PROIBIDO ESQUECER – Os deveres da memória em tempos de genocídio: O caso “Black Earth Rising” (BBC/Netflix)

“A million candles burning
For the help that never came
You want it darker
We kill the flame…”
LEONARD COHEN

Ruanda, 1994: cerca de 800.000 pessoas são assassinadas em 100 dias de carnificina. Recontada no cinema em Hotel Ruanda (de Terry George, 2004), em livro-reportagem no Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas Famílias de Philip Gourevitch (Cia das Letras) e nos romances de Scholastique Mukasonga (três deles publicados no Brasil pela Editora Nós), a história do genocídio ruandês agora volta à tona: Black Earth Risingsérie de 8 episódios produzida pela BBC e que está no acervo da Netflix, retrata os traumas e cicatrizes que marcam os sobreviventes, as testemunhas e os perpetradores deste monumental e trágico evento histórico. Ao fim do século 20, a violência ainda inundava a História Humana, este pesadelo do qual tentamos acordar (para lembrar do personagem de James Joyce, S. Bloom, que afirma no Ulisses: “History is a nightmare from which I am trying to awake”). [1]

Escrita, produzida e dirigida por Hugo Blick (também responsável pela minisérie The Honourable Woman (A Mulher Honrada), Black Earth Rising foca no trabalho de uma equipe de juristas que dedicam suas vidas ao esforço de penalização de genocidas e criminosos-de-guerra, processados em tribunais penais internacionais como o de Haia (Holanda). A personagem principal, Kate Ashby (interpretada por Michaela Coel), atravessa radicais transformações de identidade em uma trajetória para desocultar os segredos de seu passado: ela era uma criança em meio à matança generalizada deflagrada em 1994 lá em sua terra natal Ruanda, e que se estendeu pelos anos seguintes no país vizinho (Zaire / Congo).

Sem memórias claras de sua primeira infância, Kate – que foi adotada pela advogada inglesa Eve Ashby – só poderá compreender muito mais tarde os maiores mistérios de seu destino prévio. Transformada numa mulher em ação, na luta pela memória e pela justiça, ainda que tardias, Kate Ashby vai numa jornada em busca do tempo perdido bastante peculiar, desvelando os nós que entrelaçam seu destino pessoal com os destinos coletivos dos povos do Continente Matriz da humanidade, a África.

Em entrevista à BBC, Blick revelou um pouco do que o inspirou a realizar a série:

“Onde eu cheguei não é o destino que eu esperava. Alguns anos atrás, olhei para os julgamentos de Nuremberg como parte de uma pesquisa de fundo para a série “A mulher honrada “. Consequentemente, fiquei interessado em explorar como perseguimos hoje os criminosos de guerra internacionais. Comecei com o Tribunal Penal Internacional (TPI) e fiquei surpreso ao descobrir, no momento da minha pesquisa, que a maioria, senão todas as acusações formais, eram contra africanos – negros africanos. Isso então me atraiu para o Congo. O TPI não estava apenas perseguindo os perpetradores do genocídio de Ruanda, fiquei ainda mais intrigado ao descobrir que ele também estava perseguindo indivíduos que ajudaram a pôr fim ao genocídio. Ambos os lados eram procurados pelo TPI por supostas atrocidades cometidas na República Democrática do Congo após o genocídio em meados da década de 2000. Eu queria entender por que aparentes vilões e heróis estavam sendo perseguidos. E quanto mais eu olhava, mais fundo eu tinha que ir. ” (BLICK, Hugo. BBC.) [2]

A compreensão do que ocorreu em Ruanda, em 1994, é um desafio cognitivo tremendo. As dificuldades começam pelo fato de que poucos tem estômago para mergulhar no estudo de fenômenos que são tão chocantes e angustiantes, devido à escala monumental do horror e da violência que envolvem. Philip Gourevitch escreve, sobre aquela época, de maneira bem punk, que “o governo ruandês adotara uma nova política, segundo a qual todo mundo do grupo majoritário hutu era convocado a matar todo mundo da minoria tutsi. O governo e um impressionante número de seus súditos imaginavam que exterminando os tutsis poderiam fazer do mundo um lugar melhor – e o assassinato em massa começou.” (GOUREVITCH, P. Cia das Letras, leia um trecho) [2]

O trecho de Gourevitch estabelece uma distinção entre a minoria Tutsi e maioria Hutu, afirmando que a maioria, através do assassinato em massa da minoria, “imaginavam que poderiam fazer do mundo um lugar melhor”, o que é o supra-sumo do contra-senso: utilizar um meio como o assassinato em massa para atingir a finalidade de um mundo melhor é algo estapafúrdio. Só temos a lamentar a crença de muitos na tese de que “o fim justifica os meios”, quando na verdade meios atrozes e cruéis sempre hão de conspurcar os fins, mesmo os supostamente mais elevados. Creio, porém, que o buraco é mais embaixo, que o ímpeto idealista de fabricar uma realidade social melhorada através da purificação, da limpeza étnica, está calcada num dos mais sérios problemas a desgraçar a caminhada humana sobre o planeta – o racismo. Tema que Black Earth Rising evita encarar de frente.

Outra dificuldade que se interpõe como obstáculo na nossa tentativa de compreensão das ocorrências em Ruanda, em 1994, parece-me ser a seguinte: por comodismo e facilidade, ou seja, pela lei-do-mínimo-esforço que preside o trabalho de muitas mentes que se abandonam ao Império da Preguiça, temos uma certa tendência a simplificar as coisas através da perigosa prática do binarismo – e também do maniqueísmo que muitas vezes o acompanha. Usualmente, desejamos enquadrar o mundo e a história em um esquema em que separamos o joio do trigo de modo bastante tosco: há vilões e heróis, bandidos e mocinhos, a luta entre o Bem e o Mal, “ou você está conosco ou está contra nós” (recentemente, um presidente genocida como George W. Bush reciclou esta desgraça de maniqueísmo binário ao lançar sua Guerra Contra o Terror).

A realidade, porém, é muito mais complexa e destroça nossos binarismos maniqueístas. Jamais faríamos o mínimo de Justiça, nem honraríamos os deveres da Memória, tentando enquadrar, em massa, Tutsis e Hutus em uma dessas categorias: Vítimas e Carrascos. Precisamos ir além do simplismo de opor uma “coitada minoria massacrada” e uma “desumana maioria assassina”. Temos que complexificar o quadro e olhar de frente no rosto da Besta Humana. Pois a Humanidade sabe muito bem ser desumana. Nossa união ainda está por ser inventada.


PARA ALÉM DO BINARISMO E DO MANIQUEÍSMO

Um dos ensinamentos de Black Earth Rising é que não podemos cair no binarismo fácil de classificar estas etnias como vítimas (Tutsis) carrascos (Hutus) – as posições de vítimas e carrascos são muito mais intercambiáveis. Ser um Tutsi não é um atestado de vítima, nem imuniza a pessoa contra o cometimento de atrocidades, nem tampouco ser um Hutu é um atestado de genocida, nem impede a pessoa de militar em prol da convivência pacífica.

É isto que Kate Ashby não consegue compreender a princípio: ela está aferrada à noção de que os Tutsis são as vítimas, os Hutus os genocidas. Aferrada, além disso, à crença sobre si mesma: está certa de que é uma Tutsi sobrevivente do genocídio, e tudo fará para que os responsáveis pelo morticínio escapem da impunidade de que ainda gozam. Por isso Kate suporta tão mal que sua mãe tente incriminar em Haia o General Simon Nyamoya, um chefe Tutsi que ajudou a pôr fim ao massacre, em 1994, mas depois se envolveu em crimes de guerra e tráfico de minérios no Congo, além de ter participado de uma carnificina contra um campo de refugiados Hutu em território congolês.

Baseado em fatos reais que o Mirror reconta, assim como a reportagem da BBC, Black Earth Rising merece ser vista na íntegra para que se possa ter uma experiência plena das metamorfoses de Kate Ashby no decorrer da série. Ema espécie de 1º ato, Kate Ashby reluta em ver seu herói Nyamoya sendo destronado, caindo do pedestal em que ela, e tantos outros, mantinham-no. É uma primeira amarga lição, que a impede de idealizar cegamente os chefes Tutsis que lutaram para pôr fim ao genocídio em 1994: apesar de “libertador” dos Tutsis que estavam sendo massacrados, revela-se que Nyamoya também é culpado por crimes contra a humanidade e limpeza étnica – sobretudo no episódio do “desmantelamento” (eufemismo para extermínio!) do campo de refugiados Hutus no Congo.

Mais para o fim da série, será revelado que a própria Kate esteve neste campo, sendo dele resgatada por um ativista de ONG. Quase no desfecho da série, Kate está dentro de uma cova coletiva, temendo por sua vida, como se tivesse ganho algumas décadas de sobrevivência para finalmente perecer no buraco onde deveria ter ficado enterrado seu cadáver infantil, mas percebe que um mutirão de pessoas decidiu, como ela, trabalhar para trazer à tona no presente os ossos enterrados de uma História mal contada e ocultada.

Não é possível compreender as ocorrências de que fala a série com o nosso foco exclusivamente em Ruanda em 1994: os precedentes do genocídio incluem necessariamente as ações das grandes nações imperialistas do Ocidente. Não é fora de propósito averiguar quanto do sangue derramado em Ruanda tem origens numa insanidade racista que foi inicialmente propagada pelo colonizador europeu e pelas ideologias supremacistas que marcaram não apenas o nazifascismo, mas também o escravismo nos EUA calcado na white supremacy. Sim, precisamos falar sobre ideologias racistas típicas do imperialismo “ocidental” – aquele que praticou por séculos a escravidão contra milhões de africanos – para chegar perto de entender melhor o destravamento das carnificinas ruandesas de 1994.

No fim do século XX d.C., a Humanidade descobria, atônita, nossa resiliente capacidade para o pior, somada à nossa incapacidade de autenticamente aprender com erros passados e suas funestas consequências. Parecíamos condenados a repetir, com Maslow: “O Horror! O Horror!”, frase com que se encerra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, retrato do Congo belga no livro que depois se transformou em Apocalypse Now (filme de F. F. Coppola). O pesadelo do fratricídio entre Tutsis e Hutus segue desafiando nossa Razão a decifrar seus porquês – e diante de vidas humanas reduzidas em massa à morte, é preciso cuidado redobrado naquilo que dizemos e escrevemos. Aqui estou na postura de quem se estarrece que acontecimentos assim estejam entre nossos possíveis, mas não na postura de quem traz todas as respostas em uma bandeja.

Pelo contrário, trago uma bandeja cheia de questões: nós, que nos acostumamos a pensar sobre o racismo como um fenômeno vinculado ao “preconceito de cor”, para lembrar um samba de Bezerra da Silva, como podemos reconfigurar nossa compreensão do racismo diante daquilo que parece ocorrer entre grupos humanos que não estão separados pela barreira epidérmica das dosagens de melanina? O III Reich hitlerista assassinou em massa judeus e bolcheviques, homossexuais e ciganos, mas não consta que tenha visado, como alvos, as populações de descendência africana que estavam naquela Europa que o nazismo pretendeu subjugar a seu sinistro império. Porém, o Holocausto – o genocídio imposto pelo governo nazifascista alemão a mais de 6 milhões de judeus europeus – não é menos racista pelo fato de que, olhado através de um viés bem superficial, trata-se de brancos matando brancos, europeus chacinando europeus.

Algo semelhante me angustia diante do contexto em Ruanda nos anos 1990: Tutsis e Hutus não são distinguíveis por sinais visíveis – similarmente, olhando através de um viés epidérmico, de uma perspectiva que pára na pele, trata-se de negros matando negros, africanos chacinando africanos. O racismo estaria, portanto, riscado da lista de motivações possíveis para estes genocídios? Não creio. O que exige repensar o racismo de modo mais aprofundado, como uma espécie de crença coletiva que um grupo social compartilha e que inclui a desumanização de um outro grupo social. Um dos elementos mais interessantes de Black Earth Rising está na flutuação identitária que o seriado retrata ao descrever as descobertas bombásticas que realiza, em sua vida, a personagem Kate Ashby.

Para todos os efeitos, Kate Ashby aparece-nos, no começo da série, como uma cidadã britânica, uma falante da língua inglesa, uma londrina que cresceu sob os cuidados de sua mãe adotiva, a célebre jurista Eve Ashby. Porém, Kate Ashby é um nome postiço e tardio que vem para encobrir o anonimato de uma criança que sobreviveu sozinha ao genocídio: sem familiares nem amigos que pudessem dizer seu autêntico nome, privada das informações sobre seu batismo africano originário, ela se torna uma sobrevivente do genocídio ruandês a quem se oferece um novo começo no United Kingdom: cresce acreditando, a partir das narrativas que lhe contaram, que é uma Tutsi, sobrevivente de um massacre cometido pelos Hutus.

Qual não será a sua surpresa quando descobrir, conforme avançam suas investigações relacionadas com a tentativa de condenação em Tribunal Penal Internacional do general Hutu Patrice Ganimana, que na verdade Kate Ashby foi em sua primeira infância algo bem diferente de uma criança Tutsi sobrevivente de um genocídio: era uma criança Hutu que deixou o país após o fim da carnificina, tornando-se uma emigrante e depois uma refugiada no país vizinho, então o Zaire, hoje a República Democrática do Congo. A mulher que se conhece por Kate Ashby, cujo nome africano nunca se soube, descobre que lhe mentiram sobre as circunstâncias em que foi resgatada em meio à insana matança dos adultos que a rodeavam: ela acreditava ser um Tutsi que perdeu tudo devido a sanguinários Hutus, e descobre que era uma Hutu que sobreviveu a um massacre perpetrado contra um campo de refugiados no Congo onde estavam 50.000 pessoas, cerca de 9.000 delas crianças.

O que pensar sobre o tema da identidade diante deste caso? Apesar de fictício, o enredo de Black Earth Rising pode nos instigar a seguinte reflexão: nossa identidade não é independente das narrativas que interiorizamos sobre quem somos e sobre a qual grupo social pertencemos. Kate Ashby, em Black Earth Rising, é sempre descrita como uma pessoa sob o risco de colapso psíquico: no primeiro episódio, ela consegue pílulas para tentar controlar seus ímpetos suicidas e faz uma piada com a obra de Primo Levi, judeu sobrevivente do Holocausto. O fato de ser uma sobrevivente de genocídio é essencial à sua identidade, mas os fragmentos de seu passado que ela usou para compor sua auto-imagem revelam-se falsos.

Ela se vê então envolvida numa teia de acontecimentos em que seu destino individual se mescla com o destino de sua pátria e de todo o continente africano: Kate Ashby não está apenas numa viagem de “auto-descoberta”, mas também presa numa teia coletiva e histórica em que terá que reconsiderar radicalmente tudo o que acreditou sobre si, sobretudo a crença de sua pertença à raça/etnia Tutsi.

Um dos grandes temas de Black Earth Rising é o direito à memória e à verdade. A essência dos discursos da personagem Alice Munezero vão neste sentido, o de conclamar-nos para que acessemos o passado em sua verdade, pois em nada contribui para a reconciliação você recalcar o passado coletivo, não permitindo que venham à tona certos episódios que certos grupos não julgam convenientes tornar conhecidos e públicos. A lição que tiro disto é que não devemos “essencializar” a diferença entre Tutsis e Hutus, nem entre nazistas e judeus, como se houvesse de fato uma diferença de essência entre eles que justificasse a noção de que cada grupo pertence à uma diferente raça. Se a diferença não é de essência, é preciso que ela esteja em outra parte, que a diferença seja de pertença, de cultura, de aprendizado, de interiorização narrativa, em suma: de educação. Nurture, not nature.

O racismo, pois, é um construto: não existem raças humanas, mas sim grupos humanos capazes de acreditar na supremacia étnica ou racial. Não parecem existir justificativas para cindir a humanidade em raças superiores e inferiores por razões genéticas, como quiseram fazer os eugenistas de todos os tempos, o que nos conduz à tese de que o problema está de fato na presunção de superioridade que certos grupos acabam interiorizando como uma espécie de item narcísico identitário. Esta crença supremacista – que leva o sujeito à fé de que pertence a um grupo social, ou casta, ou raça, que é melhor, mais superior, mais civilizado, mais humana que o grupo, casta ou raça inferiorizado e desumanizado – está na raiz do problema.

Por isto a educação também está: se não “genes-Tutsi” nem “genes-Hutus”, ou seja, se ninguém nasce com um DNA Tutsi ou Hutu, estas diferenças são construídas, ou seja, as pessoas são ensinadas a aderir a uma certa pertença comunitária que define sua identidade. Se foram ensinadas, ou seja, culturalmente determinadas, isto significa, como é evidente, que a educação e a cultura, transformadas e revolucionadas, são as forças principais para que o racismo construído cesse de sê-lo. Raças humanas nunca existiram, agora é nossa tarefa desconstruir, criticar e aniquilar os racismos para que também eles cessem de ser.

O racismo a que me refiro, ou seja, esta presunção de superioridade e este supremacismo étnico-racial motivado por uma pertença identitária, pode se amparar em características corporais ou epidérmicas – como foi no racismo instituído no Sul dos EUA durante o domínio da white supremacy ou na África do Sul na vigência do apartheid. Mas a crença supremacista pode se amparar em outros elementos, menos epidérmicos, aparentemente desvinculados de questões cromáticas e das aparências do corpo humano.

Hoje, não resta muita dúvida de que Adolf Hitler e o regime que chefiou era alicerçado no racismo instituído, na fantasia de domínio dos “arianos”. E tampouco me parece contestável a tese, defendida por Domenico Losurdo (entre outros), de que há muita similaridade entre os nazis arianistas e os supremacistas brancos dos EUA; há mais em comum entre a Ku Klux Klan e o nazismo do que sonha a liberal filosofia… A insana “originalidade” do hitlerismo foi tratar judeus e bolcheviques como se fossem negros no Sul dos EUA na era escravagista. Se as raças humanas não existem de fato, como podem garantir muitos cientistas, o racismo de fato existe como fenômeno ideológico e como práticas instituídas, de modo que o combate ao racismo permanece necessário e urgente, sendo um dos grandes desafios educacionais que deve mobilizar os esforços de todos nós que trabalhamos com educação, comunicação social e mobilização de massas. Como disse Nelson Mandela:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” –
Nelson Mandela, “Long Walk to Freedom”, 1995. [3]

Genocídio é uma palavra nova, um fruto macabro da época que o historiador Hobsbawm chamou de “A Era dos Extremos”. Através de livros como A Problem From Hell, de Samantha Power, e de filmes como Watchers of the Sky, de Edet Belzberg (2010), podemos aprender que o termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin (1900-1959) e une o cide (assassinato em latim) e o genos (família, tribo ou raça em grego) para forjar um conceito que se refere ao assassinato em massa cometido por ódio étnico-racial. O antropólogo anarquista Pierre Clastres posteriormente irá distinguir o conceito de genocídio do conceito de etnocídio, em Arqueologia da Diferença. Aqueles que acompanham o cenário musical também sabem dos esforços de artistas atuais como M.I.A. (rapper inglesa, de origens no Sri Lanka), na denúncia de processos genocidários que ocorrem hoje contra os Tamil do Sri Lanka ou os Rohingya de Mianmar, ou do System of Down, banda de heavy metal que sempre quis relembrar episódios de m passado esquecido por muitos, como o Holocausto armênio de 1915 – 1923, tema também do filme The Cut de Fatih Akin.

Diante do genocídio ruandês, a pior das explicações é aquela que culpabiliza os próprios ruandeses por terem descido à barbárie de “uma insanidade tribal”, como diz um burocrata governamental inglês em Black Earth Rising. Esta explicação, de um racismo velado, parece atribuir toda a culpa às insanidades do tribalismo africano, conduzindo à noção eurocêntrica e supremacista de que as afiliações e pertenças étnicas dos ruandeses “atrasados” e “primitivos” são as culpadas pelo horror. Na verdade deveríamos estar nos perguntando qual é o grau de responsabilidade do Imperialismo Ocidental – que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, sendo que foram necessários muitos movimentos anticolonialistas na África e na Ásia após 1945, em luta por libertação!

As ideologias de supremacismo étnico-racial são bastante típicas de países que foram impérios escravocratas sediados na Europa, e não é fora de propósito supor que estas ideologias racistas possam ter sido exportadas pelos imperialistas colonizados, acabando por contaminar os povos colonizados: a Bélgica, a França, a Alemanha, a Grã-Bretanha, não podem se eximir de toda a responsabilidade pelo que se passou em Ruanda em 1994. Além disso, diante de 800.000 mortos em 100 dias, precisamos nos perguntar também: Estados Unidos da América, que pretendia ser após o colapso da URSS e da queda do Muro de Berlim, uma espécie de Xerife Global e o Super-poder de um mundo Unipolar, em um contexto em que Fukuyama previa o “fim da História” com o triunfo final do capitalismo liberal globalizado, por que diabos o Tio Sam, ou melhor, suas maiores autoridades, fizeram tão pouco e foram tão ineficazes para conter a carnificina, para amainar sua fúria, para salvar dezenas de milhares de vidas? A resposta de Samantha Power, vencedora do Prêmio Pulitzer, é chocante mas me parece verdadeira:

Romeo Dallaire, a Canadian major general who commanded UN peacekeeping forces in Rwanda in 1994, appealed for permission to disarm militias and to prevent the extermination of Rwanda’s Tutsi three months before the genocide began. Denied this by his political masters at the United Nations, he watched corpses pile up around him as Washington led a successful effort to remove most of the peacekeepers under his command and then aggressively worked to block authorization of UN reinforcements.The United States refused to use its technology to jam radio broadcasts that were a crucial instrument in the coordination and perpetuation of the genocide. And even as, on average, 8,000 Rwandans were being butchered each day, the issue never became a priority for senior U.S. officials. Some 800,000 Rwandans were killed in 100 days. No U.S. president has ever made genocide prevention a priority, and no U.S. president has ever suffered politically for his indifference to its occurrence. It is thus no coincidence that genocide rages on…” SAMANTHA POWER [4]

É bem-vinda a chega entre nós de Black Earth Rising, que demonstra que BBC e Netflix eventualmente se interessam por temas tão importantes quanto o direito à memória, a difícil concretização de uma justiça penal internacional e os mecanismos de prevenção ao genocídio. A série é ótima, no geral, apesar de algumas falhas – dentre estas, eu mencionaria que a série jamais revela porquê Kate Ashby teria sido iludida com mentiras explícitas por todos ao seu redor, sendo convencida de que era uma Tutsi e não uma Hutu. Qual o sentido desta teia de mentiras que depois será duramente desfeita? Apesar destes pontos obscuros, Black Earth Rising é uma obra potente, repleta de protagonismo feminino, que retrata também o empoderamento da mulher negra em espaços de poder, inclusive através da personagem da presidenta de Ruanda e seus dilemas no sentido de avançar no sentido da justiça social, tendo como uma das dificuldades maiores o neo-imperialismo que se manifesta pela fome ocidental por minérios. Sabemos que as minas de cobalto e outros minérios, em Ruanda e no Congo, estão na mira de várias corporações internacionais que fabricam celulares e computadores (vejam o documentário Blood in The Mobile).

Em uma das cenas mais inesquecíveis, Kate Ashby revisita em Ruanda uma igreja onde centenas de Tutsis foram massacrados. Transformada em Museu, a igreja agora acolhe apenas as roupas ensanguentadas dos que pereceram no massacre, assim como o Museu do Holocausto em Berlim visa dar uma noção do tamanho do extermínio perpetrado pelos nazis ao empilhar sapatos, aos milhares, dos que pereceram nos campos da morte erguidos pelo III Reich.

Diante de uma estátua de Cristo sem cabeça, Kate Ashby parece ter sua vida invadida pelos fantasmas de todos os massacrados, num transbordamento psíquico tão insuportável que ela precisa, na saída da igreja, chorar convulsivamente e buscar amparo no peito daquele que ela foi ensinada a odiar, um Hutu – que também foi ensinado a odiá-la. Instantes depois, conduzida ao local onde os refugiados Hutus no Congo foram massacrados pelos Tutsis, ela se surpreende com a aparição de centenas de pessoas da comunidade que decidem cavar para revelar, através da cruel pedagogia dos ossos, uma verdade que estava enterrada.

“She risked her future to uncover her past“, diz a frase no cartaz de Black Earth Rising: de fato, Kate Ashby tornou-se um emblema, concedido à Humanidade por uma competente teledramaturgia, de alguém que tem a ousadia de ir atrás do desocultamento de verdades, por mais amargas e cruéis que sejam, arriscando seu futuro para desocultar seu passado. Ensina, assim, sobre a importância suprema de cumprirmos com nossos deveres de memória e com nossos trabalhos de justiça, pois a possibilidade dos genocídios do futuro dependem de nossa negligência presente em aprender com o passado. Se nos recusarmos à lembrança e não buscarmos trazer à justiça carrascos e genocidas, só estaremos contribuindo para que nosso futuro esteja tão repleto de atrocidades quanto nosso passado.

Na canção tema da série, o bardo canadense Leonard Cohen canta um sombrio folk que fala sobre “um milhão de velas queimando por uma ajuda que não veio”. Sinistro, Cohen evoca o serviço atroz daqueles que se engajam nas tarefas do obscurantismo e querem tornar tudo, para todos, mais escuro (“you want it darker? we kill the flame…”). Diante disso, precisamos ser os que re-acendem a Iluminação plena para que esta se espraie pela História, aumentando nossa compreensão corajosa dos horrores que se passaram, de modo a evitar os genocídios do porvir – infelizmente prováveis, possíveis e plausíveis em uma época em que estão empoderados genocidas-em-potencial como Jair Bolsonaro, racista, misógino, homofóbico, notório defensor de Ditaduras Militares, fã de criminosos-contra-a-humanidade como Ustra, Pinochet e Stroessner, que prega o extermínio de opositores políticos e jamais escondeu suas posturas de supremacista branco que mede “afrodescendentes” em “arrobas”.

Em meio à pandemia de covid-19 em 2020, vimos Bolsonaro ser denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional de Haia que é cenário para Black Earth Rising. O presifake brasileiro, denunciado por incitação ao genocídio, demonstrou através de sua criminosa irresponsabilidade perante à crise da saúde coletiva, e também por sua participação em atos públicos que demandavam o colapso das instituições democráticas, que é um atroz agente de uma necropolítica do assassínio-em-massa e do ocultamento da História.

O Bolsonarismo deseja desmantelar o direito do povo brasileiro à memória e à justiça, cuspindo naqueles que trazem à luz os ossos de nosso passado real como se não passassem de cães, quando na verdade são figuras como o “Seu Jair” que, através da História, propiciaram as condições para os “massacres administrativos” e para a “banalidade do Mal” de que nos fala Hannah Arendt. Black Earth Rising nos ajuda a aprender que a atrocidade terá longo futuro enquanto formos incapazes de iluminar, com nossa compreensão e lucidez, com a coragem de nosso conhecimento, as atrocidades passadas e hoje ainda infelizmente tão possíveis. Só o passado iluminado pela lucidez atual é capaz de dar força e energia para que a geração atual possa ir mudando os rumos que já se mostraram que conduzem ao abismo e à carnificina.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020

Link para este artigo:
https://wp.me/pNVMz-6p1.

REFERÊNCIAS

[1] JOYCE, JamesUlisses.

[2] BLICK, Hugo. Entrevista à BBC.

[3] GOUREVITCH, Philip. Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas FamíliaCia das Letras.

[4] MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom, 1995.

[5] POWER, Samantha. A Problem from Hell: America and the Age of Genocide. 

VÍDEOS RECOMENDADOS:

SAMANTHA POWER:

LINKS DE INTERESSE: The GuardianCineset

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A Ofensiva do MinoTaurus: Austeridade, Armamentismo e Plutocracia || A Casa de Vidro

A OFENSIVA DO MINOTAURUS
Por Renato Costa & Eduardo Carli

O filme de terror que não sai de cartaz no Brasil de 2019 evoca a lembrança do mito grego do Minotauro. Este ser de natureza híbrida entre o humano e o bestial, encerrado dentro do labirinto do rei Minos de Creta, devorava ano a ano jovens atenienses entregues, como tributo em carne viva, ao feroz paladar da besta – até ser chacinado pela expedição de Teseu e Ariadne (saiba mais sobre este mito).

Aquilo que poderíamos chamar de massacre dos inocentes, para lembrar o título de uma obra do sociólogo José de Souza Martins, está funcionando a pleno vapor nesta época de predomínio da extrema-direita. Um símbolo deste predomínio é o monstro papavidas, a besta necrofílica, que aqui cognominamos MinoTaurus.

No Brasil, um dos piores exemplos da Ofensiva do MinoTaurus é a empresa brasileira de armas e munições que, sob a batuta Bolsonarista, está contente de obter lucros estratosféricos com a venda dos instrumentos da morte violenta: a Taurus já é a 4ª empresa no mercado armamentista dos EUA, onde está sendo denunciada e processada por vender armas com defeito (que no Brasil já ocasionaram 50 mortes). Em sua campanha eleitoral, Bolsonaro foi garoto propaganda da Taurus, apesar da fraude internacional de 600 milhões de reais envolvendo os seus controladores.

Uma reportagem do The Intercept Brasil, Um Monopólio Que Mata, destrinchou que “armas defeituosas da Taurus matam impunemente, blindadas pelo lobby e pelo Exército”. Chegando ao poder, Jair Bolsonaro publicou o Decreto Nº 9.785, de 7 de maio de 2019,  que a princípio muito bem recebido pela empresa.Sinal de que o MinoTaurus se assanhou com gozo foi a reação do presidente da empresa armamentista,  Salesio Nuhs, em entrevista ao Correio Brasiliense:

“A Taurus entende que o decreto assinado pelo presidente da República Jair Bolsonaro poderá aumentar de forma relevante a procura por armas de fogo pelos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e cidadãos de bem para sua legítima defesa e da propriedade. O Decreto é um marco neste seguimento e a Taurus está pronta para atender todo o aumento de demanda.” Porém, recente reportagem de Brasil de Fato, publicada em 22 de Maio de 2019, traça um quadro das tensões do Bolsonarismo com o monopólio armamentista da Taurus. Seja como for, com a extrema-direita Bolsonarista no poder, estamos claramente diante do triunfo de Tânatos sobre Eros  e da ascensão de uma perversa e nefasta Necropolítica.

O catastrófico crash do capitalismo globalizado em 2008 inaugurou uma era de hegemonia de uma “ideia perigosa”: a austeridade. Segundo o cientista político escocês Mark Blyth, da Brown University, “a austeridade é a penitência – a dor virtuosa após a festa imoral -, mas não vai ser uma dieta que todos partilharemos. Poucos de nós são convidados para a festa, mas pedem-nos a todos que paguemos a conta.” [1] Ao estudar a evolução da perigosa noção de austeridade, desde a época de Locke, David Hume e Adam Smith até chegar nos neoliberais como Hayek e Milton Friedman, o autor tenta provar que a austeridade simplesmente não funciona.

Neste artigo, propomos uma análise da ofensiva desta Besta a partir de três de suas cabeças: a austeridade, o armamentismo e a plutocracia. Três elementos que se explicitam quando atentamos para o noticiário, repleto de notícias sobre cortes no financiamento público de políticas sociais (a exemplo do atual corte de recursos para a rede federal de educação, imposto pelo MEC, e que sofreu a histórica resistência tsunâmica do Maio de 2019); sobre o libera-geral das armas de fogo e da violência policial genocida (sendo que Bolsonaro, Moro e Witzel agem como necro-políticos que fazem a festa dos lucros de empresas como a Taurus); sobre um projeto de reforma da previdência que impõe a vontade da plutocracia e faz com que o Estado brasileiro fortaleça sua insana tendência a ser um Robin Hood às avessas.

VÍDEO RECOMENDADO: Mark Blyth on Austerity

Grande conhecedora da obra de Blyth, e autora do prefácio de seu livro, a economista Laura Carvalho é uma das vozes mais fortes a esclarecer a opinião pública no Brasil sobre um monstro que vem sendo chamado de “Robin Hood às avessas”, outro dos cognomes do nosso “MinoTaurus”.

Em seu livro Valsa Brasileira, Laura Carvalho escreveu:

Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem exclusivista e punitivista da marginalidade social.

A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie. – CARVALHO, Laura. “Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico”. Editora todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

Na esteira de Blyth, Carvalho dá um excelente exemplo de austeridade à brasileira ao lembrar de uma fala de Michel Temer, uma das piores expressões do capitalismo austero, que em abril de 2017, em defesa da PEC do teto de gastos públicos, disse que  “governos precisam passar a ter maridos” [2].

Ou seja, o governo é aí enxergado pelo viés masculinista: o Estado deve ser controlador como um “patriarca”, um maridão que fala grosso e controla com mão de ferro a economia doméstica fazendo uso de um instrumento supremo: a tesoura. Cortes e cortes e mais cortes nos serviços públicos é o que prega esta governamentalidade neoliberal colonizada pela noção de Estado mínimo. 

Austeridade, conceito de teor moral (e moralista) aplicado ao âmbito da economia capitalista globalizada pós-crise (o crash de 2008 é considerado o pior desde a Grande Depressão iniciada em 1929), é um elogio hipócrita do recato feito por homens que já se esbaldaram até o excesso na ganância e no financeirismo plutocrático.

Austeridade é a máscara de moralidade que visa vestir o capitalismo financeiro: “Em última análise”,  escreveu John Cassidy em The New Yorker, “a economia não pode ser divorciada da moral e da ética. A falha da austeridade não é apenas uma questão de decepção com PIB e déficits. É uma calamidade humana, e uma que poderia ter sido evitada.” [3]

No Brasil, uma das mais importantes iniciativas em prol do debate sobre austeridade são os livros publicados pela Editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Perseu Abramo e Partido dos Trabalhadores, que integram o selo “ECONOMIA DO COMUM: ANTIAUSTERIDADE”. Após a crise de 2008, uma das piores de toda a história do capitalismo, muitas corporações capitalistas, em especial as financeiras, que colapsaram e quase foram à falência, foram resgatas da bancarrota com dinheiro público…

“A ‘reestatização’ dos bancos aplicou um socialismo ao avesso, onde socializavam os prejuízos nas costas dos 99% enquanto capitalizavam os lucros no bolso do 1%. O aumento da desigualdade, do caos e as desastrosas consequências após o colapso deu fôlego a um novo ciclo de lutas e de ativismo a partir de 2011. (…) Confrontar o amargo remédio da austeridade no labirinto do caos deflagrado pela crise é pensar nas chaves para a construção de uma nova economia, desta vez a serviço dos 99%, do meio-ambiente e do bem-estar – em um momento de franco ataques aos direitos fundamentais aqui e mundo afora.” [4]

O “labirinto do caos” tem em seu centro um devorador MinoTaurus, servidor do 1%. Meio homem, meio touro, este híbrido de humano e bestial é um papa-gente insaciável. Que forças sociais seriam a reencarnação de Teseu e Ariadne? Que novelo de lã poderia nos ajudar a confrontar este monstro, cortar a cabeça medusante das austeridades neoliberais, e depois sairmos vivos do labirinto para seguir o trabalho de reconstrução do mundo?


Em seu livro “O Minotauro Global”, devotado à tarefa de analisar “A Verdadeira Origem Da Crise Financeira E O Futuro Da Economia Global”, o ex-ministro grego das Finanças no governo do Syriza, Yanis Varoufakis, um dos maiores expoentes antiausteridade na Europa, “destrói o mito de que a regulamentação dos bancos é ruim para a saúde econômica.” (Outras Palavras)

O aprofundamento da financeirização da economia global pós-2008 foi matéria de análise de Varoufakis neste seu paradigmático livro. “O Minotauro Global” reporta os efeitos da crise financeira de longo prazo e da consequente estagnação na economia de modo geral. O livro de 2011 já nos preparava para o ciclo de Crise (com c maiúscula, segundo o autor) que se estenderia ao longo desta década que se termina, e adiante, no alvorecer da década de 20, do século XXI.

George F. Watts (1877-86)

Segundo a metáfora proposta por Varoufakis, o mito do ser metade humano, metade touro, fruto híbrido de um adultério adultério mediado por Poseidon, o deus dos terremotos, o Minotauro seria uma forma acabada de se contrapor democracia e austeridade. O personagem labiríntico revelaria a incongruência entre o arrocho fiscal  – ou“teto de gastos” para o contingenciamento de 1 trilhão de reais, em prol do “equilíbrio das contas públicas”, leia-se pagamento da dívida pública, segundo proposta do Ministro das Finança brasileiro, Paulo Guedes – e um sistema político baseado nos direitos humanos.

A tese econômica que guia a metáfora da tributação de guerra exercido “sobre os vencidos” é a inferência de causalidade entre ajuste fiscal e guerra comercial, decorrendo em corrida militar supremacista, todas formas de promover e impor o arrocho das contas públicas em diferentes estados nacionais, invariavelmente plutocráticos, governados pela “elite do dinheiro”, a mando do capital financeiro especulativo.

O sistema de crédito corporativo internacional – representado por Wall Street e a sugestiva estátua do “touro em investida” – teria se transformado, em tempos de Crise, no grande ‘aspirador de pó’ dos excedentes produtivos internacionais que passaram a ser capitalizados através da compra de títulos da dívida pública estadunidense pelos países do mundo que precisam manter suas reservas em moeda forte, principalmente a China.

Entretanto, as mesmas operações que garantem o investimento de ativos à nível global; a supremacia cambial do dólar e o financiamento da dívida pública estadunidense, apesar da estabilidade precária de seus déficits gêmeos, comercial e orçamentário, garantem também que a crescente fome deste Minotauro por excedentes financeiros, promovendo o genocídio de jovens e emergentes empresas e economias nacionais, alimente a maior concentração de poder bélico e informacional jamais visto em uma estratégia totalitária de hegemonia geopolítica.

Essa estratégia teria criado este Minotauro financeiro, artífice de um Poder Global – empoderado pelo arbítrio da Reserva Federal estadunidense, que repassa às mega-corporações os ativos gerados através de créditos hipotecários de alto risco e altíssimo rendimento, as chamadas subprimes.  Altos riscos apenas até que estoure a bolha da inadimplência, o “risco” que é salvaguardado pelo contribuintes estadunidenses legitima a formação de imensas fortunas privadas, em último caso securitizadas pelo déficit fiscal que, por sua vez, é mantido pela dominação militar-financeira internacional. Os déficits gêmeos se retroalimentam: o desenvolvimento inter regional estadunidense se vale do déficit fiscal para promover instalações militares mundo afora, com produção fortemente protecionistas no registro de patentes de alto valor tecnológico vendidas na corrida internacional por armas e reservas em dólar americano.

Notadamente, os próprios títulos da dívida americana servem à equilibrar o déficit comercial crescente, mantido e legitimado pelo poder de arbitragem imperial, criando, assim, um ciclo potencialmente interminável, uma insaciável fome imperial pelos excedentes globais, que irão alimentar a própria dívida interna, a voracidade do Minotauro.

Através das projeções encasteladas de analistas ostentosamente céticos quanto a possibilidade mesma de segurança e arbitragem democrática dos investimentos públicos e da regulação da ganância privada, a fraude está completa e a guerra perpétua legitimada economicamente. Essa verdadeira ‘fraude dos doutos’, promovida  por economistas ‘ortodoxos’ a serviço de uma verdadeira joint-venture imperial, é artífice mitológica de um estado estendido, que entrega a soberania democrática dos povos a interesses econômicos particulares.

No Brasil e em toda parte em que se instala o arbítrio neoliberal das elites nacionais capturadas por sua renitente servidão voluntária, cria-se um simulacro de tragédia com roteiro fornecido não pelos gregos, mas sim pelo do Departamento de Estado dos Estados Unidos, versão armada de democracia-empresarial, anti-nacional, austericida, totalitária e surpreendentemente planetária. Democracias estão sendo abertamente saqueadas por uma política econômica a priori entreguista há muito arbitrada pelas atribuições públicas de Bancos Centrais privatizados que servem a repassar os custos da especulação financeira desenfreada às populações e ao setor produtivo.

   Constituída sua musculatura pela tendência concentradora do ‘imperialismo financeiro’ do dólar e pelo poder de ‘persuasão’ militar dos EUA, a fome da metade superior do Minotauro foi,  finalmente, responsável por suplantar consensos econômicos e políticos a nível planetário e agora metaboliza a excludente ‘democracia de cidadãos proprietários’ [6] que lhe deu suporte em ‘democracia militar’ com vistas ao espectro da total dominação (full-spectrum dominance/superiority); do poder solitário (lonely power) – segundo análise do cientista político brasileiro Moniz Bandeira em seu contundente livro A Desordem Mundial [7] – e prenunciado pelo pretendido excepcionalismo racista do ‘destino manifesto’ e reiterado pelo ‘patrioct act’.  

A versão dessa concentração financeira absolutista no século XX é atualizada pela ‘war on terrorism’, do presidente George W. Bush e de seu vice, o demente-mor, Dick Cheney.

A metade  mítica do touro em investida tem sua cabeça chafurdando na lama de fraudes financeiras de toda sorte. A Crise de 2008 pode ter sido, aponta Varoufakis, o tropeço que precede a grande queda do mundo unipolar há tanto anunciada. Portanto, um mundo multipolar se afirmar a cada investida em falso da ‘besta’ indomada: na tentativa de golpe na Venezuela; na ‘derrota por procuração’ na Síria; na anexação da Crimeia pela Rússia; além da crise diplomática generalizada e da mobilização popular anti-austeridade, crescentes em todas as partes do mundo.

Segundo M. Bandeira, através da Doutrina Monroe, professada pelo presidente Theodore Roosevelt em 1901, a a ‘corolária política’ do Big Stick ( traduzida singelamente como Grande Porrete sobre a mesa) promoveu os interesses estadunidenses na América Latina durante o seu american century (século americano), se valendo do provérbio africano que sugere diálogo com  suavidade, desde que garantida a posse de um grande porrete à mão. No início deste novo século, no país mais poderoso do planeta, reitera-se doutrinas diplomáticas abertamente colonialistas professadas há séculos, mas bizarramente encampadas ainda hoje.

Logo de ditaduras militares tuteladas terem aprofundado a dependência da região, hoje a violência e os traumas da ingerência reverberam no continente americano. A novidade agora é a extensão quase global e a projeção totalitária dessa política, contando agora com mais de 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares; ciberataques a democracias não-alinhadas; espionagem internacional a líderes soberanos; extermínio de jihadistas e civis através drones, aeronaves não-tripuladas, tudo disposto à guerras comerciais e psicológicas à revelia do Direito Internacional, dos Direitos Humanos e dos escrúpulos éticos.

Uma military democracy orquestrada pela dominação da elite econômica transnacional emerge em solo estadunidense e nas diferentes zonas de influência dessa espécie mitológica de capitalismo financeiro autocrático e absolutista. Esse modelo de sociedade tem ainda, apesar da desterritorialização dos investimentos econômicos, seu centro de controle no complexo industrial-militar e financeiro estadunidense. A financeirização articulada com a indústria cultural-especular hegemônica promove os assédios do poder imperial americano com a ilusão da estabilidade do dólar e o sonho americano de um mundo colonial de consumidores ordeiros e conservadores, ávidos pelas patentes, pela cultura e pela moeda metropolitana.

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VÍDEOS RECOMENDADOS


BIBLIOGRAFIA

[1] BLYTH, Mark. Austeridade: A História de Uma Idéia Perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

[2] CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico. Editora Todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

[3] CASSIDY, John. In: The New Yorker. apud BLYTH, 2017.

[4] AUTONOMIA LITERÁRIA. Apresentação do selo “Economia do Comum.” In: BLYTH, 2017, p. 8.

[5] VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Autonomia Literária, São Paulo, 2016.

[6] RAWLS, J. A theory of justice. 2 ed. Cambridge: Belknap Press, 1999.

[7] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

Documentário explora as raízes e o legado da maior manifestação política do século 21 – Resenha sobre “We Are Many”, um filme de Amir Amirani

Naquele 15 de Fevereiro de 2003,slogan que dá nome ao filme We Are Many era mais verdadeiro do que no comum dos dias. Naquela ocasião extraordinária, estima-se que 15 milhões de pessoas tomaram as ruas de mais de 700 cidades, em todos os continentes, em protesto contra a iminente deflagração de uma guerra contra o Iraque.

Capitaneada pelos EUA, pela Grã-Bretanha e por seus aliados, mancomunados numa Coalizão Internacional que pretendia aniquilar o chamado Eixo do Mal (Axis of Evil), a Guerra do Iraque desde seus primórdios sofreu uma maré de oposição tão gigantesca que fez muitos analistas políticos lembrar das mobilizações sessentistas pelo fim da carnificina Yankee no Vietnã.

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2003, mundo afora: “give peace a chance!” (reloaded)

 We Are Many, o documentário de Amir Amirani,  revela de modo explícito as raízes e os legados desta imensa mobilização internacional anti-guerra. Mundo afora, naquele Sábado de Fevereiro de 2003, éramos de fato muitos, solidários na indignação, ruidosos contestadores daqueles masters of war denunciados pelo jovem Bob Dylan ainda nos anos 60.

Fluindo pelas veias das metrópoles em torrentes de indignação, flooding the streets with a beautiful rage, havia a esperança – que depois se mostraria vã – de que era possível dar uma chance à paz.

Infelizmente, no fim das contas, como Lennon, Gandhi ou Martin Luther King poderiam testemunhar, a violência com frequência triunfa sobre o cadáver dos pacifistas.


Havia a percepção coletiva cada vez mais disseminada que esta nova guerra era baseada em velhas canalhices – ambição petrolífera, ganância corporativa, imperialismo etnocêntrico.

Era a repetição sinistra daquela constelação de vícios e cegueiras que leva o Império anglo-saxão a fazer pose de xerife do mundo e de pretender-se, com uma arrogância que ultrapassa todos os limites do razoável e cai em uma trágica hýbris de funestas consequências, como dono da verdade e da justiça, professor e exportador de Democracia para os “povos bárbaros” do Terceiro Mundo.

As mega-manifestações estavam fundadas de fato numa  percepção muito disseminada de que muita mentira e hipocrisia estavam sendo empregadas, de modo despudorado e escandaloso, por figuras como George W. Bush e Tony Blair, apoiados por boa parte dos respectivos Parlamentos e por boa parte dos conglomerados da mídia corporativa,  para justificar o início dos massacres.

Hoje, Bush e Blair são figuras merecedoras de entrar para a história como genocidas, como culpados de crimes contra a humanidade similares aos de Eichmanns, Pol Pots e Pinochets, por todo o sangue derramado durante as campanhas militares deflagradas no Iraque em 2003 e cujas consequências sinistras mudaram o mundo para sempre – para pior, é claro.

Em Fevereiro de 2003, nós éramos muitos e sabíamos muito bem que a guerra estava sendo justificada com pretextos espúrios e mentiras deslavadas: todas as falsas conexões que tentou-se estabelecer entre o regime de Saddam Hussein e a Al Qaeda, entre o Iraque e o 11 de Setembro, eram links mentirosos. Assim como as famosas “armas de destruição em massa” que supostamente fariam do Iraque um perigoso inimigo da humanidade simplesmente não foram encontradas.

Talvez pelo fato de que, na real, os… EUA é que são os maiores detentores globais de weapons of mass destruction que ameaçam o futuro da Humanidade! Sobre as ideologias fabricadas pelo totalitarismo Yankee, José Arbex Jr escreveu excelentes textos – como este, “Jornalismo de Verdade”, em que relembra Orwell, Huxley e Arendt para apresentar algumas das lorotas de mass deception que o Estado dos EUA usa comumente:

Em “1984”, George Orwell cria uma fantástica metáfora para explicar os mecanismos utilizados pelo poder para produzir a amnésia social: a história é permanentemente reescrita, sempre de acordo com as conveniências dos mandatários de plantão. É perigoso ter ou cultivar a memória dos fatos, e muito pior – inimaginável – é olhar para o passado segundo uma perspectiva crítica. Também no “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley a percepção dos acontecimentos cotidianos é fabricada por uma engenharia social arquitetada por poucos que sabem e conhecem a dinâmica real dos processos históricos. O tema se repete, com variações, em muitos outros clássicos da ficção, na literatura e no cinema, que se preocuparam com a formação das sociedades totalitárias.

Passando à implacável esfera do “mundo real”, Hannah Arendt nota que, de fato, a produção social do esquecimento é inerente ao exercício do poder nos regimes autoritários ou mesmo em boa parte dos sistemas dito democráticos. (…) Interessa, por exemplo, a George W. Bush apresentar Osama Bin Laden como um ícone do terror islâmico, desde que se esqueça que ele foi treinado e armado pela CIA, para ajudar a Casa Branca a combater a ocupação do Afeganistão pelo Exército Vermelho (1979-1989); da mesma forma, a partir de certo momento, passou a ser vantajoso para Washington acusar o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein de ser o responsável pelo males do mundo, mas relegando ao mais profundo buraco negro da história o fato de ele ter sido armado pelos Estados Unidos, nos anos 80, com o objetivo de mover sua providencial guerra contra o Irã do aiatolá Khomeini.

Também interessa repetir à exaustão que o ataque às torres gêmeas, em 11 de Setembro de 2001, foi o “pior atentado terrorista da história”, pois isso ajuda a esquecer, entre outras coisas, o bombardeio atômico sobre a população civil de Hiroshima e Nagasáqui, em agosto de 1945. (JOSÉ ARBEX JR., prefácio à “Rompendo à Cerca – A História do MST, SAIBA MAIS)

O fato é que, no período entre os atentados de 11 de Setembro de 2011 e a irrupção desta mega-manifestação, orquestrada com auxílio das redes de comunicação digitais globalizadas, um caldeirão de indignação foi sendo aquecido até o ponto de ebulição.

Às vésperas do início da carnificina que deixaria mais de 500.000 civis iraquianos mortos e que geraria mais de 4 milhões de refugiados, várias metrópoles relevantes foram tomadas de assalto por uma multidão, em marcha pacifista, que buscava parar a guerra antes que ela começasse. 

Em Londres, em Roma, em Madrid, em Atenas, em Nova York, foram realizadas algumas das mais grandiosas marchas do século 21 naquele 15 de Fevereiro de 2003, o que não escapou à percepção dos maiores intelectuais vivos – como Noam Chomsky:

 O filme We Are Many é vibrante, interessante, repleto de imagens com imenso mérito como retrato histórico. Porém, não vai fundo no debate sobre o que possibilitou, tanto em termos de tecnologia quanto em termos de organização e mobilização social, aquilo que foi justamente chamado de “primeiro megaprotesto global”.

São fenômenos sociais da grandiosidade e da complexidade do 15 de Fevereiro de 2003 que oferecem muito material para reflexão de intelectuais e críticos dos mais relevantes da atualidade – é o caso de Manuel Castells (autor de Redes de Indignação e Esperança) ou David Graeber (autor de Democracia: Um Projeto).

O cinema de não-ficção têm se mostrado como um dos âmbitos mais importantes para a crítica e a denúncia dos horrores vinculados à infindável Guerra Contra o Terror, o que fica evidente através de outros documentários excelentes como:

  •  Procedimento Operacional Padrão, de Errol Morris, que revela as entranhas apodrecidas do sistema que pariu a prisão de Abu Ghraib e todos as horríveis torturas ali perpetradas;
  • Estrada Para Guantánamo, de Michael Winterbottom, que revela a realidade sobre a prisão mantida pelos EUA em território cubano;
  • Farenheit 9/11, de Michael Moore, um vencedor da Palma de Cannes que revela todo o zeitgeist que rodeia o período pós-11 de Setembro;
  • Taxi To The Dark Side, de Alex Gibney, que revela os múltiplos lados sombrios da invasão do Afeganistão; dentre outros.

We Are Many é uma louvável contribuição a esta pedagógica e crucial filmografia.

Através de filmes assim ficamos sabemos que, junkies de petróleo, fissurados nos dólares aos bilhões que são gerados pela indústria armamentista, as elites que comandam os Estados Nacionais dos EUA e da Inglaterra puseram sua máquina de guerra em movimento contra o Iraque em 2003 sem absolutamente nenhuma prova ou evidência conclusiva de que o regime de Hussein tinha qualquer participação nos atentados de 11 de Setembro.

Esta guerra, apesar de todo o lengalenga retórico e toda a embromação massmidiática, foi mais um grotesco episódio da infindável tendência do complexo militar industrial, mancomunado com as corporações de combustíveis fósseis, para seguirem lucrando com a morte e a destruição. Naomi Klein poderia dizer: é a Shock Doctrine em infinito repeat.

O próprio Conselho de Segurança da ONU, antes da invasão, mandou inspetores ao Iraque, checou se haviam ali bombas ou mísseis que pudessem pôr em perigo o poderoso Império anglo-saxão, e nada. Nada encontrou-se no Iraque que pudesse justificar uma “guerra preventiva”, o que logo descortinou de modo explícito a qualquer cidadão lúcido, bem-informado e capaz de usar seus neurônios que esta guerra estava sendo lançada sem fundamentos sólidos que a legitimassem. Uma guerra sustentada por grotescas mentiras tornadas “oficiais” com a cumplicidade de uma mídia corporativa vendida aos bélicos patrões.

O filme traz depoimentos e reflexões de figuras como os intelectuais Noam Chomsky e Tariq Ali, os músicos Brian Eno e Damon Albarn (Blur, Gorillaz), o romancista John Le Carré e o cineasta Ken Loach, além de figuras importantes da política, da diplomacia e do pensamento político, reconstruindo as raízes e os legados do 15 de Fevereiro de 2003.

Entre as “sacadas” mais relevantes do filme está o estabelecimento de vínculos diretos entre a Revolução Egípcia de 2011, quando megaprotestos populares que culminaram na ocupação da Praça Tahrir e na renúncia de Mubarak à presidência, e a escola de insurreição que foram, no Cairo, aqueles dias de 2003 quando o Iraque começou a ser bombardeado e os egípcios foram em imensas torrentes para as ruas protestar. Um outro documentário – The Square – analisa em minúcias a Revolução Egípcia, parte da onda mais ampla que ficou conhecida como Primavera Árabe.

Um dos temas mais interessantes que We Are Many levanta, fornecendo amplo material para debate, é as razões para o fracasso da megamobilização global em prol da Paz. O documentário é, decerto, bastante celebratório deste movimento pacifista e sua capacidade mobilizatória impressionante. Algo que voltaria a dar as caras, no âmbito do chamado “Mundo Ocidental”, com muita força também em 2014 na People’s Climate March.

Porém We Are Many também revela a decepção, a abissal queda no ânimo coletivo, que se seguiu à percepção da ineficácia concreta da “maior manifestação de todos os tempos” em pôr um stop nos planos da Coalização Internacional Contra o Terrorismo, auto-proclamada em Sagrada Cruzada contra o “Eixo do Mal”.

Este é um dos temas que considero sub-discutido, bastante negligenciado: tendemos a criar uma espécie de mística da manifestação de rua, às vezes beirando a mais irracional das superstições, acreditando piamente na força numérica de massas em desfile pelas ruas como agentes de transformação, mas não nos perguntamos mais à fundo o que constitui de fato um perigo para o poder instituído. 

Por mais grandiosas que tenham sido as manifestações de 15 de Fevereiro de 2003, elas claramente não coibiram ou proibiram a guerra. Eu até me arriscaria a dizer, sem medo de despertar polêmica, que uma das explicações para este fato está na natureza pouco aguerrida dos protestos, que em vasta medida consistiram em cidadãos carregando placas e cartazes, que andaram em multidões pelas metrópoles gritando palavras de ordem, sem que tenham, na maior parte dos casos, tentado ocupar prédios públicos ou governamentais ou deflagar greves gerais que pudessem parar a produção ou travar o fluxo dos transportes, das mercadorias e dos capitais.

O poder do Império pode ter ficado impressionado, mas não se sentiu realmente ameaçado lá onde ele possui seu calcanhar de Aquiles: seu bolso, ou melhor, suas Bolsas. Os 15 milhões de cidadãos nas ruas não puderam causar um estrago significativo na economia de guerra, seja através de boicotes organizados contra corporações vinculadas ao ramo bélico, seja através de ocupas ou acampas que colocassem em sinuca as instituições.

O músico Damon Albarn, do Blur/Gorillaz, sugere que a raiz do fracasso deste mega-movimento pacifista esteve no fato de que ele perdeu força e momentum: a multidão deveria ter continuado a ir para as ruas de modo torrencial, ao invés de permitir que a maré de insurgência cidadã ficasse limitada apenas àquele Sábado. Se a galera tivesse continuado a colar – “if we kept coming back…”, diz Albarn – talvez a paz pudesse ter triunfado.

Eis outra das lições da Primavera Árabe: uma manifestação de rua, por mais gigantesca que seja, é episódica e efêmera, as pessoas retornam logo às suas casas. A potência contestatória maior está na ocupação – como ocorreu na Praça Tahrir ou durante o Occupy Wall Street – que toma conta do espaço público e diz que ele só será liberado quando certas demandas forem concedidas.

Em 15 de Fevereiro, pode-se dizer que nenhum Bastilha foi tomada, que nenhum intento revolucionário foi posto em marcha, e que mesmo os conflitos com a polícia foram pouquíssimos, a não ser em Atenas (na Grécia).

É notável o contraste com o quanto o pau quebrou nos protestos de Seattle em 1999. Poderíamos dizer que, se o pau não quebrou, se não rolou tropa de choque e gás lacrimogêneo, se manifestantes quase não foram encarcerados, foi porque o 15 de Fevereiro de 2003 confundiu pacifismo com bom-mocismo e não exerceu com suficiente radicalidade as práticas de Desobediência Civil que através da história foram utilizadas para contestar regimes ilegítimos, opressores e genocidas.

O filme não é ingênuo, nem faz crer em quimeras, pois mostra muito bem o modo com as chefias políticas, os Parlamentos, os cabeças do Exército, os figurões no Pentágono, os brits cheios de regalias na House of Commons, basicamente levantaram um dedo médio elitista para a voz das ruas e disseram, basicamente, “foda-se!”

Foda-se que há milhões de pessoas nas ruas protestando em um Sábado de Fevereiro de 2003 contra a deflagração de uma guerra contra o Iraque; foda-se, iremos em frente assim mesmo. E assim o fizeram, em Março, dando o foda-se não só para as torrentes de cidadãos que manifestavam-se em Fevereiro, mas também para a Organização das Nações Unidas: a ONU declarou a invasão ilegal e esta foi realizada à revelia do Conselho de Segurança. Crime de guerra.


Dentre os pensadores políticos que conheço, ninguém melhor que Arundhati Roy descreveu o momento histórico logo após o 11 de Setembro. Na sequência, selecionei alguns trechos de sua obra que são excelentes para pensar criticamente sobre todo este nosso lodaçal de sangue e violência. Considero seus livros – em especial The Algebra of Infinite Justice Listening to Grasshoppers, além dos discursos Imperial Democracy Come September – algumas uma das mais preciosas portas de acesso a uma compreensão mais ampla do zeitgeist que entre nós prolonga sua estadia: o fantasma de um fascismo genocida que tenta convencer-nos que há imenso perigo em um certo Outro demonizado – uma raça, uma seita, uma ideologia…. O fascismo necessita de um Outro alcunhado de malévolo sem remissão, só merecedor de ser extirpado com violência.

De George Bush a Donald Trump, as ideologias e das práticas da Guerra Contra O Terror estão ligadas à presunção e à arrogância de um american way of thinking que vem todo tingido com cores fascistas pois reduz vastas porções da humanidade e territórios globais àquilo que Naomi Klein chamou de “zonas de sacrifício” (como o Afeganistão, a Síria, a Palestina…).

O Sonho Americano – aquele engodo que, segundo o humorista George Carlin, se chama assim pois nele só acreditam os que estão dormindo – gerou o monstro destes líderes que se dizem os artífices do Bem absoluto e da Vontade de Deus sobre a Terra, quando na real só cometem mega-carnificinas em prol de petróleo e lucros, tratando irmãos em vida e humanidade como se pertencessem a uma zona de matabilidade livre semelhante aos videogames à la Doom Counter Strike.

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro


A ÁLGEBRA DA JUSTIÇA INFINITA
ou DEMOCRACIA IMPERIAL: COMPRE UMA, LEVE A OUTRA DE GRAÇA

por Arundathi Roy

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“For strategic, military and economic reasons, it is vital for the US government to persuade the American public that America’s commitment to freedom and democracy and the American Way of Life is under attack. In the current atmosphere of grief, outrage and anger, it’s an easy notion to peddle. However, if that were true, it’s reasonable to wonder why the symbols of America’s economic and military dominance—the World Trade Center and the Pentagon—were chosen as the targets of the attacks. Why not the Statue of Liberty? Could it be that the stygian anger that led to the attacks has its taproot not in American freedom and democracy, but in the US government’s record of commitment and support to exactly the opposite things—to military and economic terrorism, insurgency, military dictatorship, religious bigotry and unimaginable genocide (outside America)?” (ARUNDHATI ROY,  “The Algebra Of Infinite Justice”, 08 de Outubro de 2001)

“When the United States invaded Iraq, a New York Times/CBS News survey estimated that 42 percent of the American public believed that Saddam Hussein was directly responsible for the September 11th attacks on the World Trade Center and the Pentagon. And an ABC News poll said that 55 percent of Americans believed that Saddam Hussein directly supported Al Qaida. None of this opinion is based on evidence (because there isn’t any). All of it is based on insinuation, auto-suggestion, and outright lies circulated by the U.S. corporate media, otherwise known as the “Free Press,” that hollow pillar on which contemporary American democracy rests.

Public support in the U.S. for the war against Iraq was founded on a multi-tiered edifice of falsehood and deceit, coordinated by the U.S. government and faithfully amplified by the corporate media.

mass deceptionApart from the invented links between Iraq and Al Qaida, we had the manufactured frenzy about Iraq’s Weapons of Mass Destruction. George Bush the Lesser went to the extent of saying it would be “suicidal” for the U.S. not to attack Iraq. We once again witnessed the paranoia that a starved, bombed, besieged country was about to annihilate almighty America. (Iraq was only the latest in a succession of countries – earlier there was Cuba, Nicaragua, Libya, Grenada, and Panama.) But this time it wasn’t just your ordinary brand of friendly neighborhood frenzy. It was Frenzy with a Purpose. It ushered in an old doctrine in a new bottle: the Doctrine of Pre-emptive Strike, a.k.a. The United States Can Do Whatever The Hell It Wants, And That’s Official.

The war against Iraq has been fought and won and no Weapons of Mass Destruction have been found. Not even a little one. Perhaps they’ll have to be planted before they’re discovered. And then, the more troublesome amongst us will need an explanation for why Saddam Hussein didn’t use them when his country was being invaded.

Of course, there’ll be no answers. True Believers will make do with those fuzzy TV reports about the discovery of a few barrels of banned chemicals in an old shed.

In stark contrast to the venality displayed by their governments, on the 15th of February, weeks before the invasion, in the most spectacular display of public morality the world has ever seen, more than 10 million people marched against the war on 5 continents. Many of you, I’m sure, were among them. They – we – were disregarded with utter disdain. When asked to react to the anti-war demonstrations, President Bush said, “It’s like deciding, well, I’m going to decide policy based upon a focus group. The role of a leader is to decide policy based upon the security, in this case the security of the people.”Democracy, the modern world’s holy cow, is in crisis. And the crisis is a profound one. Every kind of outrage is being committed in the name of democracy. It has become little more than a hollow word, a pretty shell, emptied of all content or meaning. It can be whatever you want it to be. Democracy is the Free World’s whore, willing to dress up, dress down, willing to satisfy a whole range of taste, available to be used and abused at will.

Until quite recently, right up to the 1980’s, democracy did seem as though it might actually succeed in delivering a degree of real social justice.

But modern democracies have been around for long enough for neo-liberal capitalists to learn how to subvert them. They have mastered the technique of infiltrating the instruments of democracy – the “independent” judiciary, the “free” press, the parliament – and molding them to their purpose. The project of corporate globalization has cracked the code. Free elections, a free press, and an independent judiciary mean little when the free market has reduced them to commodities on sale to the highest bidder.”  (ARUNDHATI ROY, Imperial Democracy)

CONVOQUE SEU BUDA, O CLIMA TÁ TENSO! [acasadevidro.com]

por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro.com

Após os 3 recentes atentados terroristas que deixaram um rastro de sangue e destruição em Beirute no Líbano (mais de 40 mortos e 200 feridos), em Paris na França (mais de 140 mortos em 5 atentados coordenados) e no avião russo derrubado no Egito (224 passageiros a bordo e nenhum sobrevivente) – o Wikileaks acirra a polêmica ao sugerir que o ISIS só virou esse mega-monstro, esse “bicho de 700 cabeças”, que já domina boa parte do território da Iraque e da Síria, pois foi “alimentado” pelas ações desastrosas das potências capitalistas e neo-imperiais, em especial EUA, Inglaterra e França.

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Nada que Noam Chomsky não esteja nos ensinando há muito tempo também: explicando as raízes do ISIS, Chomsky sustenta que a invasão do Iraque em 2003 foi o crime mais terrível deste milênio. Além disso, diz que a maior campanha terrorista em curso no mundo de hoje são os atentados com drones (aviões não-tripulados) perpetrados pelos EUA e seus aliados. De fato, a invasão do Iraque foi justificada com base em uma acusação de que o regime de S. Hussein possuiria armas de destruição em massa e bombas atômicas, que nunca foram encontradas; foi baseada na doutrina da “guerra preventiva”, uma aberração ética; além disso, mais de 35 milhões de pessoas protestaram contra ela em 2003 e a ONU considerou a invasão como ilegal; ainda assim, Bush prosseguiu com a invasão bélica e a derrubada do regime, o que é apontado como a raiz para guerras civis terríveis e para a ascensão do Estado Islâmico; resultaram disso mais de 1 milhão de mortos no Iraque e uma grave crise de refugiados… Segundo a Wikipedia:

“Entre 3 de Janeiro e 12 de Abril de 2003, 36 milhões de pessoas em todo o mundo tomaram parte em quase 3000 protestos contra a guerra do Iraque, sendo as manifestações de 15 de Fevereiro as maiores e mais ativas. Houve também sérias questões legais que rodearam a condução da guerra no Iraque e a doutrina Bush da “guerra preventiva”. A 16 de Setembro de 2004, Kofi Annan, Secretário Geral da ONU, disse sobre a invasão: “Indiquei que não foi em conformidade com a Carta das Nações Unidas. Do nosso ponto de vista, [a invasão do Iraque] foi ilegal.”

A “Guerra Contra O Terror”, enfim, revela mais uma vez seu fracasso e sua insanidade. O ISIS é “filho” (bastardo e não reconhecido, é claro…) de uma geopolítica desastrosa praticada pelos países capitalistas hegemônicos. Por isso tendo a concordar bem mais com a posição polêmica de Julian Assange e do Wikileaks, ou seja, com uma análise geopolítica de teor Chomskysta, do que com aqueles que, na esteira de um maniqueísmo simplista e redutor, pintam auréolas de santidade sobre os pobres e inocentes países ocidentais, que (supostamente) são vitimados pela fúria assassina de terroristas diabólicos e sub-humanos. A islamofobia de hoje não é lá muito diferente do racismo dos Klu Klux Klans de outrora…

Acho que o Wikileaks está mais bem-informado do que aqueles que ficam chocados com esta afirmação da “culpa” gigantesca de Washington, London e Paris na constituição do Estado Islâmico e seu séquito de horrores e terrores… Em seu texto de 2014, publicado pelo Wikileaks, De Pol Pot ao ISIS, o jornalista e documentarista John Pilger compara a emergência do Estado Islâmico (ISIS) com a ascensão do Khmer Rouge de Pol-Pot no Camboja e argumenta que ambos são “progênie” e “produto” dos Apocalipses causados pelas potências ocidentais, praticantes notórias do Terrorismo de Estado em vasta escala.

shock_doctrine_xlgNós, latino-americanos, mesmo aqueles que não leram Galeano, temos uma boa noção prática recorrente dos EUA de Intervenção Violenta em Prol da Neoliberalização Forçada de Economias (como foi no Brasil em 1964, no Chile em 1973, etc..) e que Naomi Klein analisou com tanto brilhantismo no seu livro e documentário “Doutrina do Choque”.

Não é preciso ter devorado a obra monumental de Noam Chomsky ou os geniais livros de Arundhati Roy pra ter uma idéia clara de que os EUA e seus aliados, impunemente e sem grandes remorsos de consciência, praticaram nas últimas décadas uma série de intervenções militares e golpes de estado, de cunho imperialista e de consequências genocidas, que plantaram as sementes, regadas com sangue, para a radicalização das guerrilhas terroristas islâmicas que hoje literalmente “tocam o terror”, mundo afora…

A questão que não se coloca é: as violações dos direitos humanos são imputáveis somente aos demonizados jihadistas? Ou a violação dos direitos humanos também é uma prática cotidiana e recorrente justamente daqueles que usam a retórica dos direitos humanos e da democracia para justificarem suas “guerras preventivas” e suas “limpezas étnicas por uma boa causa”?

Por exemplo: o atentado do 11 de Setembro matou cerca de 3.000 civis em New York, mas os Talebans, no Afeganistão, haviam sido amicíssimos dos EUA durante a Guerra Fria, em especial a partir de 1979, quando Bin Laden e a Al Qaeda, com toda a sua corja de fanáticos teocráticos, receberam todo o apoio, em capital e armamentos, de seus amiguinhos norte-americanos, para que lutassem contra a União Soviética, que invadiu o país naquele ano… Que curioso: o EUA nunca teve pudores em financiar o fanatismo islâmico e de fazer acordos com as tiranias sauditas sempre que isso servia a seus interesses comerciais e geopolíticos…

Já passou da hora de percebermos que o ultra-capitalismo neoliberal, que esta Shock Doctrine militarista-bélica, é responsável por um bocado de Apocalypses Now – perguntem à Indonésia, ao Vietnã, ao Camboja! – mundo afora. Criminosos de guerra como George W. Bush ou como Benjamin Netanyahu, mandantes de genocídios,  agem com um grau de fanatismo, racismo e desprezo por outros povos que é sim comparável ao dos fanáticos e “xiitas” e “comunistas sanguinários” – como o Khmer Rouge e o ISIS – que enxergam como seus inimigos mortais. Essa é a guerra do errado contra o errado; é o imundo xingando o mau-lavado…

Guerra contra o Terror

Com o perdão desta matematização da tragédia, sempre não-matematizável, é preciso dizer: as vítimas do atentado em NYC e em Paris são em número muito pequeno em comparação com as vítimas civis da Guerra Contra o Terror, que deixou um total estimado de 700.000 mortos no Afeganistão e no Iraque (há quem estime os que perderam a vida nos conflitos em mais de um milhão de pessoas…). Esta última guerra, aliás, foi justificada com a mentira deslavada das bombas atômicas de Saddam, que nunca foram descobertas; em 2003, os EUA cagou em cima da ONU e foi à guerra mesmo sem autorização; a mobilização nas ruas, globalmente, deve ter juntado umas 15 milhões de vozes protestando contra a invasão do Iraque; de nada adiantou, o texano machão sinonimizou Bush com Deus e acreditou-se com mandato divino para uma blitzkrieg devastadora. Foi uma guerra obviamente motivada mais por intere$$es petrolífero$, por ganância de controle territorial, do que por uma Cruzada do Bem Contra o Eixo do Mal…

Parece-me que as potências ocidentais, fiéis servidoras dos interesses corporativos e petrolíferos, os mesmos que estão arrastando o planeta à hecatombe climática e aos cataclismos sócio-ambientais, vem praticando e acarretando, com seus apocalipses aéreos, suas chuvas de mísseis, seus ataques com drones, sua tara pelos lucros armamentistas e da indústria de seguranças e de mercenários, tem propiciado a eclosão de guerras civis cruéis, como esta que se prolonga na Síria nos últimos anos. Essas invasões e guerras civis – os conflitos que são subproduto da desastrada “intervenção militar” das “Democracias Ocidentais” –  são responsáveis diretas por estarmos vivendo a pior crise de refugiados desde a 2ª Guerra Mundial…

FILE - In this Sept. 2, 2015 file photo, a paramilitary police officer investigates the scene before carrying the lifeless body of Aylan Kurdi, 3, after a number of migrants died and others were reported missing when boats carrying them to the Greek island of Kos capsized near the Turkish resort of Bodrum. The tides also washed up the bodies of the boy's 5-year-old brother Ghalib and their mother Rehan on Turkey's Bodrum peninsula. Their father, Abdullah, survived the tragedy. (AP Photo/DHA, File) TURKEY OUT

In this Sept. 2, 2015 photo, a paramilitary police officer investigates the scene before carrying the lifeless body of Aylan Kurdi, 3, after a number of migrants died and others were reported missing when boats carrying them to the Greek island of Kos capsized near the Turkish resort of Bodrum. The tides also washed up the bodies of the boy’s 5-year-old brother Ghalib and their mother Rehan on Turkey’s Bodrum peninsula. Their father, Abdullah, survived the tragedy. (AP Photo/DHA, File) TURKEY OUT

Acnur

A radicalização islâmica – com milhares de novos aliciados para a jihad, incluindo jovens que fazem fila pelo privilégio de serem homens-bomba – tem certamente relação também com os genocídios estatais praticados por Israel contra a Palestina, com a cumplicidade e o apoio de muitas potências ocidentais, que vertem lágrimas de luto (crocodilescas!) por franceses mortos nos atentados em Paris, mas aplaudem (ou ao menos fingem não ver!) quando Netanyahu e sua corja de sionistas-fascistas estraçalham os corpos vivos de mais de 500 crianças palestinas, como fizeram recentemente, certos da impunidade que rege os atos horrendos dos Peixes Grandes do Poderio Global…

Como não conectar a radicalização do terrorismo islâmico contra as potências ocidentais desconsiderando que o estado sionista de Israel possa permanecer impune, com a cumplicidade dos EUA e seus aliados, diante de megacrimes como aqueles cometidos no ano passado, inclusive a morte de mais de 400 crianças palestinas e o bombardeio de escolas, hospitais, refúgios da ONU e estações de energia elétrica? Quem ousa desenhar auréolas de santidade sobre o “Ocidente”, que fica de baixos cruzados diante do genocídio praticado por Israel na Palestina e pratica o intervencionismo bélico nos países árabes?

Agência Brasil: “Mais de 400 crianças morreram e 2,5 mil ficaram feridas nos bombardeios do Exército israelense em Gaza, indicou hoje o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que calcula que 370 mil menores precisam urgentemente de ajuda psicológica para ultrapassar esta situação traumática.”

Israel Terror

Vale lembrar que a França, na gestão do presidente François Hollande, em 2014, PROIBIU OS PROTESTOS PRÓ-PALESTINA no país e soltou as tropas de choque pra cima de quem ousou manifestar-se, a despeito da proibição, como reportado pela BBC:

“Cerca de 3 mil pessoas participaram do protesto em Barbès, bairro de população majoritariamente árabe na capital francesa. A passeata havia sido proibida pelas autoridades, mas organizadores do evento ignoraram o veto. Manifestantes seguravam cartazes e gritavam a todo tempo palavras de ordem contra Israel, como “Israel assassino, Hollande (presidente da França) cúmplice”. Pouco tempo depois do início do protesto, houve confronto com a polícia. Os manifestantes queimaram carros, pneus, latas de lixo e duas bandeiras de Israel. Também lançaram pedras e até pedaços de asfalto arrancados da calçada contra os policiais, que responderam com bombas de gás lacrimogênio. Segundo a polícia, 33 manifestantes foram presos até agora…”

a Opera Mundi coloca ao presidente francês outra questão espinhosa: “Contradições de Hollande: é possível combater o terrorismo e vender armas à Arábia Saudita ao mesmo tempo?”

Suspeita-se também que a casa-de-shows Bataclan de Parris tenha sido alvo dos jihadistas por ser considerada pró-Israel, ter donos judeus e ter inclusive apoiado eventos e “fund raisers” para a causa sionista. Militantes jihadistas da causa Palestina, em protesto contra a ocupação militar e os genocídios periódicos perpetrados pelo Estado de Israel, ameaçam um atentado contra o Bataclan desde 2009. A banda Eagles of Death Metal, que tocava na ocasião, apresentou-se em Tel Aviv em sua última turnê e ali seu vocalista protagonizou uma polêmica com Roger Waters, do Pink Floyd, ao xingá-lo e dizer que jamais boicotaria Israel. (Saiba mais sobre o caso: Le Point, Jihad Watch, Breitbart)

A child in Bangladesh protests Israeli attack on Gaza, July 2014Suspeito e temo que a barbárie tem muito futuro pela frente. A banalidade do mal seguirá na crista da onda. Na França, é de se esperar que o fascismo dos Le Pen deverá ganhar ainda mais adeptos, e não duvido muito que o país, ironicamente, depois de ter sido ocupado pela Alemanha nazista durante a 2ª Guerra, torne-se um dos países europeus com um dos sistemas políticos mais hackeados e dominados pela direita fascista, islamofóbica e xenófoba, militarista e ultra-capitalista, que fará muito mais do que proibir o uso de burcas nas escolas… Entre totalitarismo e terrorismo, ou viraremos todos carne moída, ou teremos que achar um meio de dizermos não a ambos, inventando com urgência um “sim” a outro mundo possível. Mas qual? E como?…

(E.C.M., Goiânia, 14 e 15 de Novembro de 2015)

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Na sequências, três artigos esclarecedores de BRENO ALTMAN e JOHN PILGER, além de uma resenha das idéias de NOAM CHOMSKY:

I) BRENO ALTMAN @ OPERAMUNDI

“A crescente violência entre os povos muçulmanos, muitas vezes banhada pelo desespero e a loucura social, somente pode ser explicada pela ação permanente de rapina das potências ocidentais.

A origem da dor dos franceses não está no islamismo, mas nos Estados dominados pela vertente imperialista da cultura cristã, onde nasceu o colonialismo como sistema afrontoso à autodeterminação dos povos.

O colapso da União Soviética, no final dos anos oitenta, levou os Estados Unidos à conclusão de que poderia desfechar ampla ofensiva pelo controle do Oriente Médio e suas riquezas petroleiras.

Esta estratégia, ao menos até 2001, estava determinada pela construção de uma nova aliança com governos árabes, protegendo os interesses de Israel e isolando lideranças indispostas à hegemonia da Casa Branca.

Não havia espaço, em tal configuração, para movimentos islâmicos que tinham sido estimulados para enfrentar os soviéticos no Afeganistão, pois eram profundas suas contradições com as forças que governavam os principais países de maioria muçulmana.

Estes grupos rapidamente se deslocaram para uma narrativa antiocidental e religiosa, pela qual alinhavam sua identidade com os setores populares, em confronto com a coalizão formada pelos Estados Unidos, as elites locais e o Estado sionista.

Neste caldo de cultura nasceu a Al Qaeda de Bin Laden e outras organizações jihadistas.

A derrubada das torres nova-iorquinas, no entanto, mudou o cenário.

O comando norte-americano trocou a orientação aliancista por fórmula abertamente intervencionista, ao invadir Afeganistão e Iraque, impondo governos títeres e ampliando sua participação direta na região.

Ataques contra população civil, atropelos de direitos humanos e desrespeitos a garantias legais foram se multiplicando em escalada, como parte da chamada guerra ao terror.

Mesmo enfrentando problemas, com idas e vindas, a estratégia seguiu seu curso, buscando levar, à direção dos Estados árabes, frações políticas e econômicas visceralmente alinhadas ao ocidente.

Sem mexer um dedo para desmontar o apartheid sionista e solucionar a questão palestina, a Casa Branca e seus parceiros foram submetendo o mundo muçulmano, do Egito ao Irã, a operações de cerco e asfixia.

O ápice desta orientação veio com a derrubada de Muammar Al-Gaddafi, na Líbia, e o encurralamento do governo de Bashar al-Assad, da Síria.

O papel da França, nestas operações, liderada por conservadores ou sociais-democratas, foi decisivo.

Ao lado dos Estados Unidos e outros países, alimentou vasta fauna de falanges oposicionistas, com recursos financeiros e militares, entre estas o Estado Islâmico.

Cada uma das potências buscava, na medida das possibilidades, alargar seu domínio sobre territórios de formidável riqueza ou enclaves fundamentais para o controle geopolítico.

Ao perderem o poder sobre suas criaturas, empoderadas para representar seus próprios interesses, foram surpreendidos pela necessidade de combate-las antes que levassem à desestabilização da presença ocidental no Oriente Médio.

Os jacarés criados no tanque da política neocolonial tinham crescido e ameaçavam comer a mão dos antigos donos.

O presidente francês agora chora pelos mortos e promete mais uma guerra implacável contra o jihadismo.

Pura hipocrisia.

Enquanto seu governo e a União Europeia estiverem capturados pela velha lógica imperialista, depois de uma Al Qaeda sempre virá um Estado Islâmico, que será sucedido por alguma expressão ainda mais descontrolada e selvagem de violência anticolonial.

As lágrimas de Hollande são de crocodilo.

Aproveita o sangue vertido em solo francês para aprofundar a mesma política de usurpação que levou à tragédia atual.”

LEIA NA ÍNTEGRA

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JOHN PILGER @ WIKILEAKS

Pilger The rise to power of Pol Pot and his Khmer Roug had much in common with today’s Islamic State in Iraq and Syria (ISIS). They, too, were ruthless medievalists who began as a small sect. They, too, were the product of an American-made apocalypse, this time in Asia.

According to Pol Pot, his movement had consisted of “fewer than 5,000 poorly armed guerrillas uncertain about their strategy, tactics, loyalty and leaders”. Once Nixon’s and Kissinger’s B52 bombers had gone to work as part of “Operation Menu”, the west’s ultimate demon could not believe his luck.

The Americans dropped the equivalent of five Hiroshimas on rural Cambodia during 1969-73. They levelled village after village, returning to bomb the rubble and corpses. The craters left monstrous necklaces of carnage, still visible from the air. The terror was unimaginable. A former Khmer Rouge official described how the survivors “froze up and they would wander around mute for three or four days. Terrified and half-crazy, the people were ready to believe what they were told… That was what made it so easy for the Khmer Rouge to win the people over.”

A Finnish Government Commission of Enquiry estimated that 600,000 Cambodians died in the ensuing civil war and described the bombing as the “first stage in a decade of genocide”. What Nixon and Kissinger began, Pol Pot, their beneficiary, completed. Under their bombs, the Khmer Rouge grew to a formidable army of 200,000.

ISIS has a similar past and present. By most scholarly measure, Bush and Blair’s invasion of Iraq in 2003 led to the deaths of some 700,000 people – in a country that had no history of jihadism. The Kurds had done territorial and political deals; Sunni and Shia had class and sectarian differences, but they were at peace; intermarriage was common. Three years before the invasion, I drove the length of Iraq without fear. On the way I met people proud, above all, to be Iraqis, the heirs of a civilization that seemed, for them, a presence.

Bush and Blair blew all this to bits. Iraq is now a nest of jihadism. Al-Qaeda – like Pol Pot’s “jihadists” – seized the opportunity provided by the onslaught of Shock and Awe and the civil war that followed. “Rebel” Syria offered even greater rewards, with CIA and Gulf state ratlines of weapons, logistics and money running through Turkey. (…)

ISIS is the progeny of those in Washington and London who, in destroying Iraq as both a state and a society, conspired to commit an epic crime against humanity. WikiLeaks cables show that the US has been tracking, and exploiting, the rise of ISIS since 2006, when the organisation first appeared in Iraq as a direct result of the Bush-Blair invasion. Like Pol Pot and the Khmer Rouge, ISIS are the mutations of a western state terror dispensed by a venal imperial elite undeterred by the consequences of actions taken at great remove in distance and culture. Their culpability is unmentionable in “our” societies.

(…) More than 40 years ago, the Nixon-Kissinger bombing of Cambodia unleashed a torrent of suffering from which that country has never recovered. The same is true of the Blair-Bush crime in Iraq. With impeccable timing, Henry Kissinger’s latest self-serving tome has just been released with its satirical title, “World Order”. In one fawning review, Kissinger is described as a “key shaper of a world order that remained stable for a quarter of a century”. Tell that to the people of Cambodia, Vietnam, Laos, Chile, East Timor and all the other victims of his “statecraft”. Only when “we” recognise the war criminals in our midst will the blood begin to dry.

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About Noam Chomsky’s Media Control

Since 9/11, the US government has fed Americans propaganda that portrays Muslims as “boogeymen,” a term used to create “wartime hysteria,” as Chomsky calls it. Images and videos of beheadings and other extreme acts of violence by the Islamic State, in particular, are used to “elicit jingoist fanaticism.” In reaction, American citizens behave as “spectators,” who sit back and watch these events unfold without questioning their validity.

Chomsky’s thesis builds off the idea that the US government manufactures consent by using propaganda as a tool to control the public mind. According to him, the enemies of America are painted as “disruptive and causing trouble and breaking harmony and violating Americanism.” This propaganda has portrayed Muslims as barbaric and Islamic political entities as terrorist groups.

The Islamic State, for example, is characterized in the media as a cancerous cell about to inflict a deadly disease on humanity. If it is not dealt with immediately, the Middle East will be beyond saving; therefore, we must act now to crush the enemy.

“Terrorism” is the most important tool used in the US government’s propaganda machine. Terror has been drilled into our imaginations on a daily basis since 9/11. Terrorism in the American context is always “Islamic,” meaning that terrorism only occurs when a Muslim or Muslim group is involved in the act. Acts of terror carried out by non-Muslims are either completely ignored, or manufactured as simply violence by “crazy” people.

As Chomsky discusses in his chapter on “Engineering Opinion,” American propaganda wants to “whip up the population in support of foreign adventures.” The American state spreads “information” in order to elicit some pretext for a planned invasion or military campaign. This tactic was evidenced in the summer of 2014, when the Islamic State popped out of nowhere and released videos of American journalists being beheaded. Media and politicians told us that this “monster” – the Islamic State – had to be dealt with, or else “radical Muslims” would dominate the Middle East. As Chomsky notes, this “monster” is more of a government-created problem than a real threat. The barbarism displayed by Islamic State in the videos laid the groundwork for US airstrikes and eventually American troop deployment to Iraq, and possibly beyond.

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NO VIDEODROME

Vídeo da Vice News, legendado em português, revela que o Estado Islâmico é consequência direta da desastrosa e estúpida intervenção dos EUA e aliados no Afeganistão, Iraque e Síria:

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Capítulo final da série de Oliver Stone que conta a História dos EUA que não querem que saibamos…

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E, na sequência, talvez a melhor fala sobre geopolítica contemporânea que eu conheço,
a brilhante escritora e ativista indiana Arundhati Roy:

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Elucidativa entrevista com o prof. Bruno Lima Rocha esclarece sobre o Estado Islâmico.

Para quem quer saber, recomenda-se o recente “A origem do estado islâmico” do jornalista Patrick Cockburn. Tem em português, pela Editora Autonomia Literária.

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LEIA TAMBÉM AS ANÁLISES DE TARIQ ALI, JUDITH BUTLER

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Outra pergunta que não quer calar é: como será a repressão policial às manifestações populares durante a COP21 – evento das Nações Unidas que debaterá a crise climática e onde espera-se a presença de mais de 100 chefes-de-Estado – na Paris bouleversée após os atentados? A “Guerra Contra O Terror” servirá também como pretexto para que as Tropas de Choque possam calar, com gás lacrimogêneo e aprisionamento em massa, aqueles que pretendem tomar as ruas da capital francesa para exigir medidas imediatas para frear o aquecimento global e a hecatombe sócio-ambiental? Um artigo interessante publicado na ROAR MAG explora o teor das reivindicações que estarão nas ruas e aos brados em breve nas ruas de Paris – que vão, podem esperar, pegar fogo… “Convoque seu Buda”, recomendou o Criolo, que o “clima tá tenso!”

Marche

“We know how it all started — colonialism was the original metabolic rift in our history, which has been profoundly extended and deepened by industrial capitalism. Yet as we enter the 6th mass extinction, there is an ambient sense that there is no alternative to this way of life.

We collectively hallucinate that the present order of things will persist indefinitely, silently abiding the comfort and enslavement this disposition provides, all the while waiting for the apocalypse we are living through to blossom fully.

Many have been waiting for the totalizing revolution that appears as a vanishing point on a receding horizon, a perpetually deferred future. The intersecting ecological and climate crises stand as a refutation of more than a hundred years of left-wing teleology that ‘in the end we will win.’ Instead they reinforce the need for constant molecular struggles to open and expand cracks for resistance and new forms of life to flourish.

World governments acknowledge that catastrophic climate change is the defining crisis of our times, and simultaneously fossil fuel corporations continue to benefit from subsidies of $5.3 trillion in 2015, according to the IMF. This is more than all governments spend on health care combined and amounts to an astonishing $10 million every minute.

We have reached a point where we need to keep 80% of fossil fuels in the ground, which would require emission reductions of at least 10% per year by 2025…”

LEIA NA ÍNTEGRA

MATANÇA SEM FIM: a “Guerra Contra O Terror” já matou mais de 1 milhão e 300 mil pessoas (Assista a reportagem do Democracy Now!)

War On Terror

As the United States begins bombing the Iraqi city of Tikrit and again delays a withdrawal from Afghanistan, a new report has found that the Iraq War has killed about one million people. The Nobel Prize-winning International Physicians for the Prevention of Nuclear War and other groups examined the toll from the so-called war on terror in three countries — Iraq, Afghanistan and Pakistan. The investigators found “the war has, directly or indirectly, killed around one million people in Iraq, 220,000 in Afghanistan and 80,000 in Pakistan. Not included in this figure are further war zones such as Yemen. The figure is approximately 10 times greater than that of which the public, experts and decision makers are aware. And this is only a conservative estimate. The true tally, they add, could be more than two million.” – WATCH AT DEMOCRACY NOW

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Say it, Woody!

Woody