja dominado por um desprezo pelo conhecimento, mas sim sente nojo por toda a condição do universitário pobretão que só consegue estudar afogando-se em dívidas e aniquilando qualquer chance de ter tempo para lazer, cultura, contemplação e descanso.

Pois a realidade educacional anglo-saxã, onde o liberalismo impôs o avanço da escola-empresa e do conhecimento-mercadoria, na esteira das teoria do “capital humano” de Gary Becker, o universitário pobre é obrigado a trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Mesmo depois de formado é obrigado a trabalhar anos para pagar as dívidas contraídas, e durante seu curso é coagido a um sobretrabalho estafante que prejudica a qualidade de seu trabalho intelectual e de sua aprendizagem. Um contexto que lança seu mundo emocional no turbilhão da angústia e da ansiedade constantes, pois sabe que pende sobre sua cabeça a espada de Dâmacles dos credores papa-juros que ameaçam cortar sua cabeça nas guilhotinas do Mercado.

O filme de Loach é também brilhante no retrato contemporâneo do fenômeno da dívida – cuja história nos últimos 5.000 anos foi realizada pelo antropólogo anarquista David Graeber em Debt: The First 5,000 Years. O filho da família sabe que entrar para a universidade, para alguém de sua classe, consiste em botar o pescoço na guilhotina das tuition fees. O garoto sabe que a ascensão social via estudo, para alguém da riff raff, só é algo plausível sob o domínio de um cruel endividamento que iria tornar ainda pior a situação financeira familiar.

Escultura de Cain Motter

O filme de Loach, ultra-realista, faz o retrato de uma classe down’n’out na Grã-Bretanha do Brexit. Uma gente que os banqueiros tratam como arraia-miúda e que interessou a George Orwell – autor do crucial livro de ensaios  Como Morrem Os Pobres (Cia das Letras), que aqui Loach parece querer atualizar para nossos tempos.

O teor trágico de Sorry We Missed You vem da ausência de perspectivas revolucionárias. Nem mesmo algum tímido sindicalismo reformista dá o ar de sua graça no filme (nada do “espírito Norma Rae“, do entusiasmo Martin Rittiano pela mobilização proletária, aparece por aqui). O pai-de-família que protagoniza a obra desce ao inferno-na-terra ao ser alvo de múltiplas opressões cruzadas, apesar de ser um homem, branco e hétero (suposta epítome do estereótipo do opressor).

Cúmulo de seu destino enquanto oprimido desta sociedade de opressões que se interseccionam é aquela série de cenas em que ele é literalmente roubado após ser esmurrado, chutado e encharcado com o próprio mijo. Depois é cobrado pelo patrão pelo prejuízo acarretado ao equipamento da firma pelos assaltantes. Todo quebrado e fodido, no hospital, esperando o resultado do raio-X, ele passa por esta humilhação suplementar. A esposa não aguenta e explode em indignação contra o patrão do esposo pelo telefone.

Em uma cena-chave, o patrão havia se gabado dos índices de produtividade de sua empresa, supostamente “de elite” em toda a Great Britain. As atitudes senhoriais são justificadas com um apelo à ideia de que os clientes só se importam em receber os produtos que encomendam na hora certa – e estão pouco se fodendo em relação ao bem-estar dos que trampam nas vans, motos e bikes deste enxame crescente de “entregadores de aplicativo”.

– Alguém genuinamente já te perguntou como você está, quando você aparece na soleira da porta após tocar a campainha com um pacote em mãos? Acha que os clientes se importariam se você batesse as botas ao chocar a van contra um muro?

Quando um patrão trata seu “sócio” desta maneira podemos ter certeza de que não se trata de uma relação simétrica entre dois “patrões de si mesmos” que estão em negociação. É uma relação assimétrica e injusta onde burguês e proletário seguem existindo, apesar de mascarados pelas novas noções de CEO e “empreendedor”. Um abismo de desigualdade social imensa separa estas duas posições.

Neste mundo de colapso generalizado da empatia, da pandemia duma frieza de coração, empedernida e violenta, a ideologia tóxica do neoliberalismo empreendedorista surge para tentar nos convencer de que o egoísmo é parte da natureza humana. Mas não é, como argumenta o filósofo australiano Roman Krznaric em O Poder da Empatia: o egoísmo não pode ser descrito como intrínseco e inato à natureza humana, como querem muitos liberais, pois sua manifestação atual, enquanto individualismo empreendedor, é produto de uma ideologia inculcada e de um imenso aparato de doutrinação. Nurture, not nature.

O sistema de remuneração por produtividade prejudica a classe trabalhadora pois os detentores do poder sempre podem, na ausência de regulações estatais que coloquem freios no laissez faire do Mercado, puxar as metas para cima, exigindo ritmos e durações laborais incompatíveis com a dignidade humana.

Inculca-se a ilusão, na cabeça do precário-proletário, de que ele seria proprietário de um meio de produção, quando na verdade ele é unicamente o dono de um carro, uma moto ou uma bike. O sujeito quer tratar a si mesmo como empreendedor, um “patrão de si mesmo”, mas na real isso mascara a brutal desproporção entre os donos dos meios de produção e concentradores de capital – o Patronato! – e o enxame dos que não tem nada senão o poder de se deixar explorar por 12 horas ao dia por um salário de miséria ganho com o suor do próprio rosto, enquanto os CEOs de empresas como Uber e Ifoods ficam no bem-bom, vagabundeando em suas jacuzis nas suas mansões de 500 milhões de dólares no Vale do Silício.

Na real, o trabalhador ifoodido não possui direitos trabalhistas, não tem direito a adoecer e se tratar, obviamente não tem direito ao lazer e à cultura – nem mesmo, muitas vezes, tem o direito de mijar no banheiro (o protagonista do filme de Loach é obrigado a fazer xixi numa garrafa). Enquanto  os donos da Uber, da Ifoods ou da Rappi ficam bilionários apenas gerindo sistemas informacionais e logísticos, os empreendedores labutam como condenados, muitas vezes sem direito a fim de semana e férias, para girarem na roda da miséria como nas torturas gregas impostas a Íxion, Sísifo ou Tântalo. Eles são a nova-versão do “homem-boi” de Taylor, satirizado em versão equina, com verve sarcástica, no provocativo filme Sorry To Bother You, de Boots Riley.

Marilena Chauí, em entrevista recente, aponta que a ilusão de independência do moderno precariado acaba sendo bastante difícil de desconstruir. Sempre em trânsito, essa força de trabalho perde o tempo que poderia ser dedicado às conversas com seus iguais. Eles lhe aparecem como competidores, apenas. Sobra-lhes um espaço público degradado por obstáculos que sacrificam o pensamento independente pois exigem constante atenção ora a um buraco na rua, um cachorro a persegui-los ou um guarda indisposto.

Uma rotina que lembra a dos “negros de ganho” do Brasil colonial (que “eram aqueles que trabalhavam e que repassavam todos os seus ganhos a seus donos”). Ao precariado, a posse de um veículo automotivo e a possibilidade de mudar de senhor já são um engodo poderoso o suficiente para estabelecer um líquido sistema de servidão voluntária. Nele, como diz a filósofa Marilena, as pessoas já não se definem pela sua ocupação ou pelo seu contrato de trabalho. Em um mundo liquefeito como lama, ora sou entregador, ora sou garçom, ora sou manobrista, ora trabalho das 7h às 22h, ora das 22h às 7h: isto seria liberdade, ou somente a nova encarnação da servidão voluntária?

Quando possível, os precários caem no desemprego e tentam recuperar-se dessas jornadas exaustivas gastando irrisórios seguros-desemprego (quando a eles tem direito). Quando seguem na informalidade, pulando de trampo precário em trampo precário, como breve bálsamo para suas torturas cotidianas gozam no consumismo com suas parcas economias. Um consumismo frequentemente movido a crédito e financiamento – ou seja, propulsionado a dívida.

Através de seus filmes recentes, Ken Loach faz a crítica de um sistema que quer convencer “as pessoas mais vulneráveis da terra” de que “a pobreza é sua própria culpa”. Ou seja, a ideologia meritocrática, ancorada no racismo estrutural (como argumenta Silvio de Almeida), quer persuadir que os ricos são ricos por seu próprio mérito (e não pelo roubo, exploração e desumanidade que praticam em sua crudelíssima ação de classe).

Despontam muitas perguntas, ainda sem respostas, incitadas pelos filmes deste mestre britânico da 7ª arte: será que o cinema recente praticado de Ken Loach, com sua vibe meio bleak, seria um fator desmotivador das lutas anticapitalistas? Em outras palavras, seus filmes comunicariam um sentimento de desolação que poderia conduzir a uma certa apatia? 

Em certa medida, parece-me que sim: Sorry We Missed You Eu Daniel Blake parecem-me filmes um tanto desanimadores, que parecem se desenrolar sob o signo da derrota de uma certa esquerda. É como se John Lennon, aos 29 anos, quando dizia que “o sonho acabou”, estivesse de fato com a razão – e o octagenário Ken Loach estivesse fazendo o cinema para prová-lo. Um certo clima de there’s no alternative espraia uma energia deprê por estas narrativas.

O sonho utópico não dá o ar de sua graça nestes filmes de Loach – pelo menos não de maneira explícita. No máximo, podemos falar de algum utopismo subliminar, envergonhado de si mesmo, que ousa se manifestar apenas de viés, através do elogio ético da empatia e da solidariedade, mas sem ousar encarnar esta aspiração em algum movimento cidadão ou partido revolucionário.

Sob o signo da derrota, Ken Loach sempre desenvolveu seu poderoso cinema. Os últimos filmes parecem mergulhados na atmosfera da derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbin diante do triunfo dos Brexit-ers à la Boris Johnson. Sob o signo também da derrota dos movimentos sociais que defendem serviços públicos de qualidade e inclusão social, ainda que no horizonte limitado do welfare state. Derrotas às mancheias. Mas será que Ken Loach está nos propondo a resignação? Está nos contaminando com a atmosfera da desistência? Está nos conduzindo à admissão de que perdemos, e à decisão de abandonar a arena de luta?

Não necessariamente, e neste aspecto é preciso colocar sua obra recente no contexto de sua filmografia. O italiano Enzo Traverso, um dos maiores pensadores políticos contemporâneos, que leciona em Cornell (Ithaca, Nova York), dedicou algumas das páginas mais lindas de seu livro Melancolia de Esquerda a este “derrotismo” de Loach. Ali, analisa principalmente o modo como Loach retrata derrotas em seus melhores filmes – como fez em seu retrato da Guerra Civil na Espanha (1936 – 1939) em uma de suas obras-primas, Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), premiado com a Palma de Ouro em Cannes:

“Em Terra e Liberdadeé a revolução em si que se transforma em domínio da memória, evocada e ‘vivida’ com empatia e uma nostalgia dilacerante, ainda que o olhar melancólico de Loach seja o oposto da resignação. Muito além de uma homenagem à revolução espanhola, seu filme queria mexer com o zeitgeist conformista dos anos 1990, além de contestar  a representação convencional da Guerra Civil Espanhola como uma catástrofe humanitária.

Sob esse ponto de vista, Terra e Liberdade surge quase como um antípoda de Soldados de Salamina (2001), o aclamado romance de Javier Cercas em que uma trágica dimensão da guerra não deixa lugar para esperança nem motivo para o engajamento político. (…) Terra e Liberdade descreve uma experiência histórica encerrada que, epítome da derrota das revoluções socialistas do século XX, claramente transcende as fronteiras espanholas.

O protagonista do filme é um jovem proletário de Liverpool, David Carr (interpretado pelo ator Ian Hurt), que vai para a Espanha não para participar de uma conferência internacional em defesa da cultura, mas com o intuito de lutar nas Brigadas Internacionais. Lá David completa sua educação política e sentimental, desenvolvendo valores e convicções que não abandonará pelo resto da vida.

(…) A última cena retrata o enterro do protagonista: a neta lê um poema de William Morris, ‘O dia está próximo’, que reafirma a visão socialista da memória: ‘Vem, junta-te à única batalha onde ninguém pode perder / onde aquele que morre ou desaparece / em seus feitos, porém, prevalece.’ Em seguida, a neta desata o nó do lenço e joga a terra da Espanha no túmulo. Eles foram derrotados, mas outros seguirão lutando e ganharão. Essa conclusão convencional encerra um filme que é um monumento às revoluções do século XX.” (TRAVERSO, Melancolia de Esquerda, Ed. Âyiné, 2018, p. 232)

O cinema de Loach, ao retratar derrotar, não quer nos resignar ao derrotismo, mas nos conduzir àquela lucidez que Gramsci consolidou numa frase lapidar: temos o direito ao pessimismo da inteligência, mas precisamos do otimismo da vontade. Ao pintar a via-crúcis de Daniel Blake ou da família de Sorry We Missed You, este cineasta magistral está querendo nos comover para os destinos que um sistema desumano massacra cotidianamente – não para que nos resignemos a assistir a isso de braços cruzados, mas para que possamos ir à luta em prol da construção difícil e infindável de algo melhor.

 

Por Eduardo Carli de Moraes e Gisele Toassa,
Goiânia – Março de 2020
http://www.acasadevidro.com

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O ator Willem Dafoe e o cineasta Abel Ferrara colaboraram em 4 filmes – Conheça “Tommaso” (2019), drama filmado em Roma

Um dos grandes atores do cinema contemporâneo, Willem Dafoe – célebre por encarnar Jesus em “A Última Tentação de Cristo” (de Scorcese, adaptando o romance de Kazantzakis) ou por interpretar o marido da personagem de Charlotte Gainsbourg em “O Anticristo” (de Lars Von Trier) -, realizou uma tetralogia de filmes dirigidos por Abel Ferrara: “4:44 – O Fim do Mundo” (2011), “Pasolini” (2014), “Tommaso” (2019) e o inédito “Sibéria” (2020). São 4 pungentes e desafiadoras oportunidades estéticas pra se pôr diante da obra-em-movimento de 2 artistas imensos.


Escrito e dirigido por Ferrara, “Tommaso” (2019) traz Willem Dafoe encarnando uma espécie de alter-ego do cineasta; tanto que o ator contracena com a própria esposa atual de Ferrara, Cristina Chiriac, e a filha deles, a pequena Anna Ferrara (de 3 anos de idade).

Cineasta estadunidense que mora em Roma, Tommaso é um personagem formidável, um emblema dos desafios e dificuldades do “amadurecimento psíquico”: em sessões de terapia em grupo, ele revela que foi um junkie, usou muito crack e heroína, mas está há 6 anos sóbrio. Limpo do vício frenético e em busca de sua versão própria de um Nirvana possível.

Trabalhando nos roteiros de seus novos filmes, após uma longa carreira cheia de percalços, em que tentou inclusive gravar o remake norte-americano de “A Doce Vida” de Fellini (um intento que acabou em fiasco).

Sempre que assisto um filme de Abel Ferrara percebo que, para além do material fílmico explicitado na tela diante de nossos olhos, está uma espécie de filósofo do cinema, de comentarista da condição humana. Fica aquela impressão de “sairia algo parecido se Cioran tivesse filmado.”

O Ferrara amadureceu muito como artista, assumindo um postura que evoca o exemplo de Cronenberg – ambos são cineastas que suavizaram no gore, pararam de derramar tantas vísceras sobre nossos olhos, mas mantiveram-se fiéis a seus projetos estéticos de refletir a fundo sobre a violência das relações humanas – não apenas as explícitas, mas também as veladas e as simbólicas.

Ao contrário de uma figura como Quentin Tarantino, que involuiu e se tornou cada vez mais irrelevante, fazendo filmes rasos e artificiais como o lamentável “Era Uma Vez em Hollywood”, Abel Ferrara cresceu rumo a um espaço estético único: rompendo com a ultraviolência que caracterizou sua obra nos anos 1980 e 1990, onde frequentemente flertava com o trash e o gore, hoje é um cineasta bastante contido e equilibrado no que diz respeito às irrupções de carnificina.

“Tommaso” é sobretudo um filme sobre crescer em direção a uma delicadeza possível em meio a este mundo onde humanos são ursos dos humanos.

Na sociedade do entre-devoramento insano, Tommaso batalha por sua serenidade e por sua relação de mútuo cuidado – árdua construção, sempre sob perigo de ruir. Se o filme o flagra num momento em que está há 6 anos em estado de sobriedade e lucidez, longe do “Vício Frenético” que caracteriza outro formidável personagem da filmografia de Ferrara, vivido por Harvey Keitel, o labirinto das relações serve como uma espécie de Samsara fílmico que atravessamos na companhia de Dafoe.

“Bad Lieutenant” (Vício Frenético), de Abel Ferrara (1992)

Tommaso navega por Roma como uma espécie de Buda-em-aprendizado, em busca de seu Nirvana, mas tendo que lidar com as irrupções fantasmáticas de sua cabeça às vezes indomável. Várias cenas me parecem representar a irrupção súbita do imaginário no tecido da vida cotidiana: são fantasias sexuais mescladas com pesadelos de desgraças súbitas. São, em suma, a representação fílmica da mente humana trabalhando com possibilidades, muitas deles que não serão atualizadas, ou seja, que não vão se concretizar. 

Em uma cena-chave que demonstra o procedimento fílmico de Ferrara, duas possibilidades são exibidas na sequência: mãe e filha estão caminhando de mãos dadas pela calçada, e o pai Tommaso, do alto da sacada do prédio, as vê aproximando-se e faz um gesto de cumprimento; na primeira cena, a criança solta da mão de sua mãe e sai correndo em direção ao pai, sendo subitamente atropelada por um carro ao atravessar a rua; na segunda cena, a criança segue retida pelas mãos firmes de uma mãe precavida, e ambas chegam a seu destino incólumes. De modo que não é possível bater o martelo e dizer que são reais as cenas em que Tommaso envolve-se em fantasias sexuais com mulheres nuas em circunstâncias estranhas ou quando saca de seu revólver para matar um concorrente que instiga seu furioso ciúme. Ferrara está projetando na tela possibilidades, e estas podem ser intra-psíquicas, como que uma projeção do imaginário do personagem.

Isto me lembra de uma interessante reflexão de Vigotski:

Vigotski com sua filha Guita em foto de maio de 1933, um ano antes de sua morte.

“Nosso sistema nervoso lembra as portas estreitas de um grande edifício, em direção às quais a multidão se lança num momento de pânico; pelas portas cabem só algumas pessoas – as que tiveram a felicidade de cruzá-las são um número reduzido entre os milhares que pereceram pisoteados. (…) O comportamento que de fato se realiza é uma parte insignificante dos comportamentos possíveis. Cada minuto do homem está cheio de possibilidade não realizadas.” – Lev Vigotski (1896 – 1934), “O Significado Histórico da Crise da Psicologia”

Em seu cotidiano, em que tem aulas de italiano e dá aulas de atuação e performance, Tommaso circula entre corpos em interação tentando sempre manter uma civilidade e uma empatia que o tornam um personagem bastante gostável. Mas sente-se que ele está sempre às beiras de alguma irrupção samsariana que rompa através da sua aparência de sábio sereno.

Abel Ferrara, comentarista da condição humana, parece querer bagunçar as nossas noções sobre fantasia e realidade: não sabemos ao certo se certas cenas que o filme nos traz são realísticas ou subjetivas, mas isto importa menos do que o retrato anímico de uma alma-em-labirinto.

Um personagem que sente até demais, a ponto de precisar de muito budismo, e muitos gurus de serenidade, e muita meditação ao som de cítaras, para controlar seu urso interior. Neste sentido, Ferrara me parece estar desenvolvendo toda uma interlocução com temas que interessam profundamente também a Lars Von Trier, M. Haneke, Werner Herzog ou Gaspar Noé.

Gosto da maneira como o cineasta, em uma obra tão delicada no retrato do dia-a-dia desta pequena família romana, tenta certas irrupções fellinescas de cenas que, para o espectador médio, podem até parecer desconexas, mas que são essenciais para compor uma espécie de quebra-cabeças anímico. Tudo é significativo, o real e o imaginário, somando-se para comunicar ao espectador algo sobre este Tommaso que arranca o próprio coração pulsante do peito para segurá-lo em suas mãos ensanguentadas, oferecendo este coração à roda de seus convivas. Nós mesmos, no cinema, somos convidados a receber em nossas mãos este coração ensanguentado que pulsa dentro de um cosmos que nem ele nem nós somos capazes de decifrar por inteiro.

Gravado em Roma, “Tommaso” tem o mérito suplementar de não ter praticamente nada a ver com o cristianismo, de não ter cheiro nenhum de papado ou de Vaticano. Aqui não se trata nunca de uma sabedoria que tenha algo a ver com o ideal ascético – é muito mais uma meditação sobre sensualidade, sensorialidade, e o quanto a ética envolve-se em decisões que dizem respeito a contexturas profundamente corporais e sensíveis.

É um filme profundamente budista e ateu, dotado de uma espiritualidade desencantada, de um ethos da busca d’uma lucidez difícil mas necessária. “Tommaso” fala sobre Nirvanas precários em labirintos Samsáricos, da possibilidade de irrupção súbita da violência e do absurdo em meio ao que parece ser o modorrão cotidiano.

Melancólico sem ser deprê, o filme carrega uma vibe apta a comunicar uma sabedoria realista, centrada na busca de um equilíbrio que coloque sobre rédeas as irrupções, sempre possíveis, de uma húbris que rompa com violência os frágeis tecidos das relações vividas, condenadas ao fluxo.

* * * * *

Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 22/02/2020
Visto no Lumière Banana na Mostra @O Amor, a Morte, As Paixões

LINKS

https://variety.com/2019/film/reviews/tommaso-review-willem-dafoe-1203223805/

https://www.rottentomatoes.com/m/tommaso_2019

https://visao.sapo.pt/visaose7e/ver/2019-12-08-o-filme-tommaso-e-o-roma-de-abel-ferrara-e-willem-dafoe-e-um-grande-ator/

https://www.comunidadeculturaearte.com/tommaso-de-abel-ferrara-metaficcao-confessional/

Consagrado em Cannes e no Oscar, “Parasita” expressa todo fedor e fúria da luta de classes

por Gisele Toassa e Eduardo Carli de Moraes

 “A história de toda sociedade que até hoje existiu é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial, em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta.” – MARX E ENGELS, Manifesto Comunista

Representando as novas formas da luta de classes em um contexto high tech, o filme “Parasite” (2019) consagrou-se como uma das mais importantes obras do cinema contemporâneo. Vencendo a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro, o prêmio do público na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, além de 4 estatuetas do Oscar (Melhor Diretor, Filme, Roteiro Original e Filme Estrangeiro), dentre outros prêmios. Tudo indica que a obra se tornou um emblema de nossos tempos – e um alerta sobre o porvir.

A trajetória extraordinária do cineasta sul-coreano Bong Joon-Ho culmina com esta obra-prima que expressa todo o fedor e fúria da luta de classes em um planeta de capitalismo globalizado. Na era dos drones, das mídias sociais onipresentes, dos enxames de entregadores de pizza de IFood e motoristas de aplicativos como Uber, em que o Google aparece como a pitonisa esclarecedora de quaisquer dúvidas – a guerra de classes não cessou.

Bong Joon Ho com a estatueta do Oscar no 92º Academy Awards – Los Angeles, USA – 09 / 02 / 2020

Bong vem de uma trajetória marcada por trabalhos que bagunçam as fronteiras entre o cinema de ficção científica e de horror – adicionando a este mix de sci-fi horrífico altas pitadas de comédia e colheradas de impiedosa crítica social. Assim o cineasta construiu uma trajetória recheada de obras-primas, como a sci-fi apocalíptica Snowpiercer (Expresso do Amanhã), o manifesto contra o especismo e a dominação dos humanos sobre os demais animais Okja, a denúncia da monstruosa poluição de recursos hídricos em The Host (O Hospedeiro) etc. Mesmo seus filmes de menor impacto popular – como A Mãe e Memórias de Assassinato – revelam um cineasta cuja força expressiva violenta e intensa evoca o cinema de Scorsese, Glauber Rocha, Hitchcock, Kusturica, dentre outros.

Para Bong, não é problema usar recursos de thriller de entretenimento para mostrar o fedor e azedume da vida dos pobres. Uma lição de sociologia se constrói nos pequenos dados dispersos de Parasita, esclarecendo através do microcosmo fílmico todo um contexto de precarização do trabalho, colapso da consciência de classe e ascensão social trambiqueira. Tudo em um contexto de exacerbada competição inter-individual promovida pela ideologia neoliberal: “Na sociedade capitalista de hoje”, expressou o cineasta, “existem castas que são invisíveis aos olhos. Nós tratamos as hierarquias de classe como uma relíquia do passado, mas a realidade é que ainda existem e não podem ser ultrapassadas.” (UOL)

CRÔNICA DA TRAGICOMÉDIA DO PRECARIADO

Parasita começa leve, evoluindo em uma comédia doméstica sobre a família Ki, composta por um casal de meia-idade e dois filhos adolescentes. Eles moram em um porão cuja janela fica à altura da rua. Logo no início da trama, em meio ao intenso calor, recebem em cheio as espessas nuvens de um fumacê anti-insetos disperso no bairro. Os Ki têm montado embalagens para delivery de pizzas, mas seu trabalho não satisfaz a contratante: caixas com cantos derreados, dobras mal feitas e outros defeitos.

Empilhadas em um canto da apertada casa, parecem ironizar os apólogos das novas formas de geração de renda, no qual trabalho, domesticidade e tempo livre deixaram de se distribuir em diferentes espaços. Ao invés das filas nas portas de fábrica, o mundo urbano se apresenta a esta família integrante do precariado através da janela da cozinha na forma de bêbados a urinarem, sem a vergonha ou outros biombos que costumamos associar à feliz privacidade doméstica.

Como destacou Matheus Pichonelli em seu artigo, nas primeiras cenas do filme:

“Dois irmãos caminham pelos corredores de casa com os celulares apontados para cima. Eles buscam conexão, e só encontram um wi-fi aberto perto da privada do banheiro-puxadinho de uma aberração arquitetônica que não reconhece a fronteira entre a rua e o espaço privado. Aquele porão, no subsolo de uma rua sem saída onde uma enxurrada é pena de morte e os bêbados vão urinar ao fim do dia, é onde vive uma família sem estudo e sem ocupação num país que em 50 anos saiu da pobreza extrema e se tornou uma potência tecnológica — mas, a exemplo de tantas nações, não foi capaz de encurtar as distâncias entre vitoriosos e esfolados.” (PICHONELLI, 2019)

Os Ki mostram precária solidariedade de classe: o pequeno clã familiar, sempre unido na luta pela sobrevivência, vai buscar outro emprego depois do trampo com a pizzaria ter gorado. Para os Ki, não importa quantos de seus semelhantes de classe eles tenham que prejudicar, o importante é ir busca de ascensão social, para longe daquele porão muquifento que fede a mijo e está sempre sob ameaça de inundação.

É o jovem Min, amigo da família, que mudará essa cena, primeiro concedendo como presente uma pedra com supostas qualidades mágicas, um amuleto da prosperidade, que presenteia a Ki-Woo, o filho da família Ki. Além disso, Min pede a seu amigo Ki-Woo para substituí-lo como tutor de inglês de uma adolescente rica, Park-Da-Hye.

Ki-Woo falhara quatro vezes nos exames de admissão à universidade e parecia estar longe de tornar-se um rival de Min no coração de Da-Hye. Porém, com documentos falsificados pela sua irmã Ki-Jung, Ki-Woo ingressa por indicação no mundo dourado da família Park, onde nada lembra bêbados, wifi roubado ou pilhas de caixas imprestáveis. Os patrões são um pote de ouro; além de ricos, são tolos.

Como destacou Pichonelli: “a chegada na mansão é a alegoria perfeita da ascensão social em uma Coreia tão dividida quanto hiperconectada —para estar ali, ele sobe todo tipo de escada.” A genialidade de Bong Joo-Ho, nesta obra, está conectada à sua capacidade de dar concretude à problemática da luta de classes. Esta sai das abstrações do pensamento econômico-político para se encarnar no concreto dos corpos – corpos que fedem e corpos perfumados, corpos que moram em mansões acessíveis só depois de muito subir escadas ou corpos que moram em subterrâneos onde sempre invade a água enlameada das enchentes ferozes.

Como escreveu Bernardo Parreiras no Recanto das Letras:

“Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos. (…) Acerca da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa, descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao chegarem ao porão este está alagado. Ainda sobre a altura, chama atenção a localização de um objeto específico na casa dos pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles, talvez para o esgoto.” (Fonte)

Em artigo para a Folha De São Paulo, que dedicou a capa da Ilustríssima ao filme, Guilherme Wisnik explorou este tema tão interessante da “arquitetura da opressão”, como eu a chamaria, mostrando as escadas no filme como um emblema da exclusão social. “O conflito de classes se espacializa na oposição entre a família rica, que reside em uma espaçosa e ensolarada casa na parte alta de Seul, e a família pobre, que habita o úmido e malcheiroso porão semienterrado de um edifício nos baixios alagáveis da mesma cidade” (WISNIK, G.)

O filme Parasita, afinal de contas, é uma obra pouquíssimo “imaginária” em contraste com Okja ou Snowpiecer, é quase Bong sendo hiper-realista, pois inspira-se nas vidas reais dos habitantes de porões em Seul (como revelou a reportagem da BBC). O jornal paulista aponta ainda que há mais similaridades entre a Seul de Parasita e Sampa em 2020 do que sonha a vã filosofia dos que passam pano pras núpcias sinistras e sanguinolentas entre neoliberalismo e neofascismo. “São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita'”, escreveu Naief Haddad em seu artigo para a mesma Ilustríssima.

A família Ki, em seu processo de tentar a ascensão social pela via dos trambiques, tornam-se uma espécie de precariado fissurado em fake: para subir na vida, é preciso atuar, fingir, vestir máscaras, a fim de enganar a classe que detêm os meios de produção e a capacidade de pagar salários. Assim, a família Ki parte pra cima do patronato, querendo ascensão social a qualquer preço, enquanto os de cima seguem desejando que os de baixo se mantenham servis, obedientes, quietos como ratos dopados em seus porões apertados, satisfeitos com migalhas.

Mostrando experiência digna de artistas do estelionato, em pouco tempo, todos da família Ki se empregam na casa da rica família Park. Ki-Jung torna-se a arte-terapeuta do excêntrico menino dos Park; o pai, motorista da família; e a mãe, governanta da casa. Sem dar pinta de se conhecerem, só têm em comum o cheiro do seu porão, detectado pelo menino Park. Como poderia ter dito Shakespeare, “há algo de podre no reino da Coreia do Sul”.

A riqueza disfarça todo e qualquer mal cheiro, mas a feia vida dos pobres sempre estará à vista. Costuma-se dizer que “a burguesia fede” mas tem grana para comprar perfume. No caso das famílias espelhadas de Parasita, o fedor da luta de classe salta aos olhos. Nesse caso, a cisão de uma sociedade rachada entre privilegiados e desvalidos é facilmente farejável pelo olfato.

OS FÉTIDOS PARASITISMOS DAS RELAÇÕES SOCIAIS CAPITALISTAS

Como escreve Parreiras, Parasita traz desde seu nome a noção de uma analogia entre os seres humanos na sociedade cindida pela luta de classes e fenômenos do domínio da animalidade mais visceral e mais fétida:

“A ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais (insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a diferença entre os ‘bichos’ de diferentes classes. Não é nada comum que pessoas – ainda mais habitantes de cidades grandes – usem o olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não conseguem disfarçar o ‘fedor’ inerente à sua condição precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados, e o ‘fedor’ do motorista (pai ‘fracassado’) ultrapassa os limites tão caros ao pai bem-sucedido.” (PARREIRAS, op cit)

A família do privilégio, da riqueza ostensiva, da mansão, os winners da sociedade cindida são os Park. Com dinheiro de sobra, e tanto poder que é difícil resistir à tentação do abuso, os Park não se preocupam com o precariado. Demitem quando não gostam do trabalhador, e não se preocupam em nada, depois, com os trabalhadores demitidos. Na sua simplicidade, o ato de demitir não se apresenta como a trágica diferença entre vida e morte dos trabalhadores. Suspeitamos que os Ki tramam ação mais diabólica contra os patrões. Mas suas intenções se reduzem a manter seus novos empregos, em um tempo no qual uma vaga para vigia atrai não menos que 500 candidatos, entre os quais enfileiram-se até universitários.

É nesse humilde universo mental que nos permitirmos rir do patrão, que, muito preocupado com o estado de seus trajes após a demissão da governanta, recebe um cartãozinho do pai-motorista Woo, elogiando certa empresa prestadora de serviços domésticos. Mas, do outro lado da linha, espera Ki-Jung, fazendo-se de consultora sênior que exige suposta comprovação de renda dos contratantes Park, quando, de fato, apenas medeia a admissão da própria mãe.

Os Park confiam nas indicações dos seus empregados, mas engolem com apetite o simulacro de um serviço doméstico exclusivo, ou de credenciais falsas de uma Universidade americana. De pronto torceriam o nariz para esses pobres ratos humanos dos Ki – caso desde o princípio os patrões não tivessem sido conquistados pela encenação. Afinal de contas, o precariado pode até feder, mas de vez em quando descola um troco para comprar um perfume e sentir-se, junto com os ricos, como se estivesse entre os seus – mas logo re-explode a guerra, contradição social pulsando no âmago da cidade cindida. A mímesis que o oprimido opera em relação ao ethos do opressor é o que Parreiras destaca como tema importante do filme:

“Neste processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização, que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação, havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da trupe teatral.” (PARREIRAS, op cit)

 


LUDIBRIANDO OS RICOS

Como no Brasil, essa modernidade parece epidérmica: os filhos continuam a trabalhar praticamente de graça para os patrões dos pais, enquanto milionários julgam abraçar a meritocracia moderna. O clima é de uma descontraída gincana televisiva, pouco mais que um reality show, e nós, espectadores, temos de admitir: ludibriar tem o seu lado divertido, ainda mais quando os alvos são os ricos. Vencer é bom, ainda mais quando o fazemos por equipes. Abrir nosso próprio caminho é válido, ainda mais quando somos astutos.

A desigualdade das condições dos concorrentes, ou a humilhação dos humilhados ficam fora de cena, como o lixo que produzimos e cujos efeitos sócio ambientais não enxergamos – para lembrar as poderosas meditações de Zygmunt Bauman sobre a indissociável relação entre os planos e os resíduos que eles produzem [ver Vidas Desperdiçadas]. Nós brindamos ao prazer dos sofridos vencedores, que desfrutam da sala de estar dos seus duplos milionários com uma alegria desconhecida em seu medonho porão.

“Os refugiados, os deslocados, as pessoas em busca de asilo, os migrantes, os sans papiers constituem o refugo da globalização. Mas não, em nossos tempos, o único lixo produzido em escala crescente. Há também o lixo tradicional da indústria, que acompanhou desde o início a produção moderna. Sua remoção apresenta problemas não menos formidáveis que a do refugo humano, e de fato ainda mais aterrorizantes – e pelas mesmíssimas razões: o progresso econômico que se espalha pelos mais remotos recantos do nosso planeta “abarrotado”, esmagando em seu caminho todas as formas de vida remanescentes que se apresentem como alternativas à sociedade de consumo. (BAUMAN, 2005, p.76, via Colunas Tortas.)

Esvaziando as garrafas dos Park, eles fazem planos e desfrutam de uma vista esplêndida do gramado através dos janelões de vidro, nessa ex-casa projetada por um famoso arquiteto, onde a luz se infiltra com o desembaraço da mais íntima das amigas, dessas que chegam e se espalham sem precisar de licença nem convite. De olhos abertos, eles se autoenganam. O conforto, a beleza, a segurança daquela mansão os fazem esquecer o seu enorme currículo de subempregos, e a incerteza guardada no porão do seu subúrbio. Edward Thompson, o grande marxista britânico, veria nos Ki exemplares de uma classe trabalhadora que não se apropriou de qualquer consciência de classe (THOMPSON, 1981).

A experiência social da família protagonista de Parasita se faz à margem da consciência política. Sua sobrevivência depende de um sincrético arsenal de estratégias que mistura savoir faire e estelionato, futilidade e saber verdadeiro; a arte de forjar documentos e a de dirigir uma Mercedes.

Julgando pela superfície da convivência doméstica – que se traduz em uma intimidade ilusória para a família Ki – eles consideram que as pessoas ricas seriam ingênuas, inexperientes. Se pensar é resolver problemas, pensará mais e melhor quem os tiver em quantidade – e, neste sentido, poderia afirmar Thompson, como os marinheiros sabem das correntes marítimas, o sapateiro das diferenças do couro, os Ki, que são trabalhadores de uma economia de serviços domésticos, sabem do universo psicossocial da classe que os avalia. O que é tão ou mais importante do que dominar os saberes de suas atividades laborais. Afinal, arte-terapia, área que Ki-Jung apenas finge praticar, pode ser rapidamente aprendida em tutoriais de Internet ao se recorrer ao inestimável auxílio do Google.

Os problemas dos Ki aparecem-lhes como pessoais e não coletivos, como problemas deles como indivíduos e não da classe social a que pertencem. Uma das armadilhas do trabalho doméstico é ser atravessado por uma personalização: importa que a patroa queira os lençóis dobrados à direita ou à esquerda, ou que o patrão aprecie duas ao invés de três colheradas de açúcar em seu café. Neste trabalho, sempre servimos a alguém. Em tom quase culpado, admite o pai que nos patrões “tudo é passado a ferro, sem vincos”.

Conhecendo os vincos e lisuras das calças e das almas dos patrões, parece mais fácil ao trabalhador doméstico se iludir sobre a desumanidade que o mantém como as mãos e pés de uma classe que os torna uma extensão corporal de si mesma. Trata-se de uma opressão menos evidente, e mais complexa, que a dos operários na frieza e monotonia da fábrica; opressão na qual alguns podem ser punidos por dobrar os lençóis à direita e não à esquerda, enquanto as maldades da classe patronal fogem ao nosso texto, por sua extensão e gravidade. A estreiteza de seu saber político fazem os Ki acumular uma amoral experiência social.

O pensar dos Ki frequentemente se reduz a estratégias de sobrevivência a curto prazo. São produtos da reforma do espírito concebida por Thatcher, segundo quem “a sociedade não existe, apenas homens e mulheres individuais” – e, acrescentou depois, suas famílias. Todas as formas de solidariedade social tinham de ser dissolvidas em favor do individualismo” (Harvey, 2014, p. 32).

Os Ki não enxergam horizonte para além de sua existência como família, fora da qual os seus iguais em matéria de classe se apresentam na posição abstrata de competidores a vencer. Mas, a despeito de si mesmos, são percebidos pelos patrões em sua condição social pelo fedor que exalam, o mesmo das multidões no metrô. Que as consequências das faltas éticas dos Ki se mostrem no retorno dramático da velha governanta e seu marido, um pobre-diabo confinado a um porão, o espectador não imaginaria. É então que nossos protagonistas absolvem-se de sua duvidosa conduta moral, pois vemos como não são os únicos a enganar a classe proprietária em prol de uma sobrevivência mínima, mais que aviltada.

No mundo do darwinismo social, as únicas ações passíveis de criminalização são os que delas precisam – os pobres – pois os ricos serão sempre absolvidos, antes mesmo de serem acusados, motivo pelo qual muitos identificam, na reforma do espírito pelo neoliberalismo, o advento de uma razão irremediavelmente cínica.

A governanta e seu marido se apresentam como o espelho negativo dos Ki, ou seja, a imagem do precariado assolado pelo desemprego e pelas dívidas. Sua aparição coloca em risco a teia de mentiras na qual se enredaram.

Pichonelli destaca:

“Em uma cena antológica, uma das personagens ameaça divulgar uma foto comprometedora da família num app de mensagem instantânea. Ela então se autonomeia Kim Jong-il, o ditador da vizinha Coreia do Norte que poderia acabar com a paz apertando um botão vermelho, porque a possibilidade de detonar reputações lhe dá poderes “explosivos”. As vítimas do flagrante ficam com as mãos para cima diante do celular apontado contra elas e prestes a efetuar o “disparo” a qualquer momento. Todos temem o compartilhamento da “verdade”. O que une os lados no país do celular mais vendido do planeta são os aplicativos de comunicação e troca de conhecimento. É ali que se estabelece uma conexão entre as classes, que mal convivem fora de suas bolhas.” (PICHONELLI, op cit)

Parreiras destaca ainda:

“Outro ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da história que revela medo e covardia que levaram à construção do esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha. A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática, diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.”

Contudo, supomos que pouca ou nenhuma consequência desses “malfeitos” faria diferença aos patrões, não fosse por um fato mais imprevisível e genuíno, a revolta espontânea do pai Ki contra o patrão Park. É um sinal concreto de ódio de classe a emergir no filme logo após trágicos fatos, dos quais destacamos um: a rejeição de Park à familiaridade de uma indagação de seu motorista. O patrão rejeita a reciprocidade de tratar com seu motorista como se essa conversa fosse entre seres singulares, pais de família, e não do patrão que contrata o empregado como força de trabalho a ser paga com horas extras.

O absurdo fantasiar dos oprimidos em viver como os opressores se mostra em uma das mais marcantes cenas do filme, aquela na qual Ki-Jung, impotente demais até para sair do lugar, senta-se na privada e acende um cigarro em meio ao esgoto que brota da banheiro inundado. Sua família é personagem do roteiro ideal do precariado, o de estar todo empregado, mas em uma Coreia neoliberal, após o enfraquecimento dos sindicatos, onde não há sequer garantias de sobrevivência – que dirá de conforto! – a quem trabalha.

Mesmo à base de pleno emprego e horas extras, os Ki não conseguem se garantir e estão condenados à insatisfação laboral, aquilo que ajuda a construir também aquela fúria plebeia que às vezes explode nas ruas em insurreições pontuais e sem horizonte (há muito o que dizer sobre as Jornadas de Junho de 2013 e este precariado despolitizado que visa expressar sua fúria diante do fedor da sociedade capitalista cindida em classes antagônicas).

Seja qual for a tragédia do dia anterior, na manhã seguinte os pobres precisarão pôr um sorriso no rosto e trabalhar pesado para satisfazer aos caprichos dos que moram nos salões iluminados, abafando até mesmo os gemidos de esforço que possam ferir os sensíveis ouvidos dos ricos, para não falar do ofensivo fedor de seus porões. Para a emergência da consciência de classe para os Ki faltou algo mais: o gesto amoroso de solidarizar-se com seus semelhantes mais próximos. De esboçar com eles uma convivência. Esta tende a ser dolorosa por fundar-se não apenas nas imagens de um jardim ensolarado, mas também na teia comum de ofensas e tragédias que, de tempos em tempos, explodem como a base real de uma sociedade fétida, deixando de viver nos porões do esquecimento.

Parasita faz a crônica do espírito deformado pelo neoliberalismo em uma sociedade fétida de que somos contemporâneos – e talvez cúmplices. Aqui, vemos em atividade o que Fritz Perls poderia chamar de um “modo de existir preocupado”, no qual a vigilância é indispensável.

Já os Park precisam de um mundo estendido, multiplicado pelas mãos dos seus muitos prestadores de serviços. O mundo artificial – e monótono – dos Park se apresenta no persistente role play do filho, que, fazendo-se de índio de faroeste, cisma de dormir na barraca montada no gramado, sob a condescendente vigília parental, quando já se acabara o curto período de sonho dos seus duplos.

Diversamente de Dorian Gray, jamais foram obrigados a se olharem no espelho de sua própria classe. Rodeados de segurança; com tempo sobrando para dedicar às ocupações mais tolas, na certeza de que os empregados são coisas, os Park são dessa gente rica que não desconfia de muita coisa, muito menos de que é a opressão encarnada, apesar de suas máscaras de civilidade.


COMO O VÍRUS NEOLIBERAL PARASITA NOSSOS CORPOS E MENTES

A ideologia neoliberal, internalizada pelos sujeitos que a ela aderem sem crítica, acaba se tornando-se uma força psíquica que recalca a consciência de classe e a possibilidade de solidariedade. Reprimindo a jornada do sujeito rumo a ir-além-de-si-mesmo, transcendendo-se na coletividade de que participa, a ideologia individualista e competitivista do neoliberalismo condena à desunião. Se “não há sociedade”, só indivíduos e famílias, como papagueava a papisa neoliberalista Margaret Tatcher, então está tudo “liberado” para o egoísmo reinar sem freios.

Recuperam-se assim as lições de Adam Smith, desenterrando uma lendária Mão Invisível que, na obra de Smith, está tão bem escondidinha que quase não dá o ar de sua graça, Através deste truque circense da providencial Mão-Que-Não-Se-Vê, pode-se pregar a todos: sejam indivíduos liberados para agir com total egoísmo, norteados pelas ambições individuais, pelas cobiças de consumo, pela ânsia de riqueza de que outros estarão privado, pois o novo Deus Todo-Poderoso – a Mão Invisível do Mercado! – irá providenciar a prosperidade geral em uma sociedade em que cada um corre atrás de alimentar o próprio umbigo.

A família nuclear, no caso de Parasita, reduz-se a uma espécie de egoísmo ampliado, de narcisismo compartilhado, servindo como a bolha-das-bolhas. É claro que, socialmente, os membros das famílias integram outras bolhas sociais além da familiar – seja o de colegas de trabalho (a bolha laboral), seja o de outros estudantes com quem compartilhem espaços de ensino (a bolha educacional), seja a das conexões que possuem pelas mídias digitais (a bolha cibernética).

Porém, no panorama que parte do indivíduo e abarca bolhas concêntricas cada vez mais amplas, a família representa a bolha mais estreita e a mais confinante. A ideologia neoliberal, desnudada no dito de Margaret Tatcher, triunfante na prosa pregatória de Ayn Rand, presente em Milton Friedmann e na ditadura Pinochetista-Yankee que ele colaborou em produzir, quer que indivíduo e família reinem supremos, como valores hierárquicos superiores: indivíduo e família são a via para uma vida digna do humano temente à Deus, são o caminho do Bem, aquilo no quê devemos investir. Assim entram em eclipse e corroem sua vitalidade outras formas de pertença social, outras maneiras de fazer parte de outros todos que podemos integrar (não só o partido, o sindicato, o movimento social, a ONG, mas também a banda, a trupe, o projeto transformador coletivo).

Isto dá o que pensar sobre as transformações históricas que culminaram com o advento do capitalismo. O filósofo australiano e fundador da School of Life, Roman Krznaric, propõe um experimento mental muito interessante que culmina com reflexões de Karl Marx sobre o vampirismo do capital. Imagine que você tivesse nascido na Europa medieval; vivendo naquela época, você descobriria que

“a vasta maioria da população era constituída por servos, presos a propriedades rurais e aos caprichos de seus senhores, num sistema feudal de servidão. A Revolução Industrial e a urbanização nos séculos XVIII e XIX proporcionaram uma libertação ambígua da ordem social quase estática do feudalismo. Sim, você fora emancipado da servidão e dos grilhões das guildas, mas agora era um hóspede da ordem burguesa, um ‘vampiro que suga sangue e miolos e os atira no caldeirão de alquimista do capital’, como expressou Karl Marx de maneira tão delicada.” (KRZNARIC, 2013, p. 95)

Ao falar do vampirismo do capitalismo, Marx obviamente se referia aos detentores do capital, mancomunados entre si com o cimento do interesse de classe, que como sanguessugas se apropriam dos frutos do trabalho alheio.

De Marx pra cá, a lógica do sistema capitalista alterou-se num sentido do exacerbamento da taxa de exploração  e do incremento dos efeitos catastróficos do capitalismo no que diz respeito às condições ambientais e laborais. O instituto Tricontinental, por exemplo, calculou a taxa de exploração do Iphone da Apple, emblema deste processo. A ascensão de governos que fundem o neoliberalismo econômico com a repressividade neofascista, como Bolsonaristas no Brasil, revelam o pânico das elites diante das consequências de seu próprio vampirismo parasitário, que gera um incremento tanto das desigualdades e injustiças sociais quanto da degradação ecológica-ambiental.

Isto se deve fundamentalmente às falhas estruturais deste sistema que produz sem cessar o monstro do parasitismo – como melhor exemplificar isto do que falar dos parasitas do mercado financeiro, que nada produzem de efetivo e só ficam impondo opressões enquanto brincam em suas Disneilândia do Cassino-Capitalismo?

Com os capitais que acumularam através do roubo instituído conhecido por extração da mais-valia, os grandes capitalistas globais que hoje investem em ações na Bolsa são o supra-sumo do parasita; assim como a classe rentista, que trabalha sentando na própria bunda e só recebendo a grana dos aluguéis pagos por aqueles desprovidos de propriedade imobiliária.

Os proprietários são os parasitas sociais supremos. O problema – que Parasita de Bong explicita – é que a deformação psíquica disseminada pela hegemonia neoliberal transforma a ânsia de ser proprietário, o desejo de ser rico, o sonho de tornar-se capitalista, em uma espécie de clichê, de fôrma padronizada para a produção em massa de subjetividades individualistas, “familistas” e narcisistas até a doença. Soma-se a isso o colapso de uma educação que formasse a consciência de classe dos estudantes em prol do engajamento em movimentos coletivos de transformação social.

Vivemos em uma era de ascensão do precariado enquanto classe, mas os precários ainda estão bem pouco conscientes de sua força coletiva – apesar de uma ou outra greve que estoura contra a Uberização trabalhista, os McEmpregos e a epidemia dos empregos de merda (fenômenos dos quais o antropólogo anarquista David Graeber é um excelente comentarista).

O mercado de trabalho organizado pelo capitalismo neo-liberal contêm todas os males de origem de uma estrutura carcomida por uma fétida injustiça que se produz e reproduz sem cessar. Pelo menos até que uma classe diga “basta!” e resolva, na encruzilhada histórica que oferece as opções “Socialismo ou Barbárie!”, dar um virada revolucionária para outra realidade possível que não a continuação indefinida da horrenda barbárie capitalista.

A barbárie do vampirismo capitalista só se agrava com a injustiça das barreiras que interpõem-se à ascensão social de mulheres, dos corpos marcados como racialmente inferiores, das pessoas estigmatizadas como criminosos sexuais-afetivos, dos povos colonizados pelo imperialismo escravocrata e seus descendentes etc.

Os “párias do mundo”, os que não são ninguém, a legião dos nadie, a horda imensa dos Nowhere Men de Lennon e McCartney, expõem a olhos vistos que o capitalismo gera exclusão. Para ele, riqueza é privilégio e não bem a ser compartilhado com todos. E assim seguimos em uma realidade onde ser mulher, afrodescendente, homossexual ou imigrante te faz automaticamente ser um pária do sistema, contra quem os parasitas que se apossaram de muito capital levantam as barricadas feitas com suas tropas de choque, com seu gás lacrimogêneo, suas bombas de (d)efeito moral, suas tropas fardadas, suas penitenciárias lotadas, seus atômicos arsenais de weapons of mass destruction.

A coexistência de bilionários e miseráveis é a obscena realidade que se manifesta explicitamente onde quer que o capitalismo neoliberal tente estabelecer seu chocante reinado:

“A pobreza assegura a existência permanente de uma classe mais baixa, cujas escolhas de trabalho estão limitadas a enfadonhos McEmpregos no setor de serviços. (…) O problema foi exacerbado pela erosão do ‘emprego vitalício’, ao longo das últimas três décadas (1990s, 2000s, 2010s), em decorrência do enxugamento das empresas, dos contratos por curto prazo e dos empregos temporários, a pretexto da ‘flexibilização’ do mercado. (…) Levantamentos realizados pela Work Foundation e outros institutos mostram repetidamente que 2/3 dos trabalhadores da Europa hoje estão insatisfeitos com seus empregos e sentem que suas carreiras atuais não correspondem às suas aspirações.” (KRZNARIC, op cit, p. 97-98)

Se Parasita tornou-se um filme emblemático de nossa época, isso se deve ao fato de que Bong Joon-Ho e sua equipe retrataram, na Coréia do Sul, algo que vem ocorrendo globalmente: a corrosão dos empregos vitalícios, a ascensão do precariado, a crescente dominação da ideologia meritocrática, as formas atuais de fusão entre neoliberalismo e neofascismo (representada na América pelos governos de Trump e Bolsonaro).

Sintomático disso é o fato de que, poucos dias antes de Parasita ser consagrado como o grande filme de 2019 na cerimônia da Academia de Cinema em Los Angeles, o Ministro da Economia de Bolsonaro, um fã de Pinochet e dos Chicago Boys, Mr. Paulo Guedes, comparou os funcionários públicos do país a parasitas. Tudo parte de um projeto de privataria generalizada em que o Mercado pretende abocanhar tudo o que antes era gerido pelo Estado.

Banqueiros e rentistas são os verdadeiros parasitas sociais, os maiores sanguessugas do trabalho alheio, que só coçam o saco e contam seus dólares enquanto “o resto” labuta. Guedes, que fez carreira como banqueiro, irmãozinho duma senhora que está entre as privatistas-mor da Educação Pública, é a própria encarnação do parasita da elite predatória. Guedes, xingando os outros de parasitas, é o cúmulo do processo psíquico de projeção, no outro, daquilo que se é. Ele vê um parasita no espelho todos os dias.

Em meio à enxurrada de frases grotescas de políticos desqualificados que proferem horrores em jato contínuo, as fala de Guedes em Davos conseguem sobressair pelo seu absurdo ofensivo e por sua estupidez explícita. É sério que a gente não acordará deste pesadelo, desta surrealidade onírica de ter um Ministro da Economia do desgoverno neofascista soltando coices (me recuso a chamar isto de “argumento”) e xingando todos os servidores públicos de “parasitas”? Dá vontade de mandar Mr. Guedes tomar… uma dose daquele blues, “Before You Accuse Me, Take a Look At Yourself”.

Nós, que trabalhamos como servidores públicos federais da educação, sabemos bem que aquilo que predomina é o trabalho duro, muitas vezes sub-remunerado, na nossa lida cotidiana. Porém, no delírio psicopata dos bozolóides, estamos praticando o parasitismo enquanto eles cuidam do progresso de uma nação-de-Deus onde prosperam os cidadãos-de-bem, devidamente armados com revólveres, bíblias e camisetas “Ustra Vive”.

Seu Jair, que parasitou o Estado por mais de 30 anos sendo um parlamentar pior que inútil (pois nefasto), ao se alçar à presidência em uma eleição fraudada e ilegítima conseguiu se cercar de um séquito de abortos humanitários que estão levando sempre suas declarações a graus ainda mais vis de baixeza. Esta diarréia de que os servidores públicos são todos uns parasitas merece destaque no show de horrores a que já estamos nos acostumando (ainda que não devêssemos nunca nos acostumar a tais níveis de ofensa à nossa dignidade).

O pior de tudo é que não se trata só de falação: os capetões vem aí com a política de Jack o Estripador, inspirados no Pinochetismo e nos Chicaco Boys, pra terminar de estripar as condições dignas de trabalho para servidores públicos – eles nos querem todos precários. E patriotários. A elite parasita sabe que a guerra de classes não acabou – e, como confessou um bilionário, Warren Buffet, “os ricos estão ganhando”. Porém, os dados ainda estão rolando e a única certeza que a vida nos concede, além da morte que é seu horizonte constitutivo, é a de que o tempo está sempre fluindo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, ZygmuntVidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GRAEBER, DavidA sociedade dos empregos de merda. Site Outras Palavras.

HADDAD, Naief. São Paulo vive o caos exibido no filme ‘Parasita‘. Site da Folha de S. Paulo, 2020.

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

KRZNARIC, Roman. Sobre a Arte de Viver – Lições da história para uma vida melhor. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

PARREIRAS, BernardoAfinal, quem são os parasitas?Site Recanto das Letras.

PICHONELLI, Mateus. Conectados e alienados: ‘Parasita’ brilha com luta de classe high-tech. Site do UOL.

THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria – Ou um Planetário de Erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

TRICONTINENTAL. O Iphone e a taxa de exploração. Site do Instituto Tricontinental.

WISNIK, Guilherme. Conflito de ‘Parasita’ se revela em casas de ricos e pobres. Folha de S. Paulo, 2020.

 

OUTRAS TRAVESSIAS SUGERIDAS

O Globo -“‘Parasita’ sintetiza décadas de investimentos públicos no mercado audiovisual, que desde os anos 1990 passou a ser visto pela Coreia do Sul como um setor estratégico para o desenvolvimento do país e a conquista de novos mercados, responsável por fenômenos como o K-Pop.”

BAIXAR O FILME (TORRENT) – PARA USUÁRIOS DO FÓRUM MAKING OFF

O DIREITO À DIFERENÇA E À DIVERGÊNCIA – Sobre a graphic novel de Julie Dachez, “A Diferença Invisível”

“Quadrinho de utilidade pública!”, exclama o jornal L’Express, frisando a importância de A Diferença Invisível, uma novela gráfica repleta de material que instiga a reflexão sobre a normose. O livro conta a história de Marguerite, 27 anos, no processo de devir-aspie em que enfim ela encontra uma certa libertação ao compreender que “é normal ser anormal”.

Abaixo a ditadura dos normais! A obra foi escrita na intenção de informar a sociedade sobre transtornos psíquicos do espectro autista, sobretudo a Síndrome de Asperger. Estima-se que os aspies integrem um grupo de aproximadamente 70.000.000 de pessoas – deste 70 milhões, cerca de 2 milhões são brasileiros.

O livro é dedicado a esta grande turma de aspies mas também, segundo a autora Julie Dachez, destina a todos os “desviantes” – honrando-os e incentivando-os a saírem de seus armários e de suas posições de invisibilidade. Dachez opera, com o exemplo particular de sua personagem e alter-ego Marguerite, adere a uma atitude que eu chamaria de it’s okay to be queer, ou seja, é cool ser estranho.

A Diferença Invisível poderia ser lido em paralelo com a obra magistral do sociólogo Howard Becker. Seu estudo empírico sobre os músicos de jazz e os maconheiros (usuários de cannabis) nos guetos culturais dos EUA, no livro Outsiders – Uma Sociologia dos Desvios, ensina muitas lições sábias parecidas com aquelas que Dachez visa nos comunicar.

Dachez, honrando sua própria trupe de outsiders e desviantes, em atitude pró-queer, celebra em A Diferença Invisível a vida daqueles “que, por sua mera existência, transgridem as normas” e são “um dedo do meio à imposição da normalidade”:

“Não há nada a curar em vocês, nada a mudar. Seu papel não é se encaixar em um molde, mas sim ajudar os outros – todos os outros – a sair dos moldes em que estão presos. Você não está aqui para seguir um caminho predefinido, mas, ao contrário, para seguir o seu próprio caminho e convidar aqueles ao seu redor a pensar fora da caixa.

Ao abraçar sua verdadeira identidade, aceitando sua singularidade, você se torna um exemplo a ser seguido. Você tem o poder de romper essa camisa de força normativa que sufoca a todos nós e nos impede de viver juntos com respeito e tolerância. Sua diferença não é parte do problema, mas da solução. É um remédio para a nossa sociedade, doente de normalidade.” JULIE DACHEZ [1]

Se definirmos a normose como a condição, hiper-comum, dos que dificilmente conseguem pensar fora da caixa, a legião dos asfixiados pelas normas hegemônicas e suas multiformes tiranias, então os anormais são de fato parte da cura para a doença de que padecem os normais.

Julie Dachez, projetando-se na Marguerite, personagem protagonista de A Diferença Invisível, realiza uma proeza artística estarrecedora. Quando Marguerite enfim é diagnosticada pelo sistema médico instituída como uma autista, alguém com Síndrome de Asperger, ela revelar uma espécie de aspie pride. Similar ao que ocorre com o black power ou o orgulho gay: empoderamento de identidades que a normopatia vigente estigmatiza como anormais. Visibilização (relativa) dos que antes estavam invisíveis. Afirmação da diferença como algo positivo, a ser abraçado, e não como algo negativo, a ser rechaçado.

Dachez tenta nos convencer de que há positividade em afirmar-se identitariamente como aspie. Na esteira da repercussão global da notável aspie sueca Greta Thunberg, Dachez, através de Marguerite, visa reclamar para esta condição, para este modo de existir “autista-aspergeriano”, uma outra percepção social. Ela pede que não rebaixemos esta condição ao status de “doença mental”, algo a ser curado, no sentido de extirpado, de aniquilado, de expulso do psiquismo. Nenhum aspie precisa de exorcismo que lhe arranque de dentro os demônios. Para Margerite, descobrir-se em seu direito à diferença e aos desvio é uma epifania existencial que Mademoiselle Caroline tão lindamente desenhou, acompanhando as sábias palavras de Dachez:

“É normal ser anormal”, este paradoxal insight de Marguerite revela que Julie Dachez “sacou” algo importante nos movimentos sociais “identitários”. Aquilo que Audre Lorde expressou como ninguém em sua literatura tão sábia em ensinamentos sobre o valor da diferença – logo, o valor de uma sociedade que a respeite ao invés de buscar exterminá-la.

A normose é uma doença social grave pois implica num plano de extermínio das diferenças, de uniformização do humano. Os aspies são dissonância neste falso consenso – um exemplo excelente é a cena de A Diferença Invisível em que Marguerite tenta sair do armário enquanto uma espécie improvisada de ativista vegana:

“- Estou lendo um livro que fala sobre vegetarianismo. O autor fala sobre especismo. Você sabe o que é isso? A verdade é que não é normal afagar um gatinho mas matar um porco para fazer linguiça. Isso só porque não o achamos bonitinho. O porco também tem sentimentos. Ele também sofre! E nos dizemos evoluídos.. Tenho vergonha de nossa sociedade.” [2]

Marguerite cita Gandhi, questiona os valores éticos dos cidadãos que se consideram normais e evoluídos, brada contra o especismo e em prol da libertação animal, provavelmente ecoando algo que leu nos livros de Peter Singer.  Tenta dizer isso tudo, toda esta torrente de “pregação” vegetariana, em prol da libertação animal, em uma interação social com outra moça de sua idade, uma moça que poderia quem sabe um dia amadurecer para tornar-se sua amiga.

Mas a interação naufraga. A interlocutora, irritada, diz que já cansou desse “papinho”, diz tchau correndo e segue seu caminho, provavelmente na direção de algum McDonald’s pra encher a pança com hamburguer e bacon. Marguerite não consegue com que triunfe seu argumento em prol dos porcos e os normais seguem a devorá-los.

Um dos aspectos que mais me fascina na obra A Diferença Invisível é a seguinte característica que se atribui aos aspies: eles são descritos como incapazes de mentir. Essa gente descrita como “incapaz de mentir” é assim por uma espécie de dificuldade performativa? Não sabem agir com afetação e falsidade, vestindo as devidas máscaras que trazem em suas caras os auto-proclamados normais?

Uma cena é hilária: Marguerite, no trabalho, encontra uma colega que lhe pergunta: “você gosta do meu suéter novo?”, e ela retruca com ingênua e brutal sinceridade: “esta cor parece com bosta de ganso.” Os aspies são verazes em demasia nesta sociedade normótica que valoriza e entrona o fake.

Ao ler o livro, notamos que os aspies tem dificuldades de comunicação com os outros devido a um estado de “hipersensibilidade”. São sempre muito tensos, não relaxam nem entendem as piadas. Buscam evitar barulhos em excesso e não gostam de ser tocados sem permissão. Em síntese: aspies não gostam de ter suas bolhas de isolamento perfuradas por outros, protegem-se numa espécie de couraça, invisível estrutura psíquica protetiva. Mas esta couraça aspie se distingue da couraça da normose. A couraça da normose, massificada, produz a “peste emocional” que Wilhelm Reich denunciou, diagnosticou e buscou curar. A couraça aspie, anti-normótica, tem a ver com uma certa vulnerabilidade percebida, um senso de consciência mais “fino” que Marguerite descreve ao tatuar em sua pele a expressão awareness. Ela gosta tanto da frase anti-normótica de Albert Einstein que a cola em um poster em sua parede:

A própria Greta Thunberg, eleita em 2019 pela Revista Time a “Pessoa do Ano”, fala sobre sua condição enquanto aspie não como uma vergonha, mas como gift (dom), que ela julga essencial a seu trabalho enquanto ativista da ecologia.

No “kit de sobrevivência de um aspie”, tal como imaginado na HQ de Julie Dachez e Mademoiselle Caroline, há instrumentos para diminuir o input sensorial de um mundo exterior considerado como excessivamente agressivo, caótico, ofensivo, distópico. Protetores intra-auriculares, abafadores de ruídos, barram as entradas para os ouvidos, assim como os tapa-olhos são essenciais para que estes notórios insones consigam dormir à noite.

Afinal, a sensorialidade é problemática numa Sociedade do Espetáculo que visa nos hipnotizar com uma torrente infinda de feeds e inputs, deixando-nos fissurados em gadgets, massivamente apegados às armas de distração em massa que carregamos cada vez mais em nossas mãos e diante dos olhos, e cada vez menos deixamos descansar em nossos bolsos ou gavetas.

Os aspies não são eremitas nem retardados, mas sua capacidade de interação social depende de interlocutores que aceitam e acolham a diferença. E lamentavelmente vivemos sob a tirania dos normóticos, e muitas vezes é dificíl para anormais, desviantes, outsiders, gente queer de todo tipo, encontrar as devidas estruturas de pertencimento que possam contribuir para seu florescimento.

Na verdade, os aspies são em larga medida as vítimas da normose, como prova o sintoma recorrente da ecolalia: repetir a frase do outro, ao invés de formular uma frase própria. Tão acostumados estamos a seguir as normas, que nossa performatividade fica travada quando aderimos de maneira normótica e nos enfiamos nas caixinhas e gaiolas. Já quem é livre como os pássaros prefere sempre o céu inexplorado a qualquer gaiola de ouro.

Tentando sintetizar o livro, o Charlie Hebdo – a célebre entidade da bande dessiné francesa – escreveu: “A Diferença Invisível é uma história de auto-aceitação. Sobre se tornar capaz de falar em voz alta o que todo mundo tem medo de dizer: que somos todos deficientes de alguma forma, seres imperfeitos, andarilhos na estrada do amor-próprio.” [3]

Anteriormente, na história das artes visuais, os aspies já haviam marcado época em uma das melhores animações já feitas para o cinema: Mary & Max, do australiano Adam Elliott. Mary & Max,  assim como A Diferença Invisível, traz como um dos protagonistas do filme Max Jerry Horowitz, aspie judeu-ateu estadunidense, que se envolve num enrolado romance epistolar com a jovem australiana Mary Daisy Dinkle (mas isto é outra história, e prosa pra outro post…). São obras que nos informam e mobilizam sobre libertações identitárias que são também lutas políticas. Pois não queremos nenhuma revolução que não seja em prol do direito à diferença e à divergência, da celebração do desvio criativo.

Eduardo Carli de Moraes

REFERÊNCIAS

[1] DACHEZ, Julie. A Diferença Invisível. São Paulo: Nemo, 2019. Pg. 3.

[2] Op cit, p. 44.

[3] CHARLIE HEBDO. Idem 2, orelha.

 

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Sinopse – Marguerite tem 27 anos, e aparentemente nada a diferencia das outras pessoas. É bonita, vivaz e inteligente. Trabalha numa grande empresa e mora com o namorado. No entanto, ela é diferente. Marguerite se sente deslocada e luta todos os dias para manter as aparências. Sua rotina é sempre a mesma, e mudanças de hábito não são bem-vindas. Seu ambiente precisa ser um casulo. Ela se sente agredida pelos ruídos e pelo falatório incessante dos colegas. Cansada dessa situação, ela sai em busca de si mesma e descobre que tem um Transtorno do Espectro Autista – a síndrome de Asperger. Sua vida então se altera profundamente.

VÍDEOS:

No filme “Kursk”, a tragédia submarina filmada por Thomas Vinterberg ilustra o conceito existencialista de “situação-limite” (Karl Jaspers)

“No one has forever… but I wanted more.”
Uma das frases na última carta antes da morte
escrita por um marinheiro no Kursk

A ninguém é concedida a eternidade. Esta verdade que soa banal – ou seja, o fato que qualquer um de nós é mortal e nunca ninguém terá um tempo infinito para viver – é diferencialmente apreendida em vários pontos do nosso fluxo de vida.

Na infância e primeira juventude, podemos ter a ilusão da imortalidade advinda da falta de experiência da morte alheia ou de vivência prévia de ameaça grave contra nossa vida própria. Mas é só um cachorro ser atropelado e morrer diante dos olhos da criança, ou o jovem ter que acompanhar a agonia senil de uma avó ou um bisavô, para que comece a raiar – frequentemente de forma traumática – a consciência da mortalidade.

Baseado no livro A Time To Die, de Robert Moore, e roteirizado por Robert Rodat (o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan), o novo filme de Vinterberg tranforma o submarino naufragado Kursk numa espécie de palco trágico para encenar a Situação-limite daqueles marinheiros.

Situações-limite, segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883 – 1969), são como “paredes com as quais nos deparamos, uma parede em que batemos e fracassamos.” (JASPERS, 1932, vol. 2, pg. 178) Situação-limite é aquela que o filme se interessa em capturar, através de uma narrativa fílmica potente e impiedosa: obrigados a encarar o fracasso, batendo os crânios contra as paredes da necessidade, sentindo na língua o sabor amargo da morte precoce, eles estão levados aos limites da condição humana e aos confins extremos do nosso sofrimento.

Confinados no fundo do mar, tremendo com o frio do Ártico, rodeados pela água que avança por todos os lados a ponto de molhar até os ossos, contemplam na cara o corte da foice iminente. A monstra invisível já afia suas lâminas para terminar de ceifar todas aquelas vidas naufragadas no nada.

Filósofo Karl Jaspers no seu lar em Basel, 1956

Em “Kursk”, filme que desembarcou nos cinemas do Brasil no início de 2020, aparentemente Vinterberg aderiu ao gênero do filme-catástrofe – já repleto de blockbusters sobre tragédias marítimas. Mas seu tom é muito mais próximo a do o clássico esplendoso Moby Dick, em que John Huston adaptou, na companhia de Ray Bradbury, o romance épico de Herman Melville em um dos grandes filmes da história da sétima arte.

Em Kursk, não há baleia em guerra contra Ahab, causando muitos rolês cheios de desventuras e que trituram toda a tripulação do Pequod, mas há sim a batalha humana contra “monstros de nossa própria criação” (como cantava Renato Russo em “Será” da Legião). Estes monstros que criamos – os submarinos bélicos lotados de torpedos e movidos a energia nuclear, por exemplo, e que podem acabar nos devorando.

Kursk é uma espécie de Titanic de teor existencialista, em que o complexo afetivo Vinterberguiano é radicalmente distinto daquele que anima o filme – melodramático e grandiloquente – do papa-bilheterias James Cameron. O filme de VInterberg se baseia em fatos reais: a catástrofe no submarino nuclear russo Kursk, em 2000, no mar de Barents, ao norte da Noruega, com 118 mortos. O submarino tinha sido batizado em homenagem a uma batalha épica da 2ª Guerra Mundial entre alemães e soviéticos.

Esse evento histórico que o filme evoca serve como ocasião para que uma poderosa narrativa fílmica nos leve a acompanhar a agonia claustrofóbica de marinheiros colocados diante da iminência da morte: “No one has forever, but I wanted more”, escreve o protagonista à sua esposa em sua carta de despedida. Um clima de Eclesiastes pulsa nesta frase que faz lembrar ditos como “ninguém é senhor do dia da própria morte, e nessa guerra não há trégua.”
Bíblia (Eclesiastes, 8-8)
Este “eu queria mais” também é prova de que o conatus pulsa mesmo em meio à agonia. Uma sabedoria que só ensinam as situações-limite?

O que é extremamente interessante nesta situação-limite em que o filme nos imerge é uma espécie de proliferação social da angústia extrema daqueles sobreviventes que no submarino, esperam por resgate enquanto agem desesperadamente para se manterem vivos. A angústia prolifera, é evidente, sobretudo sobre os parentes, que na cidade portuária preocupam-se desde as vísceras com os destinos de seus pais, de seus maridos, de seus irmãos, de seus primos. A angústia também prolifera para a hierarquia de comando da Marinha, obrigada, pela situação-limite, a tomar decisões urgentes.

O filme pode ser estudado em faculdades e cursos de relações internacionais pelo retrato realista que faz das dificultosas relações entre os russos e os britânicos – estes, com equipamento de resgate mais avançado, poderiam ter salvado a parcela dos marinheiros que sobreviveram à explosão. Não é nada louvável o retrato que se faz das autoridades russas, que teriam perdido o kairós (o momento propício) em que suas decisões poderiam ter salvado vidas, e isto em decorrência de uma reticência em admitir o despreparo tecnológico para lidar com aquela emergência.

No entanto, creio que é preciso ter uma boa dose de desconfiança em relação à crítica cinematográfica que instrumentaliza o filme para tacar pedras nos russos, ignorando os aspectos de tragicidade que esta situação-limite envolve. Isabela Boskov, da revista Veja, em uma resenha tão rasa que ocupa apenas um parágrafo, apedreja os russos com esta frase peremptória:

“Quase uma década após o fim da União Soviética, a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença: em 12 de agosto de 2000, quando o supersubmarino nuclear Kursk sofreu uma explosão e afundou no Mar de Barents, o governo preferiu proteger seus segredos militares a dar uma chance real de resgate aos sobreviventes aprisionados na embarcação.” (BOSCOV, Veja, 2020)

O comentário de Boscov comete uma injustiça elementar: atribui à “Rússia” um equívoco de agentes públicos da Marinha deste país, num caso de generalização em que o tom condenatório parece querer abarcar todo um país (“a Rússia demonstrou de maneira cruel que não perdera os velhos vícios do sigilo e da indiferença”). Não se confunde o Estado e a população de um território; não se taca pedras na Rússia como um todo, quando os culpabilizáveis por decisões errôneas são funcionários públicos de uma entre centenas de outras instituições públicas deste Estado-nação.

O próprio filme é repleto de tensões entre os familiares dos marinheiros do Kursk e as autoridades militares e políticas responsáveis pela gestão da crise, mostrando que, se houve negligência ou indiferença pela vida humana, com os segredos de Estado sendo colocados acima da abertura imediata à colaboração internacional que poderia ter salvado algumas vidas, de modo algum se pode atribuir à “crueldade russa” (como faz Boscov em sua frase desastrada). A crueldade, caso fosse atribuída a alguns personagens, que se mostraram um tanto frios e indiferentes diante dos horríveis momentos de agonia dos marinheiros, incapazes de se colocarem na pele dos que estavam confinados naquela submarina infernaria, poderia até ser um juízo moral defensável. O que não é defensável é a atitude de Veja de veicular a ideia, em manchete sensacionalista, de que o filme fala sobre “a crueldade dos russos em meio a uma tragédia”.

É o tipo de resenha que, além de não contribuir em nada para uma apreciação mais aprofundada e nuançada da obra-de-arte, como é uma das funções do crítico, presta à produção encabeçada por Vinterberg o desserviço de atribuir a ele um intento difamatório contra toda a Rússia que não está no cineasta, mas sim na articulista da revista.

Fotografia do submarino russo Kursk – O Globo

Para explicar mais a fundo o que quero dizer, sublinho que uma das melhores cenas do filme é aquela em que o menino, após o funeral de seu pai, tem a mão a ele estendida por uma alta autoridade de hierarquia da Marinha (interpretado por Max Von Sydow) e recusa o cumprimento. Este russinho, recusando a vênia a este russão, já é prova inconteste da falácia absurda da generalização realizada por Boskov. Trata-se de um ato de desobediência civil que logo prolifera e é imitado por todos os outros órfãos que se perfilavam, no enterro de seus entes queridos, para receber os pêsames da parte daquele oficial que tinha fracassado em resgatá-los e trazê-los de volta com vida.

Lembrei-me na hora de uma das melhores cenas de The Handmaid’s Tale, episódio 10 da primeira temporada, em que a desobediência civil também é ilustrada quando as mulheres recusam-se a apedrejar uma outra mulher, a mando da mandona xerifa Tia Lydia. Pequenos gestos, grandes significados.

Além do significativo gesto de desobediência civil que o menino realiza diante do velho comandante, demonstrando uma revolta silenciosa diante da instituição que fracassou em salvar vidas resgatáveis naquela difícil situação-limite, o filme também dá o que pensar sobre o tema do sacrifício. Pouco depois da explosão, temos o exemplo de marinheiros dispostos a sacrificar seus últimos alentos e derramar suas últimas gotas de suor para evitar o que se chama, no filme, de “uma nova Chernobyl”. O filme de Vinterberg nos convida a pensar numa certa formação prévia que gerou nos marinheiros uma atitude de aceitação do sacrifício por um bem maior, ou pelo menos pela evitação de um mal pior.

 Em situações-limite, o apego tradicional do indivíduo por sua existência pode ser transcendido por um ímpeto de utilização produtiva de uma vida em iminência de acabar em prol do bem-estar de outros. Ou seja, a morte iminente não necessariamente instala um clima de egoísmo total, abjeto, brutal, mas abre a possibilidade também de atos de um heroísmo extremado, nos limites das capacidades físicas do organismo humano – como naquela cena em que os dois nadadores mergulham nas águas de frio ártico para irem resgatar os cartuchos de oxigênio que permitirão a sobrevida daquela pequena comunidade de desesperados e ofegantes sobreviventes temporários de uma catástrofe gigante.

A reflexão pós-filme que me domina é esta: quase sempre a morte vem nos pegar quando queríamos um tempo a mais para sorver a vida, por pior que ela seja. Aquele submarino serve de palco para o drama trágico da resiliência humana – e despontam ali momentos de intenso companheirismo. Mesmo que seja no singelo gesto de emprestar uma caneta ao companheiro que quer rabiscar suas últimas palavras antes de morrer. Seja no gesto heróico de não abandonar o companheiro desmaiado no mergulho e içá-lo a um patamar onde o ar seja respirável.

Até mesmo o humor se ergue na cara da morte – como a piada do ursinho polar mostra. Aqueles caras, tiritando com o gélido frio daquelas águas extremadamente geladas, aquecem-se por dentro com a graça do ursinho polar perguntando pra mãe: “se você é uma ursa polar, e meu pai também, e sou filho de vocês, isso faz de mim um ursinho polar, não? Então por que caralho estou com tanto frio?”O humor também desponta na última refeição – comida com tragos generosos da última garrafa de vodka -, onde sentir o bafo da bocarra aberta da morte já perto de nos devorar não consegue impedir o riso. É bela esta última gargalhada bêbada dos condenados. A situação-limite pode ter como consequência, se conseguirmos, um estouro de riso. Nosso fracasso é tão hilário, nossa espécie tão estúpida, nossa cooperação tão falha, nossas tecnologias tão traiçoeiras! É rir pra não chorar….

Thomas Vinterberg, o cineasta dinamarquês que iniciou o movimento estético Dogma 95 na companhia de Lars Von Trier nos anos 1990, nunca teve medo de frustrar as expectativas de uma platéia fissurada no happy end hollywoodiano (similarmente, Michael Haneke dedica-se a triturar nossas vontades de filmes leves, agradáveis e conformistas, crowd-pleasers de gostosa alienação industrializada).

Aqueles que acompanham a obra de Vinterberg já se acostumaram a esperar dele finais infelizes – que nos impactam justamente por um certo tom trágico, desesperançado. Assistir a “Submarino”, “A Caça”, “A Comunidade”, “Dear Wendy”, “Far From The Madding Crowd”, dentre outros de seus filmes, é expor-se a um artista disposto a realizar, através do cinema, um processo de provocação existencial que sacuda a apatia e a normose do espectador, fazendo-o considerar a vida através do viés meio dark, repleto de humor negro, que é uma das marcas do olhar Vinterberguiano. Se estivesse vivo, talvez o grande filósofo romeno Emil Cioran teria em Vinterberg um de seus cineastas contemporânos prediletos.

A Jasperiana situação-limite do Kursk, que envolve todos os personagens numa trama sinistra de decisões difíceis diante de mortes evitáveis, revela muito sobre a condição humana: a personagem de Léa Seydoux (que neste filme está loura e não com os cachos azuis que usou em Azul É a Cor Mais Quente, de Kechiche) é emblema das cicatrizes que os “fracassos” ocasionados pela confrontação insuficiente das situações-limite acarreta. As lágrimas que Vinterberg nos obriga a assistir caindo dos olhos desta mulher que acaba de enviuvar, com um filho pequeno para criar e um outro filho em gestação em seu ventre, é bem mais que melodrama apelativo. São lágrimas que nos convidam à reflexão sobre a precariedade, a fragilidade, o caráter radicalmente destrutível de nossas vidas e, portanto, de nossos laços afetivos. A resiliência do amor em face da catástrofe triunfal é um dos encantos maiores que reluz, como um Nabokoviano fogo pálido, na escuridão deste luto coletivo enquanto o filme se encerra.

O clima afetivo que domina Kursk, afinal de contas, é mesmo o que eu chamaria de uma vibe death-conscious, um sentimento de ciência da mortalidade, muito marcante em vários pensadores e artistas identificados com o existencialismo, e que o Nabokov sintetiza, recuperando a percepção de Lucrécio sobre os dois vazios – antes-de-nascer e depois-de-morrer – que estão nos extremos de uma vida humana: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.” (NABOKOV)

Vladimir Nabokov

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 14/01/2020

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