PSICOSES CORPORATIVAS NA ERA DOS SUPERPORCOS: O clash entre Carnivorismo Lucrativo e Libertação Animal no filme “Okja” (2017), do cineasta sulcoreano Bong Joon Ho

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Na era da bioengenharia genética e das corporações psicopatas, a ideologia carnista prossegue dominando mentes e estômagos com uma força descomunal e efeitos nefastos que incidem sobre nós e sobre as futuras gerações. O que é extremamente preocupante diante de uma crise climática planetária que coloca em chamas nossa casa comum (como vem denunciando Greta Thunberg). Enquanto isso, centenas de milhões de humanos continuam a devorar seus hambúrgueres na inconsciência dos alienados que não sabem nem querem saber sobre a pegada ecológica que sua predileção por uma dieta carnívora acarreta.

Se o cinema de não-ficção já soou muitos alarmes sobre esta grave situação através de obras como Cowspiracy, Meat the Truth, Terráqueos – EarthlingsFood Inc., Ser Tão Velho Cerrado, dentre outros, também o cinema de ficção mostrou serviço com Okja (2017), fábula fílmica forjada pelo cineasta sul-coreano Bong Joon Ho – vencedor da Palma de Ouro em Cannes com seu filme mais recente, Parasita (2019).

Bem-vindos à era dos Superporcos: criaturas fabricadas em laboratório pela corporação Mirando pra proporcionar aos consumidores os hot dogs mais baratos do pedaço (o imperativo deste agrobiz é que os animais geneticamente modificados tenham um sabor suculento – “they need to taste fucking good”, na expressão da CEO da empresa). Por seu tamanho gigante, mais parecidos com hipopótamos (ou com Dumbo, recentemente reativado em filme de Tim Burton), os Superporcos são organismos geneticamente modificados (OGMs) destinados a virarem carne barata produzida em massa.

Os Superporcos são também o carro-chefe da estratégia corporativa da Mirando Corp. para limpar sua imagem pública trucidada por seus crimes socioambientais anteriores. Corroída em sua reputação por um passado em que comercializou napalm, devastou direitos trabalhistas e aniquilou equilíbrios ecossistêmicos com a fúria inconsequente de um psicopata que tivesse escapado da camisa-de-força, a Mirando agora aposta todas as suas forças num marketing enganador sobre os benefícios da produção em massa de carne-de-porco geneticamente modificada.

Nas propagandas, é claro, não se revela o grau de degradação e sofrimento em que vivem e morrem os animais nas fábricas-da-carne que mais se parecem com uma espécie de Auschwitz para animais. O grande escritor Isaac Bashevis Singer, laureado com o prêmio Nobel de Literatura, dizia que nós, humanos, seríamos culpados do crime de condenar os animais cujos cadáveres devoramos a um “eterno Treblinka”.

Em suas cenas finais, Okja é um dos mais pungentes retratos desta realidade. Após construir, no princípio do filme, uma relação afetuosa de alta intensidade entre o Superporco Okja e a menina sulcoreana Mikhta, a narrativa nos lança nas entranhas do pesadelo real que é a Indústria da Carne (factory farming). Segundo o célebre dito do vegetariano Paul McCartney, caso os matadouros (slaughterhouses) tivessem paredes de vidro, isso geraria um imenso surto de migração comportamental dos humanos rumo à dieta vegetariana.

Após abordar o fim da humanidade na magistral distopia Snowpiercer – Expresso do Amanhã (2013), em que o homo sapiens tornou-se uma espécie reduzida a alguns passageiros de um trem que se locomove através de uma nova Era Glacial, o cineasta sul-coreano Bong Joon Ho resolveu abordar este fator importantíssimo do nosso pesadelo climatizado (para emprestar a expressão de Henry Miller): nossa relação com os animais, em especial com aqueles que foram modificados geneticamente.

Nesta produção da Netflix, somos confrontados com uma ácida sátira de um mundo tresloucado pelo poderio excessivo de mega-corporações que põe o lucro acima de tudo e as salsichas acima de todos. Em Okja, não estamos mais diante do cenário apocalíptico de Snowpiercer, mas sim numa espécie de pré-apocalipse numa civilização ocidental-industrializada que mergulha fundo no irracionalismo do carnismo. Não escapará aos mais atentos a similaridade entre os nomes Monsanto (hoje fundida com a Bayer) e Mirando: no filme, o que está em questão é justamente a insanidade das corporações que tratam a Natureza como objeto de manipulação na conquista de capitais a concentrar nas contas bancárias de acionistas e banqueiros.

Em um cenário de carnivorismo globalizado, a demanda dos consumidores por carne é o motor de um processo que conduz ao pavoroso cenário distópico que o filme descreve: nos matadouros do futuro, mais parecidos com campos de concentração para Superporcos mutantes, as engrenagens sombrias que estão por trás do processo produtivo dos bacons salsichas são expostos na telona através de uma fábula cativante, didática, problematizadora e frequentemente horripilante.

Nossa tendência a conceber a psicose como uma neurose individual cai por terra quando começamos a estudar mais a fundo as forças dominantes de nosso tempo. Aí fica claro que não se trata de uma doença mental que aflige certos indivíduos, mas algo muito mais pervasivo e epidêmico: a psicopatia é aquilo que subjaz a estruturas sociais hoje hegemônicas. Psicopatas são as atitudes de boa parte das mega-corporações capitalistas que hoje infestam o mundo com suas mercadorias e que lançam ao meio ambiente os tóxicos e poluentes classificados, nas planilhas de CEOs e acionistas, como meras “externalidades”.

A tese da corporação-psicopata foi exposta com contundência em The Corporation – A Corporaçãodocumentário canadense lançado em 2003, dirigido por Mark AchbarJennifer Abbott, baseado no livro de Joel Bakan. Ali, as características básicas do psicopata, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e seu Manual de Desordens Mentais (DSM-IV), são utilizadas para a análise das atitudes empresariais:

“If you did a psychological profile of the corporation, what would it look like? Self-interested, manipulative, avowedly asocial, self-aggrandising, unable to accept responsibility for its own actions or feel remorse – as a person, the corporation would probably qualify as a full-blown psychopath. (…) Behind its benevolent face, Joel Bakan argues, the most important institution of modern capitalism is a Frankenstein’s monster that has broken its chains and is now consuming the society that created it.” – The Guardian

No filme, a atriz Tilda Swinton encarna as duas irmãs gêmeas que disputam o domínio da empresa Mirando, tentando limpar a reputação corporativa manchada pelas atitudes psicopatas do pai das duas, um dos exemplares de psycho-CEO que Okja põe em tela. Um estudo recente do psicólogo australiano Nathan Brook revelou que 1 em cada 5 CEOs revelam traços de psicopatia, índice bem superior ao da população em geral (1 em 100). Outro estudo, da Universidade de Oxford, aponta que o presidente dos EUA, Donald Trump, ele próprio CEO da Trump Corporation, possui mais traços de psicopatia do que Adolf Hitler. No cinema e na teledramaturgia, o tela já ganhou representações icônicas em um filme como American Psycho – Psicopata Americano, de Mary Harron, e uma série como The Sopranos (HBO).

Em Okja, o que está em questão é o contraste brutal entre aquilo que a corporação apresenta de si através do marketing empresarial e aquilo que é sua prática cotidiana em suas fábricas (também conhecidas, vide caso Nike, como sweatshops). Há uma dissonância gigantesca entre a apresentação midiática e a realidade oculta. Oferece-se um showzinho espetaculoso e enganador aos consumidores desejosos de se empanturrar com carne suína barata, fazendo-os crer que não há nada de moralmente errado em financiar a indústria da carne e a ideologia do carnismo. A sátira do filme é certeira ao visar como alvos empresas e consumidores que lavam suas consciências na piscina suja do marketing mentiroso na tentativa de esquecer as brutalidades inerentes ao sistema de factory farming.

Em sua crítica para Omelete, Marcelo Hessel destacou:

Bong basicamente une Ocidente e Oriente ao referenciar Disney (o porco gigante geneticamente modificado tem as orelhas grandes e os olhos pequenos de Dumbo, e passa por altos e baixos emocionais que também evocam a animação clássica) e Hayao Miyazaki (em entrevistas a atriz Tilda Swinton conta que ela e Bong são fãs de Totoro, e mesmo as irmãs gêmeas que ela interpreta no filme são como uma releitura das irmãs de “A Viagem de Chihiro”), unidos por sua matriz fabular. Seu filme parte de uma premissa simples que não parece envelhecer: uma criança e seu bicho de estimação têm entre si a relação mais pura que pode haver num mundo onde deixar a infância significa perder a inocência. “Tirando ela e Okja todos os outros personagens são estúpidos”, brinca Bong.

(…) Nessa oscilação entre a caricatura e a gravidade (quando os ecoterroristas de “Okja” apanham da polícia, por exemplo, a câmera lenta tem ao mesmo tempo um efeito lúdico e agravante), ele encontra um meio termo que aos poucos se expande, e é por onde sua visão de mundo transita. Assim como em “O Expresso do Amanhã”, o filme anterior de Bong e o primeiro falado em inglês, esse meio termo inequivocamente toma a forma da sátira. A sátira é o meio de expressão mais caro a Bong, para dar conta de todos os absurdos que ele vê na relação entre capitalismo e geopolítica hoje, embora o discurso ambientalista-anarquista de “Okja” já pudesse ser sentido há anos desde “O Hospedeiro”, o blockbuster de monstro sul-coreano que colocou Bong em evidência mundial.

Em certo momento de “Okja”, o líder dos anarquistas vivido por Paul Dano, num acesso de fúria, diz aos seus companheiros globalizados que “tradução é sagrado”, e ao combinar uma variedade de registros e discursos fica claro que Bong Joon-ho está atrás de um esperanto próprio, um idioma capaz de resumir o desmanche e a fluidez de valores que presenciamos no mundo, capaz de capturar tanto a caricatura mais grotesca do homem quanto o gesto mais discreto de empatia.

Apesar da qualidade de seu comentário, o crítico Hessel falha ao se utilizar da expressão pejorativa “ecoterroristas” e ao não mencionar em nenhum momento a questão da Libertação Animal, central no filme. É explícito em Okja o desejo de debater sobre organizações como a Animal Liberation Front (ALF) (acessar verbete da Wikipedia em inglês), descrita na obra de Bong Joon Ho com certo sarcasmo mas também com boa dose de empatia.

O sarcasmo é devido às divisões internas do movimento e pelo radicalismo do ethos de certos ativistas, que correm o risco de prejudicarem suas saúdes e sobrevivências devido à alimentação vegana levada a extremos. O filme revela também certos desvios éticos que incluem a tradução mentirosa de um ativista, responsável pela interlocução entre a sul-coreana e os ativistas anglo-saxões, e o consequente espancamento punitivo cometido pelo personagem Jay (Paul Danno) contra seu tradutor-traidor. Apesar de comporem os quadros da mesma organização, os ativistas envolvem-se em rixas e conflitos graves.

Dizer que o filme problematiza o divisionismo interno e as ideologias abraçadas por membros da ALF não significa dizer que os ideais e práticas do grupo estejam sendo desprezados. Muito pelo contrário, Okja empresta seu vigor narrativo e a sua capacidade de gerar eletrizantes cenas de ação para uma espécie de captura pop da problemática da Libertação Animal – tema de célebre livro do filósofo australiano Peter Singer.

Na cena em que os ativistas sofrem com a truculência da repressão policial, o espectador é levado a sentir compaixão e empatia por aqueles corajosos defensores dos direitos e interesses dos animais. Estes anarco-ativistas colocam seus corpos em risco na defesa de um outro mundo possível e referi-los com a expressão “ecoterroristas” é equívoco e mentiroso, dado que o próprio filme enfatiza o caráter pacifista, não-violentocontrário a qualquer sofrimento imposto a quaisquer criaturas sencientes, das ações da ALF.

“The Animal Liberation Front (ALF) is an animal liberation group who engage in direct action on behalf of animals. These activities include removing animals from laboratories and fur farms, and sabotaging facilities. Any act that furthers the cause of animal liberation, where all reasonable precautions are taken not to harm human or non-human life, may be claimed as an ALF action. The ALF is not a group with a membership, but a leaderless resistance. ALF volunteers see themselves as similar to the Underground Railroad, the nineteenth-century antislavery network, with activists removing animals from laboratories and farms, arranging safe houses and veterinary care, and operating sanctuaries where the animals live out the rest of their lives. ALF activists believe that animals should not be viewed as property and that scientists and industry have no right to assume ownership of living beings. They reject the animal welfarist position that more human treatment is needed for animals; their aim is empty cages, not bigger ones.” – JUST SEEDS

De certo modo, teria razão quem fizesse a acusação de que Okja realiza uma espécie de caricatura tanto dos ativistas da A.L.F. quanto dos líderes corporativos da Mirando. O filme de fato adota um tom satírico, caricatural e fabuloso, despreocupado com o realismo e a informatividade (elementos que devem ser procurados em um documentário como o A.L.F. de Jérôme Lescure, lançado em 2012). Isso não o impede de ser uma obra importante para debater o tema, cada vez mais urgente e relevante diante da crise climática, daquilo que se conhece como carnismo ou especismo (expressões tornadas populares por Melanie Joy e Peter Singer, respectivamente).

Em sua resposta para a questão que dá nome a seu livro – “por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas”? -, Melanie Joy aponta que os animais humanos não aderem ao carnismo por necessidade, mas sim por ideologia. Ou seja, é falso supor que apenas vegetarianos e veganos baseiam suas dietas e comportamentos em um sistema-de-crenças subjacente. Na verdade os carnívoros ou carnistas é que estão ideologicamente motivados de maneira muito mais tóxica e perigosa do que os veggies – pois o carnivorismo opera muitas vezes com base num belief system que é ideologia inculcada a operar de maneira sub ou inconsciente.

O carnismo seria uma ideologia, de pervasiva força cultural e de potência explicável pelos altos capitais investidos em brainwashing pelas corporações pecuaristas, que nos ensina a mentira de que é necessário comermos porcos, vacas e galinhas. Isto só é necessário para o lucro das corporações que vendem os cadáveres destes animais, mas nunca será verdade que é necessário para a nutrição humana.

No seguinte vídeo produzido pelo canal Like Stories of Old, destaca-se que os porcos são animais tão “inteligentes, sensíveis e sencientes quanto cães (se não forem mais)” – então o que explica que tratemos os cães como família e os porcos como propriedade e comida?

A crítica social envolvida no filme incide, de maneira pontiaguda, sobre a atitude dos psicopatas corporativos que lidam com seus consumidores como se não passassem de crianças tuteladas. Estas crianças consumistas que eles querem que sigamos sendo precisam ser protegidas a todo custo de se verem confrontadas com o dilema ético em que se apresenta a opção de deixarem suas posições como carnistas, indiferentes à ética e à práxis daqueles que combatem o especismo e criticam o carnismo. Mantendo os consumidores em estado de infantilismo, a ideologia carnista os enxergaria como crianças só interessadas em carne gostosa e barata, consumidores adestráveis através das palhaçadas de Ronald McDonald ou com a fantasia dos frangos sorridentes da Sadia.

O filme revela todo o investimento midiático das corporações psicopatas para ganhar as mentes dos consumidores, que são o epicentro da demanda por carne que as mega-corporações do ramo destinam-se a suprir mas também a pré-fabricar. Okja lida com a construção ideológica de um consumidor carnista a partir de instituições sociais como a mídia colonizada pela publicidade – parte de uma imensa engrenagem que acaba por naturalizar este construto sócio-cultural lucrativo-catastrófico que é o carnismo, perpetuando todos os males vinculados ao especismo (a presunção humana de que nossa espécie é superior às outras e por isso tem pleno direito ao predomínio e à opressão sobre outras espécies).

Problemático, porém, é o tratamento que o filme traz da Super-inteligência do Superporco, explícito naquela cena espetaculosa em que Okja salva Mikhta da morte quando a menina fica dependurada no precipício. Nesta cena revela-se um gosto duvidoso por cheap thrills cinematográficos conjugado com uma aposta quase supersticiosa na capacidade de inteligência prática do animal geneticamente fabricado.

É uma cena onde a Superporca pratica a salvação da heroína mirim que estava em perigo de morte, ou seja, onde se manifesta a velha tática conhecida como marmelada, mas este é o menor dos problemas. O maior problema  é a afirmação subjacente à cena de que a Superporca Okta teria uma inteligência descomunal, quase miraculosa para um animal, o que serviria como uma espécie de elogio lateral às proezas da bioengenharia genética.

O professor de Ética e Direito da Universidade de Harvard, Michael Sandel, problematiza estas questões em seu livro Contra a Perfeição – Ética na Era da Engenharia Genética:

MICHAEL SANDEL – “Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética” (The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering) – 160 páginas, Editora Civilização Brasileira. SINOPSE: Os avanços da ciência genética nos apresentam uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve poderemos ser capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que apesar destes e outros benefícios, nosso repertório moral ainda está mal equipado para enfrentar as perguntas mais complexas suscitadas pela engenharia genética. O livro explora este e outros dilemas morais relacionados com a busca por aperfeiçoar a nós mesmos e a nossos filhos. Michael Sandel argumenta, de forma brilhante, que a revolução genética vai mudar a forma como filósofos discutem a ética e vai colocar as questões espirituais de volta na agenda política.

No livro de Sandel, há vários exemplos de como a bioengenharia genética já se faz presente em nossas vidas, por exemplo através da clonagem de pets. Consumidores que amam seus gatinhos e cachorrinhos, e que sofrem por antecipação com a perspectiva de que os pets vão morrer um dia, podem enviar uma amostra genética acompanhada por U$50.000 à empresa californiana Genetic Savings & Clone para que fosse produzida uma Carbon Copy do amado kittie. A empresa funcionou entre 2004 e 2006 e fazia propaganda dizendo: “Caso você ache que seu gatinho não se parece o bastante com o doador genético, nós devolveremos seu dinheiro integralmente, sem fazer perguntas.” (SANDEL, p. 18)

Para além da clonagem de gatinhos e cãezinhos, serviço disponibilizado para os donos de pets que estão com dinheiro sobrando, o autor se manifesta muito preocupado também com a engenharia genética da mente humana. Ou seja, com intervenções de caráter eugenista ou farmacológico, destinadas a criar uma espécie de Übermensch de laboratório, um projeto fáustico também presente na indústria farmacêutica e sua busca insaciável por “melhoradores cognitivos” e por modificadores do ânimo (como antidepressivos e anfetaminas):

“O melhoramento genético é tão possível para o cérebro quanto para os músculos. Em meados da década de 1990, cientistas conseguiram manipular um gene das drosófilas ligado à memória e criaram moscas com memória fotográfica. Mais recentemente, pesquisadores produziram ratos inteligentes ao inserir em seus embriões cópias extras  de um gene relacionado à memória. Os ratos modificados aprendem mais depressa e se lembram das coisas por mais tempo do que os ratos normais. Empresas de biotecnologia com nomes como Memory Pharmaceuticals estão ensandecidas atrás de medicamentos para melhorar a memória, os chamados ‘melhoradores cognitivos‘, para uso em seres humanos.” (SANDEL, pg. 25)

Okja manifesta uma ansiedade diante deste cenário de OGMs e de eugenia, reafirmando a figura de Bong Joon Ho como um dos cineastas-pop de maior impacto da Aldeia Global, sempre pautando temas importantes através de filmes fabulosos, propulsionados por uma narrativa cinematográfica poderosa, repletos de sátiras e caricaturas, mas que falam sobre os cruciais problemas de nosso tempo. Ele conta que visitou vários matadouros antes de fazer o filme e os descreve como “incrivelmente chocantes”, lamentando que não conseguiu colocar nem 10% dos detalhes de um matadouro real em seu filme.

Ao projetar na relação entre a criança e seu pet aquele vínculo afetuoso que liga milhões de humanos a seus bichinhos de estimação, o filme serve como uma espécie de arma de conscientização em massa que levará muitos a se questionarem sobre suas condutas enquanto consumidores dos cadáveres de bichos mortos. Aproximando-se de teses anarcoprimitivistas, Okja parece propor que os animais foram feitos para viver soltos na Natureza, in the wild, e que encerrá-los nas Treblinkas da indústria carnista é uma das piores opressões que os humanos podem impor a outros seres sencientes.


SAIBA MAIS – Monbiot @ Ted Talks

Por isso, por mais que soe caricatural e altamente satírico, o filme funciona como uma espécie de panfleto fílmico de divulgação das causas da Libertação Animal e do Veganismo. Ao mesmo tempo, deixa soar o grito que conclama pelo processo de re-selvagizar o mundo, sintetizado por um dos grandes pensadores contemporâneos, George Monbiot, em uma palavra emblemática: REWILD!

O anarcoprimitismo não propõe o rewind, mas sim o rewild; não acredita ser possível voltar no tempo, mas quer um futuro onde a selvageria volte a recobrar seus direitos em face das atrocidades terrificantes da auto-proclamada Civilização Industrial. Esta, cujo carnismo e obsessão com lucros vem gerando um ethos da ganância e da hýbris que mostra-se cada vez mais insustentável. Por isso, mais que nunca, em coro com as criaturas sencientes da Terra, cantemos a plenos pulmões o clássico do rock’n’rolling Steppenwolfiano: “Like a true nature’s child / We were born, born to be wild!” 

Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro, Goiânia, 14/10/2019


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CONFERÊNCIA DE IMPRENSA – Cannes 2017

NATAL PÓS-CAPITAL? – Por George Monbiot

NATAL PÓS-CAPITAL?

Por George Monbiot em Outras Palavras – Tradução: Inês Castilho

Todo mundo quer tudo – como é que isso pode dar certo? A promessa do crescimento econômico é de que pobres poderão viver como ricos; e os ricos, como oligarcas. Mas nós já estamos detonando os limites físicos do planeta que nos sustenta. Pane climática, desertificação do solo, colapso de habitats e espécies, mar de plástico, armagedom de insetos: tudo é causado pela elevação do consumo. A promessa de luxo privado para todos não pode ser cumprida: não existe nem espaço físico nem espaço ecológico para isso.

Mas o crescimento deve continuar: esse é o imperativo político em todos os lugares. E temos de ajustar nossos paladares de acordo, em nome da autonomia e da escolha – o marketing usa as últimas descobertas da neurociência para destruir nossas defesas. Aqueles que procuram resistir devem, como os Vida Simples [Simple Lifers] em “Admirável Mundo Novo”, ser silenciados – pela mídia, em nosso caso. Em cada geração, muda a referência do consumo normalizado. Há trinta anos, era ridículo comprar água em garrafa, pois a água de torneira é limpa e abundante. Hoje, no mundo todo, usamos um milhão de garrafas plásticas em cada minuto.

Toda sexta-feira é uma Black Friday; todo Natal é um festival mais aberrante de destruição. Entre saunas de neverefrigeradores portáteis de melão e smartphones para cachorros com que somos instigados a preencher nossas vidas, meu prêmio de#extremacivilização vai agora para o PancakeBot: uma impressora de massas 3-D que lhe permite comer, todas as manhãs, a Mona Lisa, o Taj Mahal ou o traseiro do seu cachorro. Na prática, vai entupir sua cozinha até você perceber que não tem espaço pra isso. Por tralhas como essas estamos transformando em lixo o planeta vivo e nossas próprias perspectivas de vida. Tudo isso precisa acabar.

A promessa auxiliar é que, pelo consumismo verde, podemos reconciliar crescimento perpétuo com sobrevivência planetária. Mas uma série de pesquisas revela que não há diferença significativa entre as pegadas ecológicas de pessoas que cuidam e que não cuidam de seus impactos. Um artigo recente, publicado na revista Environment and Behaviour [Ambiente e Comportamento], revela que quem se identifica como consumidor consciente usa mais energia e carbono do que quem não.

Por que? Porque a consciência ambiental tende a ser mais alta entre pessoas ricas. Não são as atitudes, mas a renda que determina nossos impactos no planeta. Quanto mais ricos, maior nossa pegada, a despeito de nossas boas intenções. Aqueles que se veem como consumidores verdes, diz o artigo, “focam principalmente em comportamentos que têm benefícios relativamente pequenos”.

Conheço gente que recicla meticulosamente, guarda suas sacolas plásticas, mede com cuidado a água que coloca em suas chaleiras e então tira férias no Caribe, dispendendo cem vezes mais que suas economias ambientais. Passa a crer que a reciclagem fornece a desculpa para seus voos de longa distância. Convence as pessoas de que tornaram-se verdes, prontas a desconsiderar seus grandes impactos.

Nada disso significa que não devemos tentar reduzir nossos impactos, mas precisamos ter consciência dos limites desse exercício. Nosso comportamento dentro do sistema não consegue mudar os resultados desse sistema. É o sistema que precisa ser mudado.

Natal

Uma pesquisa da Oxfam sugere que o 1% mais rico (se sua renda familiar é de 308 mil reais ou mais por ano, isso te inclui) produz 175 vezes mais carbono que os 10% mais pobres. Como podemos, num mundo em que supostamente todos aspiram a altos rendimentos, evitar transformar a Terra numa bola de sujeira, da qual depende toda a prosperidade?

Por dissociação, dizem os economistas: desvincular o crescimento econômico do uso de materiais. E como é que vai isso? Um artigo na revista PlosOne revela que, enquanto em alguns países ocorreu uma relativa dissociação, “nenhum país conseguiu dissociação absoluta nos últimos 50 anos”. Significa que a quantidade de materiais e energia associadas com cada aumento do PIB pode declinar, mas, à medida em que o crescimento ultrapassa a eficiência, o uso total de recursos continua crescendo. Mais importante, o artigo revela que no longo prazo são impossíveis tanto a dissociação relativa quanto a dissociação absoluta do uso de recursos essenciais, por causa dos limites físicos da eficiência.

Uma taxa de crescimento global de 3% significa que o tamanho da economia mundial é duplicado a cada 24 anos. Essa é a razão pela qual as crises ambientais aceleram-se a essa velocidade. Ainda assim, o plano é assegurar que ela duplique e duplique outra vez, e continue a duplicar para todo o sempre. Ao procurar defender o mundo vivo do sorvedouro da destruição, podemos acreditar que estamos lutando contra corporações e governos e a insensatez geral da humanidade. Mas eles são todos procuradores do verdadeiro problema: crescimento perpétuo num planeta que não está crescendo.

Aqueles que justificam esse sistema insistem em que o crescimento econômico é essencial para o alívio da pobreza. Mas um artigo da World Economic Review afirma que os 60% mais pobres do mundo recebem apenas 5% do rendimento adicional gerado pelo aumento do PIB. Disso resulta que são precisos 111 dólares de crescimento para cada 1 dólar de redução da pobreza. Essa é a razão por que, seguindo a tendência atual, seriam necessários 200 anos para garantir que todo o mundo receba 5 dólares por dia. A essa altura, a renda média per capita terá alcançado 1 milhão de dólares por ano, e a economia será 175 vezes maior do que é hoje. Isso não é uma formula para alívio da pobreza. É uma fórmula para a destruição de tudo e de todos.

Quando você ouve que alguma coisa faz sentido do ponto de vista econômico, isso significa que é o oposto do senso comum. Aqueles homens e mulheres sensíveis que governam os tesouros e bancos centrais do mundo, que veem como normal e necessário um crescimento indefinido do consumo, estão alucinados, esmagando as maravilhas do mundo vivo, destruindo a prosperidade das gerações futuras para sustentar um conjunto de cifras que têm uma relação cada vez menor com o bem-estar geral.

Consumismo verde, dissociação material, crescimento sustentável: isso tudo é ilusão, destinada a justificar um modelo econômico que está nos conduzindo à catástrofe. O sistema atual, baseado em luxo privado e imundície pública, vai nos levar à miséria: sob esse modelo, luxo e privação são uma só besta com duas cabeças.

Necessitamos de um sistema diferente, enraizado não em abstrações econômicas mas em realidades físicas, que estabeleça os parâmetros pelos quais nós julgamos sua saúde. Necessitamos construir um mundo no qual o crescimento não seja necessário, um mundo de frugalidade privada e luxo público. E devemos fazer isso antes que a catástrofe force nossa mão.


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LANÇAMENTO: “Out of the Wreckage – A New Politics for an Age of Crisis” by George Monbiot


Acaba de ser lançado o novo livro de George Monbiot – click e saiba mais

Neoliberalism, Climate Change, Migration:
George Monbiot in conversation with Verso Books

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Leia também:

NÓS SOMOS A CATÁSTROFE: A Humanidade Como Força Geológica Cataclísmica na obra “A Sexta Extinção” de Elizabeth Kolbert

“Ao longo dos últimos 500 milhões de anos, o mundo foi assolado por 5 grandes extinções em massa, nas quais a biodiversidade diminuiu de maneira drástica e violenta. Atualmente, a sexta extinção vem sendo monitorada por cientistas, que a consideram a mais potencialmente devastadora desde a que pôs fim aos dinossauros. E, desta vez, nós somos a catástrofe. Elizabeth Kolbert mostra que a sexta extinção corre o risco de ser o legado final da humanidade e nos convida a repensar uma questão fundamental: o que significa ser humano?” (Texto da apresentação da editora)

Poucos livros publicados na atualidade revelam de maneira mais inquietante e estarrecedora a atual crise sócio-ambiental global do que A Sexta Extinção (Ed. Intrínseca, 2015, 336 páginas, acesse na Amazon). A autora Elizabeth Kolbert escreve na revista The New Yorker desde 1999 e venceu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção em 2015 por esta obra.

Crucial para a compreensão da magnitude alarmante das transformações impostas pelas atividades humanas ao Planeta Terra, o livro é uma daquelas obras-primas do jornalismo científico. Uma leitura que é das mais cruciais e urgentes para a Humanidade, afinal, como pergunta a autora, “após sermos alertados sobre as maneiras como estamos pondo outras espécies em risco, não podemos tomar uma atitude para protegê-las? Afinal, o objetivo de espreitar o futuro não é conseguir mudar de curso e evitar os perigos à frente?” (p. 271)

“A Marcha do Progresso”, obra de Mark Henson

Elizabeth Kolbert é uma intelectual que atua como uma inestimável agente de conscientização – semelhante nisto à Edmund O. Wilson, Carl Sagan, David Attenborough etc. No entanto, pelo menos no Brasil, ela permanece bem longe das listas de best-sellers.  A Sexta Extinção tende, ao contrário, a ser um daqueles livros que vai parar no saldão pois encalha nos estoques das livrarias. Talvez esteja aí uma das raízes do problemão em escala planetária: a maioria dos seres humanos não se interessa por saber dos impactos que os 7 bilhões de homo sapiens estão gerando na bioesfera; não estão afim de mudarem seus hábitos diários de consumo em prol da sustentabilidade da teia da vida sobre a face da Terra; e contam-se às centenas de milhões aqueles que estão medicando seus pavores e angústias com a noção de que, quando o clima ficar ainda mais caótico do que está, podemos correr todos para as igrejas e fazer nossas preces ao Senhor, que há de vir nos resgatar com uma nova Arca de Noé…

Ao invés de terem a coragem de encarar a verdade, boa parte dos humanos preferem a tática do avestruz que esconde a cabeça na areia e prefere não enxergar nada que não sejam boas notícias e finais felizes. Até que o cataclismo que nos tornamos venha, com a força de mil furacões, expulsar todos os humanos com cabeça de avestruz de seus precários refúgios. A ecologia é desprezada demais no mainstream midiático e político, considerada a relevância extrema que possui o que Rachel Carson, autora de Primavera Silenciosa (Silent Spring), de “o problema em partilhar nossa Terra com outras criaturas” (p. 271).

A ecologia precisaria sair do gueto, explodir os limites de nichos universitários, transcender as jaulas dos cursos de biologia e ciências exatas, ganhar as ruas e as redes, tornar-se força intelectual e material capaz de mobilização e transformação social, caso contrário o legado do homo sapiens ao futuro será o de uma vilania imperdoável. As criaturas que herdarem a Terra após a Sexta Extinção em Massa da vida sobre o planeta, caso desenvolvam um dia a capacidade de consciência, hão de olhar para trás enfurecidas para este tal de Humanidade, que hoje atua com o poder cataclísmico do asteróide que causou a Quinta Extinção (aquela sobre a qual ficamos sabendo, em nossas infâncias, não a partir de campanhas científicas de conscientização, mas por espetáculos da Indústria Cultural como o Jurassic Park, blockbuster de Steven Spielberg baseado no romance de Michael Crichton, ou o programa de TV de imenso sucesso, Família Dinossauro). Nosso abissal desconhecimento, ignorância e desinformação sobre um tema tão imensamente importante como a Extinção de Espécies Vivas é algo que Elizabeth Kolbert nos ajuda a sanar:

Hoje em dia, qualquer criança aprende na escola, desde cedo, desde as aulas mais básicas de biologia, sobre a extinção de espécies – um fenômeno que a teoria da evolução, formulada por Charles Darwin, também prevê e explica. Kolbert lembra que

“a extinção talvez seja a primeira ideia científica com a qual as crianças de hoje em dia precisam lidar. Com um ano, elas ganham dinossauros de brinquedo e, aos dois anos, entendem, pelo menos de maneira vaga, que aquelas pequenas criaturas de plástico representam animais enormes. Se forem rápidas no aprendizado, crianças ainda de fraldas conseguem explicar que já existiram vários tipos de dinossauro no mundo e que todos eles foram extintos muito tempo atrás… Tudo isso para dizer que a extinção nos parece uma ideia óbvia. Não é.

Aristóteles escreveu a História dos Animais em 10 livros, sem jamais levar em conta a possibilidade de que os animais tivessem de fato uma história. A História Natural de Plínio inclui descrições de animais verdadeiros e também de animais míticos, mas nenhuma descrição dos animais extintos. A ideia não floresceu na Idade Média nem durante o Renascimento… No Iluminismo, a visão preponderante era de que todas as espécies estivessem ligadas a uma imensa e indestrutível ‘cadeia de seres’. No século XVIII, ossadas de mamutes começaram a aparecer da Europa à Sibéria. Esse caso também foi encaixado à força dentro do sistema. Os ossos pareciam bastante com os dos elefantes. Como claramente não existiam elefantes na Rússia daquele tempo, concluiu-se que aquelas ossadas deviam pertencer a bichos que foram arrastados para o norte pelo dilúvio do Gênesis.

A extinção só surgiu como um conceito na França revolucionária – e não deve ter sido coincidência. Isso aconteceu em grande parte graças a um animal, a criatura hoje em dia chamada de mastodonte-americano, ou Mammut americanum, e um homem – o naturalista Jean Léopold Nicolas Frédéric Cuvier (1769 – 1832).” (p. 32-33)

O que está causando a Sexta Extinção da Vida sobre o planeta é um conjunto de causas antropogênicas, muito bem desvendada por Kolbert, e que eu ando gostando de chamar de Antropocalipse. Este Apocalipse ambiental causado pelas ações humanas tem várias faces – desmatamento de florestas, queima de combustíveis fósseis, vastidão da agropecuária industrial e da dieta carnívora, poluição atmosférica e hídrica, uso excessivo de pesticidas e agrotóxicos, manipulação genética, dentre outros. No seguinte trecho, Kolbert revela o tamanho colossal do problema:

“Desde o início da Revolução Industrial, os seres humanos queimaram combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – o suficiente para adicionar 365 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera. O desmatamento contribuiu com mais 180 bilhões de toneladas. A cada ano, despejamos outros cerca de 9 bilhões de toneladas de carbono, uma quantidade que tem aumentado até 6% ao ano. Em consequência de tudo isso, a concentração de dióxido de carbono no ar hoje – um pouco mais de 400 partículas por milhão – é superior à dos últimos 800.000 anos. É bem provável que seja maior do que em qualquer momento nos últimos milhões de anos. Se essa tendência continuar, em 2050 as concentrações de CO2 atingirão 500 partículas por milhão, mais ou menos o dobro dos níveis encontrados na era pré-industrial.

Espera-se que tal aumento produza um crescimento da temperatura global média entre 1,9 e 3,8º C, o que desencadeará diversos eventos capazes de alterar o mundo, inclusive o desaparecimento da maioria das geleiras restantes, a inundação de ilhas rasas e cidades litorâneas e o derretimento da calota de gelo do Ártico. Mas isso é só metade da história…

Os oceanos cobrem 70% da superfície terrestre… Só em 2014, os oceanos absorveram 2,5 bilhões de toneladas de carbono. (…) A acidificação dos oceanos desempenhou um papel em pelo menos duas das Cinco Grandes Extinções (no fim do Permiano e no fim do Triássico) e é bem possível que tenha sido um dos fatores primordiais numa terceira (o fim do Cretáceo). Por que a acidificação dos oceanos é tão perigosa? Dependendo da firmeza com que os organismos são capazes de regular suas químicas internas, a acidificação pode afetar processos básicos como o metabolismo, a atividade enzimática e a função proteica. Como a acidez maior muda a composição das comunidades microbiológicas, ela vai alterar a disponibilidade de nutrientes essenciais…

Cerca de um terço do CO2 que os seres humanos já lançaram no ar foi absorvido pelos oceanos. Isso alcança espantosos 150 bilhões de toneladas. No entanto, como é o caso da maior parte das características do Antropoceno, não se trata apenas da quantidade, mas também da velocidade com que isso ocorre. Uma comparação útil (embora imperfeita) pode ser feita com o álcool. Assim como é bem diferente para o seu sangue se você consumir 6 latas de cerveja em uma hora ou em um mês, para a química marinha faz uma enorme diferença se o dióxido de carbono é acrescentado ao longo de milhões de anos ou numa centena. Para os oceanos, assim como para o fígado humano, essa proporção é importante…” (KOLBERT, 2015, p. 122 – 132)



 

A nova época geológica em que agora estamos foi batizada de Antropoceno por Paul Crutzen, “químico holandês que compartilhou o Prêmio Nobel pela descoberta dos efeitos das substâncias depletivas de ozônio (ODS). A importância dessa descoberta não é um exagero. Se ela não tivesse ocorrido – e se continuássemos utilizando os produtos químicos com a mesma difusão – o ‘buraco’ na camada de ozônio que se abre todas as primaveras sobre a Antártida teria se expandido até circundar toda a Terra.” (KOLBERT, p. 116)

A revista Piseagrama publicou a tradução artigo de 2000 de Crutzen, em parceria com Eugene Stoermer, texto que é uma espécie de Marco Zero da proposta, hoje vastamente aceita e disseminada, de que o planeta entrou em uma nova era em virtude da ação conjunta da espécie humana. O embarque da espaçonave Terra na era do Antropoceno está diretamente vinculada com a ação conjugada dos mais de 7 bilhões de seres humanos, em especial dos países ditos “ricos” e suas escolhas econômicas tresloucadas, pois altamente poluentes e insustentáveis:

“Em poucas gerações, a humanidade está exaurindo os combustíveis fósseis que foram gerados ao longo de centenas de milhões de anos. (…) A atividade humana aumentou a taxa de extinção de espécies entre mil e dez mil vezes nas florestas tropicais, e vários gases estufa importantes em termos climáticos aumentaram substancialmente na atmosfera: o CO2 aumentou mais que 30% e o CH4 mais de 100%. (…) Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual. Os impactos das atividades humanas vão continuar por longos períodos. Segundo um estudo de Berger e Loutre, devido às emissões de CO2 antropogênicas, o clima pode se afastar significativamente de seu comportamento natural ao longo dos próximos 50 000 anos.

(…) A não ser que ocorram grandes catástrofes como uma enorme erupção vulcânica, uma epidemia inesperada, uma guerra nuclear em larga escala, um impacto de asteroide, uma nova idade do gelo ou o contínuo saqueamento dos recursos da Terra por tecnologias ainda primitivas (os últimos quatro perigos podem, no entanto, ser prevenidos em uma noosfera em funcionamento), a humanidade vai continuar sendo uma importante força geológica por muitos milênios, talvez por milhões de anos. Uma das principais tarefas futuras dos homens será desenvolver uma estratégia mundialmente aceita que leve à sustentabilidade de ecossistemas contra estresses induzidos por humanos, e isso vai requerer pesquisa intensiva e aplicação inteligente do conhecimento até aqui adquirido na noosfera, mais conhecida como sociedade do conhecimento ou da informação. Uma tarefa empolgante, mas também difícil e assustadora, se coloca para a comunidade mundial de pesquisa e engenharia, para que lidere a humanidade em direção a um gerenciamento ambiental que seja global e sustentável.” (CRUTZEN; STOERMER – Leia na íntegra)

A noção assustadora de que a Humanidade possa ser extinta por completo em decorrência dos próprios processos geofísicos que ela desencadeou reativa-se com cada vez maior frequência.  Os jornais se enchem de notícias sobre mega-furacões devastadores, como o Katrina que golpeou o Golfo do México em 2005, e catástrofes de vazamento de petróleo ou de rejeitos de mineração, como a hecatombe que devastou o Rio Doce nos estados brasileiros de Minas Gerais e Espírito Santo em novembro de 2015. Diante de um cenário tão alarmante, fantasias apocalípticas e distópicas marcam cada vez mais a produção artística contemporânea. Na sala de cinema, a destruição do planeta ou de toda a teia-da-vida que nele existe foram temas de impressionantes obras recentes como o Melancholia de Lars Von Trier e Expresso do Amanhã (Snowpiercer) de Joon-Ho Bong.

Com Cuvier e os fósseis de mastodonte, desperta enfim na Humanidade a noção de que ocorrem de fato na história da vida no planeta a extinção de espécies – as “espèces perdues”. Com Cuvier – celebrado por autores da época como Balzac – intensifica-se o interesse por pesquisar as causas para os cataclismos e catástrofes que pudessem explicar os períodos críticos, na história do planeta, onde ocorrem as grandes extinções em massa.


“Cuvier insinuou que conhecia a força motriz por trás da extinção, quiçá seu mecanismo exato”, escreve Kolbert. “Haviam sido todos extintos por algum tipo de catástrofe… Nem mesmo os eventos mais devastadores conhecidos no mundo contemporâneo – erupções vulcânicas, digamos, ou incêndios florestais – eram suficientes para explicar a extinção… Portanto, as mudanças que causaram as extinções deviam ter atingido magnitudes muito maiores – tão imensas que os animais não tinham sido capazes de se adaptar a elas. O fato de tais eventos tão extremos nunca terem sido observados por Cuvier ou qualquer outro naturalista era outra indicação da mutabilidade da natureza: no passado, ela operara de modo diferente – mais intenso e mais selvagem – do atual. (…) Cuvier observou que muitos mitos e textos antigos, incluindo o Antigo Testamento, aludiam a algum tipo de crise – em geral, um dilúvio – que precedeu a ordem atual.” (KOLBERT, p. 55)

Um dos méritos maiores do livro de Kolbert está em destacar o ineditismo da situação atual: o processo que estamos vivenciando, a Sexta Extinção, é a primeira em que uma espécie animal (o homo sapiens) é o agente cataclísmico que causa a gigantesca queda de biodiversidade hoje em curso e em processo de aceleração. Nunca antes na história desse planeta houve um animal que pudesse colocar em risco a Vida como um todo. No Antropoceno, o asteróide somos nós mesmos. O piloto tresloucado deste sistema suicida é o capitalismo globalizado e a desregulação dos mercados propugnada pelo neoliberalismo – este que, se houver alguém vivo para contar esta história daqui uns séculos, será reconhecido como a Ideologia do Apocalipse Sócio-ambiental.

O mais alarmante de tudo talvez seja o abismo gigantesco entre o conhecimento científico que já possuímos sobre o estrago que a Humanidade vem causando ao planeta, por um lado, e as miúdas e insuficientes ações sócio-políticas concretas que estamos realizando no sentido de pelo menos amenizar os impactos catastróficos que já causamos e as tragédias futuras e iminentes que já não podemos evitar. Nada parece minimamente suficiente para que a Humanidade acorde de seu torpor e sua apatia a tempo de salvar-se do cataclismo que ela tornou-se.



Nem os clamores do Papa Francisco, nem os livros brilhantes de Naomi Klein, nem os encontros internacionais como a Rio 92 e a Rio +20, nem os acordos como o Protocolo de Kyoto ou o Pacto de Paris (COP 21), tem o poder para impor uma mudança de rumos e paradigmas. Para evitar a catástrofe completa, seria preciso não queimar a imensa maioria das reservas de combustíveis fósseis que temos no planeta. Pisando no acelerador de um mecanismo suicida e causador de extinção em massa, boa parte daqueles que hoje tem o poder político de decisão (Donald Trumps e outros retardados similares) hoje tomam a decisão escrota e babaca de colocar vendas sobre os próprios olhos. Vendas compostas por notas de 100 dólares… Seguindo adiante com o projeto capitalista, extrativista, crescimentista, baseado no delírio nefasto de que é possível o crescimento contínuo de capital no seio de um mundo finito e onde em breve teremos 9 milhões de estômagos para alimentar e saciar, vamos com tudo na direção do Antropocalipse.

A loucura hoje hegemônica e dominadora, o capitalismo neoliberal ecocida, praticante impune das piores hecatombes sócio-ambientais, conduz os mais pessimistas de nós a pensar que o deus Capital é aquele tipo de divindade cultuada pelo tipo de estrutura orgânica que se auto-destrói e lega ao futuro apenas o exemplo grotesco de sua própria estupidez suicida. Ao invés de acordar para a necessidade de escolha entre uma nova alternativa – parafraseando Rosa Luxembrugo, a alternativa é: ecossocialismo ou barbárie! – seguimos em larga medida adotando a técnica do avestruz: escondemos nossas cabeças na areia para não enxergar o tamanho da encrenca em que nos metemos. Mas isso não tem como durar muito tempo: os miolos dos avestruzes logo serão torrados pelo calor escaldante de um planeta em chamas.

Raj Patel, author of Stuffed and Starved and The Value of Nothing

Em seus livros altamente relevantes, o ativista e pesquisador Raj Patel também nos fornece um quadro estarrecedor de um sistema econômico que está em guerra contra o mundo natural – “se vencermos”, como diria Hubert Reeves, “estamos perdidos”. Este é o tipo de Guerra Mundial – como a apelidou o filósofo Michel Serres em sua obra homônima – que não deixa de evocar um velho lema pacifista: ninguém vencerá esta guerra, só haverá perdedores. Em O Valor de Nada, Patel busca demolir os mitos da doutrina neoliberal e escreve que

“A Sociedade de Mercado está incrustada no mundo natural, coisa que o mito do mercado autorregulado também procura negar. A civilização humana depende da ecologia da Terra, embora a estejamos explorando até sua morte – segundo algumas estimativas, a atividade humana aumentou a taxa de extinção de outras espécies em cerca de 1000 vezes (Cf. Millenium Ecosystem Assessment). No cercamento implacável do mundo natural, destruímos nosso planeta e, caso os sussurros ouvidos entre cientistas do clima devam ser levados a sério, talvez já seja tarde demais para fazer alguma coisa. A eterna busca por crescimento econômico transformou a humanidade num agente de extinção, por meio da contínua desvalorização dos serviços ecossistêmicos que mantêm nossa Terra viva.” (PATEL, Ed. Zahar, 2009, p. 25)

Não faltarão os milhões que buscarão refúgio nas igrejas, que constituirão rebanhos de fiéis desejosos de salvar suas almas do Apocalipse e que adotarão a tática perfeitamente inútil de rezar – o que é o contrário de agir. Não faltarão também aqueles que estarão mobilizados, nas ruas, nas redes, nas barricadas, buscando a somatória de forças coletivas em prol de um outro mundo possível – como temos exemplos nos Fóruns Sociais Mundiais e em eventos impressionantes como a People’s Climate March de 2014.

O livro de Kolbert, se é assustador, também é salutar. Eles nos sacode do torpor e nos diz claramente que “a extinção em curso tem sua própria causa original – não é um asteróide ou uma erupção vulcânica maciça, mas uma ‘espécie daninha’.” (p. 276) A maioria de nós não gosta de pensar sobre a Humanidade nestes termos: faz parte do narcisismo de todo indivíduo a estratégia de manutenção da auto-estima que consiste em acreditar-se pertencente a algo de muito maravilhoso, a Humanidade, ápice da Evolução, senhora da Natureza, cume do orgânico. Às Três Feridas Narcísicas de Freud teremos que adicionar uma quarta: no Antropoceno, a Humanidade vai precisar a se acostumar com a noção de que estamos sendo, neste planeta, uma “espécie daninha” e um agente de extinção da biodiversidade que nos assemelha a um cataclismo.

Segundo o antropólogo Richard Leakey, “o homo sapiens pode ser não apenas o agente da Sexta Extinção, mas corre o risco de ser uma de suas vítimas” (p. 278). É o que sintetiza de forma brilhante o ecologista Paul Ehrlich, em uma frase que está no Salão da Biodiversidade em Stanford:

AO PRESSIONAR OUTRAS ESPÉCIES PARA A EXTINÇÃO, A HUMANIDADE ESTÁ SERRANDO O GALHO SOBRE O QUAL ESTÁ SENTADA.

 

Eduardo Carli de Moraes – A Casa de Vidro
Goiânia, 18 de Outubro de 2017

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VÍDEOS

“Out of the Wreckage – A New Politics for an Age of Crisis” by George Monbiot

Acaba de ser lançado o novo livro de George Monbiot – click e saiba mais

Neoliberalism, Climate Change, Migration:
George Monbiot in conversation with Verso Books

A CASA DE VIDRO LIVRARIA: Clastres, Bazin, Zola, Monbiot, Corção

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“Arqueologia da Violência – Pesquisas de Antropologia Política
de Pierre Clastres (1934 – 1977) – Ed. Cosac Naify, 2004, 380 pgs.

Prefácio de Bento Prado Jr e posfácio de Eduardo Viveiros de Castro. Capa dura. Reunião de 12 artigos de Pierre Clastres, autor do clássico “A Sociedade Contra o Estado”. Em “Arqueologia da Violência”, o autor renova a antropologia política, reformulando a ideia de dominação nas sociedades chamadas primitivas e realizando uma crítica incisiva à violência na sociedade ocidental. O autor define etnocídio, critica a antropologia marxista, antecipa a denúncia do massacre dos Yanomami na Amazônia e retoma a discussão sobre a origem do poder nas sociedades indígenas da América do Sul. O autor evoca relatos de viagem, a mitologia americana, Freud, Hobbes e Rousseau. Saiba mais em A Casa de Vidro. COMPRAR.


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“ORSON WELLES”, um livro de André Bazin
(Ed. Jorge Zahar, 2005)

“Orson Welles” (Jorge Zahar, 2005) é o célebre ensaio do crítico de cinema André Bazin sobre a obra e a trajetória de um dos maiores gênios da cinematografia mundial. O livro –que faz parte da coleção Cahiers de Cinema– foi escrito originalmente em 1950, quatro anos depois do lançamento de “Cidadão Kane”. Bazin faz aqui uma brilhante defesa do cineasta, acusado de esbanjar orçamentos milionários sem resultados e realizar filmes incompreensíveis. Tornou-se célebre a sua interpretação do sentido da profundidade de campo adotado por Welles em “Cidadão Kane”. Interpretando a obra de Welles a partir do cruzamento com as artes plásticas, a música, a história e a filosofia, Bazin revela aqui aspectos dos seus filmes até então ignorados pelo público e pela própria indústria cinematográfica. COMPRAR.


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“A Besta Humana”
de Émile Zola (Capa dura, ilustrado, Ed. Zahar)

Livro novo, em perfeito estado, capa dura, com cerca de 20 ilustrações de época. Tradução de Jorge Bastos. O romance “A Besta Humana”, de Zola, passa-se na França, em 1870. Atormentado pelo desejo de matar as mulheres por quem se sente atraído, o maquinista Jacques Lantier se refugia no comando de sua possante locomotiva a vapor com que periodicamente cruza a linha Paris – Le Havre. Os trilhos fazem com que seu destino se cruze com o da bela e cruel Séverine – e determinam as vidas de todos os personagens. Grande mestre do naturalismo francês, Émile Zola nos põe em contato direto com a marca da maldade que existe em cada um de nós. Este impactante romance tem como complemento ilustrações, cronologia e apresentação. 368 pgs. COMPRAR.


monbiot

A Era do Consenso – Manifesto para uma Nova Ordem Mundial
George Monbiot

Neste livro, Monbiot busca elucidar uma utopia internacionalista de revolução democrática que possa iluminar e guiar os movimentos de justiça global (também conhecidos como antiglobalização, anticapitalistas, altermundialsitas etc). O autor busca descrever “um mundo norteado precisamente pelo princípio segundo o qual os poderosos alegam governar: o princípio da democracia. É uma tentativa de substituir a Era da Coerção pela Era do Consenso. Apresento neste manifesto uma série de propostas que deixarão horrorizadas as pessoas de bem.” (Prólogo do autor) O livro delineia os detalhes concretos de uma sociedade global dirigida pelo povo e para o povo, que incluiria um parlamento mundial eleito democraticamente, uma Organização do Comércio Justo, e uma revolucionada ONU. 277 pgs. COMPRAR.


corcao

“Lições de Abismo”
Gustavo Corção (Ed. Agir, 2004, Ilustrado)

Livro novo, em perfeito estado, 238 pgs. Denso e profundo, este romance é o diário final de um homem que se descobre com leucemia. O médico lhe diz que terá três ou quatro meses de vida.Mergulhado na memória, avalia o sentido da vida. Os escritos, de lucidez crescente, são reflexões sobre a alma, a verdade, o absoluto, o amor, a frivolidade, o ciúme. Premiado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1954, “Lições de Abismo” tem traduções em inglês, italiano, holandês, polonês, alemão e francês. Esta edição está enriquecida por ilustrações do artista Oswaldo Goeldi (1895-1961). Sobre Corção, disse Oswald de Andrade: “Uma extraordinária e lúdica natureza de criador. Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro.” COMPRAR.


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O CLAMOR DA TERRA – REFLEXÕES SOBRE O PRODIGIOSO PAPA ANTI-CAPITALISTA (Comentário crítico da encíclica “Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum”)

“A terra, nossa casa comum, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.”
Papa Francisco, 
Encíclica Laudato Si, #21

Uma imagem polêmica circulou o mundo e “viralizou” na Internet em Julho de 2015 (veja acima): nela, o Papa Francisco, em visita à Bolívia, recebe do presidente Evo Morales um curioso artefato, mescla da cruz cristã com o supremo símbolo comunista, a foice-e-martelo. Vale lembrar, diante da desinformação que circula por aí, que a foice-e-martelo não é um instrumento de tortura, como alguns acéfalos ideólogos da Direita anti-comunista dizem, mas significa  a união entre a classe trabalhadora, a foice representando o campesinato e o martelo servindo como símbolo proletariado, emblema incorporado à bandeira escarlate da URSS.

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Promulgada pelo governo de Evo Morales em 2012, como reportado pela Opera Mundi, a formidável Ley de Derechos de la Madre Tierra do Estado Plurinacional da Bolívia (click para ler na íntegra), é uma das mais importantes contribuições políticas da América Latina ao debate global sobre nosso futuro comum. Nesta era geológica nova em que nos encontramos, o Antropoceno, marcada pela crise em curso do aquecimento global e da vasta degradação socioambiental globalizada causadas pelos mais de 7 bilhões que hoje infestam o planeta, os bolivianos inseriram na constituição:

La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un destino común. (…) Para efectos de la protección y tutela de sus derechos, la Madre Tierra adopta el carácter de sujeto colectivo de interés público.” (Fonte) (Confira também: The Guardian, Al Jazeera)

Muita coragem e ímpeto de renovação ficam manifestam na atitude do líder espiritual supremo da Cristandade ao ousar uma aproximação com uma doutrina ética, política e jurídica que me parece digna de todo respeito e consideração: já consagrada nas legislações de várias nações latino-americanas – como Bolívia, Peru e Equador – aquilo que está sendo chamado de “ecologia dos Andes” afirma-se  devotada à salvaguarda de uma entidade conhecida como Pachamama, a “Mãe-Terra”, em homenagem ao mito ameríndio dos Incas.

"Tierra Madre Pacha Mama" - Graffiti

“Tierra Madre Pacha Mama” – Graffiti

A encíclica papal Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum  (Ed. Paulus/Loyola, SP, 2015), escrita na consciência plena da deterioração global do meio ambiente, comunica claramente a possibilidade de uma catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial nos últimos séculos. Francisco frisa de modo recorrente a necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade e também refere-se à Terra como uma espécie de divindade feminina – que tem lá suas similaridades com Pachamama ou Gaia – e que é descrita como

“nossa casa comum, que se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. (…) Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. (…) Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta: o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.” (#1 e #2)

Está em curso o esforço do Papa em questionar a “confiança irracional no progresso” (#19), pondo em dúvida a ideologia da tecnocracia hoje triunfante e que vê a natureza como algo a ser explorada, dominada, espoliada, em prol da modernização, da industrialização e dos fluxos de capitais e mercadorias através do globo. A encíclica faz parte de uma longa jornada de Jorge Bergoglio – nome de batismo do argentino hoje conhecido sob a alcunha de Francisco – em prol da conscientização social. Ele clama por uma “crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza”, com o “objetivo de tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece no mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.” (#19)

KillsDentre os livros já publicados sobre o engajamento político do Sumo Pontífice, um deles é explícito em apontar a postura “anti-capitalista” daquele que não tem poupado esforços para denunciar a “nova tirania” de um sistema econômico “assassino”: This Economy Kills: Pope Francis on Capitalism and Social Justice de Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi. Na encíclica, fica explícita a intervenção papal de crítica aos poderes que lançam à nossa casa comum os “poluentes atmosféricos” e “fumos da indústria” que “provocam milhões de mortes prematuras”; ele fustiga também os “fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral”; além das “centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis, altamente tóxicos e radioativos” (#20, 21).

Com sua incisiva crítica ao ecocídio globalizado produzido pelo capitalismo desenfreado, o argentino  deu muitos motivos para preocupações daquela facção mais conservadora da Igreja Católica que jamais admitiria uma aproximação ideológica entre Vaticano e a esquerda socialista. Por essas e outras, o Papa tem sido acusado por muitos por sua diabólica postura marxista, inclusive pelo crime de ter sido recebido com clamor popular em Cuba. Por essas e outras, este Papa é um prodígio da Cristandade sem precedentes nas últimas décadas, o que fica ainda mais claro quando lemos sua encíclica “ecológica”, de profundas reverberações anti-capitalistas: Laudato Si – Sobre o Cuidado Da Casa Comum, que aqui pretendemos esmiuçar, comentar e criticar.

Cuba

Alçado ao cargo de Sumo Pontífice após a renúncia do alemão Ratzinger (Bento XVI) em 2013, Bergoglio adotou sua nova alcunha em homenagem a  São Francisco de Assis (1182 – 1226) e cometeu desde então toda uma série de atos e falas estarrecedoras em seu compromisso de preferir os pobres, defender os oprimidos e pregar uma verdadeira revolução cultural em prol da sustentabilidade socioambiental. O Papa Chico ousou inovar. Sua visita à Bolívia deixou isto explícito e demonstrou, na prática, que a Igreja Católica não é exatamente um sólido monolito, incapaz de mudança e inovação, esclerosado em dogmas mofados.

Não era mera diplomacia, para o Papa Chico, aceitar o presente curioso da cruz-comunista, doado pelo presidente boliviano Evo Morales, o primeiro presidente latino-americano de raízes indígenas a ser eleito democraticamente para o cargo executivo supremo de uma república. O pensamento ecológico-político de que Evo Morales é um dos mais célebres representantes está muito presente na encíclica papal Laudato Si.

Quem tiver o cuidado de lê-la com atenção encontrará uma notável reverência de Francisco pelas conclusões dos bispos da Bolívia, citados e louvados pelo Papa argentino por terem afirmado: “Os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa de uma enorme emissão de gases com efeito estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram.” (#170)

Emissions

Emissões de CO2 por país (via Wikipédia)

Este é um dos fatos mais extraordinários, revelados com clareza pela encíclica de Papa Chico: não somente ele está plenamente consciente da degradação socioambiental que vivemos e do tempestuoso futuro climático de nosso planeta, como também está antenado com a vanguarda do movimento ecosocialista, que frisa a questão das responsabilidades diferenciais que decorrem dos diferentes graus de “culpa” na determinação da catástrofe ecológica que vivenciamos.

Ou seja, os países que mais poluíram a atmosfera e que mais determinantes foram para a condição – em constante agravamento – do efeito estufa, agora devem também ser os países que mais arquem com os custos da transição energética rumo às energias renováveis. Os países que foram mais criminosos em sua relação com o meio-ambiente (EUA e China no topo da lista) também teriam de ser aqueles mais responsabilizados para prestar os auxílios humanitários aos atingidos pelas catástrofes que já não podemos evitar.

No aforismo #161 da encíclica, o Papa diz:

“As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio atual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.”

 Teses similares podem ser encontradas na obra de alguns dos pesquisadores, ecoativistas, jornalistas e acadêmicos que devotaram-se à compreensão sobre as mudanças climáticas e a degradação socioambiental global, como Naomi Klein, George Monbiot, Bill McKibben, Naomi Oreskes, dentre tantos outros. Outras lideranças políticas, como o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, também falaram em tom bastante semelhante ao do Papa Francisco sobre a insustentabilidade do modo-de-produção-e-consumo hoje vigente, clamando por valores éticos como a temperança e a frugalidade.

A encíclica não poupa pregação contra “a busca egoísta da satisfação imediata”, o “consumo excessivo e míope”, apontando que a deterioração ecológica é resultado de uma crise que é tanto ética-cultural quanto sócio-política: “Esta falta de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de ampliar o horizonte das nossas preocupações e pensar naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento.” (#162)

Um dos filósofos-da-ética mais importantes do século XX, Hans Jonas, também destacava a necessidade urgente de formularmos uma ética que leve em conta não apenas nossas relações interpessoais presentes, mas também o mundo que será legado aos que ainda não nasceram, de modo a somar aos direitos humanos uma espécie de cláusula aditiva que consagra os direitos dos viventes-ainda-por-nascer: os que um dia viverão também têm direito a uma vida digna e isto é nossa responsa, aqui-e-agora. Diante do capitalismo atual, para julgá-lo com lucidez e numa apreciação justa de seu real valor, precisamos também avaliar: que tipo de casa comum será legada às gerações do futuro por nossas ações, aqui e agora?

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Não é Che Guevara nem Lula quem disse as próximas palavras de exortação à uma “opção preferencial pelos mais pobres”: “Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres.” (#158)

Por essa não esperávamos: no momento histórico em que a Igreja Católica via-se chafurdando na lama de um escândalo global envolvendo a prática epidêmica de pedofilia por parte dos padres, após o fato inédito de uma renúncia como a de Bento XVI (há várias gerações um Papa não “jogava a toalha”, admitindo que não dá conta do recado!), o novo pontífice supremo da Cristandade não só surge como antenadíssimo às mais importantes lutas sociais de raiz – conhecidas em inglês como grassroots activism – mas mais do que isso: re-aproxima Roma da América Latina, já que flerta abertamente com Pachamama e com a Teologia da Libertação!

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Papa Chico defende os direitos indígenas ao criticar os grandes projetos que avançam sobre territórios que são vistos pelos habitantes “não como um bem econômico”, mas sim como uma terra que é “espaço sagrado” onde “descansam os antepassados” e “com a qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.” (#146)

Talvez ele concordasse comigo que os Krenak são gestores da natureza muito mais conscientes e responsáveis do que a corporação Samarco/Vale/BHP, que logrou assassinar o Rio Doce e contaminar todo um ecossistema, como vimos na pior catástrofe socioambiental já ocorrida no Brasil.

O Papa Chico sabe também que há “áreas rurais aonde não chegam os serviços essenciais” e “há trabalhadores reduzidos a situações de escravidão.” (#154) Diante deste quadro catastrófico, ele ousa explicar, no capítulo III da encíclica, qual a “raiz humana da crise ecológica”. Sua acusação recai, de modo bastante similar à argumentação de Fritjof Capra em O Ponto de Mutação, no paradigma do capitalismo tecnocrático dominante, que impõe uma “cultura consumista corrompida”, que consagra a lógica do descarte e acarreta lixo em excesso, aferrando-se ademais às fontes de energia fósseis, não-renováveis (petróleo, carvão e gás natural), ignorando todos os limites na busca egoísta do gozo de curto prazo. O mito do crescimento econômico infinito é desmascarado como ilusão perniciosa:

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“Daqui passa-se facilmente à idéia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isso supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a ‘espremê-lo’ até ao limite e para além deste. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (…) Temos um superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora, mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos.” (#106, #110)

Na era da biotecnologia, do DNA, da informática, das redes sociais digitais, dos foguetes e satélites, Papa Chico mostra-se estarrecido com o nosso “poder tremendo” – apesar de não batizar, como fazem boa parte dos geólogos e antropólogos atualmente, nossa era de Antropoceno. Critica incisivamente a “cultura do descarte”: “o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e escórias. Ainda não conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os.” (#22)

Quanto ao “preocupante aquecimento do sistema climático”, “acompanhado de uma elevação constante do nível do mar”, o Papa é digno o bastante para frisar a responsabilidade humana na gênese do problema e de clamar, como tantos cientistas atuais, pelo fim da era dos combustíveis fósseis: “a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases de efeito estufa emitido sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isso é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial.” (#23)

As consequências concretas do aquecimento global incidem “sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. (…) A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades está situada em áreas costeiras.” (#24)

Matéria do jornal inglês The Guardian realiza previsões sobre a elevação constante do nível do mar causada pelo aquecimento da temperatura global: "mesmo que consiga-se limitar o aumento de calor a 2 graus Celsius, ainda assim 20% da população global seria obrigada a migrar e mega-cidades seriam submersas, incluindo

Parenti-Tropic-ofUma matéria do jornal inglês The Guardian contêm preocupantes previsões sobre a elevação do nível do mar causada pelo aquecimento da temperatura global: mesmo que consiga-se limitar o aumento de calor a 2 graus Celsius, ainda assim 20% da população global seria obrigada a migrar e mega-cidades litorâneas seriam submersas, incluindo Nova York, Londres, Rio de Janeiro, Cairo, Calcutá e Xangai.

Na encíclica, Francisco também se mostra intensamente ciente de que o futuro humano será marcado por uma ascensão espetacular dos refugiados climáticos (tema de livros como Tropic of Chaos – Climate Change and the new geography of violence, de Christian ParentiClimate Wars: What People Will Be Killed For in the 21st Century, de Harald Welzer):

 “É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante essas tragédias que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante desses dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.” (#25)

Extraordinário é o teor anti-quietista pró-ativista que Papa Francisco insufla à sua encíclica: não há nenhum sinal do deplorável discurso de muitas autoridades religiosas que pregam, como única solução, a oração… Tanto as causas quanto as soluções estão no âmbito humano e “não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental”, escreve Francisco, se não reconhecermos o fato de que “a deterioração do meio ambiente e da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta” e que “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (#48).

Como exemplo do quanto a encíclica está próxima do pensamento eco-político mais contemporâneo, cito um trecho do artigo de Rebecca Solnit:

“A mudança climática é antropogênica – causada por humanos, alguns mais que outros. Nós sabemos as consequências dessas mudanças: a acidificação dos oceanos e o declínio da maioria das espécies que vivem neles, o lento desaparecimento de ilhas-nações, como é o caso das Maldivas, o aumento de inundações, secas, a quebra na produção agrícola, o que leva ao aumento do preço dos alimentos e à fome, aumento da instabilidade climática. (É só pensar no furacão Sandy e no recente tufão nas Filipinas. Nas ondas de calor que mataram idosos aos milhares). Mudança climática é violência. Portanto, se nós queremos conversar sobre violência e mudanças climáticas – e nós estamos falando sobre isso, depois do informativo aterrador da última semana, vindo dos melhores cientistas climáticos do mundo – então vamos falar sobre mudanças climáticas como violência. Ao invés de nos preocuparmos se os homens e mulheres comuns vão reagir com turbulência à destruição de seus meios de sobrevivência, vamos nos preocupar com essa destruição – e com a sobrevivência. Obviamente a escassez de água, as péssimas colheitas, inundações, entre outras coisas, vão desencadear migrações em massa e refugiados climáticos – eles já existem – e isso vai gerar conflitos. Esses conflitos estão entrando em ação, agora.” (SOLNIT, publicado em A Casa de Vidro, trad. Josemar Vidal Jr)

No contundente capítulo da encíclica intitulado Desigualdade Planetária, não faltam exemplos deste verdadeiro massacre dos pobres que está em curso:

“a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres e nos conflitos gerados pela falta de recursos” (#48).

A natureza anti-capitalista da encíclica se exacerba quando a desigualdade planetária é mencionada:

“uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre. (…) O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos nos rendimentos das cultivações.” (#51)

Planeta Sustentável

EcocidioA conexão entre ecocídio e corporações capitalistas multinacionais também não escapa à análise apresentada pela encíclica, que denuncia “os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento”.

Francisco ergue um dedo acusador contra a “atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital”, de modo que os bispos da Patagônia, na Argentina, expressaram em sua Mensaje de Navidad (2009):

“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar.”

Diante de tal cenário catastrófico, em que o interesse financeiro e o poderio capitalista prevalece sobre o bem comum e os direitos da natureza, a encíclica não é somente a evidência de uma revolucionária “virada ecológica” da Igreja Católica, é também o momento para uma inédita aposta no ativismo social: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.” (#50, grifo meu)

De modo que Papa Francisco aproxima-se bastante da mensagem de todos aqueles movimentos sociais, coletivos de ativismo e fóruns participativos que nos últimos anos estiveram engajados na discussão sobre “um outro mundo possível”, mote do Fórum Social Mundial.

Apesar de um certo apego ao tradicionalismo católico – pois a noção patriarcal-machista de um Deus-Pai, a centralidade da família monogâmica heterossexual, a crítica inflexível de qualquer interrupção da gravidez prosseguem marcando o discurso papal – é notável a aproximação que Francisco realiza com o grassroots activism, com a Teologia da Libertação, com o “levante de Pachamama” nos Andes, com todas as forças contra-hegemônicas que questionam a globalização hegemônica, teorizada pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos: 

Deus

GLOBALIZAÇÃO HEGEMÔNICA & CONTRA-HEGEMÔNICA

A globalização hegemônica é a nova fase do capitalismo global, constituída pela primazia do princípio do mercado, liberalização do comércio, privatização da economia, desregulação do capital financeiro, precariedade das relações de trabalho, degradação da proteção social, exploração irresponsável dos recursos naturais, especulação com produtos alimentares, mercantilização global da vida social e política. A globalização hegemônica tem ao seu serviço uma institucionalidade diversificada e muito poderosa, dos Estados centrais à União Européia, do Banco Mundial ao Fundo Monetário Internacional, das grandes empresas multinacionais à Organização Mundial do Comércio. 

Por outro lado, a globalização contra-hegemônica, ou globalização a partir de baixo,  engloba os movimentos sociais e organização não governamentais (ONGs) que, por meio de articulações locais, nacionais e transnacionais, lutam contra o capitalismo e a opressão colonialista, a desigualdade social e a discriminação, a destruição ambiental e de modos de vida decorrente da voracidade da extração dos recursos naturais, a imposição das normais culturais ocidentais e a destruição das não ocidentais causada ou agravada pela globalização hegemônica.

A globalização contra-hegemônica consiste em articulações transnacionais entre movimentos sociais e ONGs, sejam elas o Fórum Social Mundial, a Assembleia Geral dos Movimentos Sociais, a Cúpula dos Povos, a Via Campesina, a Marcha Mundial das Mulheres, o Movimento Indígena Mundial, em conjunto com redes transnacionais de advocacia sobre temas específicos de resistência à globalização hegemônica. A contra-hegemonia resulta de um trabalho organizado de mobilização intelectual e política contra a corrente, destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos credíveis da vida social.” (BOAVENTURA SOUSA SANTOS, p. 32-33)

 Acredito – “piamente”? – que Papa Chico tem sim agido como interventor social e cultural de teor contra-hegemônico, manifestando assim uma compreensão lúcida e profunda da figura histórica de Jesus, um cara que foi tão anti-establishment que Roma mandou-lhe crucificar feito um reles bandido quando ele só tinha 33. O poeta Paulo Leminski, na esplêndida biografia de Jesus que escreveu, argumenta que seu biografado merece estar no “time” dos revolucionários vinculados ao socialismo utópico. Evidentemente é um anacronismo, mas poeta tem direito a tudo – e que vivam livres as “licenças poéticas”! Para Leminski, Jesus foi sim um socialista que criticou as classes abastadas e em sermão célebre vaticinou que era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus… (LEIA: Quarteto Vital, de Paulo Leminski)

Papa Francisco reata com uma certa tradição do cristianismo primitivo, ao mesmo tempo que liga-se com o que há de mais vital e pulsante no atual movimento global de resistência à catástrofe ecológica e às mudanças climáticas antropogênicas, fenômeno que Naomi Klein propôs batizar de Blockadia e que analisa em minúcias em This Changes Everythingfilme e documentário.

O “emblema” da “nova era” na Igreja Católica parece-me ser o encontro de Bergoglio e Morales, curiosa aliança entre o Vaticano e os Andes, excêntrico sincretismo cultural que re-significou tudo o que pensávamos sobre o Papa e até mesmo sobre Deus: que virada realmente revolucionária caso a Cristandade modifique suas concepções religiosas para a de um Deus menos parecido com Jeová e mais afinado com Pachamama!

Para os mais dogmáticos ou suscetíveis, a cena que envolve o Papa e o presidente Morales pode até ter um cheiro insuportável de heresia: “isso não é”, dirão alguns católicos da velha guarda, grunhindo contra o pontífice, “nem jamais será um comportamento digno de um Papa! Andar por aí, segurando uma cruz subvertida, mas que blasfêmia! Sujar as mãos com um emblema-de-comunista! Bem sabemos (apesar de nada constar sobre isso nem nos Evangelhos nem nos livros de História e Antropologia) que esta cambada de comunistas não são somente canibais, como praticam seu canibalismo sobre criancinhas!”

 Ironias à parte, estou impressionado com a capacidade de Papa Francisco de confrontar aqueles setores mais reacionários e tradicionalistas desta “instituição” – a Igreja Católica Apostólica Romana – que com frequência, na história, fez-se cúmplice e co-responsável por atrocidades e horrores, tendo sido, em outras eras, operadora internacional de infâmias éticas e catástrofes humanitárias como a célebre “Santa Inquisição”, que impôs a morte-pelo-fogo a tão incontáveis quantidades de pessoas previamente estigmatizadas como hereges, ateus, pecadores, bruxas, pagãos, feiticeiras etc.

Mais recentemente, a Igreja Católica também viu-se em meio ao escândalo global envolvendo o abuso sexual de crianças perpetrado por seus clérigos. O declínio parecia não ter fim e a renúncia de Ratzinger parecia com alguma espécie estranha de emblema da decadência e do caos. E justamente aí ocorreu essa guinada à esquerda, que trouxe uma certa versão da Teologia da Libertação para o centro polêmico do debate da Cristandade.

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Capitalismo em questão: o império das marcas e multinacionais, antes de ser tema da encíclica papal, foi foco de livros como “No Logo” de Naomi Klein

As próximas palavras, do capítulo #195 da encíclica Laudato Si, são emblemáticas deste prodígio que é um papa anticapitalista, capaz de articular uma crítica à doutrina neo-liberal e seu funcionamento na base de benefícios privados prejuízos públicos:

“O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceptual da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se a derrubada de uma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou aumentar a poluição. Em outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e pagando uma parte ínfima dos custos.” (#195)

O Papa não prega que oremos, ele quer sim é educação que forme para a “cidadania ecológica” e uma revolução cultural que “dê forma a um estilo de vida” baseado na “responsabilidade ambiental” (#123). Para este fim, é evidente, a ética é essencial, sendo que a encíclica é um tratado de ética, de cabo a rabo, que dialoga inclusive com muitas das ideias de Hans Jonas, autor de um dos clássicos tratados da ética no século XX – O Princípio ResponsabilidadeFrancisco afirma sem pestanejar que o atual sistema capitalista hegemônico globalmente é insustentável e só pode nos conduzir ao esgotamento e à catástrofe. Nossa era demanda uma urgente mudança de rumos.

Em 2000, em Haia, na Carta da Terra, a exortação de Bergoglio clama por um “novo início”: “Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início. Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência adiante da vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida.” (#207)

Não estamos diante de um “profeta do Apocalipse” e nem há nenhum teor, na fala de Francisco, daquele odioso discurso que pretende transformar as catástrofes climáticas em “vinganças de um Deus enfurecido” – não, New Orleans não foi devastada pelo Furacão Katrina por causa dos pecados cometidos por seu habitantes, nem por ser uma nova Sodoma e Gomorra…

A fala de Francisco carrega mais doçura e ternura do que reprovação esbravejante. Decerto é alguém “atento ao futuro”, ou seja, alguém que está plantado no presente em condição de profundo engajamento com o porvir planetário. O Papa Francisco, diria até, integra o grupo de inteligências internacionais que, através de estudos prolongados e pesquisas empíricas cuidadosas, concluíram que existe sim razão para um “catastrofismo esclarecido”.

“Não pensemos só na possibilidade de terríveis fenômenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e de destruição recíproca.” (#204)

Enquanto pensador ético, Francisco insiste num estilo-de-vida que têm elementos do que Nietzsche chamava de “ideal ascético”, recomendando o controle dos impulsos e desejos, que conecta não somente ao pecado como também ao serviço satânico que prestamos às forças ecocidas do consumismo e do descartismo.

Em um livro polêmico, Pascal Bruckner fustigou a nova onda de “ascetismo verde”, aqueles que chamou de Fanáticos do Apocalipse. O escárnio supostamente libertário de Bruckner não me convence, e o compromisso “franciscano” com a sustentabilidade e a solidariedade intergeracional talvez seja mesmo uma das poucas “ideologias” capazes de evitar que sejamos compelidos à era das hecatombes climáticas de escala mega. “As previsões catastróficas”, diz a encíclica, “já não se podem olhar com desprezo e ironia” – e isso vale quase como uma refutação do livro de Bruckner.

Vejo, na encíclica, conexões possíveis do projeto social papal com a pedagogia do oprimido Paulo Freireana: Francisco clama por um “programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.” (#111)

O papa filosofa sobre a liberdade que se encontra “adoecida” em todos àqueles que “se entregam às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (#105). A ética apolínea e ascética preconizada por Chico propõe um “lúcido domínio de si”. Minha impressão é que não se tem necessidade de fé para fundar uma ética assim. Pepe Mujica e sua preconização do mérito pessoal e civilizacional vinculado às virtudes da moderação e da frugalidade parece-me uma encarnação laica e secular do que Papa Francisco representa no âmbito religioso.

No mundo cultural dos gregos havia a noção de que tragédias decorreriam sempre que não soubéssemos respeitar os limites. Aos excessos, de resultados trágicos e catastróficos, os gregos chamavam hýbris. Malditos eram todos os excessivos, todos aqueles que desrespeitavam um dos princípios básicos e sagrados, entronizado no Oráculo de Apolo em Delfos: “nada em demasia!”. As fúrias viriam assombrar e desgraçar todo aquele que fosse pego em flagrante delito de hýbris. A deusa Nêmesis não perdoa quem despreza os limites.

De certo modo, também sinto no Papa Francisco a presença, ainda que latente, de um senso trágico que compreende o quanto a desmesura / descontrole / deslimite causam como efeitos concretos muito palpáveis e catástrofes reais, dentre elas a tremenda degradação socioambiental que hoje vivenciamos.

Tenho minhas divergências, de natureza filosófica e teológica, com a noção de que estamos “em pecado” pois abusamos e desrespeitamos “os bens que Deus na Terra colocou“: não vejo porque o argumento em prol da sustentabilidade deveria enveredar por esta linha de dependência em relação à fé. Quando se diz que “a natureza deve ser preservada pois é obra de Deus“, o argumento tende a submeter as lutas ecológicas a uma prévia tomada de posição religiosa, um ato-de-fé sobre a proveniência divina daquilo que o ser humano parece tão engajado em destruir.

A proposta da encíclica é igualar “crime contra a natureza” e “pecado contra Deus”, algo que faz com que o argumento caia por terra para todos aqueles que não acreditam, por exemplo, no mito da Criação tal como o narra o livro do Gênesis. Mais inteligente e lúcido me parece Bergoglio quando aposta mais em um conceito “Pachamâmico” de interdependência, aproximando-se assim de cosmologias ameríndias e do web of life do Chief Seattle.

Porém, há vários “deslizes” de Papa Chico em um questionável teocentrismo: no aforismo #33, por exemplo, protestando contra a extinção de espécies causada pela humanidade, o Papa escreve: “por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência.”

Compartilho o lamento pela extinção da biodioversidade, mas não subscrevo o argumento de que a tragédia está na “destruição da obra de Deus” – prefiro falar, simplesmente, num atentado contra a teia-da-vida. Por que ateus e agnósticos, por que ativistas e políticos plenamente fiéis ao valor da laicidade, não poderiam ser entusiásticos ativistas da causa ambiental, mesmo na ausência da crença, tão duvidosa e dogmática, num planeta que supostamente foi criado pelas mãos de um Deus-Pai há 6.000 anos atrás?

À parte esta divergência de teor teológico, aplaudo o teor político e mobilizatório da intervenção de Francisco. Para a nossa geração, para nós-os-vivos-de-agora, é o próprio sentido de nossa passagem pela Terra que está agora em questão. O mundo que legaremos às próximas gerações está visceralmente conectado à questão, quiçá mais psicológica e simbólica, do sentido da vida (ou da descoberta de sua ausência ou inexistência):

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“Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que vai nos suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.” (#160)

Que a destruição do próprio sentido da existência da Humanidade possa estar diretamente atrelado à continuação do insustentável sistema global ecocida que hoje devasta o planeta é decerto uma das mais contundentes críticas apresentadas pela encíclica Laudato Si. O texto encontra-se atravessado por inteiro por um ethos de empatia pelo clamor da terra e pelo clamor dos pobres. Francisco não foge de tirar todas as consequências de sua teoria, tão próxima à dos ecossocialistas, tão alinhada à Teologia da Libertação, tão próxima à Pachamama andina, e acaba por claramente defender o fim do direito absoluto à propriedade privada:

“A terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. (…) O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma regra-de-ouro do comportamento social e o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’ (João Paulo II, Laborem exercens, 1981). A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. (…) A Igreja defende sim o direito legítimo à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social… Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos de uma parte da humanidade.” (#93)

Eu não chegaria a dizer, para escândalo de católicos ortodoxos, que Papa Francisco está sendo marxista, mas quem pode negar o forte conteúdo de luta de classes que marca presença na encíclica? Também nela, os maiores ecocidas, os piores poluidores, os causadores de catástrofes, têm classe e endereço.

Também é uma falácia dizer que todos os países têm a mesma responsabilidade – na verdade, são as ações de uma parcela da humanidade que está conduzindo o clima ao caos. Os países mais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa não poderiam legitimamente querer que os miseráveis da Índia ou de Bangladesh arcassem igualmente com os custos da crise. Quem mais destruiu o bem coletivo é que deve – justiça exige! – arcar com a maior parte dos custos, investindo na transição energética para os renováveis, pagando indenizações aos países prejudicados por catástrofes etc.

“O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existências aos outros. Por isso, na Statement on Environmental Issues  (2006), os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o mandamento ‘não matarás’, quando ‘uns 20% da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver’.” (#95)

O prodigioso papa anticapitalista já percebeu – com Naomi Klein, Rebecca Solnit, George Monbiot, Christian Parenti, dentre outros – que o clamor da terra e o clamor dos pobres integram um mesmo clamor. O que faremos diante deste clamor – ouvi-lo ou ignorá-lo; agir ou padecer; mobilizar simpatia ou adormecer na indiferença; abrir os olhos para enxergar ou fingir que não se vê… – é o que definirá o “sentido de nossa passagem” por este exuberante e biodiverso jardim terrestre onde tece-se, interminável, a teia da vital “interdependência”. “O espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras.” (#86)

Na reciprocidade provinda da percepção lúcida de nossa interdependência, co-laboremos contra as catástrofes acarretadas pelo capital, certos de que o vil metal das finanças nada vale diante da riqueza imensa, inestimável mas tão frágil, desta teia planetária de sociobiodiversidade hoje esgarçada e ameaçada por um Antropocalipse industrial motorizado.

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ALGUNS VÍDEOS SUGERIDOS:

Igreja dos Oprimidos – Documentário de Jorge Bodanzsky

Pachamama segundo o History Channel (dublado em português)

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ANEXO I

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Ley de Derechos de la Madre Tierra

do Estado Plurinacional da Bolívia

 La Madre Tierra tiene los siguientes derechos:
1. A la vida: Es el derecho al mantenimiento de la integridad de los sistemas de vida y los procesos naturales que los sustentan, así como las capacidades y condiciones para su regeneración.
2. A la diversidad de la vida: Es el derecho a la preservación de la diferenciación y la variedad de los seres que componen la Madre Tierra, sin ser alterados genéticamente ni modificados en su estructura de manera artificial, de tal forma que se amenace su existencia, funcionamiento y potencial futuro.
3. Al agua: Es el derecho a la preservación de la funcionalidad de los ciclos del agua, de su existencia en la cantidad y calidad necesarias para el sostenimiento de los sistemas de vida, y su protección frente a la contaminación para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
4. Al aire limpio: Es el derecho a la preservación de la calidad y composición del aire para el sostenimiento de los sistemas de vida y suprotección frente a la contaminación, para la reproducción de la vida de la Madre Tierra y todos sus componentes.
5. Al equilibroEs el derecho al mantenimiento o restauración de lainterrelación, interdependencia, complementariedad y funcionalidad de los componentes de la Madre Tierra, de forma equilibrada para la continuación desus ciclos y la reproducción de sus procesos vitales.
6. A la restauración: Es el derecho a la restauración oportuna y efectiva de los sistemas de vida afectados por las actividades humanas directa o indirectamente.
7. A vivir libre de contaminación: Es el derecho a la preservación de la Madre Tierra de contaminación de cualquiera de sus componentes, así como deresiduos tóxicos y radioactivos generados por las actividades humanas.

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ANEXO II – ARUNDHATI ROY

Pachamama!

Pachamama!

“If there is any hope for the world at all, it does not live in climate-change conference rooms or in cities with tall buildings. It lives low down on the ground, with its arms around the people who go to battle every day to protect their forests, their mountains and their rivers because they know that the forests, the mountains and the rivers protect them. The first step towards reimagining a world gone terribly wrong would be to stop the annihilation of those who have a different imagination—an imagination that is outside of capitalism as well as communism. An imagination which has an altogether different understanding of what constitutes happiness and fulfillment. To gain this philosophical space, it is necessary to concede some physical space for the survival of those who may look like the keepers of our past, but who may really be the guides to our future.”

—Arundhati Roy

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003 – PORTO ALEGRE
FALA DE ARUNDHATI ROY:

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Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 24/03/2016
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“A Impossibilidade do Crescimento” – por George Monbiot

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THE IMPOSSIBILITY OF GROWTH
Georges Monbiot / The Guardian UK
Tradução: Arlandson Matheus Oliveira

Imaginemos que em 3030 a.C. todas as posses da população do Egito ocupassem um metro cúbico. Suponhamos que essas posses crescessem 4,5% ao ano. Quão grandes elas estariam na Batalha de Ácio em 30 a.C.? Esse é o cálculo feito pelo investidor Jeremy Grantham.

Vá em frente, arrisque um palpite. Dez vezes o tamanho das grandes pirâmides? Toda a areia do Saara? O oceano Atlântico? O volume do planeta? Um pouco mais? 2,5 bilhões de bilhões de sistemas solares. Não demoraria muito, ponderando sobre esse resultado, para você chegar à posição paradoxal de que a salvação consiste no colapso.

Ter sucesso é destruir a nós mesmos. Falhar é destruir a nós mesmos. Esta é a armadilha que criamos. Ignore, se desejar, as mudanças climáticas, o colapso da biodiversidade, o esgotamento da água, do solo, dos minérios, do petróleo; mesmo se todos esses problemas miraculosamente desaparecessem, a matemática do crescimento composto torna impossível continuar.

O crescimento econômico é um artefato do uso de combustíveis fósseis. Antes de grandes quantidades de carvão mineral serem extraídas, cada aumento na produção industrial seria acompanhado de uma queda na produção agrícola, já que o carvão vegetal ou os cavalos-vapor demandados pela indústria reduziam as terras disponíveis para o cultivo de alimentos. Todas as revoluções industriais anteriores entraram em colapso, uma vez que o crescimento não podia ser mantido. Mas o carvão mineral quebrou esse ciclo e viabilizou – por algumas centenas de anos – o fenômeno que denominamos crescimento sustentado.

Não foi nem o capitalismo nem o comunismo que tornou possíveis os progressos e as patologias (guerra total, concentração sem precedentes de riqueza global, destruição planetária) da era moderna. Foi o carvão, seguido pelo petróleo e pelo gás. A meta-tendência, a narrativa-mãe, é a expansão movida a carbono. Nossas ideologias são meras subtramas. Agora que as reservas mais acessíveis foram exauridas, precisamos saquear os cantos mais recônditos do planeta para sustentar nossa proposição impossível.


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Na sexta-feira, poucos dias depois de cientistas anunciarem que o colapso do manto de gelo da costa leste da Antártida é agora inevitável, o governo equatoriano decidiu permitir a exploração de petróleo no coração do parque nacional Yasuni. Foi feita uma oferta aos demais governos: se estes dessem ao Equador metade do valor do petróleo contido naquela parte do parque, o país deixaria o petróleo no solo. Você pode ver isso como mercado negro ou como justo comércio. O Equador é pobre, suas reservas de petróleo são ricas. Por que, argumentou o governo, deveríamos deixá-las intocadas, sem compensação, quando todo mundo está perfurando até o círculo interior do inferno? O governo pediu 3,6 bilhões de dólares e recebeu 13 milhões. O resultado é que a Petroamazonas, uma empresa com um histórico colorido de destruição e vazamentos, agora entrará em um dos lugares com maior biodiversidade no planeta, no qual um hectare de floresta tropical contém mais espécies do que as existentes em todo o território norte-americano.

A empresa de petróleo britânica Soco espera penetrar no mais antigo parque nacional africano, Virunga, na República Democrática do Congo; um dos últimos redutos do gorila da montanha e da ocapi, dos chimpanzés e dos elefantes da floresta. Na Grã-Bretanha, onde depósitos contendo possivelmente 4,4 bilhões de barris de óleo de xisto foram identificados na região sudeste, o governo fantasia transformar os subúrbios arborizados em um novo delta do Níger. Com esse propósito, está alterando as leis de violação da propriedade privada para permitir a perfuração sem aprovação e oferecendo pródigos subornos à população local. Essas novas reservas nada resolvem. Elas não põem fim à nossa fome por recursos; exacerbam-na.

A trajetória do crescimento composto mostra que o esvaziamento (1) do planeta está apenas começando. À medida que o volume da economia global aumenta, qualquer lugar que encerre algo concentrado, raro, precioso, será vasculhado e explorado, seus recursos extraídos e dispersados, as diversas e diferenciadas maravilhas do mundo reduzidas ao mesmo restolho cinza.

Alguns tentam resolver essa equação impossível com o mito da desmaterialização: a alegação de que, à proporção que os processos se tornam mais eficientes e os aparelhos são miniaturizados, usamos, no conjunto, menos materiais. Mas não há nenhum sinal de que isso esteja acontecendo. A produção de minério de ferro subiu 180% em 10 anos. A Forest Industries nos diz que “o consumo global de papel alcançou um nível recorde e continuará a crescer”. Se, na era digital, não reduziremos sequer nosso consumo de papel, o que esperar das outras mercadorias?

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Veja a vida dos super-ricos, que definem o ritmo do consumo global. Seus iates estão ficando menores? Suas casas? Suas obras de arte? Acaso estão comprando menos madeiras raras, peixes raros, pedras raras? Aqueles que têm meios compram casas cada vez maiores para armazenar um crescente estoque de coisas que não viverão tempo bastante para usar. Por acréscimos que passam despercebidos, uma parte cada vez maior da superfície do planeta é usada para extrair, manufaturar e armazenar coisas de que não necessitamos. Talvez não surpreenda que fantasias sobre colonizar o espaço – que nos fazem crer que podemos exportar nossos problemas em vez de resolvê-los – tenham reaparecido.

Como o filósofo Michael Rowan assinalou, as inevitabilidades do crescimento composto significam que, se a taxa de crescimento global prevista para 2014 (3,1%) se mantiver, ainda que nós milagrosamente reduzíssemos em 90% nosso consumo de matérias-primas, adiaríamos o inevitável em apenas 75 anos. Eficiência não resolve nada, enquanto o crescimento prosseguir.

O inescapável fracasso de uma sociedade construída sobre o crescimento e sua destruição dos sistemas vivos da Terra são os fatos esmagadores de nossa existência. Por consequência, eles não são mencionados em praticamente nenhum lugar. São o grande tabu do século 21, os temas com garantia de afastar seus amigos e vizinhos. Vivemos como que presos em um suplemento de domingo: obcecados pela fama, pela moda e pelos três temas de conversação enfadonhos da classe média – receitas, reformas e resorts. Tudo, exceto o tópico que requer nossa atenção.

Declarações da sangria evidente, resultados de aritmética básica, são tratados como distrações exóticas e imperdoáveis, enquanto a proposição impossível segundo a qual vivemos é considerada tão sã, normal e banal que não é digna de menção. Eis como medir a profundidade do problema: por nossa incapacidade de até mesmo discuti-lo.

NOTAS

(1) No original, scouring; literalmente, lavagem, limpeza. O sentido é de esvaziamento, retirada até o esgotamento.

Mais artigos do mesmo autor:
http://www.monbiot.com

“The Gift of Death”: Pathological consumption has become so normalised that we scarcely notice it.

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THE GIFT OF DEATH

Pathological consumption has become so normalised that we scarcely notice it.

By George Monbiot, published in the Guardian 11th December 2012

http://www.monbiot.com/2012/12/10/the-gift-of-death/

“There’s nothing they need, nothing they don’t own already, nothing they even want. So you buy them a solar-powered waving queen; a belly button brush; a silver-plated ice cream tub holder; a “hilarious” inflatable zimmer frame; a confection of plastic and electronics called Terry the Swearing Turtle; or – and somehow I find this significant – a Scratch Off World wall map.

They seem amusing on the first day of Christmas, daft on the second, embarrassing on the third. By the twelfth they’re in landfill. For thirty seconds of dubious entertainment, or a hedonic stimulus that lasts no longer than a nicotine hit, we commission the use of materials whose impacts will ramify for generations.

Researching her film The Story of Stuff, Annie Leonard discovered that of the materials flowing through the consumer economy, only 1% remain in use six months after sale(1). Even the goods we might have expected to hold onto are soon condemned to destruction through either planned obsolescence (breaking quickly) or perceived obsolesence (becoming unfashionable).

But many of the products we buy, especially for Christmas, cannot become obsolescent. The term implies a loss of utility, but they had no utility in the first place. An electronic drum-machine t-shirt; a Darth Vader talking piggy bank; an ear-shaped i-phone case; an individual beer can chiller; an electronic wine breather; a sonic screwdriver remote control; bacon toothpaste; a dancing dog: no one is expected to use them, or even look at them, after Christmas Day. They are designed to elicit thanks, perhaps a snigger or two, and then be thrown away.

The fatuity of the products is matched by the profundity of the impacts. Rare materials, complex electronics, the energy needed for manufacture and transport are extracted and refined and combined into compounds of utter pointlessness. When you take account of the fossil fuels whose use we commission in other countries, manufacturing and consumption are responsible for more than half of our carbon dioxide production(2). We are screwing the planet to make solar-powered bath thermometers and desktop crazy golfers.

People in eastern Congo are massacred to facilitate smart phone upgrades of ever diminishing marginal utility(3). Forests are felled to make “personalised heart-shaped wooden cheese board sets”. Rivers are poisoned to manufacture talking fish. This is pathological consumption: a world-consuming epidemic of collective madness, rendered so normal by advertising and the media that we scarcely notice what has happened to us.

In 2007, the journalist Adam Welz records, 13 rhinos were killed by poachers in South Africa. This year, so far, 585 have been shot(4). No one is entirely sure why. But one answer is that very rich people in Vietnam are now sprinkling ground rhino horn on their food or snorting it like cocaine to display their wealth. It’s grotesque, but it scarcely differs from what almost everyone in industrialised nations is doing: trashing the living world through pointless consumption.

This boom has not happened by accident. Our lives have been corralled and shaped in order to encourage it. World trade rules force countries to participate in the festival of junk. Governments cut taxes, deregulate business, manipulate interest rates to stimulate spending. But seldom do the engineers of these policies stop and ask “spending on what?”. When every conceivable want and need has been met (among those who have disposable money), growth depends on selling the utterly useless. The solemnity of the state, its might and majesty, are harnessed to the task of delivering Terry the Swearing Turtle to our doors.

Grown men and women devote their lives to manufacturing and marketing this rubbish, and dissing the idea of living without it. “I always knit my gifts”, says a woman in a television ad for an electronics outlet. “Well you shouldn’t,” replies the narrator(5). An advertisement for Google’s latest tablet shows a father and son camping in the woods. Their enjoyment depends on the Nexus 7’s special features(6). The best things in life are free, but we’ve found a way of selling them to you.

The growth of inequality that has accompanied the consumer boom ensures that the rising economic tide no longer lifts all boats. In the US in 2010 a remarkable 93% of the growth in incomes accrued to the top 1% of the population(7). The old excuse, that we must trash the planet to help the poor, simply does not wash. For a few decades of extra enrichment for those who already possess more money than they know how to spend, the prospects of everyone else who will live on this earth are diminished.

So effectively have governments, the media and advertisers associated consumption with prosperity and happiness that to say these things is to expose yourself to opprobrium and ridicule. Witness last week’s Moral Maze programme, in which most of the panel lined up to decry the idea of consuming less, and to associate it, somehow, with authoritarianism(8). When the world goes mad, those who resist are denounced as lunatics.

Bake them a cake, write them a poem, give them a kiss, tell them a joke, but for god’s sake stop trashing the planet to tell someone you care. All it shows is that you don’t.”

McKenna