TSUNAMI DA BALBÚRDIA: Documentário sobre a mobilização em defesa da Educação pública em 15 de Maio de 2019 (Goiânia, 23 min)

“Se ele nos chama de idiotas úteis, eu digo que na presidência tem um idiota inútil.” – Guilherme Boulos (MTST/Povo Sem Medo/PSOL)https://bit.ly/2WKoe3j

Éramos mais de um milhão de pessoas, em mais de 200 cidades, participando do Tsunami da Educação e “protestando contra o avanço da barbárie”, como bem definiu Bob Fernandes. Éramos aqueles que não serão feitos de otários pela enganosa retórica do “são só 3 chocolatinhos que vocês vão deixar pra comer depois” (discurseira devidamente detonada pelo sarcasmo salutar de Gregório Duvivier no episódio B de Balbúrdia do Greg News).

Éramos, no #15M, um rio de gente, de uma diversidade pulsante, numa explosão de colorido indomável. Um pouco deste caleidoscópio humano está encapsulado no filme que agora lançamos, no calor da hora. Tsunami Da Balbúrdia, documentário curta-metragem produzido por A Casa de Vidro (veja no Youtube, no Vimeo ou no Facebook),  é o primeiro passo em um processo criativo mais amplo, que une os aspectos cinematográfico, jornalístico e político, visando à produção de um longa-metragem sobre o Tsunami da Educação em 2019 (auxilie no financiamento colaborativo e deixe um troco na nossa Vakinha!).


Filmado durante as manifestações goianienses do 15 de Maio, Tsunami da Balbúrdia está em sintonia com os ideais e as práticas do jornalismo Ninja. Nesta obra – com montagem, som direto e direção de Eduardo Carli de Moraes (professor de filosofia do IFG)buscamos amplificar a voz e disseminar as mensagens dos manifestantes através do audiovisual.

Contribuindo tanto para o registro histórico deste evento político quanto para o incentivo ao prosseguimento das mobilizações no futuro próximo (o 30 de Maio e o 14 de Junho sendo as datas de iminente grandiosidade e relevo histórico). A obra contêm, além dos agitos de rua e de um registro da assembléia geral unificada dos DCEs do IFG e da UFG, entrevistas e depoimentos de:

* Frank Tavares (prof. de Sociologia da UFG)
* Angela Cristina Ferreira (da Comissão de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno)
* Dalmir Rogério Pereira (Prof. de artes na EMAC/UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Ciências Sociais / UFG)
* Renato Costa (Ativista e Estudante de Jornalismo / UFG), dentre outros.

Agrademos o apoio, na produção, de Lays Vieira e Frederico Monteiro. Na trilha sonora, canções de Dani Black e convidados (“O Trono do Estudar”), The Interrupters (“Babylon”), Moska e Rennó (“Nenhum Direito a Menos”), Chico Buarque (“Apesar de Você”).

Éramos aqueles que sabem muito mais do que “qual o resultado de 7 vezes 8” e “qual a fórmula química da água”. Aqueles que sabem da nossa responsa diante do desmonte e do sucateamento que o governo Bolsonaro planeja impor. Aqueles que estão conscientes dos impactos catastróficos acarretados pelos cortes de cerca de 30% nos investimentos discricionários do Ministério da Educação (MEC), ainda mais quando sabemos que as 10 melhores universidades do Brasil são públicas e gratuitas. Aqueles que sabem que balbúrdia mesmo é o que faz no país este péssimo governo.

Somos aqueles que, ao contrário do Bozo e seus lacaios, não somos nem idiotas nem analfabetos políticos: sabemos que os cortes incidem sobre hospitais e centros de excelência em atendimento psicológico à população; sabemos também que, ao contrário da asneira presidencial de louvor às faculdades privadas, 95% da pesquisa científica brasileira ocorre em universidades públicas (é só jogar no Google, seu ministro!):

Antes de dizer que universidades são “balbúrdias” e não geram pesquisas, titular do MEC deveria se informar: Brasil é o 13º na produção de artigos científicos – e participação das públicas representa 95% – LEIA O ARTIGO EM OUTRAS PALAVRAS

Excelentes vídeos já foram publicados para esclarecer a opinião pública sobre os acontecimentos recentes no que tange às políticas públicas educacionais no Brasil e a resistência cívica que elas vem encontrando: acesse o material recomendado em BBC News, Brasil de Fato e Levante Popular da Juventude.

 

O histórico 15 de Maio de 2019 marca um ponto alto na curva das mobilizações populares no Brasil nestes tempos sombrios de predomínio da “necropolítica”, esta fusão entre neoliberalismo e neofascismo que hoje nos desgoverna com a perversa tesoura da Austeridade em mãos (aquela que corta da população para manter a mamata das elites).

Éramos, nas ruas, e seremos nas ruas do futuro, aqueles que não foram estupidificados por fake news no Whatsapp e estamos cientes de nossa responsabilidade histórica na defesa dos bens comuns. O “contingenciamento” que o (des)governo busca impor não é uma medida isolada, mas soma-se às tendências do ultradireitismo bozorista que consegue a educação como espaço a ser militarizado, “expurgado” de esquerdistas, “higienizado” contra o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”, contra o pensamento crítico propulsionado por filósofos e sociólogos, por historiadores e pedagogos Paulo Freireanos…

Enfim, a extrema-direita hoje empoderada sonha com a Escola reduzida a apêndice servil do Mercado, onde reinariam supremos os valores evangélicos, as fardas dos milicos e os testas-de-ferro “apartidários” do Escola Sem Partido.

Foi o mais amplo e significativo movimento de massas desde o ELE NÃO de 2018 – o levante mais importante a marcar o processo eleitoral do ano passado, repleto de fraudes, de “laranjal do PSL”, de #Caixa2DoBolsonaro pra disseminação de fake news calúnias. Primeiro processo eleitoral pós-Golpe, corroído em sua legitimidade pela desleal e ilegal lawfare que aprisionou o candidato Lula, criminosamente privado de sua liberdade num contexto em que todas as pesquisas indicavam que venceria o pleito.

Reativando afetos e práticas que deram o tom do #EleNão, a galera na rua esbanjou irreverência. “Ô Bolsonaro, seu fascistinha! A estudantada vai botar você na linha!” Com essas e muitas outras rimas, os estudantes bradaram pelas ruas – e Maio de 2019 já possui o mérito maravilhoso de ter oferecido a muitos de nós um gostinho de Maio de 1968, um sabor da Paris em insurreição.

A golpes de rimas, os criativos protestadores diziam: “ô Bolsonaro, seu fanfarrão! Balbúrdia é cortar da educação!” Fanfarrão, pois Bozo insiste na discurseira contra a balbúrdia. Tanto o Chefe quanto seu serviçal Weintraub – o cara dos “três chocolatinhos e meio” – insistem na ideologia “balburdiana”, que supostamente dominaria nas universidades públicas. Estas são pintadas pelos bullys do Bozonistão como antros de comunistas, marxistas culturais, feminazis abortistas, queers Marielleanos, todos alimentados com mortadela, pelo PT e pelo PSOL, para disseminar o evangelho satânico do comunismo gayzista que virá colonizar a pátria com seus kits gays e suas mamadeiras de piroca.

Contra tal delírio do poder no Bozonistão, os estudantes e professores, os servidores técnico-administrativos e os cientistas, os artistas independentes e os empresários-de-si-mesmos que estão insatisfeitos contra o precariado do Uberismo, as mães que querem creches para os seus filhos e os pais que querem bolsas para seus filhos, crianças e idosos (e todas as faixas etárias entre eles) juntaram-se para bradar legítimas insatisfações contra os desrumos das coisas.

ÁLBUM FOTOGRÁFICO DO ATO EM GOIÂNIA

Empunhavam escudos-livros e lanças-lápis, como fez a “Tropa” da EMAC/UFG em sua performance em pleno protesto aqui em Goiânia. Uma potência expressiva que certamente agradaria a Judith Butler, uma das mais brilhantes pensadoras do mundo e que acaba de publicar um belíssimo livro de resistência e solidariedade chamado Corpos em Aliança.

Nossos mortos querem que lutemos, nossos mortos pedem que cantemos. E nós mandamos nosso recado: Paulo Freire, presente! Marielle, semente! E cá estamos, corpos aliançados, na luta unida contra a tirania dos idiotas inúteis.

Se o presidente da república não estivesse ocupado em tacar as pedras de seu desdém elitista contra os jovens que estavam bradando nas ruas, talvez pudesse, ao invés de xingar-nos de “idiotas”, ficar calado e ter a humildade para aprender. Mas seria pedir demais desta arrogância brucutu, de quem acha que tudo se resolve no tiro, que pudesse haurir um pouco disto que temos de sobra no âmbito social da Educação: a humildade para aprender e a disposição para reconhecer que somos todos incompletos, inconclusos, aprimoráveis.

Nesta inconclusão aberta ao aprimoramento, nesta humildade aberta ao convívio e ao aprendizado, aí está a raiz que alicerça toda a prática educativa, mas nosso presidente não consegue aprender e talvez morrerá um completo analfabeto em relação às práticas de um autêntico Estadista atento ao bem comum e ao coletivo bem viver. A isto, o apologista da tortura, dos grupos de extermínio e do “fuzilar a petralhada” é completamente cego.

Infelizmente, Bolsonaro é um “analfabeto educacional”, nunca aprendeu nada que prestasse sobre a importância da educação no mundo, e é o perfeito exemplar do idiotes dos grego – aquele que só enxerga, em sua semi-cegueira, os interesses privados e nunca o bem comum. Ao xingar os manifestantes de “idiotas”, desconhecendo completamente a etimologia da palavra original grega, Bolsonaro demonstra que em sua boca é a linguagem que está indo pro pau-de-arara.

Quem esteve no #TsunamiDaEducação é justamente o oposto do significado de “idiota”, e o próprio Bolsonaro ao dizer que “queremos uma garotada que comece a não se interessar por política” é que demonstra seu plano de construir uma educação idiotizante – à sua imagem e semelhança. Vejam a esclarecedora palestra de Mário Sérgio Cortella:

Se Bozo tivesse a modéstia de pôr-se na posição do aprendizado, descobriria quanta esperteza e inteligência, quanta solidariedade e esforço por justiça, pulsa nas ruas e nas redes, expressando-se atualmente nestes que constituem as vastas teias da Resistência a seu desgovernado projeto de tirania.

Acima: manifestações de massa levam mais de 1 milhão de pessoas às ruas. Fotos acima tiradas nas cidades de Goiânia, Rio de Janeiro, Curitiba e São Paulo.

Em EL PAÍS Brasil, Juan Arias escreve:

“Ao menos desta vez, o poder de turno no Brasil entendeu a mensagem oculta levada pelos quase um milhão de jovens estudantes que no último dia 15 saíram às ruas em 26 Estados e em centenas de cidades para defender o ensino contra quem deseja barbarizá-lo. Cansados de serem vistos como o futuro do país, que nunca chega, os jovens decidiram ser o presente e participar de sua construção.

O novo Governo pretende transformar o ensino, da escola primária à Universidade, para livrá-lo da ideologia esquerdista que, segundo ele, o havia desviado de seus valores tradicionais. O ensino que o novo poder pretende impor deve estar isento de debate político, de diversidade de ideias, dominada por um pensamento único, que, como nos melhores fascismos do passado, é imposto pelo Estado.

Uma escola em que não se perca tempo estudando o que depreciativamente chamam de “ciências humanas”. Nada de filosofia, que obriga a pensar e a questionar o poder, ou de sociologia, que abre os olhos para o abismo das desigualdades. Uma escola em que os alunos se transformem em guardas que vigiem e denunciem os professores se tentarem falar de política ou de sexo, ou das dores do mundo. A escola é moldada pelo poder. Os alunos escutam e se calam.

Contra o perigo desta nova era de obscurantismo educacional que o Governo deseja impor, com uma nova cruzada contra os livros e as ideias enquanto exalta as armas que pretende distribuir como doces, os jovens ocuparam pacificamente as ruas e praças do país, para desafiar quem tenta castrar seu direito à liberdade de expressão e impor suas ideias.”

Já o professor de Ciência Política da UnB Luis Felipe Miguel aponta: “Bolsonaro, em Dallas, desfia os impropérios de sempre contra estudantes e professores. Mas eu sei que ele está com medo. Que ele olhou na internet as manifestações enormes de Norte a Sul no Brasil e sentiu medo da nossa força. Que ouviu o pessoal gritando Bolsonaro, seu fascistinha, a juventude vai botar você na linha, engoliu em seco e pensou que não era uma bravata vazia.

Movido por sua própria arrogância e delírio, o governo errou: agrediu, insultou, provocou até que sacudiu a anestesia em que estávamos imersos. Para quem esteve na rua ou mesmo acompanhou de fora, os atos de hoje fizeram redobrar o ânimo de luta. Se esse ânimo se estender pela classe trabalhadora – e há indícios de que esta é uma possibilidade palpável – teremos uma greve memorável no dia 14 de junho e poderemos empunhar com esperança a bandeira da resistência: “Nenhum direito a menos”. >>> https://bit.ly/2w4yxn6

Por sua vez, o jornalista Leonardo Sakamoto escreve em seu blog no UOL duras e justas críticas ao governo Bolsonaro: “Ao atacar quem está indo às ruas pedir educação de qualidade, interdita o debate sobre a construção do futuro e põe a democracia no pau de arara. Estudantes que resolvem refletir e se organizar pela melhoria da educação não são ‘idiotas’, nem ‘imbecis’. Pelo contrário, reside neles a esperança da criação de uma nova forma de fazer política – ao contrário dos simulacros toscos que se chamam de “novo” mas cheiram a anacronismo. Burrice é atacar esses estudantes por medo da realidade mudar…”.

“A vida deu os muitos anos da estrutura
Do humano à procura do que Deus não respondeu.
Deu a história, a ciência, a arquitetura,
Deu a arte, deu a cura, e a Cultura pra quem leu.
Depois de tudo até chegar neste momento 
Me negar Conhecimento é me negar o que é meu.

Não venha agora fazer furo em meu futuro
Me trancar num quarto escuro
E fingir que me esqueceu!
Vocês vão ter que acostumar:

Ninguém tira o trono do estudar,
Ninguém é o dono do que a vida dá!
E nem me colocando numa jaula
Porque sala de aula essa jaula vai virar!

E tem que honrar e se orgulhar do trono mesmo!
E perder o sono mesmo pra lutar pelo o que é seu!
Que neste trono todo ser humano é rei,
Seja preto, branco, gay, rico, pobre, santo, ateu!
Pra ter escolha, tem que ter escola!
Ninguém quer esmola, e isso ninguém pode negar!
Nem a lei, nem estado, nem turista, nem palácio,
Nem artista, nem polícia militar!
Vocês vão ter que engolir e se entregar:
Ninguém tira o trono do estudar!”

Como professor do IFG, nos últimos anos pude vivenciar de dentro o que significam para o país os Institutos Federais, que atualmente constituem um patrimônio do povo brasileiro que merece ser defendido por todos os seus cidadãos conscientes de seu papel da salvaguarda dos bens comuns.

Para ilustrar o mérito dos IFs, vale lembrar que em 2016, ano em que findou prematuramente via golpeachment o governo de Dilma Rousseff, um fenômeno fascinante se explicitou através dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): caso os alunos dos IFs fossem considerados como porta-vozes da educação no Brasil, o país seria o 4º melhor do mundo na área (Saiba mais em The InterceptEl País).

“Na contramão do resultado geral obtido pelo País, que aponta pouca evolução nas áreas avaliadas ao longo dos anos, a pontuação das instituições federais de ensino no exame supera a média nacional e aproxima-se daquelas alcançadas por países desenvolvidos.

Cerca de 23 mil estudantes brasileiros, com idade entre 15 e 16 anos, das redes de ensino municipal, estadual, federal e privada participaram da avaliação, que contempla as áreas de matemática, ciências e leitura. As notas gerais alcançadas pelo Brasil, considerando-se a pontuação média das quatro redes de ensino, foram de 401 pontos em ciências; 407 pontos em leitura; e 377 pontos em matemática. Em todas elas, o país ficou abaixo da média geral Pisa, que foi de 493 em ciências, 493 em leitura e 490 em matemática. A análise dos resultados específicos da rede federal, no entanto, aponta um cenário diferenciado, que aproximaria o Brasil do topo do ranking: 517 pontos em ciências, 528 em leitura e 488 em matemática.

O desempenho positivo dos alunos da Rede Federal destaca-se, sobretudo desde 2009, na esteira da revitalização e expansão da Rede. Nesse ano, a média da nota dos alunos da Rede Federal atingiu 535 em leitura, principal área de concentração daquela edição. Com essa média, os alunos da Rede Federal teriam ocupado a 4ª posição no ranking, atrás apenas de Xangai (China), Coréia do Sul e Finlândia.

Para o coordenador de Formulação e Supervisão de Políticas para o Ensino Técnico do IFMG, Lucas Marinho, se, como se propõe, o Pisa fornece um importante parâmetro para avaliação e monitoramento da qualidade das políticas públicas em educação, esses resultados evidenciam que as escolas da Rede Federal, apesar da sua tão recente reestruturação e expansão, já despontam como o mais acertado esforço do Estado brasileiro para a promoção de uma educação de qualidade.

“E isso não por qualquer reforma especialmente complexa ou arrojada, mas por que veio constituindo-se até aqui, de acordo com algumas diretrizes óbvias que, infelizmente, têm sido sistematicamente ignoradas nas redes municipal e estadual de educação: investimento público suficiente para assegurar instalações adequadas; gestão autônoma e democrática; professores trabalhando, em sua maioria, em regime de dedicação exclusiva à mesma escola, bem remunerados e bem formados, numa carreira atrativa e bastante concorrida”, avalia Lucas.

Instituto Federal de Minas Gerais

É com arte e criatividade, corpos em aliança, solidariedade de existências, que caminhando e cantando entoaremos, como outrora, “afasta de mim esse cale-se!” e “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, como agora, “tira a mão do meu IF!”, “ninguém solta a mão de ninguém”, “nenhum direito a menos”!

Bem-vindos ao Tsunami da Educação. Em breve ele vai atravessar com suas ondas indomáveis muito mais do que timelines e grupos de Whatsapp. Pois as margens que comprimem este rio são muito violentas, e assim nossas águas conjuntas ao invés de lago se estão fazendo tsunami. Em sintonia com a crise climática do global heating e em compasso com Greta Thunberg e com os “Pinguins” Chilenos, na sabedoria que Bertolt Brecht já ensinava:

Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 17/5/19

SAIBA MAIS:

O RUGIDO DAS RUAS – Por Bob Fernandes

METEORO: A BALBÚRDIA COMEÇOU

“A GUERRA DO COMEÇO DO MUNDO” (POR ELIANE BRUM)

1A GUERRA DO COMEÇO DO MUNDO

Uma reportagem de Eliane Brum, com fotografia de Lilo Clareto. Originalmente publicada em 2001.

“Roraima e o mundo abriram a semana passada com a notícia de mais um suposto sangrento conflito entre muitos que já ocorreram no barril de pólvora chamado município de Uiramutã, localizado no coração da polemizada reserva indígena Raposa-Serra do Sol. A história recente mostra um cordão bastante extenso de atos de vandalismo e atividades terroristas. O menor sinal de quebra da ordem pública é suficiente para explodir como uma bomba bem ao estilo do conturbado Oriente Médio. As notícias que chegaram na manhã de domingo à capital roraimense, e por certo extrapolaram as divisas do Estado, cruzando as fronteiras, indo ter ressonância imediata em países do Primeiro Mundo, eram de que índios ligados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) teriam invadido as obras de construção do aquartelamento do 6o Pelotão Especial de Fronteira, tocando fogo nas dependências e trocando tiros com os militares baseados naquele local. (…) Mas todo o alvoroço registrado no intervalo de 21h30 a 22 horas de sábado não passou de alarme falso. O Exército não conseguiu estabelecer se era índio, branco ou marciano o único ser que chegou a ser visto apenas pelo sentinela. (Francisco Espiridião, jornal Tribuna, 2 a 8/9/2001)

O dedo acusa a Via Láctea. “Lá!”, berra o homem. À beira do Rio Branco, em Boa Vista, ele levanta-se intempestivo. Os filhos que brincavam ao redor da mesa se imobilizam. Os clientes do Meu Caso, bar de petiscos, suspendem as conversações. Esquadrinham o céu em alerta. “Os americanos espionando a Amazônia”, esclarece. Satisfeito com a perspicácia, volta a sentar-se. Missão cumprida. Perto dele ninguém será enganado por satélites vestidos de cordeiro.

Encravado no extremo norte do mapa, Roraima é assim, 324.152 pares de olhos em ação de vigília permanente. Os demais 172.675.848 brasileiros desconhecem, afinal ainda hoje confundem Roraima com Rondônia, Boa Vista com Porto Velho, mal suspeitam do que se passa nas sobrancelhas do país continental. Sabem mais hoje sobre o Afeganistão que sobre o ex-território, transformado em Estado pela Constituição de 1988. Ligados na CNN, os brasileiros não adivinham. Mas Roraima está em guerra.

Enclave de brancos cercados de índios por todos os lados, coleciona alguns dos títulos mais curiosos do Brasil sem que o Brasil perceba. É o Estado mais aborígine, com 57% do território ocupado por 30 mil índios. É o mais despovoado: cada um dos 324 mil habitantes, 200 mil deles na capital, tem, em tese, 1,5 quilômetro quadrado à disposição. Representa 0,2% na população do país, motivo pelo qual nem sequer é visitado pelos candidatos a inquilinos do Planalto. Os 184 mil eleitores são pouco menos que a zona eleitoral do bairro de Jabaquara, em São Paulo. No terceiro milênio ainda está em fase de colonização, eldorado de 1.000 novos migrantes por mês, metade deles recém-chegada do Maranhão de Roseana Sarney.

À noite, Roraima fecha. Por terra, ninguém sai, ninguém entra. O Estado tem duas estradas asfaltadas. A BR-401 liga a capital a Bonfim, na fronteira com a Guiana, mas quem quiser cruzar em direção ao país vizinho precisa chegar antes das 17 horas, o último horário da balsa. Em corte longitudinal, a BR-174 une Boa Vista a Manaus e a Pacaraima, vizinha da Venezuela. Ao norte da rodovia, a fronteira com Santa Elena de Uiarén fecha às 22 horas. Ao sul, permanece trancada, com cancela e tudo, das 18 às 6 horas: os 125 quilômetros na divisa com o Amazonas cruzam a reserva dos uaimiris-atroaris, que não querem nem ouvir falar de brancos circulando na madrugada.

Roraima é uma terra isolada, ligada ao resto do país apenas por uma transfusão de recursos — intensa e de mão única — de Brasília para o Estado. Mais perto de Miami que do Rio de Janeiro, a capital vive em crise de identidade. Quando um roraimense viaja, anuncia aos amigos: “Vou para o Brasil”. A primeira pergunta aos “estrangeiros” é: “Vieram do Brasil?” Por Brasil, entende-se tudo o que existe do Amazonas para baixo. Para cima está Roraima, cuja geografia nem mesmo se enquadra na canção de Chico Buarque, sobre não existir “pecado do lado de baixo do Equador”. Quase 100% do território de Roraima fica acima, no Hemisfério Norte. O senso comum nem sequer reconhece um paradigma geográfico: o Monte Caburaí é o ponto mais setentrional do país, mas ao sul de Roraima vive se repetindo a clássica “do Oiapoque ao Chuí”. A síntese mais famosa do brasileiro é Macunaíma, o herói dito sem caráter do modernista Mário de Andrade. Pois o mais brasileiro dos brasileiros é uma lenda dos índios macuxis, de Roraima. Nunca se dá o crédito.

Assim, isolado, maltratado até, e um tanto órfão, Roraima vive a guerra do começo do mundo. E ninguém se importa. O Brasil não dá importância a Roraima, mas Roraima importa-se muito. Boa parte dos habitantes acredita piamente que será tomado do Brasil a qualquer momento. Espremidos entre a Venezuela, a Guiana e o Amazonas, defendem a tese de que o império de George W. Bush está de olho no rico subsolo roraimense, com suas jazidas de ouro, diamantes e cassiterita. As organizações não-governamentais e os missionários religiosos usam a desculpa de proteger os índios, mas não passariam de testas-de-ferro do ávido Primeiro Mundo. Quando todas as terras indígenas forem demarcadas, os nativos vão declarar independência, de imediato o país será reconhecido pela ONU e o território miliardário anexado. Essa tese é defendida até em documentos entregues a Fernando Henrique. Graças a ela, o Estado é partido em trincheiras. Até mesmo geográficas: floresta à esquerda, lavrado à direita. Assim, no céu de Roraima, nem as estrelas cadentes escapam à suspeição.

Os brasileiros, mais preocupados com o noticiário do centro econômico e político nacional (leia-se o estreito circuito entre São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) ou com os ataques sangrentos de Bush e Bin Laden, têm perdido o mais fascinante capítulo da história do país. Em pleno século XXI, Roraima protagoniza a última guerra entre brancos e índios. E várias pequenas batalhas entre índios e índios. É o Brasil de 500 anos atrás acontecendo agora. Em tempo real, para manter o jargão da moda. Sem a CNN nem Pero Vaz de Caminha, out of Brazil, out of the world.

Num dia comum no oeste de Roraima, um ianomâmi da aldeia Xaruna chamado Chicão espanca a mais bela de suas duas mulheres na mata. Abandona a adolescente desmaiada, a cabeça aberta como uma flor de sangue. Ao voltar sozinho para o xapono, a casa comunitária, o povo se espanta, se agita. Os índios perseguem a menina pela floresta, perscrutam os sons. Só encontram um rastro de sangue ainda morno. Desolados, concluem que fora devorada por uma das onças que patrulham o território.

Numa manhã comum no sul de Roraima, a maranhense Cleonice Conceição, de 36 anos, despenca do ônibus, traz no corpo a poeira dos caminhos. A fome azeda o estômago, o medo escala o esôfago. Pela mão arrasta os dois filhos, Silene, de 15, e Rosenildo, de 8, assustados como ela, resignados também. Carregam um colchão emprestado, meia dúzia de roupas, as escovas de dentes penduradas na caixa de papel. Cleonice não tem um centavo. Gastou tudo o que amealhou com a venda de um guarda-roupa e de uma mesa na viagem de Santarém, no Pará, a Rorainópolis, a porta de entrada de Roraima. Não tem para onde ir.

Numa tarde comum no leste de Roraima, Maurício Habert Filho, de 54 anos, supervisiona a labuta dos guianenses contratados para a safra de melancias, suor barato e abundante na região. O pensamento atravessa o oceano. O agricultor vaga pelas ruas de Paris, cujas luzes não conhece. De lá veio seu pai, Maurice Habert, ladrão e desertor da Primeira Guerra Mundial, fugitivo de prisões da Guiana Francesa. Depois de 26 dias numa balsa feita de folhas, bebendo água da chuva, aportou na costa da Guiana Inglesa com cinco parceiros salgados, cozidos em sol, em farrapos por dentro e por fora. O sexto tombara na travessia. Perfurou a selva e alcançou o Brasil em 1941. Tornou-se pioneiro no território de ninguém.

Maurício está decidido a limpar o nome do patriarca. Empenha-se em desmentir a teoria de que Maurice foi cúmplice de Papillon, herói da vida e do cinema. Pior ainda, quase engasga ao contar, que Maurice era homossexual. Tudo uma confusão com outro prisioneiro de mesmo nome, como tem provado em documentos que vão e voltam da França. O filho só pensa na honra do pai.

Numa noite comum no norte de Roraima, o sentinela do 6o Pelotão de Fronteira, quartel em construção no município de Uiramutã, sobressalta-se. Adivinha um vulto na escuridão, despacha um foguete sinalizador para o alto. Abaixo, a comunidade, em vigília permanente de olhos e intrigas, interpreta: “Os índios invadiram o quartel”. Imediatamente, armam-se de paus e pedras. Marcham em direção à aldeia, no outro lado do igarapé que divide brancos e índios em trincheiras de ódio. “Vamos botar fogo na maloca”, é o grito de guerra.

É um dia comum em Boa Vista, capital de Roraima. A bordo do ultraleve, Walter Vogel, de 56 anos, apalpa o horizonte com os olhos azuis do berço suíço de Berna. O pai plantava em 7 hectares no país seis vezes menor que Roraima. Para Walter faltava ar no cenário claustrofóbico. Se fez homem em busca de espaço e, com pouco mais de 20 anos, carregou a mulher pelos descaminhos da América do Sul à procura de uma pátria para o coração. Só a encontrou 19 anos atrás, ao parar no meio da ponte sobre o Rio Branco. Auscultou o peito, pronunciou: “Este é o meu lugar”. A 3 mil metros, desliga o motor e plana, torna-se um homem-pássaro no país que escolheu.

A oeste de Walter Suíço, a floresta proibida dos ianomâmis, 9,7 milhões de hectares estendidos como um tapete verde e úmido sobre Roraima e Amazonas, assemelha-se a um universo primordial. Rios de sucuris gigantes, cachoeiras cinematográficas, árvores eternas. Quase o dia da criação. Os índios, feitos dessa mesma matéria original, se mimetizam à selva, invisíveis ao primeiro olhar, aconchegados ao ventre de Omamë, o precursor de tudo segundo sua cosmologia. Revelam ao cibernético século XXI, agora tragicamente confrontado com as diferenças que julgava encobrir, um modo de viver semelhante ao dos primeiros ancestrais. Dos povos mais isolados do planeta, travam a guerra do começo do mundo enquanto o planeta globalizado ameaça manchar a Terra com um ponto final.

Chicão, essa espécie de tataravô mítico do imaginário ocidental, duvida do rastro da mulher que espancou. Não sente no sangue o cheiro da morte. Fareja, descobre. Sua índia foi raptada por um makabei. Não vacila. Precisa retomar a fêmea. Assim manda o costume. Começa mais uma batalha entre irmãos.

A região que se estende por Surucucu, Parafuri e Arathaú é a mais belicosa do território, dilacerada por brigas que ninguém sabe como começaram. Assemelham-se ao horror eterno entre judeus e árabes. Impossível localizar o assassinato original. Ou o primeiro rapto de mulher.

Os ianomâmis cremam seus mortos, guardam as cinzas por meses, marcam o dia em que serão banqueteadas com mingau de banana. A cabaça que guarda os despojos existe para lembrar o imperativo de vingá-los. Assim, para cada um que tomba numa disputa, outro cairá em seguida, numa interminável fogueira de ódio. Desde que 40 mil garimpeiros alcançaram o território em busca de ouro nos anos 80, a tradição guerreira tornou-se a segunda causa de morte. Os brancos carregaram as espingardas para o útero da selva, com elas compraram o silêncio e mais tarde a cumplicidade dos índios. Desequilibraram os conflitos.

“Quem criou vocês? De onde vieram? Qual é sua raiz?”, indaga Davi Kopenawa, o grande líder ianomâmi, um dos poucos a falar português. “Antes, morriam dois dos nossos. Vocês trouxeram as espingardas, inventaram as bombas, os aviões, a guerra pesada. Trouxeram as doenças. E agora morrem 200, milhares.” Davi peregrina pelo território numa campanha de desarmamento. Troca as armas dos índios por panelas de alumínio.

Nem panelas tem a maranhense Cleonice. “Só vim com a coragem e a fé em Deus”, diz, falando mais com os olhos de fogo perpétuo dos migrantes nordestinos que com a boca. Tem menos dentes que esperança. Rorainópolis, aonde ela chega, é uma das cidades que mais engordam no Brasil: saltou de 7.500 habitantes em 1996 para 17.500 no último censo. Os pés de êxodo de Cleonice preenchem as estatísticas, ela e o exército de refugiados eternos na própria pátria, em busca da terra prometida que sempre escapa como se o mapa inteiro fosse de areia movediça.

Cleonice procura os conhecidos de janela em janela, encontra abrigo numa casinha de porta vermelha de outro retirante. Instalam-se ela, suas crianças e suas trouxas, sonhando cada vez menos, cada vez mais escuro. Corre até a rodoviária, o centro de tudo num lugarejo que só se multiplica no desespero. Encontra Sindi da Silva, a moça de coração generoso e língua afiada, que vende bilhetes mais de ida que de volta e fitas piratas com músicas de marido traído e “outras para quem só está treinando para corno”. Sindi está alarmada, não se conforma, uma paca devorou a perna de uma conhecida no centro da cidade. “Tem cabimento criar uma paca em casa? Por que não cria galinha? Diz que tem amor pela paca, alimentada na mamadeira, que mundo”, apavora-se. Cleonice, aflita, dá o recado, “quando o meu homem chegar diga que estou na casa de porta vermelha”.

Sindi promete, acostumada que está, também ela vinda de outro canto. Por ali são todos forasteiros, todos teimosos. E todos fazendo de conta que aquele rincão poeirento, feioso e pobre, com tanto calor quanto moscas, é o éden bíblico que os pastores não se cansam de lhes prometer. Só para ao final descobrir que por paraíso esperam apenas um lugar de onde não sejam expulsos por mais uma fome, cansados de andar, com mais bolhas na alma que nos pés. Então enfeitam o que lhes coube no mundo com flores de plástico, almofadas de franjas, tapetes de pavões do Oriente, penduram provérbios pelas paredes, reúnem sua pequena fortuna mais de desejos que de concreto. “Cheguei com R$ 10, três panelas, duas delas furadas, e uma mulher grávida”, conta Braulino da Silva, de 51 anos. “Agora tenho casa e trabalho pro governo. A casa fica na frente do cemitério, mas não faz mal, é pra lá mesmo que eu vou um dia e assim já encurta o caminho.” No balcão de Sindi ele se prepara para fazer uma ligação, mandar um recado para a família baiana. “Que venham, melhor que aqui só no Céu.”

Bem mais perto do inferno fica Uiramutã. Brancos e índios estão decididos a resolver no pau, talvez nos tiros, quem é o dono daquele pedaço de Brasil. Trata-se de 1,7 milhão de hectares de cerrado, demarcados, mas nunca homologados, povoados por 12 mil macuxis, ingaricós, uapixanas, taurepangues e patamonas. Sobre essa terra desenham-se as plantações de arroz dos gaúchos, única cultura em que Roraima é auto-suficiente. Nela se escondem os diamantes que movem a cobiça tanto de garimpeiros avulsos, pobres e estropiados, como das grandes mineradoras. E, por fim, elevam-se as vozes dos políticos — e seus interesses — em nome do “desenvolvimento do Estado”. Na última guerra entre brancos e índios, 500 anos após o Descobrimento, os dois lados só comungam de uma ameaça: se o governo federal não se apressar, “vai ser um banho de sangue”.

O tuxaua de Uiramutã, Orlando da Silva, de 58 anos, confere a posição do inimigo pela janela. “Estou cercado”, constata. Da aldeia avista o quartel em construção, a cidade a sua porta. Um e outro, acredita, instalados com o objetivo de ficar no caminho da reconquista da terra. “Não tenho sossego. Se isso acontecer, voltaremos a ser escravos.” Ele sabe o que diz. Aos 8 anos foi vendido pelo pai a um comprador de diamantes por cinco sacas de sal, uma enxada e um machado, um forno e uma espingarda. Só aos 17 conseguiu romper o jugo e voltar. “Encontrei índios encachaçados, mulheres abusadas, forró o dia todo. Nenhuma roça, só meu povo trabalhando para o branco em troca de nada”, lembra. “A isso chamam de boa convivência entre índios e brancos.”

Outra guerra preocupa Maurício Habert. Ele vive numa cidade batizada de Normandia em homenagem ao desembarque das tropas aliadas. Tem na carne a prova dos fios que se entrelaçam para construir destinos só previstos em cenas do realismo fantástico. A saga da família de Maurice Habert, pai de Maurício, é a própria gênese de Roraima, terra de aventureiros proibidos de conjugar o tempo pretérito, em busca furiosa do futuro. Um ladrão de Paris, fugitivo dos calabouços da Guiana Francesa, garimpeiro, marreteiro e produtor de tomates no Brasil funda uma cidade de nome Normandia a leste do fim do mundo. Por ironia ou por culpa, ninguém sabe dizer, já que Maurice fechou a boca sobre o passado e poucas explicações dava para o presente, batizou-a em homenagem ao fim da Segunda Guerra quando tinha fugido já da primeira. Fez três filhos numa mestiça, Maurício Filho, Marta Maria e Joel. Maurício e Joel plantam melancias, Marta foi varada a balas pelo marido.

Maurice morreu de câncer no pulmão aos 68 anos graças a duas carteiras diárias de Continental. Não viveu o suficiente para saber dos nove netos e oito bisnetos. Muito menos para constatar que a cidade semeada por ele viraria o berço do forró de Roraima. Pipoquinha de Normandia é a banda mais famosa, tem seu neto, Joel Perley, no teclado. Outros dois, Joeldson e Maicon, arrastam os pés de Roraima no grupo da Lambe Sal.

A Pipoquinha tornou-se a banda da hora nos eventos oficiais. Sua música transforma a Praça das Águas, em Boa Vista, no palco de uma grande fornicação dançante porque ao norte do Equador há pecados, sim, muitos e de antemão absolvidos. Enquanto as crianças brincam, o povo se esfrega, esquece das dores. Alguns, como o poeta Eliakin Rufino, de 45 anos, acham uma pobreza o tal do forró. Mera importação do que de mais indigente há na fortuna musical do Nordeste. Ele é o filósofo de Roraima, o pensador de um ponto de interrogação, a identidade roraimense. Sim, porque nem sobre isso há unanimidade.

O que seriam eles afinal? Os 11 mil migrantes que ultrapassaram a divisa somente no ano passado? O senador Romero Jucá, o mais conhecido político no cenário nacional, pernambucano da gema? Ou sua mulher, Teresa Jucá, prefeita de Boa Vista e tão pernambucana quanto? Ou outro pernambucano legendário, ex-governador, ex-prefeito, eterno candidato, o brigadeiro Ottomar Pinto? Talvez o governador Neudo Campos, nascido e criado em Roraima. Os índios, provavelmente, por isso é que os ditos roraimenses se referem aos da terra como “macuxis”. Mas estes são apenas uma das nove etnias do Estado, complicando tudo mais uma vez.

Eliakin, buliçosa mistura de brancos, negros e índios, compôs três definições para capturar a amplitude dos da terra. “Roraimense é quem nasce, roraimada quem não nasceu mas ama, roraimoso só suga o Estado”, explica. “Boa Vista é a cidade mais brasileira do país. Contém o Brasil inteiro. O sul é europeizado, o Nordeste é africano, o Sudeste é americanizado e nós é que somos brasileiros!” Decidido a derrubar a ideologia da desinteligência nativa, tornou-se o comandante da cruzada contra o forró.

Também na arte Roraima vive em guerra. De um lado da paliçada, Eliakin canta: “Já em Roraima encontrei muito garimpeiro/Todo mundo fissurado por dinheiro/Matando índio e pondo as índias no puteiro/Tudo por causa de um pedaço de metal/Amazônia Legal, não há nada igual/Amazônia Legal, destruição é geral”. Do outro lado da muralha, a Pipoquinha responde em versos: “Não sou preconceituoso, mas certas coisas não aceito/Se o índio é igual a gente, por que ele tem mais direito?/Roubar gado, tocar fogo em ponte/Pro índio é uma diversão/Rouba tudo do fazendeiro e ainda quer demarcação/Área contínua, não/O índio tá querendo é ser nosso patrão”.

A música escolhe a posição no tabuleiro da Raposa-Serra do Sol, disputado por peões, bispos e cavalos em Uiramutã. Os brancos culpam os padres que um dia vieram batizar, casar e enterrar os filhos de fazendeiros e, não se sabe por qual sussurro de Deus ou do diabo, mudaram de trincheira. “A ala esquerdista da Igreja Católica gerou o ódio nas comunidades”, discursa a prefeita, Florany Mota, de 29 anos. “Os índios têm centros de treinamento de guerrilha, fazem reuniões secretas na aldeia do Maturuca. É lá que mora o padre Jorge, é ele quem comanda tudo”, garante o marido, Sebastião Silva, o Babazinho.

Espécie de Padre Antônio Vieira de Roraima, odiado um como foi o outro pelas elites em formação, o padre italiano Giorgio Dal Ben é vendido como a mente maligna que manipula os fios de marionetes de pele escura. Comandante de um exército de índios, xeque de um harém de mulheres, dono de uma fortuna em ouro e diamantes garimpada pelos fiéis, repete-se de um canto a outro do território. Basta aparecer um índio de olho azul para imediatamente tornar-se o “filho do padre Jorge”. “O cão chupando manga”, segundo a imprensa local. Tornou-se uma lenda.

Diante de tal envergadura, o pouco mais de 1,60 metro do padre de 57 anos é uma decepção. Os partidários dão paradeiros diferentes para confundir quem o procura. Encontrá-lo exige uma via-sacra. Há muito se recusa a aparecer em fotografias, convive com ameaças de morte, move-se como se enfrentasse uma Guerra Fria a 40 graus. Desconfia de tudo, de todos. Tem voz de ferro quente. “Quando cheguei a Roraima encontrei ao mesmo tempo a minissaia e uma sociedade quase feudal. Os índios viviam um quadro de morte”, descreve. “Esbarramos em um problema que se arrastou por cinco séculos e estourou nas nossas mãos. Mudar essa situação foi uma decisão pela vida. Não me interessa o que falam. A história toda é um delírio.”

Estrangeiro como o padre, Walter Suíço, o rei de Roraima, voa de ultraleve sobre seu quinhão de império. Ao avistar a terra que o marido havia elegido como eldorado pessoal, dona Heidy achou que era o limite. Pegou um avião de volta para a Suíça com os três filhos, encerrou o casamento e a paciência. Walter casou com uma maranhense, naturalizou-se brasileiro e entregou-se à conquista do novo mundo. Com tanto afinco que hoje existe um escritório em Zurique só para capturar investimentos para Roraima. Perto de US$ 20 milhões já foram semeados na região de lavrado. “Sou brasileiro por escolha, daqui ninguém me tira”, diz. Para provar, em terra tão desconfiada , ergueu ele mesmo um monumento pelos 500 anos. Nem assim o perdoam. “Quantos será que esse suíço matou para se esconder no fim do mundo?”, cochicham. Walter logo demonstra que se transformou num genuíno made in Roraima. Um paradoxo ambulante, portanto. “Os estrangeiros querem tomar conta da Amazônia”, alerta.

Os interesses internacionais sobre o que de mais verde e amarelo há no mapa revolvem os brios e a imaginação dos militares plantados em Roraima. Eles marcham pelos salões da sociedade local com toda a pompa. E uma circunstância que desde o fim da ditadura já perderam ao sul do Brasil. A principal ameaça estrangeira, na concepção de mundo de alguns oficiais, atende pelo nome de Conselho Indígena de Roraima (CIR). Sim, são os índios ligados ao presidente do CIR, o macuxi Jacir de Souza, e ao padre Jorge que conspiram contra o Brasil. “O CIR é uma ONG e como ONG está numa posição contrária aos interesses nacionais, na medida em que é contra a instalação do pelotão em Uiramutã”, brada o general Claudimar Magalhães Nunes, de 53 anos, espigado como uma espada. “Um Estado com 50% de áreas indígenas é um verdadeiro absurdo, emperra o desenvolvimento.”

Nas fileiras nativas alinhadas ao Exército, o ex-vereador, diácono da Igreja Batista Popular e também índio, Jonas Marcolino, de 33 anos, profetiza. Tem as mãos postas na Bíblia: “O povo de Deus não é só joelho no chão. É guerreiro e nunca perde batalha. Não vamos perder nosso direito à energia elétrica, à televisão e à educação por causa do padre Jorge e do CIR. Essa é uma guerra entre o povo de Deus e o povo do diabo”.

Deus é muito popular em Roraima. O problema é que lá, como no resto do mundo, não se sabe bem de que lado está. O crente Francisco Gildo dos Santos, de 35 anos, tem certeza de que ele acompanha cada um de seus passos tristes, muitas vezes descalços até de esperança. Cada um deles tão difícil, tão moroso de consumar. Para alcançar a mulher, Cleonice, e os dois filhos trabalhou cinco dias como pedreiro em Santarém. Com os R$ 50 recebidos chegou a Manaus. Mais nove dias de labuta numa fruteira para completar a passagem. Ao todo 14 dias sonhando com uma casa sua na mais nova terra de leite e mel. “Uma casa, rapaz, de qualquer maneira, uma casa de madeira bem fechada, um quarto para cada filho, um computador, uma geladeira para beber água fria e um vídeo para ver filmes de pregação”, ergue os alicerces de sua utopia enquanto assenta o tijolo de mais um edifício de doutor.

Desembarca na rodoviária de Rorainópolis sem um centavo, a mesma quantia que possuía a mulher. “Cadê a minha Cleonice?”, pergunta à moça do guichê. “Procura a casa de porta vermelha e bate. Corre homem, já é madrugada.” Francisco caminha com a trouxa no ombro, pedindo ajuda à lua para não passar batido pela cor de seu destino. “Quem é?”, pergunta Cleonice, o coração pulando feito um cabrito. “É eu”, responde Francisco, a alma escapando pelas falhas dos dentes. Assim começa mais uma saga em Roraima.

E outra termina. Armados de paus, os ianomâmis se confrontam. Ao lado do xaruna se posta a aldeia de Komomassipe. Polassai e Roxeana defendem o makabei. Chicão vence a disputa ritual. Toma sua índia de volta. A paz retorna ao território. Nunca por muito tempo. Objetos de amor e guerra, as mulheres movem os homens por seu destino. Oficialmente, são condenadas à passividade. Na prática, comandam mais do que confessam os fios invisíveis de suas vidas. Os roubos são consentidos, muitas vezes combinados. Como em outras culturas, as fêmeas vencidas pela força tramam seus ardis no território que dominam melhor, o da sutileza, seguidamente o do embuste. Defendem-se. Na teia de seus enredos tombam os machos. É assim, provam os ianomâmis, desde o começo do mundo.

Mais um dia comum em Roraima. No oeste os ianomâmis açulam as fogueiras eternas, nus como eram os homens no princípio dos tempos. Os dentes afiados trituram manduruvás assados na brasa. No leste, Maurício Habert mal se contém. Espera mais uma carta com selo da França provando que o pai nunca foi parceiro de Papillon na Ilha do Diabo, menos ainda homossexual. O fundador de Normandia pode até ter sido ladrão, mas muito macho. No sul, de braço dado com Cleonice, Francisco desfila por Rorainópolis. Veste uma camiseta estampada com a imagem da prefeita, expediente aconselhado por outros migrantes para conseguir uma casa. Na rádio de poste da cidade, conhecida por A Voz, o locutor Zé Passos avisa em tom solene: “Homem está precisado de uma mulher de 40 anos para cá, filho só pequeno, para compromisso”. No norte, os macuxis seqüestram um par de botinas e uma boina dos militares para mostrar quem manda naquela quina de Brasil. Diante do ataque estrangeiro, o valente general ameaça tomar os troféus de guerra “na marra”.

Não há dias comuns em Roraima.

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ELIANE BRUM.
Olho da Rua: Uma Repórter Em Busca da Literatura da Vida Real.
Pg. 40.

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