REQUENTANDO A MARMITA NAZISTA E MACARTISTA – O Bolsonarismo e sua guerra contra o “marxismo cultural”

Com seu cosplay de Goebbels ao som do Lohengrin de Wagner, o ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, deixou explícitos os vínculos ideológicos que unem a extrema-direita brasileira com o III Reich alemão (1933 – 1945).

Com o retrato do “Seu Jair” ao fundo, numa imitação barata da cenografia utilizada pelo Ministro de Propaganda do hitlerismo, Alvim – de fato encarnado toda a “alvura” de um ariano… – encenou ali um rito macabro. Nesta comunicação pública nazistóide, feita logo após de uma reunião com o chefe, Alvim desmascarou que temos na presidência da República um “projetinho de Hitler tropical”, como o apelidou Mário Magalhães.

Em artigos publicados em The Intercept Brasil e que integram seu livro Sobre Lutas e Lágrimas, o jornalista Mário Magalhães (que também é o autor da biografia de Marighella que Wagner Moura adaptou para o cinema) já denunciava desde 2018 o “parentesco do ideário bolsonarista com o arsenal ideológico nazi”.

Um dos elos mais fortes que une o Bolsonarismo e o Hitlerismo está no feroz combate que ambas ideologias buscam empreender contra o fantasma do “marxismo cultural”.

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Para contribuir com este debate, na alvorada de 2020 e já entrando em seu 20º ano de existência, a Editora Expressão Popular publica Dialética do Marxismo Cultural (69 pgs, R$ 3), um panfleto crucial para a compreensão do imbróglio em que atualmente nos debatemos. Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), a autora Iná Camargo Costa busca rastrear as fontes originais do conceito de “marxismo cultural”.

Torna-se claro que “marxismo cultural” é uma expressão criada por forças políticas da direita para combater os perigos encarnados pelo proletariado organizado e mobilizado na construção de uma sociedade pós-capitalista. O nazismo teve força para cometer suas gigantescas atrocidades ao conquistar a adesão a “dois de seus fundamentos mais conhecidos: o racismo e o anticomunismo”, escreve Iná:

“O racismo, dirigido abertamente ao genocídio do povo judeu na Europa, explorou uma das mais descaradas fraudes literárias de que se tem notícia: Os Protocolos dos Sábios de Sião… E o anticomunismo reage a duas causas muito imediatas: a vitoriosa revolução bolchevique de 1917 e a revolução alemã de 1918-1919, devidamente massacrada por uma original combinação entre social-democratas, militares e freikorps (estes últimos constituem um dos embriões das tropas de choque nazistas, conhecidas como SA. A combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo produz o caldeirão onde germinará o entusiasmo dos fanáticos de Hitler.” (pg. 15)

Os nazis e os bolsominions também estão unidos em sua sanha de utilizar-se desavergonhadamente da mentira e da fraude como arma política: aos Protocolos dos Sábios de Sião, documento repleto de teorias da conspiração estapafúrdias que apontavam o dedo para um plano de dominação mundial arquitetado por judeus diabólicos, corresponde no universo bolsonarista a mamadeira de piroca, kit gay e a fantasia engana-trouxa do PT Comunista. 

Uma operação ideológica, propulsionada por altos capitalistas que não tiveram pudor de injetar milhões na campanha do sujeito que integra o fã-clube de Ustra, foi construída para convencer os crédulos manipuláveis de várias mentiras. A começar pela mentira de que o PT é um partido comunista, gayzista e abortista, devotado à diabólica operação de espalhar pelo Brasil o marxismo cultural e a “ideologia de gênero”.

Rastreando o nascimento da expressão “marxismo cultural” nas obras da extrema-direita que o combate, Iná Camargo descobre que a certidão de nascimento deste fantasma foi lavrada por Hitler em seu lamentável Mein Kampf (Minha Luta): “o livro é uma declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo” (p. 16). O movimento nazista, através de suas lentes delirantes e paranóicas, enxerga no marxismo uma arma da conspiração judaica internacional e coloca-se como missão a aniquilação do marxismo judaico, incluindo suas manifestações culturais.

Marx é defenestrado pelos nazistas por ser judeu e comunista – e, para Adolf Hitler, “judaísmo e marxismo estão em simbiose, de modo que o combate a um é o combate ao outro.” (p. 18) Por isso, o Estado totalitário do III Reich tem que manter a imprensa sob controle, jamais caindo na armadilha de conceder liberdade aos jornais – afinal de contas, na Alemanha dos anos 1930, “a maioria dos jornais – tanto os liberais quanto os marxistas – está nas mãos dos judeus”, de modo que “esta imprensa deve ser destruída, inclusive a poder de granadas. (…) Assim como a imprensa judaico-marxista deve ser destruída, a arte bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações (…) pois seus apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros.” (p. 21-24)

O Bolsonarismo também se assemelha ao Hitlerismo na mobilização de um aparato de perseguição, censura e silenciamento contra tudo o que rotula como marxismo cultural. Um exemplo disso é a truculência com que se persegue no Brasil atual tudo que se relacione não só a Marx e Engels, mas também a Gramsci e a Paulo Freire. As declarações do führerzin tropical sobre a gestão ideal do Ministério da Educação foram exemplares: como exposto em reportagem de Época, Seu Jair disse que precisava pôr alguém no MEC com um lança-chamas pra reduzir a cinzas tudo que cheirasse a Pedagogia do Oprimido ou a “gramscismo”.

“Lança-chamas” contra Paulo Freire, queima de bruxas representando Judith Butler, perseguição contra professores marxistas pintados como “doutrinadores”, tudo isso faz parte do pântano em que o Bolsonarismo abraça o cadáver insepulto do nazifascismo, requentando esta amarga marmita.

Ao propor “tacar fogo” em Paulo Freire, o Coiso aproxima-se muito dos nazis: desde 1933, ano de ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, a Alemanha foi palco de vários processos de perseguição brutal contra artistas e de grandes queimas de livros, processo conhecido como bibliocausto

“Uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo cultural ou arte degenerada. Esta guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas e as obras que fizeram a paisagem da República de Weimar, nacionais e estrangeiras, com destaque para as de origem soviética, mas sem prejuízo de franceses, ingleses e estadunidenses. Artistas foram presos, conduzidos a campos de concentração e assassinados ou, quando tiveram sorte ou a devida sagacidade, partiram para o exílio.

Obras de arte foram confiscadas de museus e destruídas; livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O regime nazista produziu uma série de listas negras, tanto com os nomes dos seus inimigos, quanto com os títulos de obras banidas, a serem destruídas. Só da biblioteca do Instituto de Pesquisa Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que alimentaram a primeira fogueira realizada em Berlim pelos estudantes nazistas. Naquele espetáculo macabro, Goebbels disse, solenemente, entre outras barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a coragem de encarar o brilho cruel, de superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do passado.”

Para se ter ideia de quem eram os inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida pelos nazistas, enumeremos alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud, Albert Einstein, Bertolt Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz Kafka, Lasar Segall, Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente Marx, Engels, Lenin, Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion Feuchtwanger, Romain Rolland, Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich…” (pg. 24, 25)

De modo que Ray Bradbury, para escrever seu clássico da ficção científica distópica Farenheit 451, não precisou tanto de imaginação quanto de investigação histórica: livros queimando nas fogueiras da intolerância e do fanatismo não são nada de novo. Iná Camargo Costa revela, em sua crítica do Mein Kampf, que Hitler, no programa do partido nazista, declara-se favorável a um dogmatismo típico de religiões instituídas.

Segundo Hitler, “cada ponto deve ser tratado como dogma; deve-se seguir o exemplo da Igreja Católica Romana, que não recua em seus dogmas nem diante das verdades científicas, pois é assim que se inspira a fé cega na excelência da doutrina… o futuro do movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus adeptos o defendem como a única causa justa… a grandeza de toda organização política que corporifique uma ideia está no fanatismo religioso e na intolerância com que hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão com a razão…” (p. 23).

Alguns podem argumentar que os vínculos que tenta-se estabelecer entre bolsonarismo e nazifascismo são frágeis pois há um ponto crucial onde eles se separam: Bolsonaro é favorável ao sionismo israelense e deseja ser amiguinho de Netanyahu, de modo que não haveria em ação no bolsonarismo nada semelhante ao feroz antisemitismo nazi. Ou seja, o vínculo que os nazistas instituíram entre o judaísmo e o marxismo seriadesfeito na ideologia bolsonarista, que institui uma outra clivagem: os sionistas são do bem, do mal são apenas os judeus comunistas.

A demissão de Alvim, neste contexto, não significa que o ex-secretário de cultura estivesse dessintonizado com o führer, mas sim que exagerou na dose de nazificação de sua performance, o que causou escândalo na comunidade judaica: tudo indica que Bolsonaro chutou a bunda de Alvim para não ficar muito feio na fita em suas relações com o sionismo de Israel que, como bom vira-lata do Império ao Norte, ele deseja apoiar – ainda que a ocupação ilegal e o massacre cotidiano da população palestina prossigam sendo um descalabro global de violação sistemática dos direitos humanos e do princípio da autodeterminação dos povos.

Para compreender melhor o monstro híbrido que é a extrema-direita brasileira, precisamos seguir rastreando o passado do combate ao “marxismo cultural” e lidar com outra das grandes inspirações dos Bolsominions: a extrema-direita dos EUA. Tema também exposto em minúcias desde a campanha eleitoral, em que houve o episódio em que David Duke, liderança da Ku Klux Klan, reconheceu muitas similaridades entre o Bolsonarismo e a KKK.

Além de irmão-siamês do supremacismo branco que dá o tom em milícias racistas como a KKK, o Bolsonarismo está totalmente alinhado ao chamado macartismo, processo de caça-às-bruxas comunistas que marcou o período da Guerra Fria nos EUA. Na verdade, a dita guerra fria pode não ter esquentado entre os EUA e a URSS, mas foram quentes as guerras contra o comunismo empreendidas pelo Império capitalista na América Latina, na Ásia e na África. As chamadas ações de contrainsurgência foram responsáveis pela perseguição, prisão, tortura e extermínio de vários militantes de esquerda, da Colômbia ao Vietnã, do Brasil ao Congo.

Sabemos que as ditaduras militares na América Latina, instaladas após golpes de Estado, como aquele na Guatemala em 1954 e aquele no Brasil em 1964, implicaram o empoderamento de regimes ilegítimos e brutalmente alinhados à política Yankee de perseguição ao comunismo. Segundo Iná, “a guerra anticomunista estadunidense se trava preferencialmente na indústria cultural”:

“Seu momento de maior visibilidade foi o capítulo conhecido como ‘Os Dez de Hollywood’, uma lista de roteiristas convocados para depor perante a House of Un-American Activities Committee (HUAC). Dentre os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil é Dalton Trumbo, que recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga experiência de denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de trabalhar na indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo recurso aos ‘testas de ferro’ – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes para os roteiros que continuaram a ser escritos).

Produziu-se neste contexto uma lista negra com cerca de 300 ‘suspeitos’. Para ficar nos mais conhecidos entre nós, limitemo-nos aos seguintes: Bertolt Brecht; Howard Koch (roteirista de Casablanca, de 1942); Jules Dassin (diretor de Nunca aos Domingos, filmado já no exílio, em 1960); Orson Welles; Joseph Losey (diretor de Galileu, de Brecht); Charlie Chaplin; Elia Kazan; Dashiel Hammet; Dorothy Parker; Lena Horne; Langston Huhes; Arthur Miller; Harry Belafonte etc.

Ainda merecem destaque, por seus feitos posteriores ao mar de lama anticomunista, Ring Lardner Jr.,que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme dirigido por Robert Altman em 1970, e Martin Ritt, diretor de Testa de Ferro Por Acaso, de 1976, cujo roteiro foi escrito por Walter Bernstein, igualmente vítima da caça aos comunistas em Hollywood e participante da tática dos ‘testas de ferro’.” (INÁ CAMARGO COSTA. p. 35)

O site Tudo Sobre Seu Filme realizou um belo mapeamento do Macartismo no Cinema, um guia com filmes essenciais para compreender a perseguição aos comunistas na sétima arte. Torna-se claro que o Bolsonarismo não tem originalidade nenhuma: está apenas requentando a marmita azeda do nazismo e do macartismo no Brasil contemporâneo. Mas é preciso também frisar as conexões entre os bozolóides da extrema-direita brasileira e seus cupinchas nos EUA, pois é público e notório que “entre os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate ao marxismo cultural estão Steve Bannon e o canadense Jordan Peterson” (p. 37).

Um dos marketeiros da campanha vitoriosa de Donald Trump à Casa Branca, Bannon também tem documentadas relações com a familícia e ajudou a articular a estratégia, repleta de fake news e de intolerância sectária contra a esquerda, que pôs Bolsonaro na presidência do Brasil. Segundo Iná, data do início dos anos 1990 a utilização pejorativa e condenatória do termo “marxismo cultural”:

Iná Camargo da Costa, autora de “Dialética do Marxismo Cultural” (Expressão Popular, 2020)

“Seus primeiros usuários são cristãos fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas – enfim, a extrema-direita estadunidense. Uma das mais eloquentes manifestações da tendência é o movimento Iluminismo Sombrio – antítese assumida do iluminismo, que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e teocrática, declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro lugar, ao marxismo cultural. Os objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o feminismo, a ação afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o multiculturalismo, os direitos LGBTQ e o ambientalismo.

Para esta horda de reacionários, incluídos os integrantes do movimento Tea Party, a instituição precursora do marxismo cultural foi a Escola de Frankfurt pelas seguintes razões: imigrou para os Estados Unidos em sua fuga do nazismo, é constituída por judeus, combinou as teorias dos judeus Marx e Freud, e sobretudo promoveu a arte moderna (combatida pelos nazistas), contaminando o espírito da contracultura dos anos 1960. Em suma, a Escola de Frankfurt seria uma instituição de fachada do comunismo.” (p. 38)

Obviamente, não devemos esperar da extrema-direita em suas encarnações trogloditas nenhuma crítica razoável à Escola de Frankfurt – pois os neofascistas atacam uma caricatura e enchem de balas um espantalho de sua própria invenção. Não se deram ao trabalho de ler e estudar as obras de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Krakauer ou Benjamin. Também não estudaram as obras de Martin Jay ou Stuart Jeffries. A Escola de Frankfurt é apenas um bode expiatório para a fúria conservadora destes caçadores-de-comunistas que, infantilóides, não param de desenhar chifrinhos demoníacos sobre as cabeças de todos os comunistas. Como se requentassem aquela outra marmita fria do “comunista, comedor de criancinhas”.

Jair Bolsonaro jamais poderá ser acusado de ser uma pessoa original ou criativa: tudo nele fede à mediocridade. Mas a mediocridade está longe de ser inofensiva – e Seu Jair pode ser descrito como alguém tão medíocre quanto Adolf Eichmann. Em outras condições históricas de temperatura e pressão, tal figura medíocre e truculenta jamais teria saído do baixo clero do Congresso Nacional, tamanha a sua incompetência para a gestão pública e para o trato civilizado com as diferenças que constituem uma sociedade humana.

Caso as mentes do eleitorado brasileiro estivessem lúcidas, a imensa maioria teria percebido a tempo que Jair não está capacitado nem mesmo para ser o síndico de um condomínio residencial (no Vivendas da Barra, sabemos, ele estava mais interessado em suas interações com milicianos cheios de fuzis em suas casas que tramavam o assassinato de Marielle Franco do que em qualquer coisa parecida com gestão de um espaço coletivo).

Parte desta desgraça obscena em que estamos afundando vem também do “guru” do governo, Mr. Olavo de Carvalho – aquele charlatão delirante e boca suja, que argumenta aos coices e que pretende influir nos destinos do Brasil, mas morando bem longe dele. Olavo mora lá em Richmond, capital da Virgínia, onde estava sediada a central do exército escravocrata sulista que perdeu a Guerra Civil (1861 – 1865) – e o velhote que adora armas-de-fogo vai, a partir dali, teleguiando o Ministério Bolsonarete, indicando seus testas-de-ferro para o MEC e o Itamaraty.

O combate ao marxismo cultural passa, entre nós, pelo Olavismo, uma ideologia responsável por requentar a marmita da perseguição aos comunistas, servindo assim aos interesses da metrópole capitalista onde habita o próprio Olavo. O Bolsonarismo, turbinado por figuras como Bannon e Olavo, “não passa de extensão à neocolônia (por opção) da pauta metropolitana, graças ainda aos bons serviços da alfândega ideológica instalada no Estado da Virgínia, responsável pela péssima tradução dos dogmas americanos. Isto também explica a profundidade de pires de suas manifestações por estas plagas.” (p. 42)

Eis o pântano em que querem nos afundar: O Brasil reduzido à colônia, não mais de Portugal mas dos EUA. Os “novos lacaios da neocolônia”, esta elite econômica medíocre e racista, fanática e misógina, teocrática e anti-iluminista, vê uma de suas metas principais o combate ao marxismo cultural – aí inclusos no mesmo balaio de gatos não só Paulo Freire e Gramsci, Marighella e Rosa Luxemburgo, mas também o Porta dos Fundos, o Planet Hemp, o Pussy Riot, o Jean Wyllys, a Judith Butler…

Além disso, vale dizer que a guerra ideológica da extrema-direita também envolve a pauta do combate à “ideologia de gênero”, uma guerra “santa” que a Pastora Damares não inventou, e que inclusive não é originária dos cristãos evangélicos, mas do próprio epicentro da Igreja Católica Apostólica Romana. Este papo de “menino veste azul, menina veste rosa”, os discursos e práticas que transbordam com a fúria homofóbica e transfóbica, a defesa da “família tradicional brasileira” (heteronormativa, patriarcal, destinada a procriar novos cidadãos-de-bem…), foi uma das trincheiras de luta do Papa que precedeu Francisco (episódios que Fernando Meirelles tratou apenas en passant em seu filme):

“Esta guerra ideológica contou com os bons serviços da Santa Madre Igreja, que desde os anos 1990 desfraldou para todo o mundo a bandeira do combate à ideologia de gênero, num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e análogo ao combate travado contra a ‘ideologia comunista’ por nossa penúltima ditadura (1964 – 1985). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou uma importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais recentemente denominada Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé. Saiu da forja da reação católica a tese de que ‘ideologia de gênero’ é um conjunto de ideias falsas, marxistas, que objetivam aniquilar a ‘família natural’, para tanto fomentando a libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos não fossem seus mais contumazes praticantes]…

Para enfrentar esta pouco surpreendente aliança entre extrema-direita católica, extrema-direita evangélica e extrema-direita  propriamente dita (ou neofascismo) em guerra declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo esclarecimento e pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar nossas armas.” (INÁ CAMARGO COSTA, Expressão Popular, 2020, p. 43 – Compre o panfleto por 3 reais)

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – Goiânia, Janeiro de 2020

Maria Rita Kehl, em novo artigo, responde à questão: “o ressentimento chegou ao poder?”

O ressentimento, apesar do tom morno e conformista das lamentações que provoca, deve ser entendido como uma paixão. Mais especificamente, o ressentimento está entre aquelas que Espinosa qualificou como paixões tristes. A raiz da palavra “paixão” nos remete ao sentido primordial da palavra páthos – a mesma de que também advém “patologia”. A originalidade do filósofo setecentista em sua época, assim como a permanência de suas ideias no século 21, reside no afastamento da tradição platônica que ele empreendeu. Para isso, além de ter incluído as paixões no conjunto de objetos do pensamento filosófico, Espinosa propôs que estas fossem avaliadas a partir de critérios diferentes daqueles que norteavam a filosofia platônica e a moral cristã. Em vez de avaliar as paixões como boas ou más (lato sensu), Espinosa propõe avaliá-las como alegres ou tristes. As paixões tristes, para Espinosa, são aquelas que diminuem a potência de agir do indivíduo.

O ressentimento pode ser entendido como uma paixão triste.

Faz sentido, para o psicanalista, tomar a ética de Espinosa para pensar sobre o ressentimento. Antes de mais nada, porque a lógica do ressentido ignora o sujeito – este que, para a psicanálise, atreve-­se a pagar o preço pelo seu desejo e, portanto, a investir em escolhas “desejantes”. A lógica do ressentimento, que bem se adapta à demanda das sociedades capitalistas, concebe o ser humano não como sujeito, e sim como indivíduo – este que não reconhece sua divisão subjetiva. Ocorre que aquele que se pensa como indivíduo (i.e., indivisível, não dividido) precisa forçar-se continuamente a estar de acordo com as determinações do superego – muitas das quais advindas da moral comum. Ele não se deixa reger pelo desejo, mas pelos mandatos e interdições morais, que respondem não ao sujeito desejante, e sim à imagem de perfeição que o indivíduo quer oferecer ao mundo e reconhecer no espelho.

Esta seria, no sentido geral, uma resposta característica da neurose: em vez de perseguir a direção indicada pelo desejo, o sujeito escolhe a segurança subjetiva de “fazer o que deve ser feito”, pensar de acordo com o que se deve pensar e reprimir ou ignorar fantasias que se desviem de um suposto caminho bem-sucedido. O que Freud chamou de “covardia moral” do neurótico consiste em tais escolhas por caminhos seguros, onde não haja riscos de deparar com nada que lhe indique desejos contrários ao caminho certo para uma vida “normal”. Ou seja: uma vida chata. Não me parece necessário definir o que venha a ser uma vida chata. Pois é justamente em relação às consequências dessa mesma vida chata que aquele que orientou suas escolhas pela servidão voluntária um dia há de se ressentir.

Só que, ao deparar com sua infelicidade (ou, no mínimo, com a mediocridade de sua vida), o ressentido há de tentar culpar alguém. Esse é o recurso do ressentido para não ter que avaliar suas escolhas, e depois se arrepender. O arrependimento dói, mas pelo menos revela algum tipo de questionamento. O ressentido, ao contrário, não se arrepende nem se questiona. Ele não suporta a condição (que é de todos nós) de sujeito dividido: que entra em dúvida, que se ilude e se engana, que ignora o desejo que o constitui. Para não ter de deparar com sua divisão subjetiva, o ressentido escolhe um culpado a quem atribuir seu infortúnio. Eis aqui uma característica do ressentimento bem fácil de identificar: a necessidade de eleger culpados a quem acusar quando a barra pesa. Ou quando a vida fica besta. “Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso.” Este seria, para Nietzsche, o leitmotiv do ressentimento: procurar um culpado por ter causado suas frustrações.

No entanto, do fato de que o ressentido sempre encontre subterfúgios para dizer “não foi culpa minha”, não se deve deduzir automaticamente que o oposto do ressentimento (ou sua cura) seja a culpa. Não se trata de substituir um páthos por outro. Se, por um lado, o ressentido procura apontar culpados para justificar suas frustrações, por outro, a admissão de culpa ou de responsabilidade (melhor opção) pelo que fracassou em sua vida ainda não basta para tornar o sujeito mais potente diante de suas escolhas de destino. Vale esclarecer: a potência de que se trata aqui é a potência do desejo, esta que orienta as apostas e os investimentos que são feitos durante a vida e também os riscos que cada um se dispõe a correr em nome deles. Entre estes últimos, interesso-me sobretudo pelos riscos narcísicos: riscos de queda, de fracasso, de ficar aquém do que se idealizou…

Nesse ponto é importante diferenciar res­sentimento de revolta. Se o ressentimento é uma “revolta passiva”, a atitude que se opõe a ela, diante de injustiças e humilhações, seria a da revolta ativa, por todos os meios legítimos de que a sociedade democrática (ainda) dispõe. A passividade é uma das atitudes que caracteriza o ressentido. Uma das causas do ressentimento seria o “divórcio entre a potência do sujeito e sua capacidade de agir”. [1]

Nesses termos, a decepção com as promessas não cumpridas não predispõe à ação; ela produz um exército de queixosos passivos, prontos a se (re)alinhar ao que existe de pior entre os conservadores, como forma de reação amarga e estéril, carregada de desejos de vingança. [2]

Não seria possível nomear tal “divórcio” entre potência e capacidade de agir como covardia? Seriam todos os ressentidos covardes? Penso que sim, se considerarmos o sentido que Freud atribui à palavra ao se referir à covardia moral do neurótico. O sintoma neurótico seria, em termos freudianos, uma solução de compromisso entre o desejo e a repressão de suas manifestações. O sintoma é uma forma de gozo neurótico e, ao mesmo tempo, uma forma de manter a interdição do desejo. A “covardia” que Freud atribui ao neurótico se revela nessa solução de compromisso, na qual o gozo se expressa através do mesmo sintoma que mantém a recusa do desejo.

Todorov

Mas o ressentimento também pode se tornar uma paixão coletiva. O filósofo búlgaro Tzvetan Todorov [3] atribui a eleição de Hitler, na Alemanha, à frustração de uma classe média baixa espremida entre a burguesia e a potência de luta do proletariado durante a grande inflação do início dos anos 1930. Para Todorov, o ressentimento na Alemanha brota de uma parte das “classes decadentes”:

“As classes decadentes que se sentem humilhadas com a perda de sua posição se ressentem, acima de tudo, contra os que, situados em um lugar inferior a eles na hierarquia social, não se deixam humilhar. Em vez de tomá-­los como aliados em uma empreitada pela recuperação da dignidade perdida, procuram afastá-los e assegurar os mais ínfimos sinais de distinção e respeitabilidade.” [4]

Ao buscar uma estratégia de desidentificação com seus vizinhos mais pobres e fracassar na tentativa de ascensão social, milhões de cidadãos dessa classe média decaída encontraram a resposta na designação de um culpado pelo sofrimento que eles entendiam como humilhação social. A tal disposição subjetiva do ressentimento, que pede um bode expiatório para desimplicar o sujeito de suas culpas e fracassos, comparece nesse caso, em que o personagem ideal para carregar tal culpa não poderia ser “um dos nossos”. Não obstante, tinha de pertencer à mesma ordem social. Ninguém melhor do que este semelhante (socialmente), mas tão desigual (subjetiva­mente): o judeu.

É evidente que o ressentimento, nesse caso, participa das motivações inconscientes dos eleitores de Hitler, mas não esgota as razões de tal escolha. No campo objetivo, é preciso considerar o peso da crise econômica que sacrificava a população alemã no período. A escritora e psicanalista Lou Salomé relata, em suas memórias, que para comprar um quilo de trigo era preciso levar ao mercado o mesmo peso em moedas. As crises econômicas destroem a confiança que as pessoas teriam no futuro. Elas as obrigam a garantir a sobrevivência dia a dia. Diante disso, torna-­se impossível vislumbrar um futuro melhor, uma transformação promovida pelos próprios sujeitos esmagados pela crise. Assim, apostas regressivas parecem ter conferido alguma segurança imaginária aos eleitores do Führer.

No caso da “psicologia do bolsonarista”, vale considerar o momento anterior à retração econômica – esta que aniquilou o segundo mandato de Dilma Rousseff e pegou em cheio o governo ilegítimo de Michel Temer. Durante o período de crescimento econômico promovido pelos governos petistas anteriores a 2014, um grande contingente de “pobres” ascendeu aos padrões econômicos da classe média baixa. O Bolsa Família, ao contrário do que diziam seus detratores, não funcionava como “bolsa­-esmola” para alimentar a vadiagem do povo. Muitas famílias que viviam abaixo da linha da pobreza usaram o pouco dinheiro do programa, ou parte dele, para iniciar pequenos negócios. De criação de cabras (começando com dois ou três animais…) à abertura de videolocadoras ou fornecimento de comida caseira, muitos beneficiados pelo programa criaram alternativas de sobrevivência. [5] Vale lembrar que a maioria desses beneficiários, tão logo se firmava em um novo negócio ou um novo emprego, declarava não precisar mais do auxílio; já se sentiam pertencendo, daí por diante, a uma emergente classe média baixa.

Presenciei algumas demonstrações do desagrado de pessoas “tradicionalmente” de classe média ou alta contra a invasão daqueles “ex-­pobres” em seus espaços de prestígio. A frase, por exemplo, “este aeroporto está par­ecendo uma rodoviária” traduz a rejeição de passageiros de quarta ou quinta viagem à presença dos que provavelmente pegavam um avião pela primeira vez, que “desprestigia­riam” o sinal de status recentemente adquirido pelos insatisfeitos. A rejeição e o ressentimento não se dirigiram aos passageiros mais endinheirados do que eles, mas àqueles em relação aos quais os revoltados gostariam de ostentar pelo menos uma pequena diferença. A presença de pessoas mais pobres nos aviões anulava o privilégio dessa diferença.

Freud criou o conceito de “narcisismo das pequenas diferenças” para tentar entender o avanço do antissemitismo que precedeu a eleição de Hitler. A rejeição do povo alemão aos judeus não se fundava apenas na concorrência que os comerciantes e trabalhado­res judeus representavam para os alemães numa economia em crise. A sensibilidade analítica de Freud detectou uma questão psicológica determinante na ascensão do nazismo: o fato de que, culturalmente, os judeus tinham muito mais semelhanças do que diferenças com o povo alemão. Os argumentos que movem a intolerância baseiam-se na busca de diferenças inconciliáveis entre povos ou culturas que, ao contrário, contam com uma larga margem de aspectos em comum. É mais fácil tolerarmos uma cultura exótica do que outra tão próxima à nossa que desafia nossa segurança identitária. Não ignoro (tampouco Freud) que muitos povos tribais foram escravizados por civilizações suposta­ mente mais “adiantadas”; mas nesse caso não se trata de ódio, e sim de menosprezo. Já o “narcisismo das pequenas diferenças” volta-­se para o vizinho, o semelhante, aquele que poderia ser “quase um de nós”.

Avancemos para 2018. Dias antes do segundo turno, diante das assombrosas manifestações machistas de Jair Bolsonaro,6 feministas de várias gerações organizaram as manifestações do #EleNão nas capitais do país. Na de São Paulo, da qual participei, milhares de mulheres – na maioria, jovens – partiram do largo da Batata, em Pinheiros, e subiram em direção à avenida Paulista. Foi uma passeata colorida, irreverente, alegre e desafiadora. Muitas meninas tiraram a camiseta e exibiram “ele não” escrito no corpo seminu.

Fui uma das muitas pessoas que, naquela tarde, tiveram a expectativa de que as mulheres e os homens feministas seriam capazes de barrar a emergência do capitão machista. O efeito, no entanto, foi oposto: a votação obtida por Bolsonaro, na semana seguinte, superou o esperado. Teria a potência feminina nas ruas despertado ressentimentos antediluvianos entre os machistas até então conformados com as novas regras de convívio com as mulheres? Teria o #EleNão acordado a vontade masculina de mostrar quem manda na casa, expressa no surpreendente “ele sim” do segundo turno?

Acrescento outra hipótese: a de que uma grande parcela dos eleitores de Jair Bolsonaro seja composta de pessoas que não conseguiram, ou não quiseram, integrar nenhuma das festas democráticas que encheram as ruas das grandes cidades brasileiras desde os idos da Lei da Anistia, em 1979. As grandes manifestações da redemocratização, desde o retorno dos exilados até as manifestações pelas diretas, não tiveram a intenção de excluir ninguém. Tampouco a imensa manifestação que saudou a primeira eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2002.

Foram manifestações alegres, festivas, grandes confraternizações de gente que sempre lutou contra o autoritarismo, pela liberdade e pela diminuição das desigualdades no Brasil. As ruas são de todxs, toda praça é do povo como o céu é do condor, ou do avião, ao gosto de quem preferir Castro Alves ou Caetano Veloso.

Mas nem todo mundo se sente à vontade na multidão. Nem todo mundo se inclui na alegria geral, seja pela volta da democracia, seja pela eleição do primeiro líder operário para a presidência da República. Deve ser duro ficar de fora da alegria geral, da mesma forma como é duro para aqueles que se excluem, por mau humor ou timidez, das festas de Carnaval ou de ano-­novo. Da mesma forma, para o machista à moda antiga, deve ser um osso duro de roer ver a alegria, a liberdade e a autossuficiência das meninas da geração do #EleNão.

Em breve teremos pesquisas confirmando se o machista ressentido, eleitor de Bolsonaro, sente-se compensado pelo revival das atitudes retrógradas ostentadas (e moralmente autorizadas) pelas primeiras medidas do novo governo. Vale também investigar se os ganhos “morais” ou ideológicos possibilitados pelo novo governo compensam ou não seus fracassos administrativos. Posso prever que aqueles que acabam de perder o emprego tal­vez tenham se decepcionado. Pesquisa do Datafolha divulgada em julho de 2019 revelava que apenas 30% da população considerava o desempenho de Bolsonaro ótimo ou bom: menos de um terço da população, a menor taxa de aprovação a um governante em início de mandato desde Fernando Collor – que, por sinal, sofreu impeachment. No momento em que escrevo este texto, outra pesquisa do Datafolha revela que para 39% dos brasileiros Bolsonaro “não fez nada de positivo”. O número sobe para 58% se considerarmos os 19% que “não sabem” apontar nenhuma boa iniciativa do capitão-­presidente.

Seria uma generalização abusiva considerar que todos os eleitores de Jair Bolsonaro tenham sido movidos pelo ressentimento. Há, entre eles, muitos setores sociais que defendem os próprios privilégios e lutam pela expansão destes, à custa dos direitos adquiri­ dos recentemente por camadas mais pobres da população. Ruralistas querem expandir suas terras em prejuízo de reservas indígenas, de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de áreas protegidas de florestas. Empresários querem aproveitar o aumento do desemprego para legalizar o trabalho escravo. Aliás, parece que a economia deu um primeiro sinal de sair do buraco a partir da perspectiva de aprovação do relaxamento dos direitos dos trabalhadores…

Por razões diferentes, alguns brutamontes também devem ter se alegrado com a perspectiva da expansão do direito ao porte de armas – talvez a única proposta que se possa atribuir genuinamente a Jair Bolsonaro, já que de resto ele parece um fantoche escolhido para encaminhar as propostas econômicas de Paulo Guedes. Alguns setores da população esperam sair ganhando com a política econômica da gestão Bolsonaro, enquanto a quantidade de moradores de rua aumenta dramaticamente em todas as grandes cidades brasileiras. [7] Diante disso, por que não generalizar o porte de armas e promover o extermínio de gente miserável que não tem serventia – ou seja, poder de com­pra – para o crescimento econômico?

No momento em que pensava terminar este texto, sou informada da nova barbaridade cometida pelo presidente que não posso chamar de “nosso”. Jair Bolsonaro tentou desmoralizar Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido político Fernando Augusto de Santa Cruz, ao declarar: “Você acredita em Comissão da Verdade?”. Antes, já havia dito sobre Felipe: “Ele não vai querer saber a verdade” (a respeito da morte do pai, sugerindo que Fernando teria sido assassinado por um companheiro). Ao que o presidente da OAB reagiu afirmando que o atual presidente ostenta “traços de caráter graves para um governante: crueldade e falta de empatia”. [8]

Bolsonaro foi, de fato, um dos mais escandalosos ressentidos contra a grande repercussão favorável ao trabalho da Comissão da Verdade. Em 2014, interferiu numa audiência pública sobre torturados e desaparecidos políticos, em Brasília, para homenagear um dos agentes mais cruéis da repressão de Estado durante a ditadura: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Estaria ele com medo de que chegasse sua vez?

O fato espantoso, para pelo menos dois terços dos brasileiros, é que a vez dele de fato chegou: só que não foi para responder pela criminosa incitação à tortura, e sim para presidir o país. O ressentimento venceu aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças.

Maria Rita Kehl
Revista Serrote #33
Notas e referências bibliográficas: 
  1. Maria Rita Kehl, Ressentimento. 4a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011, p. 338.
  2. Ibidem, p. 132.
  3. Tzvetan Todorov, O homem desenraizado. Trad. Christina Cabo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
  4. Maria Rita Kehl, op. cit., p. 27.
  5. Entre as condições para se cadastrar, está a obrigatoriedade de manter os filhos na escola, o que representa um poderoso dispositivo contra o trabalho infantil.
  6. Entre elas: “Tive três filhos homens; na quarta vez fraquejei e veio uma mulher”.
  7. No início de julho de 2019, a onda de frio em São Paulo matou três pessoas sem­teto. Enquanto isso, o prefeito Bruno Covas resolveu proteger não os desamparados cidadãos sem­teto, mas a praça no centro da cidade onde eles tentavam se abrigar: mandou a Defesa Civil tirar os cobertores de quem, por não ter onde dormir, estava “sujando a praça”. Diante de tal brutalidade, não creio que a reação seja de ressentimento. As vítimas, certamente, se abalam. Mas a população… aprova em silêncio?
  8. Declaração publicada pelo site UOL News em 30.07.2019.
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MAIS VIVOS DO QUE NUNCA: Apesar dos esforços da Idiocracia, da Cruzada por um Brasil Medieval dos Bolsominions e da seita “Escola Sem Partido”, Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido resistem

Um dos maiores intelectuais latino-americanos do século 20, o criador da Pedagogia do Oprimido e Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire (1941 – 1997) poderia dizer, na esteira de Isaac Newton: “se eu vi mais longe foi por estar sobre os ombros de gigantes“. O que poucos sabem é que o educador pernambucano subiu nos ombros de gigantes do pensamento africano e de-colonial como Franz Fanon, Amílcar Cabral e Albert Memmi.

Estes mestres da libertação contra as opressões coloniais, que tanto inspiraram a práxis Freireana, têm obras cruciais que o leitor brasileiro tem cada vez mais oportunidade de conhecer a fundo através de importantes livros publicados por aqui: a exemplo de Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, Ed. UFBA), Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo (VILLEN, Ed. Expressão Popular)Retrato do Colonizador precedido de Retrato do Colonizado (MEMMI, Ed. Paz e Terra).

Nascido na Tunísia em 1920, Albert Memmi compartilha com seu xará argelino, o Albert Camus, outros elementos além do enraizamento em um país do Norte da África banhado pelo Mediterrâneo. Memmi e Camus também compartilham uma versatilidade de escrita notável: ambos aventuraram-se tanto na literatura (A Estátua de Sal é o romance mais conhecido de Memmi, e sabe-se que Camus venceu o Prêmio Nobel de Literatura por vasta obra em que se destacam O Estrangeiro e A Peste) quanto em escritos ensaísticos sobre ética, filosofia, política, relações internacionais, guerra e paz, dentre outros temas candentes.

Além disso, ao irromperem no cenário literário francês do século 20, figuras como Camus e Memmi trouxeram para o epicentro da discussão pública as questões candentes do imperialismo e do colonialismo, enxergados por um viés crítico que explicitava as proveniências africanas de ambos (um, da Argélia, outro da Tunísia), com forte presença também da escola-de-pensamento (e de vida) que viria a ser conhecida como Existencialismo.

Cá no Brasil e atravessando seus muitos exílios, Paulo Freire tomou aprofundado contato com os existencialistas, tendo sido também impactado enormemente pela figura grandiosa, no cenário intelectual do século, de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Freire compartilha com todos estes autores um interesse pelo estudo e pela decifração das relações sociais de opressão imperial, um estudo todo atravessado pela ética freireana, comprometida com a nossa libertação coletiva das garras da Opressão.

O ensinamento central de Freire é que a opressão desumaniza tanto os oprimidos quanto os opressores. A opressão é péssima para ambos. Os opressores, ao impedirem e sabotarem os ímpetos de transformação social liderados pelos oprimidos em seu processo de partejar uma realidade menos desumana, agem contra seus próprios melhores interesses: a conservação da opressão, na verdade, não interessa nem mesmo aos opressores pois os desumaniza e os enche de uma culpa dificilmente lavável.

“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas sim resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser-menos. (…) O ser-menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.” – PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido

“Se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizador”, escreve Memmi (p. 22). Neste livro impressionante em que pinta retratos de colonizados e colonizadores, subdividindo cada grupo em certos subtipos, Memmi explorou o tema da opressão colonial de maneira muito próxima àquela que marcará a visada Freireana. Ambos enxergam a realidade socialmente construída do Sistema Colonial como “organização da injustiça”, e Memmi nos pede que imaginemos alguém recém-desembarcado em Túnis sob domínio do Império Francês:

“Acontece de o recém-desembarcado, estupefato desde seus primeiros contatos com os pequenos aspectos da colonização, a multidão de mendigos, as crianças que circulam quase nuas, o tracoma etc., pouco à vontade diante de tão evidente organização da injustiça, revoltado pelo cinismo de seus próprios compatriotas (‘não preste atenção na miséria! Você vai ver, a gente se acostuma rápido!’), logo pensar em ir embora.” (MEMMI: RJ, 2007, p. 56)

Caso decida ficar, este hipotético sujeito, nascido na metrópole e transplantado para a colônia, poderá sentir a tentação perigosa do humanitarismo. Sentindo piedade pelos oprimidos, sofrendo com a miséria dos miseráveis, permitindo que seu coração bata em sintonia com os corações que sangram na sarjeta e só comem as migalhas caídas da mesa dos ricos, este sujeito pode sentir-se atraído, em sua revolta, pela revolução dos oprimidos. Porém, como ironiza Memmi:

“O romantismo humanitário é considerado na colônia como uma doença grave, o pior dos perigos: não é nem mais nem menos que a passagem para o campo do inimigo. Se ele se obstinar, aprenderá que embarca para um inconfessável conflito com os seus, o qual permanecerá para sempre aberto, jamais cessará, a não ser com sua derrota ou seu retorno ao redil do colonizador. Muitos se surpreendem com a violência dos colonizadores contra o compatriota que põem em perigo a colonização.” (op cit, p. 57)

Freire aprendeu muito, na escola de Memmi, Fanon e Amílcar Cabral, a realizar uma leitura psico-social da realidade marcada pela opressão onidesumanizante: para ele, a realidade psicológica dos sujeitos designados pelos termos oprimido e opressor é bem mais complexa do que sonha nosso ingênuo simplismo. O oprimido pode hospedar dentro de si uma espécie de versão íntima do opressor. Já o opressor, em alguns casos (infelizmente raros), pode deixar-se comover pelo destino dos oprimidos e decidir-se a cometer o suicídio de classe que Amílcar Cabral tematizou e que figuras como Friedrich Engels e Fidel Castro cometeram na prática.

Ora, para que possa dar o salto essencial de auto-superação de sua condição oprimida, é preciso que o sujeito vença a consciência ingênua através de um esforço da consciência crítica que vai desvelando esta realidade psíquica complexa: o oprimido que hospeda dentro de si os valores, os modos de pensar, os jeitos de viver, as maneiras de enxergar o mundo, as formas de fruir de seu tempo livre, as epistemes e tábuas de valores pegas de empréstimo do cabedal do opressor. Donde a necessidade suprema de uma educação comprometida com a descolonização de corações e mentes. Mas isto não é tudo: a Pedagogia do Oprimido, ao contrário do que pensam muitos, não foi concebida para educar somente os oprimidos.

Paulo Freire estava no mundo também para educar os opressores, para ensiná-los sobre a desumanização de si mesmos em que caem, abismo sem fundo, ao apegarem-se a seus privilégios injustos e às suas usurpadas posições de poder opressivo. Esta fusão entre marxismo e cristianismo que Paulo Freire busca efetivar enxerga em seu horizonte utópico – síntese entre denúncia e anúncio – o advento de um Reino onde a fraternidade seja de fato um valor vivido e encarnado, e não apenas ídolo distante ao qual se presta apenas serviço labial. Fraternos seríamos caso não mais estivéssemos em uma sociedade cindida entre a elite opressora e as massas oprimidas. Por isso é do interesse de toda a Humanidade a proposta da Pedagogia do Oprimido: a opressão nos desumaniza a todos.

Na atitude de figuras como Memmi, Freire, Amílcar, Gramsci, dentre outros, temos claramente um engajamento existencial em prol da transformação radical de uma realidade social marcada pela injustiça organizada – e sabemos muito bem que o fascismo é uma das expressões máximas desta organização do injusto, desta “banalidade do mal” que torna a injustiça cotidiana como o pão com manteiga: “O que é o fascismo senão um regime de opressão em proveito de alguns?”, pergunta-se Memmi, lembrando-nos que “toda nação colonial carrega assim, em seu seio, os germes da tentação fascista”:

“Toda a máquina administrativa e política da colônia não tem outra finalidade senão a opressão em proveito de alguns. As relações humanas ali provêm de uma exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo e são garantidas pelo autoritarismo policial. Não há qualquer dúvida, para quem o viveu, de que o colonialismo é uma variação do fascismo…” (MEMMI, op cit, p. 100)

Hitler e Mussolini não tiraram suas práticas “do nada”: puderam se inspirar no apartheid que o Império Britânico instalou na África do Sul. Escrevendo em 1957, quando muitas das nações da África atual ainda não tinham conquistado plena independência, Memmi fala sobre “esse rosto totalitário, assumido em suas colônias por regimes muitas vezes democráticos”, que prossegue de tanta atualidade: muitas metrópoles pretensamente humanitárias, que se auto-decretam o cume e auge da evolução histórica do ser humano, como a França do Iluminismo, mostram sua face fascista no trato com suas colônias.

Tanto é assim que os Jacobinos Negros da Revolução no Haiti tiveram que realizar uma insurreição armada em prol de sua independência, e que os argelinos se envolveram numa longa e custosa Guerra de Independência contra o Império francês já no pós-2a Guerra Mundial (cuja crônica cinematográfica incomparável está em A Batalha de Argel, obra-prima do italiano Gillo Pontecorvo).

Os EUA, que vestem diante do mundo a máscara de Democracia Liberal que guia o mundo nos caminhos do Capitalismo Com Face Humana, manifestam um rosto fascista-totalitário nas ações imperialistas que realizam nas partes do mundo que desejam reduzir a colônias: foi assim na Guerra do Vietnã (que espalhou-se para o Camboja), foi assim nos inúmeros regimes ditatoriais que patrocinou e apoiou na América Latina e Central (com golpes militares apoiados por Tio Sam na Guatemala em 1954, no Brasil em 1964 e no Chile em 1973, para ficar só em três episódios históricos paradigmáticos), está sendo assim na atual Guerra Contra o Terror (e contra o Estado Islâmico) turbinada por xenofobia islamofóbica e petrodollars.

Paulo Freire o sentiu na pele: se, no começo dos anos 1960, revolucionava a educação nacional, comandava um programa de alfabetização que renovou todas as noções e práticas sobre o tema, logo depois do coup d’état manu militari acabou sendo preso e posteriormente exilado. Pôde assim perceber bem o quanto a ditadura militar, uma espécie de Estado fantoche servindo aos interesses do imperialismo norte-americano, investia pesado na manutenção das bases materiais da opressão capitalista continuada. O que diria se estivesse vivo diante das evidências de que, em 2019, o Brasil volta à posição ajoelhada diante do Tio Sam?

O pseudo-patriota Bolsonaro, aquele que presta continência para a Star Spangled Banner, tem atuado com total subserviência diante do establishment estadunidense, o que se manifesta não só pela escolha de Olavo de Carvalho como grande “guru do governo” (teleguiado desde o QG em Richmond, Virginia) mas também pelas já explicitadas analogias entre a mentalidade racista-supremacista de Jair e a da Ku Klux Klan. Poderíamos dizer que aquele que idolatra Ustra e Pinochet hoje não encontra nada melhor a fazer senão pagar-pau pra Olavo, David Duke e Donald Trump. Diante de tal catástrofe – um “projeto de Hitler tropical”, como diz Mário Magalhães em sua biografia de 2018 -, obviamente a Educação se insurgiu.

TRÊS LEVANTES EM 30 DIAS DE RE(X)ISTÊNCIA

TSUNAMI DA BALBÚRDIA – Uma trilogia documental produzida por A Casa de Vidro nas manifestações cívicas de 15 de Maio, 30 de Maio e 14 de Junho em Goiânia.

ASSISTA AOS TRÊS CURTAS:

DOC #1: Tsunami da Balbúrdia


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DOC #2: Somos Gotas Nesse Mar de Revolta


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DOC #3: É Greve porque é Grave


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As Jornadas de Maio de 2019, que busquei retratar nos três documentários sobre o #TsunamiDaEducação, foram motivadas pela percepção, a meu ver muito acertada, de que Bolsonaro é inimigo da Educação, agente da Barbárie e da Imbecilização. E como foi comovente ver que Paulo Freire saiu dos livros e ganhou as ruas: suas frases berravam nos cartazes, as capas de suas obras foram reproduzidas em escudos de papelão, sua memória foi reavivada pelos manifestantes. Não eram protestos apenas contra os cortes anunciados pelo MEC: 30% das verbas discricionárias, um montante de aprox. R$ 5.700.000.000 e que o Ministro Weintraub teve a pachorra de comparar a 3 chocolatinhos e meio.

Eram protestos contra uma visão cretina e brucutu da Educação, típica do Bolsonarismo, pois esta tirania neofascista deseja o fim da educação comprometida com o desenvolvimento da consciência crítica. O que os Bolsonaristas desejam é o fim de uma escola que possa ensinar-nos o engajamento em prol da transformação do mundo na direção de menos-opressão, ou seja, na direção de um coletivo ser-mais.

 Os Bolsonaristas querem a morte da utopia e o triunfo do conformismo: deveríamos nos resignar à velha educação que coloniza as mentes. O velho esquema da “injustiça organizada”, em que se racha a educação entre uma área VIP para a elite (universidades “de ponta”, só pra ricos!) e uma vasta área de educação precarizada e apêndice-do-mercado para os pobres, a quem se oferece somente uma formação meramente técnica e a quem destina-se a integrar as vastas fileiras do proletariado em sua nova versão, o Precariado: em tempos de “uberização” dos trampos, vemos a proliferação de um ideal capitalista neofascista: os proletários pós-CLT, pós-Aposentadoria, pós-SUS, pós-Direitos, na era da Idiocracia de Direita.

Neste cenário distópico, Paulo Freire volta a ser nosso precioso aliado. E estou entre aqueles que deseja caminhar acompanhado por este peregrino da utopia que, diante das opressões multiformes que maculam o estar-sendo do mundo, via na educação crítica e libertadora o caminho principal para o partejar de um outro mundo possível, “outra realidade menos morta”, onde estivessem abolida esta triste ordem onde reina “tanta mentira, tanta força bruta”.

PARTE 2: A LIBERDADE É NOSSA RESPONSABILIDADE

Os Zapatistas de Chiapas – lá onde “o povo manda e o governo obedece” – tem um belo ensinamento: “A liberdade é como a manhã: alguns a esperam dormindo, porém alguns acordam e caminham na noite para alcançá-la.” Esta reflexão, atribuída ao Subcomandante Marcos (hoje conhecido pelo codinome Galeano), está bem em sintonia com os ensinamentos de Paulo Freire e seus mestres, dentre eles Albert Memmi: para eles, a liberdade não é uma doação ou uma graça, que nos seria simplesmente concedida, mas é fruto de nossa luta coletiva. Mais que isso: a liberdade é nossa responsabilidade.



Evocar o exemplo do Zapatismo na atualidade mexicana, ou do Movimento Sem-Terra no Brasil, é essencial para esta reflexão sobre liberdade e responsabilidade. Tanto os Zapatistas quanto o MST são compostos por pessoas que desejam ser os sujeitos e não os objetos da História, ou seja, são os que atravessam a madrugada despertos tentando conquistar a manhã ao invés de esperá-la dormindo. Sabem da verdade vivida que Freire enunciou quando disse que “ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”, um dos pensamentos onde melhor se sintetiza o marxismo cristão deste pensador.

Se a educação é tão essencial à transformação social profunda é pois não basta revolucionar as condições econômicas e políticas caso se deixe intocado todo o âmbito do psíquico dos sujeitos: o que é necessário não é apenas romper com um sistema de produção baseado na espoliação injusta dos frutos do trabalho de proletários e camponeses, mas também ajudar os injustiçados a saírem do lodaçal da consciência ingênua, mistificada, fatalista. Não tenho o conhecimento empírico nem fiz a pesquisa de campo necessária para afirmar que o ideal pedagógico Freireano está em ação nas escuelitas dos zapatistas em seus caracoles, mas parece-me que há muitas convergências de utopia e de práxis estabelecendo uma espécie de ponte entre o educador pernambucano e os revolucionários de Chiapas.

Nas escuelitas zapatistas, ou dentro do MST, a Pedagogia do Oprimido que se coloca em prática tem muito a ver com esta ação ética e política de suprema importância: os sujeitos assumindo a responsabilidade pela liberdade. Em algumas das mais belas páginas que escreveu, Albert Memmi fala sobre os oprimidos em uma situação de opressão colonial (os “colonizados”), em contraste com “os cidadãos dos países livres” (ou seja, os sujeitos que vivem na metrópole):

“A mais grave carência sofrida pelo colonizado é a de ser colocado fora da história e fora da cidade. A colonização lhe suprime qualquer possibilidade de participação livre tanto na guerra quanto na paz, de decisão que contribua para o destino do mundo ou para o seu, de responsabilidade histórica e social.

É claro que acontece de os cidadãos dos países livres, tomados de desânimo, concluírem que nada têm a ver com as questões da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz não tem alcance, que as eleições são manipuladas. A imprensa e o rádio estão nas mãos de alguns; eles não podem impedir a guerra nem exigir a paz; nem sequer obter dos eleitos por eles respeitados que, uma vez empossados, confirmem a razão pela qual foram enviados ao Parlamento…

Mas logo reconhecem que têm o direito de interferir; o poder potencial, se não eficaz: que estão sendo enganados ou estão cansados, mas não são escravos. São homens livres, momentaneamente vencidos pela astúcia ou entorpecidos pela demagogia. E às vezes, excedidos, ficam subitamente enraivecidos, quebram suas correntes de barbante e perturbam os pequenos cálculos dos políticos. A memória popular guarda uma orgulhosa lembrança dessas periódicas e justas tempestades!

Considerando bem, eles deveriam antes de tudo se culpar por não se revoltarem mais frequentemente; são responsáveis, afinal, por sua própria liberdade, e se, por cansaço ou fraqueza, ou ceticismo, não a usam, merecem punição.

Mas o colonizado não se sente nem responsável nem culpado nem cético; simplesmente fica fora do jogo. De nenhuma maneira é sujeito da história; é claro que sofre o peso dela, com frequência mais cruelmente do que os outros, mas sempre como objeto. Acabou perdendo o hábito de toda participação ativa na história e nem sequer a reivindica mais. Por menos que dure a colonização, perde até mesmo a lembrança da sua liberdade; esquece o quanto ela custa ou não ousa mais pagar o seu preço.

Senão, como explicar que uma guarnição de alguns poucos homens possa sustentar um posto de montanha? Que um punhado de colonizadores frequentemente arrogantes possa viver no meio de uma multidão de colonizados? Os próprios colonizadores se espantam, e é por isso que acusam o colonizado de covardia.” (MEMMI, op cit, p. 133 – 134).

Albert Memmi, filósofo e escritor tunisiano.

Ora, se os oprimidos-colonizados acabam por aderir, ao menos parcialmente, à ideologia da classe dominante, ou seja, dos opressores-colonizadores, então torna-se óbvio que a tarefa revolucionária também consiste em ejetar de dentro dos oprimidos esta inculcada mistificação que serve aos dominadores.

mistificação é o instrumento da opressão: “a ideologia de uma classe dirigente, como se sabe, se faz adotar em larga escala pelas classes dirigidas” (p. 125), como lembra Memmi. A imagem-do-colonizado que o colonialista impõe a seus dominados muitas vezes encontra eco nos próprios dominados, que muitas vezes toleram o racismo e a presunção de superioridade que se manifesta em tudo que o colonialista diz e faz.

A marca do colonizador é sua arrogância, seu apego à noção de sua própria superioridade aos nativos pelo mero fato de ser proveniente da poderosa metrópole. E a marca da ideologia mistificadora que o colonizador propaga consiste, em última análise, na generalização ilegítima que subjaz ao racismo: todos os colonizadores seriam preguiçosos, ladrões em potencial, incapazes de liberdade e condenados à tutela, já que pertencem às raças inferiores etc. Memmi frisa:

“É notável que o racismo faça parte de todos os colonialismos, sob todas as latitudes. Não é uma coincidência: o racismo resume e simboliza a relação fundamental que une colonialista e colonizado. (…) Conjunto de comportamentos, de reflexos aprendidos, exercidos desde a mais tenra infância, fixado, valorizado pela educação, o racismo colonial é tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das estruturas mais sólidas da personalidade colonialista… Ora, a análise da atitude racista revela 3 elementos importantes:

1 – Descobrir e pôr em evidências as diferenças entre colonizador e colonizado;
2 – Valorizar essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado;
3 – Levar essas diferenças ao absoluto afirmando que são definitivas e agindo para que passem a sê-lo…

Longe de buscar o que poderia atenuar seu desenraizamento, aproximá-lo do colonizado e contribuir para a fundação de uma cidade comum, o colonialista, ao contrário, se apóia em tudo o que o separa dele. E nessas diferenças, sempre infamantes para o colonizado e gloriosas para si, encontra a justificação de sua recusa… É preciso impedir que se tape o fosso.” (MEMMI, p. 108)

A ideologia do colonialista, marcada pelo racismo, pela presunção de superioridade, pelo rebaixamento e desumanização do outro, por ação dos aparatos de transmissão ideológica (como a escola, a imprensa, a igreja etc.) acaba por dominar em parte os corações e mentes dos colonizados. Daí a importância crucial de uma educação descolonizadora, que ensine os sujeitos a se empoderarem como sujeitos históricos em pé de igualdade com aqueles que, no topo de pirâmides sociais e de dentro de palácios governamentais ou mercadológicos, pretendem rebaixá-los, oprimi-los, escravizá-los.

No século 16, o jovem Étienne de la Boétie, o amigo de Michel de Montaigne, em seu livro Sobre a Servidão Voluntária, já se perguntava pelo segredo do predomínio dos tiranos diante de uma massa tão mais numerosa do que ele e sua corte de aliados. Mas só o número não basta: os oprimidos são numericamente superiores, mas boa parte deles está “nas garras” das mistificações produzidas pela ideologia dominante – patriarcal, teocrática, bancária etc.

Por isso, além de combaterem com penitenciárias e massacres, com exílios e expurgos, todos aqueles movimentos sociais organizados através dos quais os oprimidos buscam partejar um mundo melhor para todos, os opressores /  colonialista / dominadores preferem reinar sempre exibindo o espetáculo da força brutal com a qual podem esmagar qualquer revolta que ouse se manifestar. Portanto, não é justo que acusem os oprimidos de covardes, que digam dos dirigidos / dominados que não tem apreço pela liberdade nem coragem para defender seu direito a ela. Memmi, escrevendo em 1957, quando os aparatos de repressão ainda não eram tão hightech quanto hoje, lembra das violências destravadas pelos opressores contra qualquer levante que conteste o status quo: caso sintam-se ameaçadas, as classes dominantes e dirigentes rapidamente convocam auxílio:

“Todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião colocariam à sua disposição, em alguns minutos, terríveis meios de defesa e destruição. Para um colonizador morto, centenas, milhares de colonizados foram ou serão exterminados. A experiência foi renovada – talvez provocada – um número suficiente de vezes para ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção. Tudo foi feito para apagar nele a coragem de morrer e de enfrentar a visão do sangue.

Torna-se muito claro que, se se trata de fato de uma carência, nascida de uma situação e da vontade do colonizador, está limitada a apenas isso. Não há como associá-la a alguma impotência congênita em assumir a história. A própria dificuldade do condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis já o demonstram… É por isso que a experiência da última guerra foi tão decisiva. Ela não apenas, como se disse, ensinou imprudentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Lembrou-lhes, sugeriu-lhes a possibilidade de um comportamento agressivo e livre.

Os governos europeus que, depois dessa guerra, proibiram a projeção, nas salas de cinema coloniais, de filmes como A Batalha dos Trilhos (La Bataille du Rail, de René Clement, 1945)tinham razão, de seu ponto de vista. Os westerns americanos, os filmes de gângster, os anúncios de propaganda de guerra já mostravam, objetaram-lhes, a maneira de usar um revólver ou uma metralhadora. Mas a significação dos filme de resistência é completamente diferente: alguns oprimidos, muito pouco ou nada armados, ousavam atacar seus opressores.” (MEMMI, p. 135)

Nenhuma revolução possível, pois, sem educação libertadora, e esta é necessariamente anti-racista e deve seguir ensinamentos delineados por pensadoras magistrais como Audre Lorde, Angela Davis e Bell Hooks. A leitura de Freire, Fanon, Memmi, dentre outros, conduz ao aprendizado de que os oprimidos, em sua luta coletiva por libertação, precisam conquistar os meios para vencer também dentro de si a presença do opressor. Este “tirano interior”, que Freud chamou de “super-ego” e que consistiria numa espécie de interiorização da autoridade externa, precisa ser derrubado tanto quanto os tiranos exteriores. “O colonizado hesita, de fato, antes de retomar seu destino em suas próprias mãos”, escreve Memmi (p. 136).

É função do educador comprometido com a superação das sociedades-de-opressão fornecer todo seu suor e toda as sinapses de seu cérebro, toda a arte de suas mãos e pernas, todo o sangue de suas sístoles e diástoles, para o partejar comum de um mundo onde possamos ser-mais, não mais cindidos entre exploradores e espoliados, mas sim camaradas humanizando-se no vitalício aprendizado da existência conjunta que se põe, como horizonte comum, a manhã da liberdade, da fraternidade, da justiça.

Esta liberdade jamais se fará caso aguardemos dormindo pela chegada da manhã. Temos que caminhar juntos na madrugada sabendo que a liberdade, sem as ações daqueles que a amam, não é nada senão um fantasma ineficaz ou ideal inútil evocado em poemas que ninguém lê. A liberdade necessita que a encarnemos, o que é missão para aqueles que estão acordados, mesmo nas madrugadas de breu mais intenso. Despertos para a sua passageira presença na Terra como sujeitos de uma História que os transcende, sabemos que a liberdade não é só o mais precioso dos bens a ser desejado. Sabemos que seu advento e sua consumação é nossa responsabilidade.

Eduardo Carli de Moraes 
19 de Junho de 2019

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VÍDEOS: “EI PROFESSOR, VOCÊ É DOUTRINADOR?”, palestra com as professoras da UFG Dra. Agustina Rosa Echeverría e Dra. Maria Margarida Machado, em evento realizado no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás no dia 7 de junho de 2019.

1a parte, Dra. Echeverría:

2a parte, Dra. Machado:

Filmagem: A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com)

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PALAVRAS MUDAM O MUNDO? – Reflexões sobre a performatividade da linguagem e a transformação da realidade

PALAVRAS MUDAM O MUNDO?

Há certos mitos, poderosos e hegemônicos, que nos convidam a crer na Palavra como força criadora de uma nova realidade. Basta que nos lembremos do Gênesis bíblico, recentemente re-apresentado nos traços malandros de Robert Crumb:

Neste mito fundador das religiões monoteístas, afirma-se que Deus possuiria o dom de transformar suas falas em atos. Em suma: com Deus, é dito e feito. O cara abre a boca pra falar fiat lux, e no momento seguinte, eis a Luz surgindo pela primeira vez para iluminar a infindável treva cósmica.

Aquilo que atribui-se a deus – a potência de tornar meras palavras em autênticos atos – é aquilo que se conhece hoje, na boca de linguistas, filósofos e psicólogos, como performatividade. No âmbito humano, também são performativas as falas de um juiz que fala um veredito e bate um martelo ou as falas de um casal que diante do padre faz seus votos de matrimônio e assim acarreta a consumação de um pacto jurídico.

Mas voltemos um instante nossa atenção mais demorada ao Fiat Lux, fenômeno mítico-imaginário já ilustrado por vários pintores, como Gustave Doré. Segundo Debray, a performatividade (teorizada pelo filósofo da linguagem inglês J. L. Austin) tem este paradigma no faça-se a luz e nós costumamos transpô-lo para outras esferas da existência humana:

A CRIAÇÃO DA LUZ de Doré

“A divina aptidão para transformar um dizer em fazer: fiat lux, e a luz se fez… Enunciação = Criação. Já esquecemos, talvez, o Gênesis, mas o senso comum, no fundo, julga sempre que é Javé quando evoca não as trombetas que derrubam as muralhas de Jericó, mas os livros que ‘criam rupturas’, ‘as palavras que abalaram o mundo’, ‘as ideias que modificam a face das coisas’ etc.” (DEBRAY, 1995, p.20)

Poderíamos nos perguntar, é claro, que sentido isso tem de um Deus, antes de fazer a Humanidade, já falar latim… Mas este não é o momento de colocar dúvidas ímpias e sacrílegas, pois como nos ensinam papas e padres, diante de questões como “o que fazia Deus antes de inventar Adão e Eva?”, a resposta é: estava preparando o fogo da eterna condenação infernal para aqueles que põe questões heréticas assim. Portanto, deixemos de lado nossas cruciantes dúvidas sobre se Adão e Eva tinham umbigos, e voltemos ao fiat lux.

A dessemelhança entre o humano e o divino aí se torna explícita. Obviamente, e por sorte, nós humanos não somos nada como o Javé do Antigo Testamento. Nada do que dissermos será capaz de acender nosso cigarro caso não tenhamos à mão um fósforo ou isqueiro. Nem tentem, na ausência de algum apetrecho gerador de fogo concreto, apelar para um fiat lux meramente labial, pois vocês ficarão no escuro e com o baseado sem queimar. E aí não tem graça…

 

II. LIVROS MUDAM PESSOAS?

No entanto, ouvimos por aí, da boca de Quintanas e outros poetas, que os livros, apesar de não mudarem o mundo, mudam as pessoas, e estas sim transformam o mundo. Donde, indiretamente, de modo enviesado, por misteriosas e múltiplas influências, o Verbo teria sim um poder sobre a Carne.

É o que Régis Debray chama de “o mistério performático”, ou seja, a capacidade da palavra gerar efeitos no mundo. O enigma da palavra-ação, do Verbo-fecundo, da linguagem que causa efeitos no mundo:

“O fato de que uma representação do mundo possa modificar o estado do mundo – e não somente sua percepção, considerada como natural – terá de ser encarada como um enigma”, escreve Debray. Ele enumera alguns exemplos “evidentes” do mistério performativo:

“Que a palavra de Jesus de Nazaré tenha conseguido, em certo ponto de seu percurso, transformar o Império Romano e dar origem à cristandade; que a pregação do Papa Urbano II, em Clermont – lançando nas estradas bandos de peregrinos e depois exércitos inteiros – tenha conseguido fazer surgir a primeira Cruzada; que o Manifesto Comunista tenha conseguido fazer surgir um ‘sistema comunista’…” (DEBRAY, op cit, p. 20)

Façamos uma reflexão sobre “the power of words” (os “os poderes da palavra”, na expressão de Edgar Allan Poe). Este poderio de transformação que a palavra carrega entre suas potencialidades também se manifesta nas ciências humanas, em várias de suas especialidades.

Como lembra Debray, “a eficácia dos signos, a respeito desse mamífero simbólico que é o Homo sapiens e loquens, tem sido amplamente abordada. A partir do exemplo das recitações do xamã diante da parturiente de sua tribo, a antropologia nos mostrou como ‘a passagem à expressão verbal desbloqueia o processo fisiológico’ (Lévi-Strauss). O psicanalista confirma em seus clientes as virtudes da talking-cure (Freud). O sociólogo da cultura coloca em evidência a violência simbólica exercida pelos dominadores (Bourdieu)…” (DEBRAY, op cit, p. 19)

Também ouvimos falar de “livros que fazem a Lei”. Também não faltam exemplos de execuções capitais que retiram sua legitimidade de códigos jurídicos (quantas leis de pena-de-morte ainda não estão por ser revogadas?). Não faltam homicidas, terroristas, suicide bombers, serial killers, que deixem de invocar justificações verbais para seus atos, dizendo-se inspirados pelas palavras da Bíblia, do Alcorão, do Mein Kempf ou de um discurso de Stálin.

A revolução que Régis Debray propõe para as ciências humanas está na fundação de uma nova ciência, a midiologia, que busca compreender a eficácia dos signos, o poder das palavras, a disseminação social das mensagens, o poder de contágio e mobilização do verbo. Nos seus Manifestos Midialógicos, Debray propõe que o midiólogo está interessado em “defender o direito do texto – surgido de experiências e necessidades estranhas à ordem das palavras – a produzir algo diferente do texto”:

“Já que os homens, após a invenção da escrita, têm feito uma mistura entre a informação simbólica e a decisão política, entre batalhas de interpretação e batalhas sem mais (como na querela das imagens, as guerras de religião ou as insurreições nacionalitárias), com verdadeiros mortos e verdadeiras armas, o midiólogo gostaria de acompanhar de perto os avatares extralógicos do lógos. Já que um dizer, em determinadas condições, pode produzir um fazer, ou um mandar fazer…” (DEBRAY, p. 90)

Sabe-se que o poder de sugestão, ou seja, capacidade não só de comover mas de mover à ação, de discursos feitos púlpitos ou tribunas, pronunciados diante de um exército ou de uma multidão rebelada, é capaz de fazer da retórica, da eloquência, da poesia, da cantoria, da palavra-de-ordem, uma força concreta, objetiva, um poder psico-físico que gera transformações no mundo.

Para que a Bastilha fosse tomada, em Paris, em 14 de Julho de 1789, as palavras tiveram seu papel, não há dúvida; porém a eficácia concreta destas palavras não pode ser compreendida apenas pela força imanente a elas, pelas ideias que veicula, pelos conceitos que mobiliza. É preciso compreender o veículo que transmite estas palavras, a mídia através da qual ela viaja.

É preciso perguntar, por exemplo: é o deus Hermes, aquele das sandálias aladas, ou um trem a vapor que leva um certo recado de seu emissor a seu destinatário? Esta mensagem, de coração a coração, vai numa carta manuscrita levada pelos ares por um pombo-correiro, ou então consiste em caracteres digitais transmitidos pela Internet de PC a PC? O suporte material da palavra tem importância crucial em sua eficácia.

III. A INVENÇÃO DA MIDIALOGIA

Entre o fiat lux do mito judaico-cristão e nosso atual estado civilizacional, muitas revoluções aconteceram pelo caminho, dentre elas a invenção da imprensa, ou seja, dos meios tecnológicos e científicos de levar o verbo aonde ele nunca antes estivera. As novas mídias nascidas da Revolução Gutenberguiana alçam a linguagem verbal para novos vôos de poder.

Agora o Verbo é mais “viralizável” (e muito antes desta viralização se tornam uma palavra que é moeda corrente na era digital). Com a imprensa, se podia fazer usos mais extremos do Verbo como ferramenta de mobilização, disseminá-lo pelo tecido social de maneira inaudita e inédita, enterrando a era do manuscrito, descortinando horizontes midiáticos novos.

“A técnica de Gutenberg devia transtornar, se não as modalidades de leitura, pelo menos o estatuto simbólico e o alcance social do documento escrito através da alfabetização de massa. Por exemplo, a análise do movimento das ideias na França do século XVIII, interessante para a midiologia, há de privilegiar esses espaços-chave, pólos de atração social e centros de elaboração intelectual, como foram os clubes, salões, cenáculos, lojas, câmaras de leitura, sociedades literárias, círculos, sem falar das academias e instituições mais regulares.

Sob este ponto de vista, as Luzes não são um corpo de doutrinas, um conjunto de discursos ou princípios que poderiam ser apreendidos e restituídos por uma análise de texto, mas uma mudança no sistema de fabricação ; circulação / estocagem dos signos. Ou seja, o aparecimento de núcleos e redes de sociabilidade, interfaces portadoras de rituais e de novos exercícios, valendo como meios de produção de opinião… Trata-se de uma reorganização (…) do espírito público. Não foram as ideias ou as temáticas das Luzes que determinaram a Revolução Francesa, mas essa logística (sem a qual tais ideias nunca teriam tomado corpo.” (DEBRAY, p. 24 e 31)

Paul CeŽzanne (French, 1839 – 1906 ), The Artist’s Father, Reading “L’ƒvŽnement”, 1866, oil on canvas.

Encontramos uma reflexão sociológica inovadora sobre estes temas na obra de Gabriel de Tarde, A Opinião e As Massas, que também reflete sobre a Revolução Francesa chamando a atenção para este elemento fundamental para sua compreensão plena: a prévia invenção da imprensa e, por consequência, o advento do jornalismo público; o nascimento conexo, no seio da sociedade, daqueles agrupamentos de pessoas que são bem diferentes das meras multidões: vem ao palco da história “o respeitável público”, a quem a imprensa se dirige querendo estabelecer uma conversa entre cidadãos.

“O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvolvimento da invenção da imprensa, no século XVI. O transporte da força à distância não é nada, comparado a esse transporte do pensamento a distância. O pensamento não é a força social por excelência? Pensamos nas idéias-força de Fouillé…

Da Revolução Francesa data o verdadeiro advento do jornalismo e, por conseguinte, do público, de que ela foi a febre de crescimento. Não que a Revolução também não tenha suscitado multidões, mas nisso não há nada que a distinga das guerras civis do passado… Uma multidão não poderia aumentar além de um certo grau, estabelecido pelos limites da voz e do olhar, sem logo fracionar-se ou sem tornar-se incapaz de uma ação de conjunto, sempre a mesma, aliás: barricadas, pilhagens de palácios, massacres, demolições, incêndios. (…) Contudo, o que caracteriza 1789, o que o passado jamais havia visto, é esse pulular de jornais, avidamente devorados, que eclodem na época.” (TARDE, p. 12)

Polemizando com a obra de Gustave Le Bon, inovadora no campo da psicologia das massas, Gabriel de Tarde contesta que o período histórico da passagem do século XIX ao XX seja “a era das multidões” e propõem chamá-lo de “a era dos públicos”.

“Não é que as multidões foram aposentadas, pararam de existir, muito pelo contrário, perseguem visivelmente presentes em vários espaços sociais, como uma espécie de re-presentificação perene de uma força de sociabilidade primitiva, ancestral, antiquíssima, mas ainda atuante. A multidão acompanha a história deste animal social que somos, mas está vinculada a um estado mais próximo da natureza, ainda pouco transformada pelo engenho humano, do que da civilização tecnológica-científica-industrial de hoje: “a multidão está submetida às forças da natureza – um raio de sol a reúne, uma tempestade a dissipa…” (TARDE, op cit, p. 15)

Dizer que entramos na “era dos públicos” significa dizer que agora lidamos com a potência social, performativa, das mensagens transmitidas por publicistas com diferentes poderes midiáticos, ou seja, capacidades diversas de eficácia performativa. O público de um zine anarco-punk pode até constituir-se em pequena multidão e manifestar-se em ato, por exemplo, através de meia dúzia de molotovs lançados contras as vidraças de agências bancárias ou lojas de carros importados.

Era Primeiro de Abril, 1964, uma quarta-feira, e o jornal carioca O Globo dava boas vindas à ditadura militar no Brasil.

Porém a capacidade de mobilização deste micro-empreendimento midiático, quer circule em 100 cópias xerocadas, quer seja entregue em 1.000 caixas de e-mail, torna-se miúda diante do público de um jornal televisivo ou impresso que atinge diariamente dezenas de milhões de pessoas e que pode, tal qual a Rede Globo no Brasil, ser peça-chave de um golpe de Estado (como fez em 1964), da determinação de uma eleição para a presidência (como fez em 1989 no duelo entre Collor e Lula, em que tomou o partido de seu queridinho “Caçador de Marajás”), da convocação de mega-manifestações de rua (como fez durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, 2015-2016, em que foi determinante para chamar multidões a manifestarem-se em prol do impeachment).

O poderio das empresas privadas que dedicam-se à comunicação social é uma das características mais notáveis da sociedade atual: no século XXI, muitas mega-corporações transnacionais realizam uma pervasiva ação sobre inúmeros públicos, controlando simultaneamente cadeias de TV, estações de rádio, editoras de livros, jornais e revistas impressos, além de websites e portais cibernéticos. Constituem oligopólios de tal poderio que tornam difíceis até mesmo de serem punidos aquilo que Tarde, ainda no início do século XX, chamava de “delitos de imprensa” e que já percebia como gozando de altos privilégios de impunidade:

“Eis porque é tão difícil fazer uma boa lei sobre a imprensa. É como se houvessem querido regulamentar a soberania do Grande Rei ou de Napoleão. Os delitos de imprensa são quase tão impuníveis como eram os delitos de tribuna na Antiguidade e os delitos de púlpito na Idade Média.” (TARDE, p. 22)

IV. O CASO “DEAR WHITE PEOPLE”

Um seriado de TV pode ser reduzido a uma mercadoria no mercado de bens simbólicos, a um mero item no supermercado dos entretenimentos audiovisuais? É o que torna-se cada vez mais insustentável diante de obras-primas da teledramaturgia em série como Black Mirror, A Sete Palmos (Six Feet Under), Breaking Bad, Handmaid’s Tale, Alias Grace e Dear White People.

Esta última, série original Netflix baseada em um filme homônimo dirigido por Justin Simien, tem interesse não só pela crônica inteligente que faz das relações humanas em um câmpus universitário da Ivy League, a Winchester. A série, de roteiro espertíssimo e montagem dinâmica, foca nas relações inter-raciais e no debate sobre o que constitui racismo – e quais as maneiras de enfrentá-lo.

Para além da multifacetada discussão sobre racismo, capaz de gerar acalorados debates, Dear White People é interessante e importante também como comentário sobre o poder da mídia e do jornalismo na transformação de certos contextos sócio-culturais.

Dois dos personagens principais, a radialista e cineasta Samantha White e o jornalista investigativo e escritor Lionel Higgins, buscam renovar as práticas midiáticas em seus respectivos campos de atuação.

A série, em sua primeira temporada, levantou muitas questões importantes em uma era caracterizada por muitos como dominada por um jornalismo abandonado à noção pouquíssimo ética da “pós-verdade”.

Sam White crê em uma mídia que toma partido, quer fazer no rádio uma provocação à reflexão que as autoridades universitárias e políticas logo irão querer estigmatizar como se fosse incitação à rebelião.

De fato, esta deliciosa e deslumbrante personagem que se dirige à Cara Gente Branca para denunciar microfascismos e racismos escondidos no cotidiano parece ter no sangue um pouco do espírito de Angela Davis. Seu programa de rádio é um pouco panfletário e incendiário, procura pôr a palavra falada (o rap radiofônico) para agir na base de uma diária intervenção pública de um verbo irreverente e rebelde, capaz de desembocar em riots, sit-ins, protestos.

Sam White é o tipo de âncora midiático que subverte todos os padrões tradicionais – como fez Antonio Abujamra na TV brasileira com seu programa de entrevistas Provocações. O tipo de ser-falante que evoca o exemplo de Jello Biafra, o vocalista dos Dead Kennedys, cujos discursos, transpostos para CDs de spoken word, também contêm frases que são autênticas incitações a cessar de odiar a mídia para tornar-se a mídia. Exatamente como fez o personagem de Christian Slater em Pump Up The Volume (1990), interessante obra do cineasta do Québec Allan Moyle.

A temporada de Dear White People termina com um ato de puro “heroísmo jornalístico” de Lionel. Ele é uma figura que trabalha no jornal The Winchester Independent. Ele descobre, através de suas investigações de repórter que não tem pudor de meter a fuça onde não é chamado, que a “independência” de que o órgão se gaba em seu nome não é autêntica. Ele descobre que as fontes financiadoras do jornal determinam a censura a certos temas, transformados em tabu. Os tabus são justamente aquilo que Lionel afronta, tomando o microfone e programando um flooding dos celulares e computadores de todos com o seu furo (scoop).

Cara Gente Branca possui um tecido narrativo todo atravessado por táticas de resistência típicas da cibercultura, como os procedimentos de hacking propostos por grupos como Anonymous ou de leaking tal como praticado pelo Wikileaks de Julian Assange.

Na série, a revolta dos estudantes afro-americanos, em especial os residentes de Armstrong-Parker, é vinculada com o fato de serem público do programa de rádio de Sam White e das colunas de Lionel no Independent. Esta comunidade, incendiada pela mídia, vê-se na necessidade de mobilizar-se em repúdio e revolta contra a festa “Dear Black People”, em que os branquelos racistas e supremacistas do câmpus pintam os rostos de negro como nos Minstrels Shows, para fazerem folias com processos altamente KKK de “denegrimento” do outro…

Porém, descobre-se que a própria Sam White hackeou uma conta de Facebook de seus adversários, entocados da revista supremacista-racista Pastiche. Sam White acabou convidando para a infame festa racista uma pá de gente que ali se revoltaria contra as práticas dos atuais propagadores da ideologia da Klu Klux Klan (hoje infelizmente re-empoderada por presidentes da república como Trump e Bolsonaro).

Sam White quis expor uma realidade, quis que debaixo dos holofotes de todos, para que fosse plenamente reconhecido: temos sim um problema de racismo e de supremacismo étnico nesta prestigiosa instituição educacional destinada a formar uma parte da elite cultural estadunidense do amanhã. Sam White, força performativa. Uma mulher negra empoderada que varre pra escanteio o fiat lux do MachoDeus para apostar em sua própria infinita potência feminina para produzir a luz. E o incêndio.

James Baldwin, recentemente retratado no excelente documentário de Raoul Peck I Am Not Your Negro, costumava dizer: “Not everything that is faced can be changed, but nothing can be changed until it is faced.” Este pensamento fecundo de James Baldwin, na série, inspira não só Samantha White e Lionel, os “heróis midiáticos” de Dear White People, mas sugere também algo para quem quer refutar a noção de que as palavras não mudam o mundo.

Precisamos de palavras para encarar a verdade do mundo e para estruturar nosso pensamento e nossa comunicação; se o Verbo não pode tudo, o que é verdade e deve ser reconhecido, isto não implica que não possa Nada. Na verdade, não há revolucionário que tenha desprezado a potência misteriosa das palavras que comovem e que o mundo mudam. The Word works in mysterious ways…

V. JUDITH BUTLER – UMA TEORIA EXPANDIDA DA PERFORMATIVIDADE

Em breve…

 

BIBLIOGRAFIA

DEBRAY, Régis. Manifestos Midiológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

TARDE, Gabriel. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CRUMB, Robert. Gênesis. Graphic Novel.

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, Fevereiro de 2019

A Aprendizagem da Liberdade segundo Clarice Lispector – Por Eduardo Carli de Moraes

“Ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso.”
CLARICE LISPECTOR

Nascer livre é inconcebível. Livre tornar-se é muito mais plausível. Nascemos inacabados, conectados ao corpo materno e nutriz por um cordão umbilical cujo corte dá início à nossa vida extra-uterina. Depois deste corte, a aventura do devir-livre começa por uma condição de extrema dependência e vulnerabilidade. A independência e a fortaleza são também o resultado de muito esforço – e um fruto que demanda tempo até que mature. A essa aprendizagem de uma liberdade dolorosa e difícil a obra de Clarice nos convida, pedindo que aceitemos o risco. Que o tema da libertação esteja presentíssimo em sua obra, a seguinte citação será suficiente para evidenciar:

“Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo – a ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava o animal histérico: ele apelava para o descontrole – durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como,

estava cansada do esforço de animal libertado.”

LISPECTOR. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rocco: 1998, Pg. 15

Como psicóloga de seus personagens de profundezas abissais, Clarice sonda em Loreley (vulgo Lóri) este processo de aprendizagem da liberdade. Mais especificamente: Lóri quer aprender como amar mais livremente. No trecho citado há pouco, a histeria é descrita de modo metafórico, bem longe do linguajar científico e um tanto descolorido de Breuer e Freud nos primórdios da Psicanálise. Para Clarice, a histeria é descrita como algo que transcende a mulher e também o âmbito do humano: até mesmo um animal – como um tigre aprisionado em uma jaula estreita, pode tornar-se histérico no próprio processo de movimentação de si que faz visceralmente para libertar-se de uma condição que lhe é intragável.

O livro é também a descoberta, por parte deste animal-mulher em processo de aprender a ser mais livre, de algo precioso: ninguém precisa se libertar sozinho. Os seres humanos se libertam juntos, e isso é também uma das verdades do amor. Em outro momento da obra, Lóri “pensou que essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente este socorro ser dado”:

“Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (…) Ela, o tigre, dera umas voltas vagarosas em frente ao homem, hesitara, lambera uma das patas e depois, como não era a palavra ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silenciosamente. Lóri nunca esqueceria a ajuda que recebera quando ela só conseguiria gaguejar de medo.” (p. 124)


CAETANO VELOSO – “Tigresa” [letra]

Esta instigante e complexa personagem feminina que é Lóri tem um nome de batismo repleto de significados ocultos e ressonâncias míticas: Loreley, como informa Ulisses à sua querida Lóri, é “um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heinrich Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar…” (p. 98).

“Lorelei” de Carl Joseph Begas (1835)

“Loreley Amaldiçoada Pelos Monges” de Johann Köler (1887)

A LORELAI

Eu não sei como explicar
Porque ando triste à beça;
Uma história de ninar
Não me sai mais da cabeça.

Dia ameno, a noite cai
Sobre o Reno devagar;
Na montanha, a luz se esvai
Faiscando pelo ar.

Uma chuva de centelhas
Repentina alumbra o céu;
A mais linda das donzelas
No penhasco apareceu.

Com escova de ouro escova
Seus cabelos incendidos;
E as canções que cantarola
Arrebatam os sentidos.

Uma dor logo fulmina
O barqueiro num batel;
Ele olha para cima:
Os escolhos esqueceu.

No final, creio que o reio
Engoliu o batel e – ai! –
O barqueiro que caiu
No canto de Lorelai.

H. HEINE traduzido por A. VALLIAS
Heine Hein? – pg. 99

A Lóri de Clarice Lispector não é a mera repetição deste arquétipo mítico. Na verdade, a escritora brasileira pratica uma literatura que subverte vários cânones ocidentais. O mito da Loreley evoca, é claro, o episódio da Odisséia de Homero em que Ulisses e os tripulantes de seu barco vão atravessar um local onde muitos navegantes já naufragaram devido ao canto sedutor das sereias. O sagaz herói homérico, naquela ocasião, pediu para que todos os marinheiros tapassem os ouvidos com cera para não ouvirem o perigoso e irresistível chamado musical, enquanto ele mesmo, Ulisses, decide-se a ouvir a deleitosa melodia, mas amarrado ao mastro do navio.

Em A Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, o Ulisses – carioca e professor de filosofia – faz um papel muito mais semelhante ao de Penélope, a esposa do Ulisses homérico, que aguarda o retorno do esposo em Ítaca. Assim como Penélope, o Ulisses de Clarice é um homem de paciência aparentemente inesgotável, que não força a barra com Lóri para possuí-la, preferindo aguardar que ela amadurecesse para o amor, aprendesse a liberdade necessária para a consumação das entregas carnais supremas.

Clarice Lispector é mestra na descrição das dinâmicas subjetivas complexas que comovem, transtornam e modificam os seres humanos por dentro, ainda que pouca coisa de monta esteja acontecendo por fora. Lóri é uma dessas personagens que possui um corpo físico onde digladiam-se os afetos num imenso escarcéu de vontades conflitantes.

É uma compreensão do “espírito” ou da psiquê que muito se assemelha àquela de Nietzsche, que buscou alargar o nosso conceito de “vontade” para incluir nele uma luta entre os impulsos, uma guerra sem armistício senão a morte. A cada momento, esta guerra interior tem como resultante um afeto dominante, erroneamente considerado como idêntico à vontade em geral, quando não passa de uma vontade específica que está provisoriamente em uma posição dominante.

Em palavras mais comuns: nossos corpos são um campo de batalha para a guerra das vontades. Lóri passa boa parte do livro tentando decidir-se afetivamente: entrega-se ao amor carnal com Ulisses, o professor de filosofia sedutor mas um pouco pedante? Ou prossegue resguardando-se e poupando-se? Ela sente estar apenas “semivivendo”, e esta lucidez quanto à baixa intensidade de seu viver é também o que lhe instiga a tentar superar-se.

Pois não é apenas o corpo do outro, a fusão erótica com Ulisses, que ela enxerga como possibilidade de graça e de êxtase. No decorrer do livro, em suas reflexões sobre “o Deus”, ela vai adquirindo uma visão panteísta e Spinozista do cosmos: “chegara ao ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo com suas galáxias” e “por causa da vastidão impessoal era um Deus para o qual não se podia implorar: podia-se era agregar-se a ele e ser grande também.” (p. 82)

Na prática, esta cosmovisão panteísta prevê que o sujeito possa perceber-se como integrante do “corpo cósmico” do Deus-Natureza. Isso se manifesta quando Lóri, acordando antes do sol nascer, desce à praia ainda vazia, invisível aos olhos que pudessem olhá-la de maiô. Em uma espécie de ritual solitário e autopoiético, ela entra no mar para fundir-se com as águas salgadas e as estrelas sobre sua cabeça.

“Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos… Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. (…) Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem.” (p. 78-79)

Esta cena memorável, em que Lóri funde-se com os elementos da natureza e acaba até mesmo por beber a água salgada em goles grandes – “o mar por dentro como o líquido espesso de um homem” – é parte deste aprendizado do corpo em meio a um cosmos absurdo, ininteligível, que evoca a filosofia existencialista de Albert Camus.

Lançando-se às águas selvagens de um mar ilimitado, rodeada pela noite que finda e pelo sol que nasce, Lóri está em pleno processo de fundir-se com a maravilhosidade absurda do Todo que ela integra. Apesar de estar sozinha, a cena é de intenso erotismo, pois este contato com seu lado mais selvagem, esta aquiescência ao convite Lou Reediano (“hey babe, take a walk on the wild side), é o que vai capacitando a personagem para o amadurecimento de sua capacidade erótica-orgástica.

No livro, Clarice também debate as máscaras vestimos para nos fingirmos de civilizados e fingirmos que nada temos de selvagens. Lóri é culta o bastante para saber que as personas eram as máscaras que, “no antigo teatro grego ou romano”, “os atores, antes de entrar em cena, pregavam ao rosto”, cada uma delas “representava pela expressão o que o papel de cada um deles queria exprimir” (p. 86).

Lóri é uma mulher que reflete muito, em seu processo que não é só de auto-conhecimento mas também de auto-poiésis, sobre as máscaras que veste, sobre as personas conectadas às suas poses, vivendo num constante conflito entre pintar-se ou não: a maquiagem lhe faz sentir-se pseudo, mas o rosto sem retoques também lhe dá uma sensação de nudez e vergonha. Nos encontros com Ulisses, ela é uma gangorra: às vezes se maquia e se ajeita, outras vezes prefere ir de pele nua. E faz as seguintes reflexões psicológicas baseadas em suas próprias vivências:

“Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera para representar-se e representar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo: a pessoa era.” (p. 87)

Já Ulisses, por todo o livro, é descrito como uma espécie de santo da paciência, um homem totalmente avesso àquela pressa truculenta típica do macho-estuprador. Ulisses parece encarnar um ideal-de-homem nutrido pela mulher em processo de maturação sexual-afetiva e que, ainda desconfiada das entregas sexuais totais, pede do outro um tempo para que a relação amadureça.

A metáfora do fruto é a todo momento evocada através deste livro que nos pinta a liberdade de amar como uma fruta madura. É preciso saber colhê-la a tempo, para que não fique inutilizada, como um fruto que, passado o tempo de sua madureza, cai do galho e no chão apodrece. É preciso muito tempo de dedicação ao cultivo para que essa fruta de fato atinja seu ápice e possa então nos conceder toda a força vivificante de seu sumo íntimo, por nós incorporado na devoração conjunta da maçã outrora proibida. Como notou com perspicácia Cláudio Dias em seu livro Clarice Lispector e Friedrich Nietzsche – Um Caso de Amor Fati, há um intenso sabor nietzschiano em uma frase como esta: “ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso.” (p. 134)

“O medo maior que Lóri tinha”, nos informa Clarice, era o de “perder Ulisses por se atardar tanto” (p. 68). Ela vive, durante o tempo que o romance dura, no temor de que seu comportamento, tímido e esquivo, acabe por cansar Ulisses. Ele aguarda que ela amadureça para o grau de carnalidade do amor que é essencial para suas consumações mais intensas e totais. Lóri vive no temor de resguardar-se demais, por um tempo demasiado longo, transformando o que havia entre ela e Ulisses – magnetismo, atração, tesão, vontade de mútua interpenetração! – em algo que, por erro de timing, apodrece por não ter sido sorvido em tempo ótimo.

“Surpreendeu seu próprio pensamento: então ela planejava de fato um dia ser sua? Pois enganava-se sempre pensando que se tratava de uma espécie estranha de amizade e que assim continuaria sempre, até murchar como uma fruta que não é colhida a tempo e cai apodrecida da árvore para o chão. (…) O que temia era exatamente uma das qualidades de Ulisses: a da franqueza. Temia que, se ela conseguisse avançar a ponto de ficar mais pronta e viesse a aceitar aproximar-se dele, ele com franqueza pudesse simplesmente dizer-lhe que já era tarde. Porque até as frutas têm estação.” (p. 69 e 89)

A liberdade de amar também exige seu kairós, o aproveitamento do momento oportuno, o abraço da ocasião propícia quando esta se mostra, o que significa que a sabedoria é também indispensável nas questões do coração. “Mesmo no amor tinha-se que ter bom senso e senso de medida”, reflete Lóri (p. 149). Mesmo quando atinge, por meio do amor, uma espécie de consumação da liberdade-a-dois, ela prossegue lúcida sobre o quão precária e vulnerável é esta conquista – como tudo na condição humana, este amor-fruto é frágil e destrutível. Demanda de nós coragem para mantê-lo vivo, resiliência para continuar a alimentá-lo.

A aprendizagem de Lóri, que conduz esta personagem à soleira da porta que conduz à uma vida nova, é também uma espécie de trajetória dionisíaca, onde ela abandona alguns das travas repressoras e apolíneas que a mantinham naquele estado avesso ao amor que é a avareza de si.

“Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe aonde. Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo de sua capacidade, pequena ou grande. Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa. (…) Ulisses não tivera medo do tigre ferido e lhe tirara a flecha fincada no corpo. Oh Deus! Ter uma vida só era tão pouco!

O amor por Ulisses veio como uma onda que ela tivesse podido controlar até então. Mas de repente ela não queria mais controlar. E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse acabado de chorar ao nascer. Como? Como prolongar o nascimento pela vida inteira?” (p. 131)

Lóri e Ulisses, ao fim desta pequena epopéia que Clarice retrata em seu romance, vivenciam um ápice vivencial: o êxtase do deslimite, o amplexo íntimo com o outro, a festa do amor consumado. Mas, como tudo na condição humana é fluido e precário, o livro se inicia com uma vírgula e termina com dois pontos. Sem início nem fim, a obra é o retrato de um entremeio, um filme de uma trajetória, um corte temporal em vidas que transbordam os limites do texto. Enquanto dura a leitura, é o próprio leitor que, cúmplice de Lóri e Ulisses, encantado com a música e a sabedoria da sereia Clarice, tem a chance de uma preciosa aprendizagem sobre o cultivo e o gozo dos mais salutares frutos da terra.

por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro || Novembro de 2018
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DIVINAS EPIDEMIAS: A propagação das religiões explicada pela midialogia de Régis Debray

Ilustração por Charb, presente no livro de Daniel Bensaïd, “Marx: Manual de Instruções” (Ed. Boitempo)

DIVINAS EPIDEMIAS: A propagação das religiões explicada pela midialogia de Régis Debray – por Eduardo Carli de Moraes

“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer.” – Régis Debray em Deus, Um Itinerário (p. 16)

Foi Deus quem criou Humanidade, ou foi a Humanidade quem criou Deus? Talvez este seja o equivalente teológico da famosa querela zoológica do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro, afinal de contas, o Criador ou suas criaturas? O homo sapiens inventa Deus, ou Deus inventa o homo sapiens?

A esta enrolada controvérsia, adiciona a querela entre os crentes: há um único Deus, ou os deuses são vários? Os inumeráveis e muito variados povos, através da história, que aderiram a uma espiritualidade politeísta – como os gregos que idolatravam um Olimpo repleto de deuses, e que povoaram suas epopéias homéricas com as brigas por supremacia entre as divindades – “morreriam de rir se ouvissem falar que só há um deus verdadeiro”, como diz Débray [2001, p. 82].

Para além da briga interminável entre teístas e ateus, e entre os primeiros a treta que opõe monoteístas e politeístas, há algo mais a se considerar: as representações sobre o Tempo, radicalmente discrepantes, que os seres humanos fazem de acordo com as opiniões e crenças que nutrem (por terem sido com elas nutridos).

Um dos debates científicos e filosóficos mais quentes da contemporaneidade resume-se na pergunta: Nature or Nurture? Isso que nós pensamos sobre o Tempo e sobre os Deuses, vem da natureza e nos é inato, ou então fomos nutridos com algo que nos inculcou aquilo que hoje consideramos como dogma, artigo de fé e verdade absoluta?

É impossível que estejam ambos com a verdade estes dois personagens irreconciliáveis, ícones da controvérsia milenar entre Fé e Razão: 1) aquele que afirma , com as Escrituras cristãs, que um deus único criou tudo o que existe há cerca de 6.000 anos, como está escrito no Gênesis, e 2) aquele que afirma com base na Ciência que o planeta Terra formou-se há cerca de 4,56 bilhões de anos e que as primeiras formas de vida só nasceram um bilhão de anos depois.

É impossível que ambos personagens estejam certos, pela razão simplérrima de que o Mundo não pode ter simultaneamente 6.000 anos e 4,5 bilhões de anos de idade. O que quer dizer que… das duas uma: ou ambas as hipóteses estão erradas, ou um destes dois personagens está equivocado e delira, falseando o Tempo pretérito já transcorrido com uma representação falsa do Passado.

“E Elohim criou Adão”, de William Blake

“Vamos abrir a Bíblia. Uma semana para criar os céus e a terra, pronunciando algumas palavras-chave – luz, água, árvore, estrela, animais, homem -, seguida de milhões de semanas de boca fechada, sem se manifestar. Sem revelar sua proeza – ou seu delito…” (Regis Débray, Deus: Um Itinerário, Companhia das Letras, 2001, p. 36)

Ora, o mito de Criação do monoteísmo situa a invenção do ser humano por Deus – o parto milagroso de Adão e Eva, que nascem já prontos, com corpos de homo sapiens que nunca precisaram antes evoluir a partir dos símios através dos milênios – há 6.000 anos atrás. Darwin gargalha no túmulo diante de tamanha ingenuidade da Humanidade nos primórdios toscos de sua cultura ainda bárbara.

Ora, os historiadores e arqueólogos sabem muito bem que, há 6.000 anos atrás, os seres humanos já estavam sobre a face do planeta há muito tempo, tendo logrado o controle do fogo há cerca de 500.000 anos atrás… Reduzir a História total de tudo o que já ocorreu à cifra minúscula de 6.000 anos é quase que certamente um equívoco, um erro, uma ilusão, uma mentira. Uma crença merecedora de ser aposentada por quem respeite as evidências.

A questão pode ser formulada de outro modo: se considerarmos como correta a teoria da evolução das espécies, comprovada cientificamente por milhares de experimentos empíricos e descobertas arqueológicas (os paleontólogos e antropólogos dirão: “os fósseis não mentem!”), seria possível dizer que Deus ou deuses existiram durante os milhares de milênios onde ainda não havia surgido sobre a face da terra o homo sapiens?

 Não é verdade que a crença em Deus, recentíssima na história natural, que se manifesta apenas em uma espécie animal entre milhões de outras, dependeu, para se constituir, do advento das capacidades simbólicas e da “função fabulatriz”, de que nos fala o filósofo Henri Bergson? Para que os deuses começassem a nascer, não foi preciso que a história cósmica, que o processo natural, atravessasse milhões de anos até que nascesse este primata ereto que somos, este mamífero com polegar opositor e tele-encéfalo altamente desenvolvido?

Em outros termos: se os símios nunca tiveram religião (alguém já viu orangotangos rezando ou gorilas construindo catedrais?), não é evidente que a religião começa a certo ponto do processo de hominização da criatura que Platão chamou de “bípede sem plumas”?

Os estudos de história das religiões, conduzidos por pesquisadores respeitáveis como Mircea Eliade e Leroi-Gourhan, não demonstram, através das revelações que nos fazem sobre as crenças e mitos da pré-história, que a religião faz sua entrada no palco do mundo a certo ponto da caminhada humana? Ora, a caminhada humana é profundamente determinada pelos avanços técnico-científicos, de modo que o surgimento histórico das religiões não seria separável de fenômenos tecnológicos e científicos que foram pontos-de-virada na evolução da espécie.

Aquilo que chamamos de Deus único, sustentáculo do credo monoteísta, quando visto de uma perspectiva histórica e genealógica, aparece-nos como uma invenção recentíssima: os crentes monoteístas chamam de Eterno aquilo que nasceu agora pouco!

Os credos monoteístas, nos seus cerca de 3.000 anos de existência (uma gotícula minúscula na vastidão do oceano do Tempo!), não cessaram de transformar-se sob o impacto das transformações nas condições materiais e concretas da Humanidade.

Por isso, em seu instigante livro Deus – Um Itinerário, Régis Debray propõe realizar uma “história do Eterno no Ocidente”, mobilizando todo o arsenal da disciplina científica que ajudou a fundar: a midialogia.

Debray dedica-se a explicar como se deram as inúmeras metamorfoses do monoteísmo em sua curta estadia neste planeta. Afirma com todas as letras que a invenção de Deus só pôde se dar quando os humanos tinham desenvolvido a escrita e a roda:

“O Deus [Único, o deus dos monoteísmos] é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente, as quais reduzem, em vários graus, a dependência do homem em relação ao espaço (a roda) e ao tempo natural (a escrita). O Único é tardio porque foram tardias as próteses que remetem a certas maneiras de circular e de memorizar, dependentes elas próprias de ecossistemas bem delimitados.

Não foi no alto do monte Sinai, numa bela manhã, que o Todo-Poderoso finalmente encontrou a ocasião apropriada de manifestar-se como tal. Foi um certo uso político, dado a inovações técnicas, que conferiu consistência e necessidade ao monoteísmo. As panóplias do primata inventivo têm seu tempo próprio (ultra-rápido desde a Revolução Industrial, porém ainda bastante lento após a Revolução Neolítica). O homem descende do símio, mas Deus descende do signo, e os signos têm uma longa história.” (Débray, 2001, p. 38)

É em virtude de um preconceito tenaz, que nos foi inculcado desde tenra idade, que nós temos a tendência a pensar no Deus judaico-cristão como algo que sempre existiu, não atentando ao seu processo de constituição e às técnicas culturais que estiveram em ação na formação deste produto histórico.

Enxergar toda a história das religiões anteriores ao monoteísmo como uma longa noite bárbara-pagã, onde os idólatras adoravam os falsos deuses do politeísmo greco-romano ou os orixás das cosmologias africanas, é um vício do olhar retrospectivo. Não podemos seguir falseando o tempo pretérito com uma visão contaminada de presunção etnocêntrica, como ocorre tão frequentemente entre judeus, muçulmanos e cristãos, os acólitos de religiões monoteístas.

Eles querem tornar o monoteísmo uma norma, algo que deve ser universalizado, algo que deve ter a aderência de todos, mas acabam mentindo sobre a eternidade, pois supõe como Eterno aquilo que veio-a-ser, postulam como dogma um Deus sem História que na verdade é um produto histórico do caminhar coletivo dos seres humanos. Assim, muitos crentes monoteístas acabam reprimindo, perseguindo ou mesmo massacrando aqueles que querem contar a história dos respectivos processos de constituição e propagação das seitas.

Regis Debray, pensador francês

“Quando se trata do Deus judaico-cristão, é difícil, para nós, nos desfazermos de hábitos de pensamento imperial, no qual um teocentrismo tranquilo recobre a presunção etnocêntrica. Esse Deus central e culminante se apresenta, ao nosso espírito, como o ponto de origem de um impulso irreversível característico da humanidade civilizada, ultrapassado o limiar das religiões ‘primitivas’. (…) Podemos ler, no Dicionário de Teologia Católica: ‘a revelação bíblica indica aos crentes que, na origem, existiu não o animismo, mas uma religião pura e monoteísta. Os politeísmos antigos não passam de uma degradação.’

Para essa convicção de anterioridade cronológica não contribui pouco a imemorial feitiçaria da fonte. Por natureza, o Ser perfeito predispõe a isso. ‘A concepção de que, no início de todas as coisas, encontra-se o que há de mais precioso e de mais essencial’, Nietzsche a caracteriza como ‘resíduo metafísico’. Como conjurar a quimera da origem no cume da metafísica, na figura de um Deus que não passa do que a idéia de origem O faz ser? Como escapar à suposição de que, no Seu berço, se encontra a essência mais pura?

(…) O monoteísmo nada tem de princípio fundador e genérico, desde a origem destinado a preencher toda a terra… Podemos nos dirigir em voz alta a um cadáver, dialogar com ele por meio de oração e oferendas, depositar na sua tumba algo com que se restaurar, sem supor um onipotente a controlar, amorosamente, todos os homens. Isso ocorreu bem antes do nosso bom deus e continuo a acontecer depois Dele por longo tempo. O reflexo que consiste em investir a morte com uma mensagem de vida, para suavizar o traumatismo de uma perda, não implica nenhuma teologia particular… Sustentar que a primeira personagem que intervém na espiritualidade é Deus é esquecer o Sol, os ancestrais, os espíritos e o Grande Pã, ou seja, nove décimos do trajeto.” (Débray, 2001, p. 42)

“Sem dúvida, crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer”, escreve Débray, sugerindo que o homo sapiens já vem ao mundo com uma certa predisposição inata para a crença, já que é o único animal cuja evolução psicobiológica o conduziu à difícil e angustiante posição de um ser consciente de sua finitude.

Condenados pela biologia à incompletude e à dependência – que criatura frágil e dolorosamente incompleta é esta que sai do ventre da mãe, e que precisa ser amamentada e cuidada com esmero por um tempo muito mais amplo do que recém-nascidos de outras espécies, que já “se viram sozinhos” desde muito mais cedo! -, os seres humanos estariam predispostos à credulidade.

Porém, através da história, esta credulidade passará por imensas mutações de acordo com fatores variáveis como cultura, etnia, estado da tecnologia na sociedade. Normalmente não pensamos no quanto uma discussão sobre técnica pode elucidar nossas controvérsias sobre teologia. E é nisso que a obra de Débray chega para provar, com um brilhantismo que emana de suas páginas em jato contínuo, que não é possível compreender as religiões sem atentar para os meios de transmissão das mesmas.

Não é possível compreender a Reforma Protestante inaugurada por Lutero desvinculada da invenção da imprensa de Gutenberg, assim como não é possível compreender a constituição do cristianismo sem o trabalho de difusão da boa nova realizado por figuras como Paulo, o marketeiro de Cristo. O que nos obriga a concluir que Jesus de Nazaré jamais fundou o cristianismo e que foi apenas séculos após a morte de Jesus que a instituição que agia em seu nome pôde de fato inventar o cristianismo sobre o legado de um judeu dissidente, executado na cruz, e que nunca foi cristão.

“A Dúvida de Tomé”, 1599, de Caravaggio

“Não foi São Tomé, mas São Paulo – o qual não chegou a ver ou ouvir Jesus de Nazaré – que tornou transportável a fé no Cristo. Esse ‘contágio’ operou-se à distância, historicamente e geograficamente, de seu ‘ponto de origem’, por vias não genéticas e não familiares, sem efeito de multidão nem sugestão sonambúlica, sem que os convertidos tivessem sido hipnotizados. Eis a razão pela qual essa propagação teve necessidade, precisamente, de uma instituição, a Igreja, e de determinado conjunto de técnicas de inculcação (a evangelização).” – DÉBRAY, Transmitir – O Segredo e a Força das Idéias (Ed. Vozes, RJ: Petrópolis: 2000, p. 137)

O que Débray ensina é que a difusão de uma doutrina – no caso, a dogmática cristã – só pode ser corretamente compreendida se atentarmos para as técnicas de difusão, dependentes dos meios tecnológicos disponíveis em determinada época e lugar. De modo que o cristianismo não teria sido o que foi, isto é, um caso de bem-sucedida epidemia simbólica de disseminação global, caso e os evangelizadores não tivessem sabido se aproveitar das tecnologias de comunicação e de transporte que tinham às mãos em seu tempo histórico e território geográfico:

“Que o grandioso nascimento do Deus único não rejeite, em nota acessória, a itinerância em meio desértico e o grande nomadismo pastoral que forçaram a inventar uma coisa diferente do altar de mármore em seu perímetro citadino, uma coisa diferente dos deuses do lar intransportáveis, a saber: um Deus móbil e amovível!” (Débray, Transmitir, p. 153)

* * * * *

PARTE 2: TALVEZ DEUS NÃO EXISTA, MAS SEUS FÃ-CLUBES EXISTEM COM CERTEZA

É claro que poderíamos discutir até o fim dos tempos se Deus (o Criador da Natureza, causa de si mesmo, Pai que não tem pai…) existe ou não. Eis uma questão das mais polêmicas já formuladas pelo ser humano, o único animal que se pergunta e que se angustia.

Porém, ainda que muitos possam negar a existência de Deus, poucos ateus ou agnósticos seriam capazes de negar a presença da crença religiosa através da história humana, o que nos leva a uma discussão que se desvia da teologia e abraça a antropologia, como o velho Ludwig Feuerbach já propunha: o ser humano é naturalmente crédulo? É inimaginável um tempo histórico vindouro onde vivesse uma humanidade completamente desprovida de fé?

Em outros termos: ainda que Deus não exista, nem nunca tenha existido, não existirão sempre os crentes? Ainda que os céus estejam vazios do divino, não seguirão os humanos dirigindo às nuvens e às estrelas as suas preces?

A história das controvérsias sobre a existência ou não de Deus, ou seja, as controvérsias infindáveis sobre a natureza do Ser Supremo, dão pano pra manga a intermináveis conversas de boteco, simpósios acadêmicos e guerras sangrentas. Milhares de histórias poderiam ser contadas sobre os conflitos de religião, desde querelas meramente verbais e intelectuais às chacinas e massacres sectários. Das tretas escolásticas opondo os fiéis de Tomás de Aquino aos adeptos da Reforma de Lutero, às Noites de São Bartolomeu e às fogueiras da “Santa” Inquisição.

Outra pergunta, no entanto, tem me fascinado e me forçado a mobilizar minhas limitadas forças intelectuais e sensíveis para decifrá-la: se Deus não existe, se nunca houve uma divindade que fabricou a Natureza (e tudo que ela contêm) a partir de sua potência criadora, se a crença nesta entidade não passa de um calmante psíquico inventado pelo único organismo vivo que se sabe mortal, como é possível que a religião, como mero ópio mental, possa determinar em tão larga medida a história concreta dos povos? É esta questão que a midialogia pode nos ajudar a elucidar.

Quando Marx, em sua célebre formulação, afirmou que a religião é o ópio do povo, talvez não estivesse inconsciente do quanto o ópio foi uma mercadoria de suma importância, muito demandada e ofertada no mercado, a despeito de quaisquer leis proibicionistas.

Se a fórmula de Marx é verdadeira, aconteceria com a religião o mesmo que ocorre com os opiáceos: se tentássemos proibi-la, ela se vingaria de nosso tolo ímpeto proibicionista e se faria uma mercadoria clandestina, amplamente comprada e vendida nos supermercados das ideias, valores e pertenças que são as religiões instituídas.

Ademais, precisamos compreender a fundo os meios de comunicação e mobilização que as religiões instituídas detêm, e que vem sendo há milênios amplamente utilizados para pôr em circulação esse sagrado ópio.

Em seu artigo “Marxismo e Religião: O Ópio do Povo” (presente no livro Centelhas), Michael Löwy chama a atenção para o fato de que a luta de classes se aplica também ao campo religioso e que não é à toa que certos grupos sociais filiem-se à Opus Dei, alguns outros encham os mega-templos da Igreja Universal do Reino de Deus, enquanto outros se digam fiéis da Teologia da Libertação, todos eles declarando-se igualmente cristãos, a despeito das imensas diferenças de comportamento que implicam estas diversas pertenças.

Deveríamos, portanto, estabelecer uma diferenciação entre vários tipos de ópio religioso? Poderíamos, além disso, julgar esses ópios não apenas a partir de seus efeitos analgésicos, mas pela veracidade da experiência vivida que eles implicam para seus usuários?

“Partidários e adversários do marxismo parecem concordar num ponto: a célebre frase ‘a religião é o ópio do povo’ representa a quintessência da concepção marxista sobre o fenômeno religioso. Ora, essa afirmação não tem nada de especificamente marxista. Podemos encontrá-la com poucas diferenças, antes de Marx, em Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess, Heinrich Heine e muitos outros.

Heine já a usava de uma maneira positiva, embora irônica: ‘Bendita seja a religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces e soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença.’ Moses Hess, em ensaios publicados na Suíça em 1843, adota posição mais crítica: ‘A religião pode tornar suportável a infeliz consciência da servidão da mesma forma que o ópio é de boa ajuda nas doenças dolorosas.’

(…) A expressão apareceu pouco depois na introdução de Marx para ‘Crítica da Filosofia do Direito de Hegel’ (1844), onde Marx diz que a religião é dual: expressão da miséria real e protesto contra ela. Ora legitimação da sociedade existente, ora protesto contra ela.” (LÖWY, Centelhas, p. 34)

Parece-me evidente – e creio que ateus e agnósticos não discordariam – o quanto vivemos hoje em um mundo radicalmente moldado pelas religiões, a despeito do avanço de uma restrita maré de secularização / laicidade.

Os povos não parecem nem um pouco a fim de renunciar ao seu cômodo ópio espiritual, remédio que não se encontra nas farmácias e que visa amainar a fúria dos sentimentos de angústia e finitude que experimentam os seres humanos, esses animais mortais que sabem que vão morrer (feito inédito na história dos corpos vivos conscientes).

A sociedade em que vive o ateu fornece-lhe inúmeras provas de que sua negação da existência concreta do ente venerado sob o nome de Deus, seu a-teísmo enquanto tese sobre a realidade cósmica, não permite ao ateu negar que as ilusões são fecundas em consequências. 

Tanto que Sigmund Freud não chamou seu livro de O Passado de Uma Ilusão… Ou seja, não fez uma arqueologia da fé morta e posta sob autópsia, mas sim falou sobre O Futuro de Uma Ilusão. O ópio da fé, por mais mentiroso que seja, terá ainda um longo porvir. Freud explica: isso se dá porque a força da fé não está em sua verdade, mas nos desejos humanos que ela visa satisfazer. Não há sinal de vitória final, de triunfo total, das Luzes sobre as Trevas. Os iluministas estão sempre sendo obrigados a testemunhar as re-ascensões do obscurantismo.

É só pensar que, por mais ateu que eu seja, não escapo de viver numa sociedade em que todos estão em consenso sobre contar o tempo a partir de um certo sujeito nascido em Nazaré, na Galiléia, há cerca de 2018 anos atrás. Por mais agnóstico roxo que você seja, não há como evitar que no dia 25 de Dezembro seja feriado. Nem que haja diferenças significativas na vida social organizada em épocas do ano em que tudo se transmuta: o labor comum é paralisado, ações rituais de massa ocorrem, quando o Calendário aponta dia de Páscoa, Sexta Feira da Paixão… Quem explicou isso brilhantemente foi Maurice Halbwachs (1877 – 1945), filósofo da Memória Coletiva, autor de Les Cadres Sociaux de la Mémoire.

Por mais descrente que o sujeito seja, ele não pode negar tampouco o quanto a religião tem força de mobilização, convocando como ímãs os fiéis para encherem os templos da Universal, peregrinarem a Meca ou ao Vaticano, participarem de imensas procissões hindus na Índia, ou incorporarem em mil terreiros o poderio ancestral dos orixás…

O animal que pergunta e que sabe que irá morrer é também o único bicho religioso. Ao menos é o que indica a experiência empírica, através da História, que nunca ofereceu ao biólogo ou zoólogo o espetáculo de orangotangos que construíssem igrejas ou de cachorros que ficassem de joelhos rezando sob um crucifixo.

Por mais ateus que sejamos, não é possível decretar, no íntimo da subjetividade, que o conceito de Deus é apenas um fantasma vazio, uma ilusão que perdura nas mentes ingênuas, um ópio a que se apega o vulgo para suportar as agruras da existência, não tendo as religiões nenhuma importância objetiva. Isso equivaleria a ser cego àquilo que temos diante de nossos olhos: o resultado de uma História onde as ideologias religiosas estiveram diretamente envolvidas com o tecer coletivo do mundo que compartilhamos.

Pois as religiões, se é óbvio que nos separam, também nos unem. A própria etimologia o sugere, pois religião vem de re-ligare, e não são poucas as pessoas que tem uma religião por causa da vontade de pertença a uma comunidade, o que sugere que quando comungamos da mesma religião, ela opera no espaço entre nós um trabalho de religação, criando a coesão que dá coerência a uma seita e a distingue de outras.

“Trânsfugas da zoologia que somos, animais políticos, nós teríamos interesse em observar de perto como se engendra um lar durável de pertença”, escreve Débray. “O nascimento de uma Igreja é, a esse respeito, uma lição de coisas, um fenômeno a ser perscrutado como um arquétipo numa dinâmica de grupos.”  (p. 233)

Ou seja, a chave de compreensão das religiões pode estar numa análise de psicologia social, ou de sociologia psíquica, que enxergasse nas massas unidas pela argamassa religiosa um fenômeno de identificação do sujeito com o coletivo que representa uma força concreta na história.

Há nisso um risco, um perigo, que permanentemente nos assola: a identificação excessiva com um grupo X, por parte de Fulano, pode transformar os grupos Z e Y em entidades malévolas aos olhos deste Fulano. Sendo Z uma comunidade religiosa que discorda de todos os dogmas de X, e sendo Y uma comunidade de pessoas que se dizem liberadas da religião, Fulano tem grandes chances de transformar-se num sanguinário militante da causa X, que pegará em armas em santa Cruzada para limpar o mundo dessas impurezas que são os crentes em Z e os descrentes de Y.

Deus pode até não existir, mas os diferentes fãs-clubes de diferentes deuses existem com certeza. Deus pode até ser o nome da mais bela mentira que teimamos em inventar para remédio de nossas insônias e agonias, mas os exércitos de Deus decerto existem, e seu entrechoque nos campos de batalha já forneceu aos vermes da terra um farto alimento de cadáveres de seres humanos mortos precocemente. Ainda somos a todo tempo lembrados do quanto o solo deste planeta já foi banhado com o sangue dos mártires.

Isso coloca a necessidade, mesmo para o filósofo ou o sociólogo que se comprometem com a causa do ateísmo e da laicidade, de um esforço de compreensão de como se mesclam o Homo Religiosus e o Homo Politicus. Desde pelo menos Spinoza e seu fulgurante Tratado Teológico-Político, aprendemos a não separar em territórios estanques o que é da teologia e o que é da política. Podemos sem dúvida criticar a fé em milagres ou a subserviência a um deus de mentirinha como “asilos da ignorância”, mas o mundo social é indelevelmente transformado e transtornado por ações humanas conectadas a ideias, práticas, valores e ritos de natureza teológica.

A distinção entre sagrado profano, analisada com maestria por Mircea Eliade, é uma chave importante para sondarmos de que modo as religiões se metem a fazer política. Sacralizar um certo espaço significa tomar as medidas cabíveis para que a sujeira comum do mundo profano não penetre naquela área santificada. A noção de santo está conectada à de uma pureza, àquilo que não se mistura com o que é baixo, sujo e vil.

“A etimologia da palavra o estipula: é ‘santo’ o que foi posto à parte, separado do profano e do impuro. Não haveria, na noção mesma de sacralidade, um fermento de apartheid?” (DEBRAY, Régis. Deus – Um Itinerário. Cia das Letras, p. 106)

Apartheid vem do termo inglês apart. As religiões, se unem certos grupos através do cimento invisível de uma fé comum, inegavelmente também acarretam divisões radicais entre seitas de crentes, tendo como frutos amargos estas instituições bastante concretas de apartação. Os muros do apartheid são com frequência construídos com o combustível psíquico de crenças religiosas motivadoras dos indivíduos que, constituídos em grupos, por razões de fé, tornam-se xenófobos e racistas, ou seja, odiadores da diferença.

Não é novidade para ninguém que a Nação que faz imprimir em suas cédulas o In God We Trust desejaria que a economia global caísse inteira de joelhos diante da supremacia dos U.S.A., a ponto de até nos reinos de Alá ou nas regiões onde quem diviniza-se Mao Tsé-Tung ou Ho Chi Minh, tudo se curve ao poderio do Deus Dólar…

Débray nos lembra, bem a propósito, que “na Guerra Fria, o Senado dos EUA integrou o ‘One Nation Under God’ ao ‘Pledge of Allegiance‘; o banco federal, pouco depois, emitiu dólares com o famoso ‘In God We Trust’.” (p. 166) Mesmo na nação que alguns insistem em idolatrar como Primeiro Mundo, como Paradigma de Modernidade, o obscurantismo religioso e os genocídios motivos pela fé são moeda corrente.

A as chacinas de George W. Bush e sua corja, perpetradas no Oriente Médio, na Guerra Contra o Terror que visava destruir o diabólico “Axis of Evil”, não nos deixam mentir. Posando de Cidadãos-de-Bem, em Missão Sagrada de Intervenção, os EUA conseguiram cometer alguns dos piores crimes contra a humanidade do século 21 (como está vastamente argumentado nos livros políticos de Arundhati Roy). Longe de serem os Bons, os Justos, os Salvadores, os que encabeçam o militarismo imperialista Yankee não podem ser descritos como aqueles que vão nos livrar do Estado Islâmico, são ao contrário co-responsáveis por seu surgimento, pois esta é uma treta de fanáticos, um clash de obscurantismos.

Esse recorrente “retorno do religioso”, apesar dos Iluminismos, faz da crença em Deus uma espécie de perpétuo bumerangue: quando parece que distanciou-se, volta voando em nossa direção. É esse um dos temas discutidos pelo brilhante Daniel Bensaïd em Os Irredutíveis: 

“As novas místicas reagem às formas modernas de desolação social e moral do mundo, assim como às incertezas sobre a maneira de habitar politicamente um mundo em convulsão. Não são, como se ouve muito frequentemente, ‘velhos demônios’ que voltam, mas demônios perfeitamente contemporâneos, nossos demônios inéditos, nascidos das núpcias bárbaras entre o mercado e a técnica.

Quando a política está em baixa, os deuses estão em alta. Quando o profano recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a história se arrasta, a Eternidade levanta vôo. Quando não se querem mais povos e classes, restam tribos, etnias, massas e maltas anômicas. No entanto, seria errôneo acreditar que essa volta da chama religiosa seria particularidade dos bárbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes não é menos teológico, como mostra o revival de seitas de todos os gêneros nos próprios Estados Unidos.

Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro de 2001, falou de Cruzada contra o Terrorismo, não se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir não mais uma guerra de interesses contra um inimigo com o qual será preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com o qual se diz que não se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religião ou de ‘civilização’. E quando o adversário é apresentado como uma encarnação de Satã, não é de espantar que ele seja desumanizado e bestializado, como em Guantánamo ou em Abu Ghraib.” (BENSAÏD, p. 15)

“Judas Iscariotes se enforca”, um detalhe do afresco sobre o Juízo Final, de Giotto, na Capella degli Scrovegni, em Pádua, Itália.

BIBLIOGRAFIA

BENSAÏD, DanielOs Irredutíveis – Teoremas da Resistência Para O Tempo Presente. Boitempo, 2017.

DÉBRAY, RégisDeus – Um Itinerário. Cia das Letras, 2004.

LÖWY, Michael; BENSAÏD, DanielCentelhas. Boitempo, 2017.

Por Eduardo Carli de Moraes, Professor de Filosofia (IFG – Anápolis). Goiânia, 2018.

E O SEXO SE FEZ VERBO… Aforismos sobre “A História da Sexualidade” de Michel Foucault (Parte 1)

AFORISMOS SOBRE “A HISTÓRIA DA SEXUALIDADE”
DE MICHEL FOUCAULT

#1) O MITO DO SANGUE AZUL

Há uma curiosa expressão: “ter sangue azul”. Normalmente aplicamos o termo a uma figura prepotente, aristocrática, suntuosa, cheia de pompa, uma dessas autoridades que tem a pretensão de escapar ao destino comum dos mortais. “Ter sangue vermelho é coisa de plebeu, de ralé, de proleta… já eu tenho sangue superior!”, assim arrazoa a zuada racionalidade autoritária.

Foucault diz que o mito do “eu tenho sangue azul!”, tão papagueado pelas classes sociais economicamente privilegiadas, foi “um dos procedimentos utilizados pela nobreza para marcar e manter sua distinção de casta; pois a aristocracia nobiliárquica afirmara a especificidade do seu próprio corpo na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 117).

O nobre, em seu narcisismo irrefreável, quer acreditar na superioridade de seu próprio corpo, no maior valor de seu próprio sangue, na sua maior proximidade ao trono de Deus, aquele mesmo que supostamente elegeu sua raça como a eleita.

O direito divino dos reis, artigo teocrático que foi aniquilado pela secularização, na esteira das Revoluções moderna, estava conectado com a tácita suposição narcísica, por parte das classes dirigentes, de que Deus havia elegido a eles, esta elite “santa”, como dominadores legítimos. Não só apontados do céu, os poderosos diziam que pertenciam a uma super-raça, de uma sanguinidade pia, viril, sem máculas genéticas, arianamente magnífica… Sim, este tipo de pensamento é um perigo! E iria desaguar no nazismo.

A leitura de A História da Sexualidade, de Foucault, convida a pensar que o III Reich alemão (1933-1945) também merece ser lido a partir de uma perspectiva sexual, pois ali manifestou-se um bio-poder altamente controlador, disciplinador, autoritário, todo calcado e fundamentado em uma metafísica do sangue superior. E a transmissão entre as gerações dos entes de sangue superior se daria pelo controle estatal totalitário dos processos reprodutivos – com a proibição, por exemplo, dos casamentos entre judeus e arianos. Uma antessala da Solução Final.

O mito do ariano, o contraste da pureza ariana com a sujidade de raças supostamente inferiores, tudo isto acaba constituindo uma forma de racismo institucionalizado que, com a cortesia dos avanços tecno-científicos, pôde transformar-se na fábrica de cadáveres, produzidos em massa nos campos de extermínio, que marcou o século XX, A Era dos Extremos (Hobsbawn).

O racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante […], recebeu cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Sem dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar. Uma ordenação eugênica da sociedade, uma estatização ilimitada, acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior; esta implicava, ao mesmo tempo, o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total. E a história quis que a política hitlerista do sexo tenha se tornado irrisória, enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens, por enquanto, tenham lembrança.” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 140).

#2) A HONRA HISTÓRICA DA PSICANÁLISE.

Foucault tem certos elogios a dirigir à Psicanálise freudiana, a começar por uma “honra política”, isto é, o fato de ter estado, “no essencial”, “em oposição teórica e prática ao fascismo.” (pg. 141)

Sigmund Freud, na sua condição de judeu em meio a uma Europa endoidecida por delírios anti-semitas que estavam então em plena em ascensão, nunca compactuou com doutrinas ou práticas dos nazis. Freud inclusive inaugurou, através de suas incursões na psicologia de massas, as vertentes mais sociológicas do movimento psicanalítico representados pelas obras, perturbadoras e valiosas, de Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, Ernest Becker, Stanley Milgram, Otto Rank, Erich Fromm, dentre outros.

Freud foi contemporâneo de uma época na história européia de grande crescimento do racismo institucionalizado e genocida, mas segundo Foucault o Pai da Psicanálise rompeu com a “neuropsiquiatria da degenerescência”:

“A posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente ao grande sistema da degenerescência: ela remontou ao projeto de uma tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os racismos e os eugenismos. (…) Na grande família das tecnologias do sexo, que recua tanto na história do Ocidente Cristão, (…) ela foi até os anos 1940 a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência.”(O Dispositivo de Sexualidade, pg. 112-113)

A filósofa e militante feminista Marcia Tiburi concorda com Foucault e reconhece certos méritos em Freud e em seus feitos históricos: para começo de conversa, Freud dispôs-se a escutar aquelas pessoas que, por tradição, estavam reduzidas ao silêncio. Prestou atenção àquelas que outros talvez desprezassem e depreciassem como se não passassem de “doidas varridas de Viena”, histéricas só dignas de um bom hospício.

Não se deve subestimar a importância de mulheres como Anna O, dentre outras que eram tratadas sob o diagnóstico de histeria, para a elaboração das teorias do grande clínico vienense: Freud percebeu, após escuta atenta e reflexão ponderada, que muitos dos conflitos psíquicos vivenciados por aquelas mulheres diziam respeito à gestão da sexualidade e que o próprio fato de pesar um tabu sobre a expressão feminina a respeito de questões sexuais acabava por produzir como efeito colateral uma série de conflitos psíquicos e sintomas psicosomáticos.

Em palavras mais simples: com aquelas mulheres, Freud aprendeu que não poder falar de sexo, ou estar proibido de praticá-lo fora dos estreitos limites do casamento burguês monogâmico, é muitas vezes um fator forte para o adoecimento psíquico. A repressão sexual imposta pela sociedade tinha que ser discutida seriamente, Freud bem o sabia, sendo que os velhos e tradicionais esquemas autoritários, como a imposição de regras ascéticas e um estilo-de-vida de “beatice” assexuada, tinham que ser postos em questão, submetendo-se ao escalpelo clínico-crítico do cientista.

Para Foucault, a Psicanálise freudiana revoluciona o estatuto da confissão, esta instituição antes tão ligada ao ambiente religioso, às práticas eclesiásticas, à exortação que as autoridades em matéria de fé faziam aos devotos para que contassem seus pecados e se colocassem à disposição das penitências.

Com Freud, a confissão vê-se radicalmente secularizada, laicizada, extraída à fórceps de seu tradicional envoltório religioso. “Em torno da Psicanálise, a grande exigência da confissão, que se formara há tanto tempo, assume novo sentido, o de uma injunção para eliminar o recalque. A tarefa da verdade vincula-se, agora, ao questionamento da interdição.” (p. 123)

#3) E O SEXO FEZ-SE VERBO

Como competente historiador que foi, Foucault sabe muito bem como contrastar diferentes períodos históricos: claramente não estamos mais “em um tempo de longa e dura repressão – o tempo de um ascetismo cristão prolongado, desviado, avaramente, impertinentemente, utilizado pelos imperativos da economia burguesa.” (pg. 148)

Foucault, diante do mundo de que foi contemporâneo, percebe uma certa queda na repressividade, uma liberação dos costumes, que manifesta-se, por exemplo, nos brados libertários de Reich e Marcuse, que tanto encontraram eco nas rebeliões políticas anti-establishment de 1968, por exemplo.

O que Foucault questiona é o aparelho social que tomou a hegemonia, vencendo a velha repressividade ascética, e que agora converte-nos em obcecados por transformar o sexo em verbo, em imagem, em signo. Imaginem um humano do futuro, que olhe para trás e observe as práticas e discursos de nós aqui-e-agora; ele talvez caia na risada e…

“…sorria lembrando que esses homens, que teremos sido, acreditavam que houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra, nas estrelas e nas formas puras do pensamento; talvez cause suprema surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade que tudo – nossos discursos, nossos hábitos, nossas instituições, nossos regulamentos, nossos saberes – trazia à plena luz e refletia com estrépito. E se perguntará por que quisemos tanto suspender a lei do silêncio sobre o que era a mais ruidosa de nossas preocupações.” (pg. 148)

O que nos caracteriza, em contraste com a austeridade de épocas históricas anteriores, é o imperativo de falar do sexo, dedicar a ele atenção e preocupação, reconhecer nele algo de essencial na definição de nossas identidades, conceder a ele o direito de escolher os horizontes intersubjetivos em que vamos nos aventurar. A importância de Freud neste processo de lançar luz sobre o sexo não pode ser subestimada, e Foucault foi um dos que melhor reconheceu isto, apontando que

“Freud relançou com admirável eficácia, digna dos maiores líderes espirituais e diretores da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá-lo em discurso. Evoca-se com frequência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo, tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito… Incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade… E nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por tanto tempo… Os ardis da sexualidade, e do poder que sustêm seu dispositivo, conseguiram submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras.” (pg. 149)

Somos os contemporâneos, nisto, de grandes espíritos liberadores que ousaram falar abertamente sobre a sexualidade, como Stendhal, D. H. Lawrence, Anais Nin, Henry Miller, Simone de Beauvoir, Nathaniel Hawthorne, Emma Goldman, Marquês de Sade, George Bataille, Robert Crumb, dentre outros luminares do sexo que se fez verbo nas letras e nas artes em geral.

Pregações de São Paulo em Atenas, em pintura de Rafael

#4) A INVENÇÃO DA AUSTERIDADE SEXUAL

Não é simples nem fácil descobrir o culpado original pela invenção daquilo que Nietzsche chamou de ideal ascético. Certas obras valiosas já procuraram desvendar tais mistérios, dentre elas Repressão Sexual – Esta Nossa (Des) Conhecida, de Marilena Chauí. Em Michel Foucault podemos encontrar também uma genealogia detalhada sobre os processos históricos em que foi sendo gerada a austeridade sexual e os dispositivos para sua implantação e propagação.

No início do segundo livro d’A História da Sexualidade, Foucault problematiza um certo clichê dos historiadores, aquele que consiste em contrastar a moral sexual do cristianismo com a do paganismo, como se não houvesse entra uma e outra nenhuma continuidade, mas só uma série de rupturas.

Ora, parece-me que há claramente um fio condutor que une os órficos, os pitagóricos, os socráticos, os platônicos, à história do advento dum cristianismo puritano, repressor dos prazeres sexuais, que pretende gerir as condutas e impor a necessidade de obediência aos valores da austeridade, supostamente purificadora e meritória.

Foucault pretende ir além das 4 oposições costumeiras estabelecidas entre a ética cristã e aquela que a precedeu, hoje conhecida sob o rótulo depreciativo de paganismo. Trata-se, para Foucault, de problematizar o contraste entre Antiguidade e Cristandade, apontar que os contrastes e as similaridades são bem mais complexos do que o tradicional esquema, abaixo relembrado, procura nos pintar:

      1. Quanto ao valor do ato sexual, “o cristianismo o teria associado ao mal, ao pecado, à queda, à morte, ao passo que a Antiguidade o teria dotado de significações positivas”;

      2. Quanto à delimitação dos parceiros legítimos, “o cristianismo só teria aceito o sexo no casamento monogâmico e, no interior dessa conjugalidade, lhe teria imposto o princípio de uma finalidade exclusivamente procriadora”;

      3. Quanto à homossexualidade, “o cristianismo teria excluído rigorosamente as relações entre indivíduos do mesmo sexo, ao passo que a Grécia as teria exaltado – e Roma, aceito – pelo menos entre homens”;

      4. Quanto ao mérito que há na recusa às práticas sexuais, “o cristianismo teria atribuído alto valor moral e espiritual, diferentemente da moral pagã, à abstinência rigorosa, à castidade permanente e à virgindade.”

(FOUCAULT. O Uso dos Prazeres. Pg. 20)

Ora, Foucault percebe “continuidades muito estreitas que se pode constatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral da Antiguidade” (Pg. 22), o que talvez dê razão à Nietzsche que, em uma sentença lapidar, afirmou ser o cristianismo equivalente a “platonismo para o povo”. Na chamada “filosofia pagã”, ou seja, no pensamento greco-romano da Antiguidade,

“já encontramos ali uma certa associação entre a atividade sexual e o mal, a regra de uma monogamia procriadora, a condenação das relações de mesmo sexo, a exaltação da continência. Não é só: em uma escala histórica bem mais longa, poder-se-ia acompanhar a permanência de temas, inquietações e exigências, que sem dúvida marcaram a ética cristã e a moral das sociedades europeias modernas, mas que já estavam claramente presentes no cerne do pensamento grego-romano.” (pg. 22)

Veja-se o caso de um sermão célebre na história da Cristandade, a extravagante pregação de São Francisco de Sales, exortando os fiéis a imitarem os elefantes, já que estes grandes animais, cheios de dignidade e bom senso, nunca trocam de fêmea e só acasalam a cada três anos, sempre realizando o ato sexual de modo reservado e secreto, para na sequência irem banhar-se em um rio, purificando-se antes de retornar ao bando (p. 24).

Ora, Foucault mostra que esta prédica, que pede aos devotos que tomem os elefantes por modelo, não é criação cristã, mas sua formulação já se encontrava em Plínio em sua Introdução à Vida Devota. O elogio aos elefantes, que não conhecem o adultério e são assim modelos para os humanos, que deveriam imitar a constância conjugal dos trombudos, não é mera extravagância de dois sujeitos isolados, um literato romano e um santo cristão, mas sim um sintoma de um certo zeitgeist, de um certo espírito-de-época que teimou em sobreviver, século após século, como Foucault bem enxerga:

“Plínio não pretendia, certamente, propor um esquema tão explicitamente didático como o de São Francisco de Sales; entretanto, referia-se a um modelo de conduta visivelmente valorizado. Isso não significa que a fidelidade recíproca dos cônjuges tenha sido um imperativo geralmente recebido e aceito pelos gregos e romanos. Mas ela constituía também um ensinamento dado com insistência em certas correntes filosóficas, como o estoicismo tardio; constituía também um comportamento apreciado como manifestação de virtude, de firmeza da alma e de domínio de si. (…) A fidelidade sexual do marido com relação à sua esposa legítima não era exigida pelas leis nem pelos costumes; não deixava de ser, contudo, uma questão que se colocava e uma forma de austeridade a que certos moralistas conferiam grande valor.” (p. 25)

Este louvor à fidelidade ainda não se tornou completamente ultrapassado e demodée no século 21 d.C. O ideal ascético ainda prossegue firme e forte entre nós, defendido a unhas e dentes pelo conservadorismo tradicionalista que ainda possui tanto poder político entre nós. É mais uma razão para nos interessarmos pelo processo de constituição destes dispositivos de transformação da sexualidade em algo ao qual deveria ser aplicada a severa terapia da austeridade e das repressões. Estamos soterrados debaixo de relatos onde os heróis são aqueles que sabem dizer não ao sexo, e somos assim solicitados a identificar a virtude, digna de nos heroicizar, como inseparável do ideal ascético:

“O herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, como uma tentação na qual ele sabe não cair, é uma figura familiar ao cristianismo, como foi corrente a ideia de que essa renúncia é capaz de dar acesso a uma experiência espiritual da verdade e do amor, a qual seria excluída pela atividade sexual. Mas é igualmente conhecida pela Antiguidade pagã a figura desses atletas da temperança que são suficientemente senhores de si e de suas concupiscências para renunciar ao prazer sexual…

Para alguns essa abstenção estava ligada diretamente a uma forma de sabedoria que os colocava imediatamente em contato com algum elemento superior à natureza humana, e que lhes dava acesso ao próprio ser da verdade: tal era o caso do Sócrates do Banquete do qual todos queriam se aproximar, do qual todos se enamoravam, de cuja sabedoria todos buscavam se apropriar – sabedoria essa que se manifestava e se experimentava, justamente, pelo fato de que ele próprio era capaz de não tocar na beleza provocadora de Alcebíades. A temática de uma relação entre a abstinência sexual e o acesso à verdade já estava fortemente marcada.” (pg. 28)

Diógenes e Alexandre – Pintura de Edwin Henry

IV) SER REI DE SI PARA REINAR SOBRE OS OUTROS

As éticas da Antiguidade clássica, que pretendiam ensinar as artes da existência, prescreviam uma série de virtudes que deveriam ser praticadas em nossa conduta sexual: a sabedoria é inseparável de um sábio uso dos prazeres.

“Um princípio geralmente admitido é o de que quanto mais se for visado, mais se tiver ou se quiser ter autoridade sobre os outros, mais se buscar fazer de sua vida uma obra resplandecente, cuja reputação se estenderá longe e por muito tempo, mais será preciso se impor, por escolha e vontade, princípios rigorosos de conduta sexual.” (H.S., II, pg. 75)

Para ser digno de estima social, tornando-se um cidadão respeitável e decente, o sujeito não deve nunca ser escravo de seus desejos e prazeres, mas deve mantê-los sob domínio. A virtude da temperança (sophrosyne) adquire então vasta importância e “é representada com grande regularidade entre as qualidades que pertencem – ou que pelo menos deveriam pertencer – não a todos e a qualquer um, mas, de forma privilegiada, àqueles que têm posição, status e responsabilidade na cidade.” (op cit, pg. 76)

Platão recomenda à elite que seja temperante, o que torna legítima sua autoridade sobre a República, constituída infelizmente por uma multidão viciosa, incapaz de auto-controle, dominada pelas paixões e pelos sentidos. A utopia de cidade concebida por Platão é explicitamente elitista, aristocrática, onde uma minoria que exercitou-se na ascese é considerada digna de reinar sobre a multitude. O filósofo-rei tem como base de sua autoridade a afirmação de sua maior aptidão para o auto-controle, o que lhe daria a prerrogativa de controlar os outros. Os que dominam a si mesmos devem ter o direito de dominar os outros.

Foucault aponta que há toda uma “relação agonística”, de combate, de disputa, que estabele-se entre o sujeito e seus próprios desejos, o que é particularmente explícito em toda a tradição ascética, na qual estão incluídos como dois dos mais ilustres representantes Sócrates e Platão.

Neste contexto dos filósofos ascetas gregos, os aphrodisia são um perigo a ser combatido, a ser resistido, a ser dominado. E isso porque, de acordo com a bipartição hierárquica entre alma (boa) e corpo (ruim), é necessário fazer a guerra contra os desejos e prazeres carnais “porque se trata de apetites inferiores que nós compartilhamos – como a fome e a sede – com os animais; mas essa inferioridade natural não seria em si mesma uma razão para combatê-la se não fosse o perigo de que, predominando sobre todo o resto, elas estendessem sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o, finalmente, à escravidão.” (pg. 83)

Será que aqui encontramos nossa velha conhecida, a repressão sexual, travestida com as vestes suntuosas de uma suposta sabedoria? O temor em relação ao corpo e suas energias, os arroubos puritanos contra os prazeres da carne, tudo isso manifesta-se nesta atitude, que muitos filósofos recomendam, de uma ascese que entra em guerra contra tudo aquilo que é tido como manifestação de animalidade. Dizer sim, sem freios, aos ímpetos sexuais, será insistentemente descrito, através da história da ética ascética, como conduta indigna do ser humano. Os hedonai, os aphrodisia, tornam-se então os inimigos, os adversários:

“Isso traduz-se em uma série de expressões empregadas tradicionalmente para caracterizar a temperança e a intemperança: opor-se aos prazeres e aos desejos, não ceder a eles, resistir às suas investidas ou, ao contrário, deixar-se levar por eles, vencê-los ou ser vencido por eles, estar armado ou equipado contra eles. Ela também se traduz por metáforas como a da batalha a ser travada contra adversários armados, ou como a da alma-acrópole, atacada por uma tropa hostil, e que deveria se defender graças a um sólido destacamento… Também se exprime através de temas como o das forças selvagens do desejo que invadem a alma durante o sono.” (pg. 83)

A cisão dualista entre corpo e alma, e além disso sua hierarquização, conduz à noção fundamental para a ética socrática-platônica de que o melhor deve dominar o pior, o superior deve reinar sobre o inferior, a alma deve ter supremacia sobre o corpo – como faz um cocheiro que traz seus cavalos sob rédeas e nunca permite as rebeldias eqüinas. Foucault pondera:

“A assimilação dos desejos a um povo inferior que se agita e que sempre está procurando se revoltar se não se lhes mantém a rédea, é um tema conhecido em Platão. (…) No final do penúltimo livro da República, após construir o modelo da cidade, Platão reconhece que o filósofo terá muito pouca oportunidade de encontrar nesse mundo Estados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretanto, o ‘paradigma’ da cidade se encontra no céu para quem quiser contemplá-lo; e o filósofo, olhando-o, poderá ‘dirigir seu governo particular’: ‘Pouco importa que esse Estado esteja realizado em alguma parte ou que esteja ainda por se realizar: é desse Estado e de nenhum outro que ele seguirá as leis.’” (Pg. 89)

Como profundo conhecedor do pensamento grego clássico, Foucault sabe reconhecer, em especial na tradição proveniente de Sócrates, “o tema insistente e importante da askesis, como preparação prática indispensável para que o indivíduo se constitua como sujeito moral” (pg. 95). Nas Memoráveis de Xenofonte, por exemplo, encontramos ditos de Sócrates como: “em que o homem intemperante supera o mais estúpido dos animais?” (pg. 99) Em Platão, de modo similar, critica-se os “fracos” que “não podem comandar as suas feras interiores”:

“Ora, o que fazer se quisermos que esse homem seja regido por um princípio racional como aquele que ‘governa o homem superior’? O único meio é colocá-lo sob a autoridade e o poder desse homem superior: ‘Que ele se faça escravo daquele em quem o elemento divino comanda’. Quem deve comandar os outros é aquele que deve ser capaz de exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo. (…) A temperança entendida como um dos aspectos de soberania sobre si é, não menos do que a justiça, a coragem ou a prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer domínio sobre os outros.” (p. 100)

O platonismo tem algo de teocracia e totalitarismo: só os homens “superiores”, ou seja, aqueles capazes de exercer a ascética da auto-dominação, devotando-se ao conhecimento puro e reprimindo os desejos carnais, têm o direito legítimo de dominar a gestão da cidade. Quem reina sobre si deve reinar sobre os outros. O mau tirano é aquele que não domina as próprias paixões, abusando do próprio poder e causando violências a seus súditos. O bom tirano é aquele que, dominando seus próprios tesões, mantendo sob rígidas rédeas as suas luxúrias e ganâncias, ganharia sim o direito de mandar na multitude.

Porém, a tirania platônica do filósofo-rei é intragável para qualquer um que ame a liberdade, a autonomia, a participação coletiva na determinação dos destinos coletivos, a democracia. Pois do proto-totalitarismo de A República (Politeia) até o imperialismo alexandrino (típico de quem mamou nas tetas de Aristóteles, o célebre discípulo de Platão) há um fio conector. E nós, como Foucault em seu Coragem da Verdade, desejamos estar não entre aqueles que caem de joelhos e fazem apologias tolas ao poderio de Alexandre, mas entre aqueles que, como Diógenes, ousaram viver diferente – e disseram verdades ao poder (to speak truth to power é a nova encarnação da parrusía grega).

Trata-se, para nós, como Foucault nos ensina, de destronar este “bom tirano” platônico-aristotélico, esta velha justificação da tirania e do imperialismo, e ir em direção a uma outra sociedade possível, pós-ascética e pós-autoritária, cultivadora de um sábio cultivo dos prazeres relacionais que tem no Jardim de Epicuro uma de suas mais significativas prefigurações utópicas. Tenho a convicção de que não a construiremos juntos sem a sabedoria que pode nos propiciar o aprendizado na companhia da obra e vida de Michel Foucault, este grande iluminador da sexualidade e suas adjacências.

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro

FREUD AINDA EXPLICA? “Repensar a Liberdade Depois do Inconsciente” – Sobre a atualidade de Sigmund Freud. Café Filosófico CPFL com o filósofo Vladimir Safatle da USP – Universidade de São Paulo (1h 44min, 16 de Março de 2018)

“Repensar a Liberdade Depois do Inconsciente” – Sobre a atualidade de Sigmund Freud

 Café Filosófico CPFL com o filósofo Vladimir Safatle da USP – Universidade de São Paulo

 (1h 44min, 16 de Março de 2018):

A MORTE QUE ERA SEMENTE – O Caso Marielle Franco (1979 – 2018) e a Recriação do Espaço Público na Era da Internet

Rio de Janeiro: comoção pública após o assassinato de Marielle Franco toma as ruas em 15 de Março de 2018

A MORTE QUE ERA SEMENTE…
por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro || 19 de Março de 2018

Marielle Franco foi morta (não morreu de morte morrida, morreu de morte matada!), mas suas lutas e pautas nunca estiveram mais vivas do que nestes dias de Março de 2018. Pouco tempo depois do 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, um autêntico terremoto de indignação popular tomou redes e ruas.

Em especial no Rio e em Sampa, as manifestações chegaram a ganhar contornos de nova Primavera Feminista ou de uma re-encarnação das Jornadas de Junho, dado o caudal impressionante de participação em protestos públicos da galera que saiu à urbe, com os cartazes em riste e com o gogó berrando palavras-de-ordem, na cauda do cometa da comoção geral que se seguiu à execução de Marielle e Anderson.

Como escreveu Eliane Brum em seus comoventes artigos para El País (em espanhol e em português), o assassinato a converteu em totem, sua conversão em cadáver seguiu-se à sua transmutação em um corpo simbólico que não se pode assassinar, afinal suas lutas seguem vivas e, como têm expressado a Manu D’Ávila, na esteira do V De Vingança de Alan Moore, “nossas idéias são à prova de balas”:

Ao ser assassinada, Marielle revelou uma segunda realidade, esta ainda mais surpreendente: a de que os brasileiros, ora exibidos como polarizados e divididos, ora como passivos ou omissos, são capazes de se comover – e mover – por uma mulher nascida na favela, negra, lésbica e feminista.

Em nenhum momento se deve esquecer da força dessa ruptura simbólica. Com Marielle Franco há uma quebra de paradigma dos choráveis do Brasil. Como mulher negra e nascida na favela, Marielle Franco pertencia aos “matáveis” do Brasil, aqueles cujas mortes não causam espanto, normalizadas que são. O que seus assassinos não calcularam era que, com sua vida, ela já não era mais “matável”. O que ninguém poderia calcular é que Marielle havia se tornado também parte dos choráveis, aqueles por quem a maioria dos brasileiros faz luto e luta. Não é pouca coisa para um país como o Brasil. – ELIANE BRUM

Se a comoção pública com o assassinato de Marielle foi tão gigantesca, gerando uma maré de manifestações oceânicas e ampla repercussão midiática, talvez seja porque a vereadora é um emblema de um empoderamento múltiplo e interseccional que interessa às elites massacrar para calar.

Marielle reunia – “todas elas juntas num só ser”, para lembrar a canção de Lenine – o empoderamento negro, o feminino, o LGBT, o das classes despossuídas, o do socialismo. Empoderamentos concentrados numa mesma afro-mulher que florescia, a olhos vistos, ganhando cada vez mais espaços de poder e fazendo sua voz e seus argumentos serem ouvidos, não apenas dentro dos limites murados da política institucional, mas nas ruas, nas mídias, nas praças.

Escrita com o sangue de Marielle no asfalto do Rio de Janeiro está uma mensagem tétrica, que nos é mandada por aqueles que nos querem amedrontados e retraídos: com o sangue dela (e de Amarildo, e de Sabotinha, e de…), a nossa “Elite do Atraso”, conforme a expressão sagaz cunhada por Jessé Souza, vem tentando dizer-nos: “vocês, escória do mundo, favelados, bichas, sapatonas, pretos e pretas, índios, comunistas, anarquistas… esqueçam a vontade de ascensão, de reconhecimento, de participação! Quem mandará aqui seremos sempre nós, os senhores brancos, ricos, heteros, religiosos, gente de bem, cumprindo com o dever pátrio de reinar sobre os outros com pulso firme!”

Súmula do que seria desejável que acontecesse com o Brasil, como argumentou Alceu Castilho: uma enxurrada de novas Marielles invadindo o cenário político para reclamar, em alto e bom som, no espaço público, nossas batalhas anti-racistas, anti-machistas, anti-fascistas, anti-capitalistas, além de nosso direito (ainda por conquistar) a modos-de-vida e formas-de-amar destoantes da norma hegemônica imposta.

Marielle era também encarnação da ousadia dos que resistiram sempre, neste Brasil cujo Estado é tão frequentemente autoritário, aos desmandos de um terrorismo estatal que não cometeu poucos crimes e escalabros nos dois períodos ditatoriais prévios – o Varguista de 1937 a 1945 e a Ditadura Civil-Militar de 1964 a 1985. Marielle é do time daqueles que levantam a voz da soberania popular e dos direitos inalienáveis dos humilhados e ofendidos, demandando justiça e vida digna para todos, ao invés do apartheid defendido pelo Monstro-Leviatã de um Estado policial-carcerário, ainda todo contaminado com um racismo institucionalizado que nos foi legado pelo escravismo de outrora, tão mal enterrado entre nós.

Marielle era a salutar voz da interseccionalidade na práxis, a voz a um só tempo feminina-negra-lésbica-socialista-libertária, que ousava ter voz e vez em meio aos “hômi” e aos “dotô” – aqueles que nos queriam mudos, passivos, mortos-vivos comendo a pipoca da ideologia oficial nos cinemas comerciais e redes de TV, pastando na idiotia dos apolíticos que se enterram na vida privada, às vezes nem suspeitando o quanto são cúmplices de algozes, colaboradores de golpistas, louvadores da tortura…

Marielle agora entra como símbolo, como evocação constante, como emblema ensanguentado, no xadrez das novas lutas identitárias – e com certeza marcará manifestações futuras como a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. O momento é, portanto, mais do que propício para tentar refletir sobre as “lutas identitárias”, sua história, seu futuro, seus alvos e métodos. E é o que faz com tanta graça, e reflexão tão profunda, o Francisco Bosco (filho de João Bosco) em seu novo livro: A Vítima Tem Sempre Razão? Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro  (2017, Ed. Todavia).

Fotografia: Eduardo Valente

O livro começa falando que a Marcha das Vadias é realizada no Brasil pelas “bucetas ingovernáveis” desde 2011, mas nasceu bem longe dos trópicos, em Toronto, no Canadá. A Slut Walk torontonita nasceu em reação ao comentário de um policial: “diante de recorrentes casos de abuso sexual em Toronto, ele [o policial] recomendou às mulheres que, para evitá-los, evitassem se vestir como vadias. A pauta da marcha se tornou assim o direito à irrestrita circulação do próprio corpo no espaço público”, aponta  Bosco (p. 7-8).

Se o exemplo é invocado logo no comecinho do livro, é pra frisar com um caso concreto o quanto estamos vivenciando uma intensificação geral das pautas identitárias, que forçam suas demandas e denúncias no espaço público usando a sinergia redes-ruas. E é esta sinergia redes-ruas também o que faz da Mídia Ninja. da Nexo, da Pública, emblemas dos potenciais desta nova era comunicacional em que adentramos.

A partir de 2013, Bosco diagnostica no Brasil alguns “marcos de tensionamento social”: as “Jornadas de Junho de 2013”, “o colapso do lulismo com o impeachment da Dilma em 2016″ e uma “intensificação das lutas identitárias”, exemplificadas pelos movimentos negros, feministas, LGBTs etc. Tudo isso num contexto convulsionado pelo incremento considerável das “redes sociais digitais”, pelo uso massivo das ferramentas de comunicação como Facebook, Twitter, Instagram, Whastapp etc.

Estas lutas identitárias, que são batalhas de minorias por reconhecimento de seus direitos a formas alternativas de existência e de convívio, têm seu berço histórico enquanto movimentos sociais organizados e autoconscientes: segundo Bosco, elas nascem no “momento político do Maio de 1968”, pois “na História da esquerda – ou melhor, das esquerdas -, 1968 fez surgir outra vertente: a política das diferenças”:

“Ela emerge, como observa Fredric Jameson, em meio a uma crise da concepção clássica da classe social. (…) Já no período de 1968 se estabeleceu uma crítica ao trabalho alienado, de regime taylorista, hierarquizado, que era a base da perspectiva revolucionária marxista (o proletário como a classe totalmente despossuída, de onde partiria a insurreição).

Em oposição a essa forma de trabalho, deu-se uma valorização das atividades mais flexíveis e arriscadas, cujo sentido era a autorrealização, mesmo que isso implicasse perda de estabilidade e menor remuneração. No lugar da crítica clássica à exploração da força de trabalho, há uma crítica à inautencidade do trabalho tradicional, à sua incapacidade de responder às exigências individuais de autorrealização. É no contexto dessa crítica ao trabalho, considerado em sua dimensão impessoal, que emergem os pleitos por reconhecimento de formas de vida particulares: os movimentos identitários.” (BOSCO: p. 72-73)

“Abaixo as cadências infernais!”, gritavam os muros de Paris durante a insurreição proletária-estudantil de 1968. Mas também pediam: “deixem-nos gozar sem entraves!” e “é proibido proibir!” (depois transformada em estridente manifesto tropicalista por Caetano Veloso e sua trupe).

A luta anticapitalista de Maio de 1968 teve uma face econômica, através da greve geral do operariado e dos estudantes, que em concerto cruzaram os braços em número que alguns chegam a estimar em 1 milhão de pessoas, unida à face das lutas libertárias relacionadas ao comportamento, às relações afetivas, ao tempo de vida e seu sequestro pelas instituições capitalistas.

Parar as fábricas capitalistas não estava separado de um desejo de revolucionar os modos caducos de enquadrar os comportamentos nos velhos moldes patriarcais, racistas, elitistas. E essa dissidência não mais aceitava ficar em silêncio, em segundo plano: invadia o espaço público reclamando o incremento de sua potência, de seu direito à expressão e à participação política.

Na linguagem das barricadas e dos graffitis, das canções e dos filmes, quiseram que a vida não fosse cerceada em suas manifestações plurais e multi-diversas devido à censura e à repressão por parte de um Estado institucionalmente marcado por males de origem como o patriarcalismo machista e o racismo institucionalizado.

Naqueles tempos de 68, entre os revoltosos em Paris – herdeiros da Comuna instaurada em Março de 1871 – o Herbert Marcuse era um dos gurus dos insurgentes. Intérprete perspicaz de Freud e renovador das teorias da revolução de Marx, Marcuse propunha como imagem para a época a batalha épica “Eros Contra a Civilização” – emblema que não deixava de pegar uma certa carona no cometa de Nietzsche e da oposição que ele, em Ecce Homo, propôs como síntese de sua obra: Dioniso Contra o Crucificado.

A teoria crítica de Marcuse propunha a superação revolucionária da  Sociedade Industrial Unidimensional, culpada pela brutal exploração e espoliação dos frutos de nosso trabalho, além de denunciada pelo excesso de repressão e controle que exerce sobre os cidadãos através de seu Estado policial-penal e sua tecnocracia bélica. Elementos explodidos naquela época até as dimensões insuportáveis das guerras-de-agressão imperialistas (como a perpetrada pelos Yankees no Vietnã e no Camboja). Num mundo ainda em choque pelos cogumelos nucleares e já temendo um aprofundamento das hecatombes ecológicas e desequilíbrios sócio-ambientais.

Outro herói intelectual das lutas identitárias era (é e será) Michel Foucault. Antes de ser fulminado pela AIDS em 1984, o magistral intelectual francês foi um dos mais perspicazes reveladores dos mecanismos micropolíticos de poder que operam no cotidiano de prisões, manicômios, hospitais, quartéis, escolas, mosteiros, dentre outros espaços instituídos pela Sociedade Disciplinar. Esta, em sua sempiterna aliança com o ideal ascético e a mortificação da carne alçada à ética hegemônica, sob o capitalismo impõe com truculência seu  time is money, servindo como emblema do truste realizado pela união entre Capitalismo e Lutero para nos impedir de usufruir de qualquer tempo que não esteja sendo empregado por atividades feitas pela grana (símbolo da salvação)

O sujeito conformista acredita que é ser dever imolar sua vida, sacrificar sua autonomia, para oferecer-se como massinha-de-modelar nas mãos dos poderosos que impõe normais de viver e pertencer cujas estruturas patriarcais e machistas, racistas e segregacionistas, opressoras e dominadoras, são assim reproduzidas por rebanhos de conformados e conformadores (infelizmente dotados de porretes, palmatórias, prisões, tanques…).

As lutas identitárias emergem contestando as normas dominantes, a imposição de um jeito-de-viver único, o dogma de que a normalidade consiste na machidade, na branquitude, na heterossexualidade, na cisdade, na produtividade econômica, de modo que o pensamento reacionário, anti-moderno, agarrado a estruturas de poder elitistas (o machismo, o supremacismo racial, a heterossexualidades compulsória etc), reproduz as condições para que mulheres sejam reduzidas ao status de Segundo Sexo; negros sejam considerados como escravizáveis, torturáveis como se não fossem bois-de-carga; enquanto gays são xingados de doentes mentais e transsexuais humilhados (ou mesmo assassinados) como se fossem abomináveis aberrações.

Tal higienismo normopata tem muitas similaridades com a doutrina racista-higienista dos nazistas – o que significa que não faltam na sociedade de hoje elementos para uma re-edição tétrica da Solução Final posta em prática pelo III Reich alemão. O que José Ângelo Gaiarsa chamou de normopatia é a doença dos normais: os normais que desejam ver o nómos dominante imposto, de maneira totalitária, à sociedade inteira. É o que Laerte expressou com brilhantismo na síntese colorida que fez onde toda a multicor diversidade humana está sendo despejada sobre a fôrma estreita e confinante da Família Tradicional Brasileira.

Laerte

O livro de Bosco chega em muito boa hora, como precioso mapa para navegar pelo contexto sócio-político inédito gerado pela intensificação das lutas identitárias, no contexto de disseminação democratizada de mensagens propiciada pelas novas tecnologias digitais.

Vivemos agora em imersão cada vez mais ampla e acelerada nos mares informacionais hi-tech da rede mundial de computadores: A Internet, esta selva de bits da Aldeia Global, é a grande agente de uma “planetarização” da comunicação, nova na travessia da humanidade, como havia notado o visionário filósofo-da-comunicação canadense Marshall McLuhan.

“O homem cria a ferramenta. A ferramenta recria o homem.” – McLuhan

Pois a Galáxia de Gutemberg veio desaguar na World Wide Wide. Somos já os contemporâneos de um mundo interconectado, onde circulam os drones (de filmagens e de bombardeamento…) e as transmissões por satélite. O que ocorre hoje no Brasil pode repercutir imediatamente na China. O assassinato de Marielle Franco no Rio foi chorado, protestado, denunciado e lamentado no mesmo dia em outros centros globais, de Buenos Aires a Paris…

Neste mundo hiper-conectado, mas todo polvilhado de guerras e conflitos, as mega-empresas da informática e da comunicação digital se tornam gigantes, major players da economia global, como provam os valores de mercado de Google, Microsoft, Apple, Facebook (este, aliás, dono também do Instagram e do Whatsapp).

Neste novo contexto, posso publicar notícias falsas em um blog, que serão replicadas por 10.000 robôs programados para compartilhá-la nas timelines; posso receber e enviar nudes e vídeos XXX – até mesmo os que contêm pedofilia, zoofilia ou estupro – entre os continentes, de maneira instantânea (vide a alta frequentação de portais como RedTube e PornHub);  nos submundos do sistema circulam ainda toneladas de conteúdo cultural pirateado, de ebooks a discografias em MP3, de filmes em torrent a artigos científicos arrancados do monopólico acadêmico-editorial (vide SciHub); etc.

A Internet, em seu aspecto mais caótico e subversivo, fornece hoje um campo de atividades para a nova contracultura, favorecendo imensamente a livre circulação do conhecimento e de bens culturais, desviados de seu originários fins econômicos, que ficam boiando nas baías piratas das águas informacionais. Nunca na História Humana vivemos isto: tanto conhecimento precioso em circulação, à disposição, sendo transferido em altíssimas doses pelos mecanismos peer to peer. Cybercomunismo, como sabem bem os hackers, existe faz tempo – como ideal e como prática.

Estamos entrando numa fase da história humana, e que nada indica ser reversível ou stopável, em que um novo elemento geopolítico entrou em cena: aquilo que Francisco Bosco chama de “ágora das timelines” (p. 17), que vem constituindo um “novo espaço público”, onde as lutas identitárias têm alto protagonismo. Neste novo lócus para o debate público, onde ocorrem tantas polêmicas entre diferentes perspectivas sociais, o que não falta é conflito e agressividade. É a guerra de todos contra todos, atualizada de sua velha versão Hobbesiana para o atual arranca-toco das UFCs on-line.

As lutas identitárias são, neste vale-tudo, frequentemente alvejadas por xingamentos e tiros vindos da Direita, no espectro político: há quem deslegitime as denúncias feitas pelas mulheres de casos de estupro e assédio sexual, chamando isso de “mero mimimi de feminista”, sendo que esse tipo de argumento costuma vir acompanhado pelo desejo de extinção de leis de proteção da mulher contra violência doméstica (caso da Lei Maria da Penha) e militância para que casais homoafetivos nunca possam ser reconhecidos como casal em união civil.

Identificadas como “pautas de esquerda”, as ditas “pautas identitárias”, em larga medida, praticam demandas de justiça e igualitarismo nos moldes da ética republicana iluminista e da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, somando a isso a afirmação de um novo direito, o “direito à diferença” (que não entra em conflito com o “direito à igualdade”): como disse Joan Scott, “não se deve nem abandonar o direito à diferença, nem o direito à igualdade” (apud Bosco, p. 85).

Quando falamos em “direito à diferença”, queremos dizer também o direito ao amor dissidente, ao casal fora das normais que impõe uma heterossexualidade compulsório e uma divisão de gênero binária. “O direito à união civil entre homossexuais poderia ter seu princípio estendido a pessoas trans, a alianças diferentes do tradicional par (não há razão para o Estado impor essa lógica do dois) e assim se chegaria ao direito a qualquer tipo de união consensual”, argumenta Bosco (p. 86).

O Brasil, infelizmente, é líder global em assassinatos de ativistas dos Direitos Humanos e também em homicídios motivados por homofobia e transfobia. O caso Marielle Franco também é ilustrativo aqui: fazendo suas as bandeiras do movimento LGBT, ela atraía a fúria dos homofóbicos; fazendo suas as bandeiras do movimento anti-racista, fazia recrudescer os ímpetos de segregação e discriminação dos racistas; fazendo suas as bandeiras feministas, era alvo para o desprezo e a truculência do machismo ainda hegemônico; etc.

O livro de Bosco é precioso pois mostra o valor e a necessidade destas lutas identitárias, mas também pratica uma salutar crítica das “premissas problemáticas” e “métodos de luta que devem ser recusados” (p. 91). Bosco estuda casos emblemáticos e embrenha-se na problematização das reações da Internet e das ruas a episódios como:

  • Blocos carnavalescos no Rio de Janeiro que, no Carnaval de 2017, decidiram não tocar certas “marchinhas clássicas do cancioneiro brasileiro sob a alegação de que suas letras contêm trechos preconceituosos contra diversas minorias” (p. 93)
  • A polêmica envolvendo o video-clipe “Você Não Presta”, de Mallu Magalhães, acusado de racismo e objetificação do corpo negro (p. 129);
  • O caso da cantora Marcia Castro, acusada por suas fãs do movimento feminista de ser “fiel defensora de estupradores” (p. 135);
  • Uma polêmica viral sobre apropriação cultural no caso do debate sobre legitimidade (ou não) do uso de turbantes por mulheres brancas (p;
  • Denúncias de desvios no comportamento sexual desferidas por feministas contra artistas (como Gustavito Amaral) e intelectuais (como Idelber Avelar).

A estratégia de Bosco em dissecar estes casos concretos está plenamente justificada no livro como um modo de escapar aos perigos da generalização, das injustas formulações preconceituosas e falsas – tais como “todos os índios são preguiçosos”, “todos os homens são potenciais estupradores”, “todos os negros nasceram para ser escravos”. Para o autor, uma frase como “a vítima tem sempre razão” é tão problemática quanto as citadas, incorrendo numa petição de princípio (chamar de vítima à pessoa que denuncia, somente pelo fato de denunciar, é saltar a conclusões apressadas), de modo que “a adesão incondicional à palavra da vítima incorre em potencial injustiça quanto ao indivíduo particular que é acusado.” (p. 156)

Um dos méritos maiores da obra está na análise psicológico-filosófica apurada que ele realiza dos linchamentos, os reais e os digitais.

Bosco foca no linchamento como ato de humilhação do outro, realizado por uma gangue-de-linchadores em que cada indivíduo sente um certo gozo perverso na ação de linchar. O outro, pisoteado pelo grupo, serve como bode expiatório em um rito que congrega, uma cerimônia da violência que gera, entre o clã, a gangue, a seita, a milícia de linchadores, uma espécie de cimento invisível que os faz solidários no ódio.

Decerto que esta é a pior das solidariedades possíveis – estar unido pela fúria, cimentado pelos afetos agressivos direcionados a um outro visto como inimigo que merece todos os esporros – mas é também uma das mais comuns, rotineiras. Donde provêm, é claro, a célebre “Banalidade do Mal”. Tudo isto o autor esclarece, com pensamento de fato bastante claro e iluminador, recorrendo à Psicologia de Massas, tal qual desenvolvida por Freud, Le Bon, Fromm, W. Reich, dentre outros.

“Em seu ensaio ‘Psicologia de Grupo e Análise do Ego’Freud oferece uma interpretação para o comportamento tendencial dos indivíduos quando estão agindo como parte de um grupo. (…) Essa identificação grupal é uma espécie de máquina de reconhecimento, que propicia as recompensas narcísicas decorrentes dele. Ora, os indivíduos do grupo tendem a não querer abrir mão desse reconhecimento (…) e assim apresentam uma ‘compulsão a fazer o mesmo que os outros, a permanecerem em harmonia com a maioria’. (…) Está em jogo uma dinâmica de reafirmação dos laços identitários que exige uma exclusão para se instaurar. Pois se, como observa ainda Freud, ‘o líder ou a idéia dominante poderiam também ser negativos’ – isto é, o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva… ” (p. 158)

Bosco, porém, esquece ou deixa de lado fenômenos que poderiam compor um quadro mais amplo das táticas de ação como os escrachos, realizados pelo Levante Popular da Juventude, que merecem ser diferenciados dos linchamentos que ele tem em mente, em especial pela direção do alvo: o cuspe sobe aí de cima para baixo, trata-se de linchar o opressor ou a classe dominante. Alguns grupos de familiares de sobreviventes e desaparecidos da Ditadura Militar também se utilizam de táticas similares ao escracho levantino diante de torturadores e algozes que estiveram em ação no Regime de Exceção (64-85).

Expressões culturais mais agressivas, como o rap, punk, heavy metal, para nos limitarmos ao âmbito da música, podem conter práticas verbais e gestuais que sugerem o linchamento de autoridades. Aí nestas manifestações culturais uma transformação de indignações sócio-políticas em arte-de-combate, às vezes explicitamente chamando ao lynching, sendo o exemplo mais óbvio a banda The Dead Kennedys, cujo vocalista Jeffo Biafra conclamava com altíssima dose de decibéis: “Let’s Lynch The Landlord”.

De todo modo, Bosco mobiliza conceitos e achados de trabalhos brilhantes de antropologia cultural (em especial Antônio Risério, José Miguel Wisnik e Hermano Vianna) e debate as várias correntes feministas. Tudo isso no contexto atualíssimo das novas redes digitais de comunicação em tempo real, onde convivem:

  • Chamadas a manifestações públicas e insurreições populares através das mídias sociais, capazes de servir de ferramenta de mobilização (como na Primavera Egípcia, em que na Praça Tahrir se pôde ler, nas faixas dos manifestantes-revolucionários, ditos como “Facebook: instrumento da revolução” – o que decerto nunca esteve nos planos de Mark Zuckerberg…);
  • Linchamentos digitais, com milícias digitais especializadas em assassinato de reputações através de uma enxurrada de fake news – vide as calúnias contra a vereadora do PSOL, Marielle Franco, que se seguiram à sua execução brutal em 14 de Março de 2018;
  • Escrachos e denúncias via Facebook que visam, por exemplo, gerar sororidade entre as mulheres para que denunciem estupradores e assediadores;
  • Renhidas estratégias dos internautas para fazer seu blog, seu canal, sua hashtag, viralizar nos trending topics do Twitter, com a utilização frequente de conteúdos apelativos, agressivos, simplistas, preconceituosos.


Há um “novo espaço público” surgindo, com a inserção das mídias sociais nele como fator inédito, e isto não é necessariamente uma boa notícia: se de fato vemos a disseminação louvável de comunicação descentralizada e democratizada, que tem como emblema o midiativismo da Mídia Ninja e dos Jornalistas Livres, por outro vivemos agora sob a infestação das fake news e dos assassinatos de reputação através de linchamento cibernético. Tanto que Contardo Calligaris escreveu na Folha um artigo comentando o livro de Bosco em que avançou uma hipótese histórica ousada: “A virulência das redes sociais é sucessora do totalitarismo”:

“Acaba de sair pela Todavia “A Vítima Tem sempre Razão? – Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro”, de Francisco Bosco. Grande parte do livro (que é crucial e imperdível na atualidade) é dedicada a uma genealogia das redes sociais no Brasil, mostrando como se tornaram um novo espaço público em que não acontecem debates, mas linchamentos, e onde circulam não ideias, mas palavras de ordem.

Há quem diga que nesse novo espaço se revelaria a “verdadeira” natureza humana, sedenta de sangue. Talvez. Eu penso sobretudo que a virulência das redes sociais é a sucessora direta das políticas totalitárias de extermínio do século 20.

Ambos os fenômenos são filhos da razão abstrata (mas funcional) pela qual um debate é ganho quando consegue-se calar o adversário –exterminando-o ou gritando mais alto, fazendo com que a fala seja mais violenta, menos complexa e, portanto, mais facilmente apropriada, ganhando mais likes e retuítes.

Nessa dinâmica, ter razão equivale a silenciar o outro…

Tipo: Marx, Engels, Lenin, todos burgueses de classe média alta, podiam falar em nome do proletariado? Um homem pode se expressar, apoiando ou criticando, sobre o movimento feminista? E um branco, sobre o movimento negro, pode?

Pois bem, demonstrando minha tese sobre as redes sociais, os argumentos de Bosco, lá onde tentam abrir uma discussão, encontraram sobretudo argumentos silenciadores, do tipo: cala a boca macho branco, morador do Leblon etc.” (CALLIGARIS, FSP)

Francisco Bosco está alertando a todos nós – quer nos classifiquemos como Esquerda ou Direita, quer nos enxerguemos na imensa área entre estes dois extremos – sobre a re-ascensão do autoritarismo na sociedade brasileira, e que manifesta-se neste constante calar o outro, que é também um modo de castrar a diversidade humana, impedindo as dissidências e divergências de se manifestar e dialogar no mundo comum (o que é o sentido, afinal da democracia), atentando assim contra aquela pluralidade que, como dizia Hannah Arendt, é constituinte ontológico da nossa realidade social e telúrica (a sociobiodiversidade, além de valor, é fato).

A prática autoritária de calar o outro e não permitir a expressão social das diferenças manifestou-se de modo explícito no assassinato perpetrado contra Marielle Franco, seguido por aquilo que Leonardo Sakamoto diagnosticou como seu “segundo assassinato”, movido por milícias digitais que buscaram arrasar a reputação e denegrir a vida da vereadora e ativista. Tal uso bárbaro e perverso das mídias sociais, com discurso de ódio exacerbado, tão comum nos fã-clubes de Bolsonaros e MBLs, transforma o novo espaço público brasileiro, tão bem analisado por Bosco, em um ambiente tóxico e tenso.

Figuras públicas relevantes do PSOL como Marcelo Freixo e Guilherme Boulos, este último candidato à presidência, devem saber muito bem que entra em um pleito que não ocorrerá mais no lendário país cordial, da “democracia racial”, da miscigenação harmônica entre as raças que está expressa na fantasia de Stefan Zweig, daquela fraternidade fácil digna dos retratos idílico-líricos da “Aquarela do Brasil” Ary Barrosiana ou do “País Tropical” de Jorge Ben, mas sim num barril de pólvora em formato de país.

A execução de Marielle lança uma incógnita explosiva no cenário. O que explica o imenso impacto que o caso teve na opinião pública (assunto mais comentado no Twitter global, por exemplo, em 15 de Março de 2018), além da capacidade de mobilização de massas de que o episódio foi capaz, está conectado, a meu ver, com a aptidão do caso para congregar e fazer convergir os movimentos negros, feministas, socialistas, LGBT, Hip Hop, dos Direitos Humanos etc.

Na indignação, na revolta, na dor, no luto, em todos os afetos mobilizados pelo crime perpetrado contra Marielle, finalmente foi dado um salto quântico de consciência social, ao menos dos setores mais conscientes e ativos da sociedade. E ao menos por uns dias pulamos da teoria = os papos acadêmicos sobre a inter-seccionalidade em Angela Davis ou Audre Lorde – e realizamos na prática o nosso tropical ubuntu: eu sou porque nós somos, vamos do luto à luta, por um mundo em que caibam todos os mundos! Levantamos os punhos, abraçados (para usar uma bela e comovente imagem que a Mariana Lopes usou em sua fala no ato de Goiânia):

No que Antonio Martins chamou de “manifestações oceânicas”, a interseccionalidade se realizou, enfim, na prática, cimentada pela indignação compartilhada e efervescida no caldeirão das redes sociais digitais. De novo, a cibercultura invade as ruas. Os frutos desta morte-semente ainda serão muitos. Quais serão – se frutos de vida amelhorada ou de avanço ainda mais tétrico da Tanatopolítica e dos algozes do futuro, é hoje imponderável.  E nenhum jornalista ou filósofo que se preze deve se aventurar na aventura ilusória do profetismo. Quem viver, verá. O que virá será inédito, esperemos o imprevisto!

Tudo indica que as lutas identitárias entram no cenário sócio-político com tensão intensificada neste ano-chave que é 2018, com as eleições sob ameaça de não ocorrer, seja por excesso de convulsão social, por denúncias de sua ilegitimidade, ou mesmo por decreto ditatorial dos golpistas por enquanto no poder. Um contexto onde a prisão de Lula é cada vez mais iminente, com novo sequestro da soberania popular através da inviabilização, via lawfare, do candidato favorito no pleito. Um contexto onde o martírio de Marielle lança ao turbilhão das ruas e redes uma solidária aliança, à la ubuntu, entre lutas antes dispersas.

Marielle vive em seu legado e conclama: sejamos pessoas diversas, mas não dispersas! E façamos juntos um outro mundo, que começa desde já: queremos a Justiça, queremos a Verdade, e queremos que esta execução política não possa ser passível de anistia ou impunidade! Ela poderá ser, para as lutas identitárias, um martírio-trampolim, uma espécie de fundo-do-poço onde a gente pega impulso, para que possa saltar, enfim, para fora do lodaçal em que o Golpe de Estado de 2016 afundou o país.

Não se trata de simples oportunismo pragmático – utilizar uma morte como trampolim – mas sim de fidelidade pelas pautas que a falecida devotou sua vida a promover. Marielle, mártir que veio para marcar para sempre a história do ano de 2018, transforma-se em bandeira: está presente, vive, transcende a ausência de seu corpo material entre os vivos para transmutar-se numa espécie de ídolo mobilizador que reúne tantas das características de que precisamos mobilizar nas futuras batalhas contra as injustiças que se aprofundam.

No pós-golpe vivemos entre os escombros do Estado Democrático de Direito, em meio ao retrocessos brutais nos direitos sociais mais básicos, com o avanço das tendências à privatização de nossos recursos (do pré-sal entregue a preço de banana à Shell ao Aquífero Guarani, em processo de “rifa” ao capital transnacional estrangeiro). Através de reformas na legislação trabalhista, no teto de gastos públicos, no regime previdenciário, os ocupantes ilegais do poder.

Após a fraudulenta deposição da presidenta Dilma através de um impeachment sem crime de responsabilidade (um impechment usado como instrumento de putsch, meio para brutal lawfare), a Elite do Atraso vem instaurando por aqui uma das mais pavorosas Ditaduras do Dinheiro hoje em curso sobre a face da Terra. Naomi Klein poderá escrever um capítulo saboroso sobre o Brasil pós-2016 para uma nova edição do seminal A Doutrina do Choque.

Nossa luta tem mover as estruturas e ser inter-seccional: diversos, mas não dispersos, numa frente única contra o Bicho de 7 Cabeças das múltiplas opressões, inventar este outro mundo onde caibam todas as formas de viver, onde estejam mais livres as maneiras de conviver e se vincular, e onde a truculência assassina pare de trancafiar e exterminar o nosso futuro, inextricável dos grupos marginalizados, humilhados e ofendidos, que vão insistir e resistir em suas demandas de reconhecimento, participação, verdade, igualdade, justiça. Mãos à obra!

E, na conclusão de seu livro, Francisco Bosco nos endereça reflexões bastante propícias para este nosso comum obrar:

“Reafirmo, em primeiro lugar, que são justas as ações desequilibrantes em âmbito institucional, uma vez que se objetivo último é instaurar um sistema social justo, isto é, igualitário… São legítimas e desejáveis todas as ações que tenham como objetivo pressionar comportamentos institucionais a fim de que se tornem igualitários, mesmo que, para tanto, indivíduos pertencentes a segmentos privilegiados de poder tenham suas expectativas reduzidas, ou seja, suas oportunidades e acessos submetidos a um tratamento desequilibrante em seu prejuízo. Inscrevem-se nesse campo inúmeras agendas, como sistemas de cotas raciais em universidades e quaisquer órgãos públicos; exigências de composições paritárias de gênero também em quaisquer órgãos públicos; pressão em empresas privadas por representatividade de minorias em seus quadros de funcionários; exigência do fim das discriminações salariais entre homens e mulheres; exigência de legislações (como licença paternidade) com o objetivo de tornar igualitárias as funções domésticas do homem e da mulher com filhos pequenos; exigência de um funcionalismo institucional justo em casos de denúncias de estupro, assédio sexual, violência doméstica etc.

Por outro lado, não são justas as ações desequilibrantes voltadas contra indivíduos… Não são aceitáveis as práticas que denunciam comportamentos individuais e ao mesmo tempo exigem que essas denúncias sejam incondicionalmente acatadas, em deliberado prejuízo dos indivíduos acusados, que se veem, desse modo, moralmente condenados de saída… As ações, mesmo as que visam objetivos finais justos, que se autorizam a instrumentalizar indivíduos para atingir esses objetivos, essas ações são típicas de sistemas totalitários… Que os movimentos identitários  abandonem essa forma de ação e não instrumentalizem indivíduos em nome de suas justíssimas lutas, é o que defende esse livro.

Por outro lado, defende também ser preciso que o conjunto da sociedade tenha consciência quanto à justiça das reivindicações desse movimentos, sempre que se trate de lutas por igualdade. As condições sociais extremamente injustas sob as quais vivemos instauram um campo de possibilidades sujeito a todos os tipos de violência. Enquanto essas condições não forem profundamente modificadas, pedir às pessoas que sofrem graves injustiças cotidianas ‘ponderação’, ‘civilidade’ ou obediência a um imperativo categórico tem algo de inútil, e até de ridículo. Um ganho de consciência em larga escala da justiça dos pleitos identitários contribuirá para que as condições de injustiça social sejam modificadas. É pelo que eles lutam.” (p. 185 – 189)

Lutemos, pois, para que mortes injustas possam ser sementes que, cultivadas em comum, possam dar em árvores frutíferas de verdade e justiça neste mundo que roda cada vez mais distanciado destas.

Por Eduardo Carli de Moraes, Prof. de Filosofia do IFG
A Casa de Vidro – Livraria e Produtora Cultural (www.acasadevidro.com)



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VULGO GRACE: Os indecifráveis mistérios de uma psiquê-esfinge na minisérie baseada no romance de Margaret Atwood

Aos 16 anos de idade, em 1843, Grace Marks foi condenada pelo duplo assassinato de seu patrão, Mr. Thomas Kinnear, e Nancy Montgomery, governanta da casa onde trabalhava. Nas 500 páginas do romance baseado em fatos reais Alias Grace, a escritora Margaret Atwood decidiu explorar todos os misteriosos meandros de Grace, “uma das mais notórias mulheres canadenses da década de 1840”.

Inicialmente condenada à prisão perpétua, depois favorecida pela clemência da justiça – sorte que não teve seu suposto cúmplice no crime, McDermott, que morreu na forca – Grace Marks serve agora como um ícone artístico para alimentar debates sobre a condição feminina e o embate entre feminismo e patriarcado.

Assim como seu romance de 1984, O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), Alias Grace também foi adaptada com maestria para a linguagem audiovisual e tornou-se uma mini-série de 6 episódios da Netflix em parceria com a CBC (Canadian Broadcasting Company).

Desvelando com sua fina ironia toda a complexa ambiguidade da condição feminina, Atwood tem uma obra que torna muito difícil o simplismo reducionista daqueles que querem dividir o mundo entre vilãs e mocinhas: sua Grace é uma esfinge em forma de mulher, que se esquiva aos esforços de compreensão que o psicólogo Simon Jordan empreende para desvendá-la, permanecendo indecidível se ela é algoz ou vítima.

Para além de todos os estigmas que a sociedade de sua época grudou sobre ela – assassina, louca, femme fatale, histérica etc. – o que testemunhamos nesta obra é o pormenorizado retrato de uma pessoa enigmática, labiríntica. Atwood não parece ter nenhum desejo de dar solução simples para esta incógnita, como se quisesse nos dizer que uma mulher é mil vezes mais difícil de resolver do que a mais cabeluda das equações matemáticas.

Grace Marks é uma sedutora esfinge que, tal qual a mítica fera derrotada por Édipo, acaba propondo ao Dr. Jordan um “decifra-me ou devoro-te!” Ele é devorado.

Não há proto-psicanálise (a ciência psicológica ainda estava em estado rústico), nem hipnotismos recheados com obscurantismo, que possam servir para que o doutor decifre a contento esta mulher-quebra-cabeça que acaba por devorá-lo como a Esfinge fez com boa parte da população de Tebas.

Incapaz de crer que encontrou a verdade sobre Grace, o doutor soçobra em uma confusão torturante e desce a escadaria fatal ao abismo: de médico a doido. Perde-se no labirinto desta psiquê e não encontra o fio de Ariadne que o liberte de estar face a face com o Minotauro indecifrável desta alma feminina torturada.

No episódio 6, em uma cena magistral, o advogado que defendeu Grace evoca a semelhança dela com a Sherazade das 1.001 Noites: ambas teceriam seus contos sem preocupação excessiva com as categorias Verdade e Mentira. Enquanto conta sua história ao médico, ela vai tecendo com a agulha os mantos com figuras simbólicas e que vão servir, ao fim da obra, como novas adições ao puzzle. 

Longe de querer dissolver esta sensação de estarmos diante de um quebra-cabeça com peças faltantes, ou mesmo peças excessivas,  a obra de Atwood parece se esforçar por transmitir uma resiliente carga afetiva de perplexidade sem solução – it leaves us puzzled. 

Grace Marks é originária da Irlanda e sua posição subalterna no Canadá talvez tenha relação com seu status de migrante. Seus traumas vem desde cedo: a morte de sua mãe ocorre em alto mar, na longa viagem do Reino Unido até Toronto, e a mãe é sepultada na travessia.

O pai de Grace é truculento, grosseirão, abusador. Os nexos entre os traumas infantis e sua futura condenação não são estabelecidos de modo claro, mas torna-se óbvio que a obra se engaja numa denúncia de um sistema que usa presídios e hospícios para uma espécie de tortura legalizada. “Há gente que se deleita com o sofrimento de seu fellow mortal, em especial se acredita que se trata de um pecador” – ouve-se no primeiro episódio.

Grace, diante do Dr. Jordan, depois de tão sofridos anos de silenciamento, após ser esmagada pelas micro-torturas do sistema prisional e psiquiátrico, encontra alguém que lhe fornece a escuta atenta e interessada. Ela embarca nesta talking cure como fez Anna O (1859 – 1936) nos primórdios da psicanálise, quando apelidou o processo como chimney sweeping, limpeza de chaminés.

Grace Marks vai lançar muita fumaça neblinosa por esta chaminé, a ponto de envolver o doutor num clima etéreo de apaixonamento. Diante do lápis do doutor que escreve o que ela conta, há em Grace o despertar de um ímpeto narrativo em que torna-se difícil distinguir entre fato e ficção.

Ela inventa seu próprio passado ou relata com realismo o vivido? Estaria ela relatando memórias inventadas, ou pelo menos retocadas? Relembra o que de fato vivenciou, ou tece o passado que lhe serve melhor? Tendo a crer que Grace é a ficcionista de sua própria biografia e faz aquilo que enuncia o título de uma das mais belas canções da banda escocesa The Delgados, escolhe “the past that suits you best”.

Dirigida pela proeminente cineasta Mary Harron (Psicopata Americano, Eu Atirei Em Andy Warhol, Wonderwoman), a série foi co-roteirizada pela própria Atwood e pela Sarah Polley. Um dos méritos maiores da obra está em frustrar as expectativas daqueles que buscam bater o martelo com juízos sumários e unívocos sobre a culpa ou inocência de Grace Marks (interpretada pela atriz Sarah Gadon).

Somos lançados a uma zona cinzenta, repleta de ambiguidades, em que esta mulher oscila entre as posições de vítima e algoz, amiga e traíra, o que só torna a personagem mais fascinante e a faz com que a obra ressoe mais tempo em nossa sensibilidade após os créditos finais.

Com sua amiga e colega-de-trabalho Mary Whitney (que tem notáveis similaridades com a personagem Moira de The Handmaid’s Tale), Grace aprende, por osmose e empatia, uma atitude iconoclasta e rebeldes. Mary Whitney se recusa àquela dócil subserviência que o Patriarcado costuma exigir do sexo dito frágil. Mary reverencia heróis rebeldes como William Lyon McKenzie (1795 – 1861), que foi prefeito de Toronto (Ontario) e atuou como um dos líderes da Upper Canada Rebellion.

Mary é a empregada politizada, a proletária com consciência de classe, que adora citar de cor os discursos de McKenzie destinados aos canadenses que odeiam a opressão. Impertinente e irreverente, Mary ensina a Grace a arte da chacota contra as patroas. Mary é também o primeiro contato de Grace com o radicalismo rebelde de uma garota mestiça, que tem avó índia (isto é, pertencente aos povos originários, às First Nations canadenses). Mary, brincalhona mas resoluta, expressa para a amiga os seus ímpetos de escalpeladora de patrões. Adora dizer:

– Os rebeldes não perderam; só não ganharam ainda.

A morte prematura de Mary, após seu aborto em uma clínica clandestina, é um choque traumático para a Grace adolescente, tão apegada afetivamente à sua melhor amiga. Grace tem pungente ciência de que aquilo explica de fato a tragédia é a conduta do macho, do patrãozinho – George Parkinson – que engravidou Mary e depois quis atirá-la fora como quem lança uma rosa murcha no lixo. Ainda que não se afirme ou se explicite que Mary tenha sido estuprada ou abusada, dificilmente se poderia dizer do filho em gestação que ele seria fruto do consentimento dos amantes, quando é muito mais plausível que seja fruto dos abusos patronais sobre sua empregadinha.

Um dos ápices da crueldade masculina em Alias Grace ocorre quando Mary revela sua gravidez a George e ele lhe entrega 5 dólares como contribuição para o aborto e lhe diz: “Se você quer uma solução mais rápida para seus problemas, vá e se afogue!” Ela escolhe o aborto e não o suicídio – e Grace não consegue censurá-la por esta escolha onde Mary julgou preferiu 1 cadáver (de feto) ao invés de 2 cadáveres (mãe e filho em gestação). A família de George depois irá tecer toda uma rede de mentiras, propinas e chantagens a fim de acobertar George e permanecer que o macho fique impune, ainda que tenha responsabilidade direta pela morte na juventude de Mary Whitney.

A figura do patrão abusivo, aproveitador, que se utiliza sexualmente das mulheres da classe trabalhadora, é um tema recorrente em Alias Grace – os próprios assassinados, Kinnear e Nacy, estavam envolvidos numa espécie de relação não propriamente amorosa, mas de abuso naturalizado, como se a posição de gentleman fornecesse ao macho as prerrogativas do usufruto (abusivo) das mulheres-serviçais, reduzidas a pouco mais que brinquedos sexuais a serviço da casta patriarcal.

Atwood, porém, não é simplista: não descreve apenas mulheres que são vítimas da opressão masculina / machista / patriarcal, há mulheres que oprimem mulheres devido às respectivas posições na hierarquia das classes sociais. Em The Handmaid’s Tale, algumas das piores vilanias são cometidas por mulheres – como a Tia Lídia, encarnação do puritanismo autoritário e torturador que reina em Gilead, ou Serena Joy, cujo nome sereno e alegre é fachada para uma persona amarga, cruel e dominadora. Estas são mulheres servis ao sistema teocrático instaurado em Gilead e que se enxergam como superiores às mulheres reduzidas à condição de aias ou coisa pior (pois há castas ainda mais degradadas e que se assemelham aos intocáveis indianos).

Um dos slogans de divulgação de The Handmaid’s Tale diz que o futuro é uma porra de um pesadelo (the future is a fucking nightmare); Alias Grace parece perguntar: e quem disse que o passado também não foi? Talvez todo presente seja um pesadelo esmagado entre os pesadelos pretéritos e os pesadelos ainda porvir?

Atwood não compreende o feminismo como tendo que conter uma nova versão do velho maniqueísmo: seria tosco e grosseiro fazer dos homens demônios e das mulheres santas, e por isso ela se esforça tanto para que Grace Marks seja repleta de ambiguidade, entremescla de fascínio e perdição, de doçura e de perigo. Uma mulher assombrada por suas memórias, mas que tem uma fortaleza interior que a permite atravessar viva, amadurecendo, as tempestades de uma vida que inclui não poucas provações.

Nas intrincadas relações de Grace com o Dr. Simon Jordan se desenha a figura de um “conhecimento proibido” (forbidden knowledge) que o homem de ciência e médico da alma busca atingir sobre a condição feminina. Profética, Grace Marks diz que a jornada do médico que adentra o labirinto psíquico desta mulher-esfinge equivale a uma descida ao abismo (a descent into the pit), onde o doutor desejaria segurar em suas mãos o coração feminino pulsante, enfim decifrado.

Mas este coração-esfinge permanecerá para ele esquivo, escorregando como água corrente entre os dedos, como a lhe ensinar, enquanto ele desce rumo à insanidade, que é sem esperança tentar compreender por inteiro uma mulher que se esforça para que o véu de mistério, tecido por sua arte de Sherazade, tremule sem fim sobre seus indevassáveis mistérios.

“One need not be a chamber to be haunted,
One need not be a house;
The brain has corridors surpassing
Material place…”

Emily Dickinson

Retratos de Marks e McDermott feitos no julgamento. Via Toronto Public Library.

Eduardo Carli De Moraes
A Casa De Vidro: http://www.acasadevidro.com

 

 



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