MOLDANDO A MUDANÇA: Sobre “A Parábola do Semeador” de Octavia Butler (1947-2006)

Octavia Butler (1947 – 2006), em entrevista concedida em Maio de 1999, disse algo profundamente significativo: “Perguntei a mim mesma qual era a força mais poderosa na qual podia pensar? O que não podemos impedir, não importa o quanto tentemos? A resposta que encontrei depois de alguma reflexão foi: a Mudança. Podemos fazer muitas coisas para influenciar os constantes processos de mudança. Podemos direcioná-los, alterar sua velocidade ou impacto. Em geral, podemos moldar a mudança, mas não podemos impedi-la, a nenhum custo. Por todo o universo, a realidade constante é a mudança.

(…) No budismo, a mudança também é muito importante: já que tudo é impermanente, só podemos evitar sofrimento ao evitar apego, pois tudo a que poderíamos nos apegar está fadado a perecer. Lauren Olamina, a protagonista de ‘A Parábola do Semeador’, diz que, já que a mudança é a única verdade inescapável, mudança é a argila primordial das nossas vidas. Para vivermos de forma construtiva, precisamos aprender a moldar a mudança quando pudermos e a nos render a ela quando necessário. De todo modo, devemos aprender e ensinar, nos adaptar e crescer.” (São Paulo: Editora Morro Branco, 2018, pg. 415 – 416)

A aclamada autora de ficção científica revela aí um pouco de sua filosofia de vida. A Editora Morro Branco, que a publica no Brasil, destaca: “Apesar de enfrentar muito preconceito em uma área dominada por homens brancos, Octavia Butler foi uma autora que abriu caminho para que outras prosperassem na ficção especulativa e um dos nomes mais fortes quando se fala em afrofuturismo.”

O livro descreve “uma crise ambiental e econômica que leva ao caos social. Nem mesmo as cidades muradas estão seguras. Em uma noite de fogo e morte, Lauren Olamina, a jovem filha de um pastor, perde sua família e seu lar. É obrigada a se aventurar pelas terras americanas desprotegidas. Mas o que começa como uma fuga pela sobrevivência acaba levando a algo muito maior: uma visão estonteante do destino humano. E ao nascimento de uma nova fé.”

É notável que o livro tenha transbordado das bibliotecas e livrarias para de fato inspirar movimentos sociais e espirituais que se guiam pelo “Livro dos Vivos” – composto pelos versos que Lauren Olamina escreve e que estão polvilhados pelas páginas por A Parábola do Semeador e sua continuação, A Parábola dos Talentos.

Se “Deus é Mudança”, a protagonista do romance sci-fi distópico de O. Butler está disposta a não ser apenas vítima do que muda, mas também aquela que molda a mudança. Lauren Oyá Olavina atravessa, nas 400 páginas do livro, um turbilhão de transformação que não escolheu. São mudanças que surgem como imposições de um destino cruel: um futuro não muito distante, já que tudo se passa entre 2024 e 2027, Los Angeles virou de fato um cenário Mad Max. A adolescente Lauren é jogada na estrada pela violência de um contexto pós-apocalíptico que também evoca The Road – filme de John Hillcoat baseado na obra de Cormac McCarthy.

Esta sementeira de outros amanhãs possíveis sofre de uma condição psicofisiológica, que é também um ethos, descrita por O. Butler como “hiper-empatia”. Parece-me bastante irônica a atitude da autora quando chama isto de síndrome ou de doença – o que ocasionou que alguns desavisados da imprensa e da crítica literária, a exemplo do Estadão, pudessem escrever que na obra “a sensibilidade é tratada como doença” (https://bit.ly/355QItq). Não é bem assim: a hiper-empatia de Olavina não é justamente a virtude que precisamos para transformar o mundo para melhor, ainda que “possuí-la” torne o sujeito muito mais vulnerável a sentir as dores de outrem, além das suas?

Lauren, relatando como é difícil para ela “aguentar o compartilhamento da dor alheia” (p. 117), leva-nos a pensar numa tendência humana bastante comum e disseminada, a vontade de recalcar, reprimir e não atentar para quaisquer sofrimentos que não nos atinjam diretamente (o que é outro modo de descrever o egoísmo mais empedernido). A tal da síndrome de “hiper-empatia” de Lauren só é considerada anormal e aberrante em contraste com quase todos os humanos a seu redor, que aparecem embrutecidos, agressivos, violentos, piromaníacos, capaz de destruir o que resta de beleza e gentileza no mundo sem derramar uma lágrima.

É evidente que ser hiper-empática não é sentido por Lauren como uma dádiva – seu sensor à dor alheia, estando tão afinado, lhe conduz à dificuldade extraordinária de ser uma espécie de Atlas da compaixão, como quem sente as dores de todo o mundo a ponto de todos os fardos caírem sobre seus ombros. Mas é talvez justamente esta insuportabilidade do sofrer coletivo que impele as pessoas revolucionárias a embarcarem na estrada da consciente “moldação da mudança”?

– Eu não brigava muito quando era criança porque me dóia muito. Sentia cada golpe que dava, como se tivesse atacado a mim mesma. (p. 21)

Esta confissão de Lauren indica uma sensibilidade à dor do outro que se assemelha àquela capacidade imaginativa e empática que, no “De Profundis”, Oscar Wilde recrimina Bosie por possuir tão pouco e ter desenvolvido tão mal (saiba mais: https://wp.me/pNVMz-6kx).

Google faz homenagem à escritora californiana Octavia Butler.

Há também um certo humor na descrição sagaz que O. Butler faz das desventuras de Lauren, pois os outros, que conhecem sua condição hiper-sensível, acabam por brincar com isso: em um episódio memorável, ela conta que seu meio-irmão Keith “usou tinta vermelha para me enganar e me fazer sangrar em solidariedade a um ferimento que ele não tinha.” (p. 135)

Keith e Lauren, neste momento da epopéia, estão ainda vivendo em uma comunidade murada, rodeada pelo caos da convulsão social. Não há segurança alguma intra-muros: nesta distopia, colapsou totalmente a “lógica do condomínio” de que nos fala Vladimir Pinheiro Safatle (https://bit.ly/2VzJTgy). Tudo é de uma grande precariedade existencial e se sente que os personagens podem morrer violentamente a qualquer instante. O plano de Keith é se mandar para Los Angeles, a 32 km de onde vivem, mas o caminho para lá é repleto dum inferno terrestre à la Mad Max, que leva Keith a aconselhar sua meia-irmã:

– Lá fora, você não duraria um dia. Essa merda de hiper-empatia que você tem te destruiria mesmo que ninguém fizesse nada contigo. (p. 138)

Retrato de um mundo onde a empatia e a sensibilidade tornaram-se, para a consciência alienada hegemônica, vícios deploráveis e fraquezas a serem extirpadas. Mas é Keith quem poucos dias depois estará morto após ser barbaramente torturado. Lauren Olavina, hiper-empática, mostra-se não só como sobrevivente, resiliente, mas também como sementeira, criadora desta mescla de movimento social com religião new-age, o Semente da Terra (Earthseed). Lauren – e O. Butler através da boca de sua criatura – conclui diante das atrocidades horrendas que pululam à sua volta: “Se a síndrome de hiperempatia fosse algo mais comum, as pessoas não fariam essas coisas… Se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? (…) Eu queria poder dar isso às pessoas.” (p. 144)

“A Parábola do Semeador”, além de um perturbador romance sci-fi distópico, também convida à reflexões éticas que podem ser enriquecidas através de uma interlocução com a obra magistral do filósofo australiano Roman Krznaric, autor de “O Poder da Empatia: A arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo” (Ed. Zahar). Evoca também o último suspiro de um rockstar: Kurt Cobain, em sua carta de suicídio, deixou suas “famous last words” (célebres palavras finais) como uma conclamação à tríade de valores: “peace, love, empathy.” (https://bit.ly/2S9tNIt). Se O. Butler tem razão e a Mudança é a força mais poderosa do cosmos, cabe a cada um de nós não sermos apenas mudados, mas sim mudadores e mutantes. E jamais, sem empatia, moldaremos a mudança rumo ao melhor. “Aprenda ou morra”:

Consider: Whether you’re a human being, an insect, a microbe, or a stone, this verse is true.

All that you touch
You Change.

All that you Change
Changes you.

The only lasting truth
Is Change.

God
Is Change.

— Octavia E. Butler, Parable of the Sower

Por Eduardo Carli de Moraes.
Goiânia, 25/04/2020.


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Conheça o thriller distópico “Soylent Green: À Beira do Fim” (1973), que representa NYC na década de 2020

por Eduardo Carli para A Casa de Vidro

Lançado em 1973, o thriller distópico Soylent Greendirigido por Richard Fleischer, representa a megalópole Nova York em 2022. O caos está instaurado ali tanto por severos problemas ambientais (como a poluição atmosférica e oceânica, a extinção da biodiversidade planetéria etc.) quanto por convulsões sociais extremas (superpopulação e crise alimentar: são 40 milhões de novaiorquinos, e a maioria deles está na miséria!).

Baseado no romance de Harry Harrison, Make Room! Make Room!, Soylent Green (entitulado À Beira do Fim em Portugual, No Mundo de 2020 no Brasil) é de impressionante atualidade. Em uma época onde os debates e alertas sobre Efeito Estufa eram ainda incipientes, o filme já retrata um século 21 devastado pelo aquecimento global: a população vive numa perpétua suadeira devido a um clima que parece estacionado numa eterna heat wave.

Mas o menor dos problemas da galera mais pobre da cidade é a reclamação “it’s too darn hot!”:  o colapso na biodiversidade planetária faz das grandes cidades algo pior do que as concrete jungles cantadas por Bob Marley. São infernos de concreto, repletos de forças policiais que impedem a circulação de pessoas após certos horários e onde as rações de comida são controladas pela mega-corporação Soylent, uma espécie de pré-figuração do monstro empresarial hoje constituído pela fusão da Monsanto com a Bayer.

A falta de habitação digna e alimentação de qualidade marca o duro cotidiano da população que se amontoa em escadarias e invade igrejas. A paisagem urbana repleta de carcaças de carros que não andam mais está dominada por miríades de pessoas famintas e sem-teto. O modo como o Estado autoritário lida com os protestos do populacho é descrito de modo caricatural: ao invés do Caveirão costumeiro, uma espécie de Caminhão de Lixo, que trata os seres humanos empobrecidos e desvalidos como refugos a serem recolhidos como se fossem coisas inanimadas a serem fundidas numa massa anônima de lixo condensado.

Estrelado por Charlton Heston, que interpreta o detetive Thorn, o filme tem seu fio de enredo centrado no assassinato perpetrado contra um magnata corporativo chamado William Simonson – um dos empresários mais poderosos da Soylent, a mega-corporação que controla 50% do mercado de alimentos mundial. É bastante surpreendente, para não dizer visionária, a premonição veiculada no filme a respeito de um futuro dominado por mega-empresas que procuram dominar mercados em tempos de crise e lucrar com as catástrofes de que são cúmplices (e às vezes causas). Afinal de contas, trata-se de uma produção cinematográfica que antecede a ascensão do neoliberalismo nos EUA e na Inglaterra com os governos de Reagan e Tatcher.

Lançado no mesmo ano (1973) em que o governo socialista-democrático da União Popular de Salvador Allende é derrubado por um Golpe de Estado chefiado por Pinochet e teleguiado pela CIA, o filme manifesta uma notável pré-figuração do que seria o futuro neo-liberalizado em um contexto de catástrofe climática e devastação ambiental. Um meme famoso que circula na internet revela os anos em que vários clássicos sci-fi se passam: estamos agora exatamente na época compreendida entre Blade Runner Soylent Green – já a caminho dos anos fantasiados em obras-primas como Children Of Men (Filhos da Esperança), 12 Macacos e V de Vingança.

O detetive Thorn é altamente inescrupuloso e serve quase como caricatura das forças policiais nestes tempos macabros: em quase todas as suas visitas de investigação de crimes, ele trata de surrupiar itens valiosos das casas. Quando vai ao luxuoso apartamento onde vivia Simonson, para investigar seu assassinato, acaba roubando vários itens, inclusive uma garrafa de uísque, alguns livros sobre oceanografia, além de fazer a rapa na geladeira, surrupiando frutas, legumes e um pedaço de carne, itens alimentícios cada vez mais raros em um mundo dominado pela Soylent e suas barrinhas de alimento sintético.

Hoje sabemos da lamentável posição de Charlton Heston como defensor do armamentismo: tornou-se em 1998 o presidente da NRA – National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles da América) e notável desafeto do documentarista Michael Moore, que o denuncia em seus filmes, em especial Tiros em Columbine, documentário que inclui uma análise crítica do vínculo entre massacres escolares (school shootings) e a ideologia que Heston esposa. Encarnando o detetive Thorn, Heston é uma figura que deixa a testosterona subir ao cérebro e nublar a inteligência com extrema frequência. Aperta o gatilho com muita facilidade, como se seguisse o lema “atire primeiro, pergunte depois” (a gíria para isso é trigger happy).

Thorn também é um notório agressor de mulheres, tanto física quanto verbalmente. Não se pode dizer que o filme idealize a figura do policial – e aqui Heston nos oferece um retrato sincero de sua macheza tóxica, tão sedutora para tantos outros machos tóxicos que o imitam.

In this May 20, 2000, NRA president Charlton Heston holds up a musket as he tells the 5000 plus members attending the 129th Annual Meeting & Exhibit in Charlotte, N.C., that they can have his gun when they pry it “from my cold dead hands, ” The ending to his speech drew a standing ovation. (AP Photo/Ric Feld, File)

No mundo de Soylent Green, enquanto os pobres são massacrados pela Riot Police quando reclamam por mais comida, tratados como lixo humano quando reclamam por rações maiores e melhores com seus estômagos roncando, os ricos vivem em luxuosos apartamentos com ar condicionado e chuveiro com água quente. Aliás, a água é uma mercadoria racionada e quase ninguém nesta Nova York fedorenta tem o direito de tomar um banho de chuveiro.

O personagem de Simonson, ao ser assassinado, conduz o Detetive Thorn a penetrar num mundo proibido aos reles mortais: o microcosmo daqueles upscale apartments, as luxuosas mansões que mais se parecem com bunkers onde todas as comodidades do entretenimento, inclusive modernosos fliperamas, permitem aos ricaços uma vida razoavelmente confortável. Só que há um segredo por trás da vida luxuosa dos magnatas corporativos – e o segredo é uma verdade que fede, um escândalo capaz de fazer as massas nunca mais meterem na boca qualquer coisa da marca Soylent…

O apê de playboy do Simonson inclui os serviços de uma jovem mulher, Shirl (interpretada pela atriz Leigh Taylor-Young), que serve como dama de companhia, empregada doméstica e provavelmente prostituta de luxo (nada se fala sobre seu salário, mas sua atitude não condiz com a de uma escrava). Quando Simonson é assassinado, Shirl fica esperando o próximo locatário ricaço, e neste meio tempo envolve-se num tórrido affair com o detetive Thorn. Este, após deleitar-se com uma futurística encarnação da mulher-objeto, não consegue imaginar nenhum elogio melhor a lhe fazer senão este: “você é mesmo uma bela peça de mobília.”

O artigo excelente de Maria Ramos em Bitch Flicks destaca muito bem os elementos de crítica do sexismo / machismo que a obra traz:

Soylent Green stays true to the handling of women in the book on which it is based, Harry Harrison‘s Make Room! Make Room!. Several key details, some names, and the ending change, but one thing stays the same: women are screwed from beginning to end, literally and figuratively. Few women in the film get a break, not the poor or the ones who are “lucky” enough to have access to real food and a place to stay. The latter are actually referred to as “furniture,” and they’re basically attractive women who come as a package deal with the upscale apartments being rented out. A Craigslist ad for such an apartment might read, “Condo comes with a refrigerator, dishwasher, 23-year-old, slim, blonde furniture, and access to a concierge.”

Just like a chair or a hat rack, the women who are considered “furniture” don’t get to choose who uses them and must obey men’s commands, including visitors off the street. They’re routinely subjected to rape, violence and abuse from their renters and any men with whom they come in contact. Leigh Taylor-Young plays the film’s female lead, Shirl, who is at the mercy of the men who rent out the apartment where she lives. She sees her fellow “furniture” friends being beaten up by the building’s owner. Shirl is told, rather than asked, to have sex with Detective Thorn, and has very little control over her own destiny. She displays no anger at her condition and has clearly accepted her lot in life, as have the other women in the movie.

Aside from the sexist treatment experienced by the “furniture,” other women in Soylent Green are treated as disposable. Homeless women are shown being shot in the streets and in a homeless shelter while simply trying to survive. They are picked up by the scooper trucks while struggling to get food and are left to fend for themselves on the streets as they hover over their children.

Supostamente fabricados a partir de planktonsos alimentos Soylent Green escondem um terrível segredo: seu processo de produção não é exatamente aquilo que o marketing proclama. Considerando que nenhuma discussão crítica da obra é possível sem falar sobre o desfecho, alerto o leitor para os spoilers nas próximas frases: a jornada de Thorn termina com sua descoberta de que os crackers que alimentam a população, os famosos Soylent Green disputados a tapa pela população esfaimada e esquálida nas ruas novaiorquinas, na verdade não tem como matéria-prima os planktons, mas sim a carne humana. Este macabro twist de enredo dá ao desfecho do filme um inesquecível sabor de vomitório: revela-se que a humanidade, nos idos de 2020, está praticando o canibalismo em massa, sem o saber, pois a mega-corporação Soylent soube escondê-lo.

Em uma das melhores cenas do filme, o parceiro do detetive Thorn, o velhinho que serve como bibliotecário dos acervos policiais, decide que já viveu por tempo demais. Procura então os serviços de suicídio assistido, que permitem que o idoso possa ter uma morte agradável: em 20 minutos, banhado com uma luz da coloração de sua escolha, ele tem acesso a uma maravilhosa sessão de cinema onde pode contemplar as belezas de um mundo passado e destruído. Em 2022, quando não existem mais campos de morango, nem possibilidade de banhos quentes, nem água potável disponível para a sede de todos, o velhinho assiste a reproduções imagéticas de uma natureza exuberante que a Humanidade destruiu. Quando o veneno enfim aniquila sua vida, ficamos sabendo que os cadáveres não são enterrados, nem o enterro é digno de alguma cerimônia: os corpos sem vida são conduzidos àqueles onipresentes caminhões-de-lixo, a vida humana considerada como algo a ser tratado por mecanismos tecnocráticos de waste disposal. 

Nesta distopia sombria, a década de 2020 lida com a escassez de alimentos para suprir as necessidades de uma população gigantesca através da reciclagem da carne humana: os velhos são lançados nas maquinarias industriais que transformam velhos cadáveres em crackers de Soylent Green. O véu de Maya da ideologia trata de esconder de quase todos a verdade: o capitalismo ecocatastrófico nos reduziu ao canibalismo, e disfarça a hecatombe que causou com enxurradas de fake news marketing. 

Afinal de contas, o Detetive Thorn redime-se de sua macheza tóxica e de sua cotidiana corrupção policial, alça-se a um status melhor do que a de um tira-ladrão e um trigger-happy yankee, quando sua investigação o conduz ao desvelamento da amarga verdade. Baleado e perdendo sangue, ele enfim se faz o arauto das novas que precisam ser sabidas, por mais chocantes que sejam. A mão ensanguentada com que o filme finaliza acaba sendo um emblema do fim inglório – o de serem vítimas da carnificina – daqueles que buscam descobrir as verdades ocultas de um sistema perverso e revelá-las o olhar do grande público.

O filme é interessantíssimo por revelar uma produção fílmica que, em 1973, imagina 2022 – um interesse similar àquele que temos ao ler George Orwell, escrevendo em 1949, fantasiando sobre como seria o ano de 1984. Também é notável a sintonia que o filme manifesta com a obra de um dos maiores gênios da 7ª arte hoje em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho: vários dos temas e moods presentes em ParasitaO Hospedeiro, Okja e Snowpiercer – Expresso do Amanhã parecem tributários da obra magistral de Fleischer. Não estou dizendo de forma alguma que Bong Joon-Ho seria um plagiador, mas sim um artista que soube aprender com aquilo que de melhor se fez na história do sci-fi distópico, inclusive fazendo-se aluno na escola de Soylent Green.

Bong Joon-ho holds the Oscars for best original screenplay, best international feature film, best directing, and best picture for “Parasite” at the Governors Ball after the Oscars on Sunday, Feb. 9, 2020, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Richard Shotwell/Invision/AP)

É só lembrar, por exemplo, das brutais injustiças sociais e apartheids que estão vigentes no trem onde se passa Snowpiercer – uma obra onde (alerta para spoiler!) o enredo se desenrola também em direção à revelação da cruel verdade: a alimentação do que restou da humanidade está toda baseada na proteína de baratas e na exploração de trabalho escravo infantil. Distopias raramente conseguem atingir tais funduras de abismo.

O mais assombroso de tudo é suspeitar que as fantasias supostamente “pessimistas” dos grandes artistas do sci-fi distópico cada vez se mostram, conforme progride o que Isabelle Stengers batizou de “O Tempo das Catástrofes”, muito mais realistas do que sd insossas fantasias utópicas de outrora, que sonhavam com o reino da harmonia e da fraternidade que nunca chegou nem perto de se concretizar.

A distopia, enquanto gênero da ficção, pode ter um efeito performativo sobre o real, transformando-o na prática, ao realizar no âmbito da arte um salutar alerta à Humanidade: “este péssimo futuro pode ser o de vocês!” A representação artística de um futuro infernal pode ser inclusive um fator necessário na cruel pedagogia que permite-nos mudar de rumo desde já, percebendo que certas tendências do presente conduzem à hecatombe, logo é melhor mudar a direção da caminhada civilizacional deste nosso aqui-agora.

Por isso defendo que os alertas distópicos, assim com a prosa que hoje se filia à vertente ecoativista conhecida como Catastrofismo Esclarecido, hoje são salutares, indispensáveis, crucialmente necessários, até mesmo para que possam seguir existindo no mundo as próprias utopias (visões de outros mundos possíveis). Digo isto pensando numa espécie de dialética utopia e distopia, num xadrez entre estes dois princípios: a utopia pode ser cega quando afunda-se no otimismo barato ou no wishful thinking, mas a utopia – O Princípio Esperança de que falava Ernst Bloch – é preciso ser temperada com a virtude crucial da lucidez, com a clarividência dos que enxergam sem ilusão, e este é o fármaco salutar que a gente pode alcançar através das seringas distópicas que a arte injeta em nossas veias. Salutares seringas para que as utopias sejam consideradas sem idealismo, como forças concretas que mobilizam o engenho humano em nossa luta conjunta por melhorar de condição.

Oscar Wilde escreveu: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias.” Hoje, este discurso precisa ser retificado, o valor da distopia precisa ser reconsiderado, a maestria dos artistas do sci-fi distópico merece ser reavaliada: a distopia, como denúncia de possíveis que horrivelmente podemos concretizar, favorece o senso de prudência e de responsabilidade da geração presente. A distopia pode nos dar aquela “coragem de ter medo” de que falava Günther Anders e desenvolver o “princípio responsabilidade” com o qual Hans Jonas pretendeu revolucionar o pensamento ético na era da bomba atômica e da possibilidade de extinção em massa.

O utopismo “idealista” e sonhador, que apenas imagina mundos perfeitos enquanto permanece de braços cruzados (ou de joelhos e orando… o que dá quase no mesmo!), é inútil e até mesmo nefasto em comparação com um “distopismo” materialista e desperto, intérprete mordaz das tendências que se manifestam na atualidade, que tece enredos infernais para melhor alertar aos humanos sobre os maus caminhos que seguimos pegando. Um mapa-múndi que não inclua a distopia não é digno de consulta, pois deixa de fora os alertas sobre os mundos infernais que a Humanidade pode de fato estar produzindo. É só encarando as piores possibilidades da nossa espécie, olhando na cara de tudo de péssimo que o homo sapiens é capaz, que seremos capazes de, em lucidez e solidariedade, como espíritos livros Camusianos, forjarmos na ação conjunta um mundo melhor do que aqueles mundos de nossos pesadelos distópicos.

SOYLENT GREEN

 

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 19/04/2020
http://www.acasadevidro.com

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“No dia seguinte ninguém morreu” – José Saramago sonda a tragicomédia da existência em “As Intermitências da Morte” (2005)

Nunca houve, desde que há mundo, um único dia que tenha transcorrido sem mortes. Não há registro ou notícia, desde que há vidas nesta esfera que rodopia ao redor do sol, de um giro completo do planeta ao redor de seu próprio eixo em que não tivessem se entremesclado no Theatrum Mundi os primeiros gritos dos recém-nascidos com os últimos suspiros dos agonizantes (como já nos ensinava a poesia epicurista de Lucrécio).

Se na realidade nunca houve época em que a morte tivesse entrado em férias, na literatura pode-se fantasiar livremente sobre o inaudito, o inédito, o nunca-dantes-nos-anais-da-história: como aquela formidável época em que a gente parou de morrer. A crônica imaginária destes sucessos extraordinários foi realizada em As Intermitências da Morteromance publicado em 2005 por José Saramago e que assim se inicia:

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme… não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas 24 horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.” (SARAMAGO – Cia das Letras, 2005, p. 11)

Na trajetória do escritor, este livro é da fase tardia, escrito após a consagração mundial de Saramago em 1998, quando o hoje defunto autor português foi laureado com o Nobel de Literatura, aquele prêmio que concede a tão poucos e seletos mortais a aura de sua glória, auréola de fama que promete a seu detentor que sua obra irá seguir ecoando, enganando a bocarra gigantesca da obscuridade do túmulo que engoliu quem esta obra pariu.

Neste livro, como de praxe, o Saramago é o cronista sagaz de nosso absurdo individual e coletivo. É o autor capaz de enxergar com profunda ironia, tingida de melancolia, todas as nossas adversidades, todas as nossas idiotices, todas as nossas incompletudes. É também o crítico mordaz das religiões instituídas, das máphias políticas, das velharias autoritárias, agindo como um iluminista tardio que age contra todos os obscurantismos que insistem em medievalizar a terra.

Saramago atua, através de sua caudalosa escrita, como um pedagogo sábio que quer nos ensinar a travessia que vai da cegueira à lucidez. Pela via régia do ateísmo, busca a emancipação do pensamento e da sensibilidade, libertos das cataratas de mentiras que nos vendam os olhos. O pior cego é o que não quer ver, o que pôs vendas em seus próprios olhos, em atitude análoga à daquele que está perecendo em uma cela de prisão sem perceber que a chave está por dentro.

Explorado em outras de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, o tema da cegueira – não literal, mas sim moral, existencial, relacional – parece estar correlacionado, na obra saramaguiana, com a condição mortal. Como se fôssemos demasiado covardes, a maioria de nós e a maior parte do tempo, para estar with eyes wide open diante de nossa condição.

Preferimos a semi-obscuridade – a falta de lucidez – de nossas fés e ideologias, que tanto contribuem para que vivamos com eyes wide shut (nome, aliás, do notável filme de despedida de Stanley Kubrick). Cegos de propósito, pois nunca suficientemente corajosos para encarar, no espelho, a caveira que nos olha de volta por detrás da pele da face. Crânio escondido por detrás da cara que é o retrato de nosso futuro incontornável.

O único animal que sabe que vai morrer inventa, através da história, os ópios e morfinas espirituais que mediquem sua angústia da finitude. A música do Morphine expressa isto à perfeição em Cure for Pain, uma das mais belas canções do finado Mark Sandman: “someday there’ll be a cure for pain, that’s the day I’ll throw my drugs away”.

Saramago sabe que as religiões instituídas, aí incluída a católica apostólica romana, sempre insistiram no tema da “morte como porta única para o paraíso celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres, uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para prepararem as almas com vista à ascensão do éden” (p. 133). A extinção da morte é um perigo para a sobrevivência das religiões instituídas, estas profanas criações humanas destinadas a pôr em circulação os ópios fantasiosos que acalmam os terrores e angústias do bicho que sabe que vai morrer.

Há muito tempo estou convencido – e nisto a leitura de Saramago muito contribuiu – de que as religiões e as mitologias são incompreensíveis em um horizonte onde não coloquemos, no cerne, a mortalidade humana e o nosso protesto contra ela. Diante da morte invencível, os seres humanos erguem suas catedrais e suas preces; imaginam-se triunfantes em um além-túmulo que o poeta Tennyson chamará de local do Segundo Nascimento; Idolatram a figura de um crucificado que supostamente voltou à vida depois de três dias morto. Só inventamos deuses pois morremos – e é porque morremos que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Pintura de Andrea Mantegna – “Lamentação de Cristo”

Mortais humanos apegam-se com esperanças fervorosas ao sonho de ressurreição, e olhando, seja de frente ou de soslaio, seus destinos de criatura temporárias, abraçando ou recusando esta ciência fatal, os seres que somos recusam-se a ir ladeira abaixo, no processo que conduz pra baixo da terra, em silêncio e resignação. Para lembrar o célebre estribilho poético: We not go quietly into that good night… We rage, rage against the dying of the light! (Dylan Thomas)

Como disse Albert Camus, “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é.” E a danada da morte tem tudo a ver com isso. Ela é, para os viventes, aquilo que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes” – e os suicidas sempre foram minoria da humanidade, pois os que buscam com ânsia uma morte que lhes dê fim aos tormentos e angústias sempre foram menos numerosos do que aqueles que foram impelidos à sobrevivência resiliente até que o tempo os matasse com seus instrumentos do costume, como as doenças e as violências bélicas. Ainda assim, o suicídio e a eutanásia são fenômenos que nos obrigam a refletir sobre o direito de morrer, quando a vida não é mais sentida como digna de ser vivida, um tema abordado com muita sensibilidade e pungência por filmes como Mar Adentro de Amenábar ou Amor de Haneke.

Saramago, no espaço livre de seu livro, suspende as leis natural que estão por aí desde que o mundo é mundo. Mago plenipotente no espaço de seu romance, ele conta uma história fantasiosa: na alvorada de um ano novo, todos os 10 milhões de habitantes de um certo país subitamente descobrem que a morte saiu de férias. Por tempo indeterminado. Sem aviso prévio, abandonou o posto e desistiu de seu fatal ofício, há tantos milênios incansavelmente exercido.

Não se sabe os motivos de sua greve, e ninguém explicou se o fenômeno é uma casual e efêmera transformação da ordem cósmica, que logo re-entrará nos eixos costumeiros, ou se as regras da vida e da morte foram alteradas para sempre neste pequeno rincão da terra. A princípio, é o fervor patriótico e todos comemoram o privilégio. Logo depois, percebem que a morte sair de férias irá acarretar um imenso transtorno – tanto é assim que os fluxos migratórios irão se acentuar, com inúmeros nômades-peregrinos querendo chegar a outro país onde ainda se tem a possibilidade de morrer.

Tudo se transtorna com as férias que a morte resolveu tirar: os hospitais ficam repletos de doentes terminais, os asilos de velhos sofrem com o excesso dos agonizantes estão à espera de seu ocaso, os escritórios das companhias de seguros e os bancos onde elas depositam seus capitais entram em crise…

Os impactos na economia são tremendos – e não apenas no pequeno nicho que são as empresas funerárias, que fornecem aos que sobrevivem os necessários auxílios para o despojo daquelas partes do ex-vivo tão brutalmente chamados por alguns de “restos mortais”, aquilo que, abandonado pela chama da vida, apodrece logo com exalações de odores pútridos e que por isso corremos a afastar de nossas fuças e vistas.

A teledramaturgia, nos últimos anos, foi responsável pela criação de uma obra-prima das séries dramáticas com A Sete Palmos (Six Feet Under), da HBO, cujas 5 temporadas expuseram em minúcias as vidas da família Fisher e seus agregados afetivos enquanto tocam avante a difícil empreitada de gerir uma funerária.

Saramago também se interessa por todas as indústrias que lucram com a morte, mas é mais como um crítico ácido que ele atua, nunca como alguém que não enxergue a problemática complexa que envolve hospitais, asilos, funerárias e os elos que os conectam aos poderes políticos e eclesiásticos. As altas cúpulas do clero e as altíssimas autoridades do reino são alvo da pena mordaz de Saramago, que em inúmeros livros despeja sua ironia sobre o fenômeno da vinculação teologia-política (Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim etc.).

Em As Intermitências da Morte, o romance revela tudo o que ocorre no curto período em que a morte cessa de desempenhar suas funções.

“A igreja”, por exemplo: “saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.

Dizia também a igreja que a suspensão temporária e mais ou menos duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia permitido se fizessem nos últimos 20 séculos, a única diferença do que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os polícias e os ladrões, os assassinos e os doadores de sangue, os loucos e os sãos de juízo, todos, todos sem exceção, eram ao mesmo tempo as testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez observado na história dos milagres…” (p. 75)

Descrente em milagres como bom ateu, Saramago brinca de imaginar as consequências que tomariam o mundo caso este milagre ocorresse e a “Velha da Capa Preta” parasse de trabalhar. O desemprego dos coveiros seria a menor de nossas encrencas. A editora Companhia das Letras sintetizou bem os charmes e graças do romance:

De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

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Vale lembrar que, na arte brasileira, há também um magnum opus que se equipara a Saramago na capacidade de expressar de maneira criativa e expressiva o enrosco humano com a mortalidade: estou falando da música de Siba, depois regravada por Juçara Marçal em seu álbum Encarnado, “A Velha da Capa Preta”:

A morte anda no mundo
Vestindo a mortalha escura
Procurando a criatura
Que espera a condenação
Quando ela encontra um cristão
Sem vontade de morrer
Ele implora pra viver
Mas ela ordena que não
Quando o corpo cai no chão
Se abre a terra e lhe come
Como uma boca com fome
Mordendo a massa de um pão

A morte anda no mundo
Espalhando ansiedade
Angústia, medo e saudade
Sem propaganda ou esparro
Sua goela tem pigarro
Sua voz é muito rouca
Sua simpatia é pouca
E seu semblante é bizarro
A vida é corno um cigarro
Que o tempo amassa e machuca
E morte fuma a bituca
E apaga a brasa no barro

A morte anda no mundo
Na forma de um esqueleto
Montando um cavalo preto
Pulando cerca e cancela
Bota a cara na janela
Entra sem ter permisão
Fazendo a subtração
Dos nomes da lista dela
Com a risada amarela
É uma atriz enxerida
Com presença garantida
No fim de toda novela

Disse a morte para a foice:
Passei a vida matando
Mas já estou me abusando
Desse emprego de matar
Porque já pude notar
Que em todo lugar que eu vou
O povo já se matou
Antes mesmo d’eu chegar
Quero me aposentar
Pra gozar tranqüilidade
Deixando a humanidade
Matando no meu lugar

A personificação da morte não é novidade na história da arte – de Van Gogh (pintura acima) a Bergman (em um filme como O Sétimo Selo), artistas de várias vertentes já representaram a dita cuja de muitas maneiras, como um esqueleto que fuma um cigarro ou como uma jogadora de xadrez que oferece ao rival a oportunidade de adiar sua estadia entre os vivos, desde que consiga não tomar um xeque-mate.

No caso de Saramago, ele se deleita em imaginar as enrascadas em que a morte responsável por matar os humanos entraria caso mudasse seus métodos imemoriais. A morte, quando sai dos trilhos, acaba por descarrilhar todo o trem da vida. Primeiro, ela escolhe as férias, mas depois decide retornar à labuta, mas com outra estratégia: mandará pelo correio uma carta de cor violeta, avisando aos que estão na iminência de morrer que lhes resta apenas uma semana de vida…

Poética, a morte pensa em enviar, ao invés de cartas, borboletas – em especial a espécie acherontia atroposdotada pela natureza de um visual curiosamente fúnebre. São maneiras irônicas de Saramago nos sugerir, com muita graça, que a morte sempre fez parte da vida e que ainda bem que é assim. Esta funcionária exemplar causaria o caos caso falhasse no desempenho de suas funções. Hospitais engarrafados de tantos doentes, asilos às dúzias tendo que ser construídos às pressas, empresas de enterros indo à falência, e religiões instituídas caindo no colapso – tudo isso como resultado da temporária intermitência da morte em seu ofício.

Se a vida fosse impossível de perder, que valor teria? Não temos apreço senão por aquilo que é a um só tempo precioso e destrutível. Sabemos e sentimos que tudo de bom que vivemos é efêmero e temporário, e André Gide ensinava que quem não pensa suficientemente na morte não consegue dar o devido peso e urgência à vida: “Um pensamento insuficientemente constante sobre a morte”, escrevia Gide, “nunca deu valor suficiente ao mais ínfimo instante de vida.”

Nas páginas de Saramago, é como se a morte aparecesse como a necessária força de renovação das coisas. Sem morte, tudo estagnaria e o mundo viraria um amontoado de velharias. O fluxo cósmico perderia sua fluidez. As velharias se amontoariam, sufocando o novo. Só através da morte é que a vida pode inovar. No balé infindável de Eros e Tânatos, o palco do mundo vê a emergência sem fim de novas formas. Metamorfoses advindas interminavelmente da dialética inextirpável da vida e da morte.

Pintura de Michael Wolgemut, “A Dança dos Esqueletos”

Em seus momentos mais filosóficos, As Intermitências da Morte nos faz refletir sobre os diversos modos de findar a existência, de acordo com o organismo vivo que chega a seu ocaso, como no capítulo 6, em que um peixinho de aquário, alçando-se por sobre as águas, pergunta (perdendo seu pobre fôlego):

“Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoia giganteum com os seus 100 metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está na borboleta… Disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo….” (p. 72)

Morte e vida dançam o rock da metamorfose no fluido palco do universo, mas cada organismo tem seu modo de experenciar o seu próprio processo de dissolução: se é verdade que o homo sapiens é o único animal consciente de sua própria mortalidade, ainda que ele tanto se esforce para recalcar e reprimir esta ciência (através de métodos psicológicos brilhantemente iluminados por Ernest Becker em A Negação da Morte, belíssimo livro laureado com o Pulitzer), não se pode negar que outros animais dotados de sistema nervoso central e altamente sensíveis aos estímulos ambientais também batalhem com todas as forças de seu âmago contra quem quer lhes impor a morte. Ser um animal é estar animado pelo duro desejo de durar.

Um pomar não nos dá a mesma impressão de resiliência, de perseverança na existência, de manifestação concreta do conatus conceituado na filosofia de Spinoza, o que torna bastante cômicos e risíveis os argumentos de certos carnívoros que, diante da argumentação de vegetarianos em prol da libertação animal, argumentam que as cenouras e os alfaces gostam tão pouco de terem suas vidas abreviadas quanto os porcos e bois abatidos nas milhares de factory farms desde nosso mundo.

Neste debate, Jacques Derrida foi ao cerne do problema ao dizer que a questão crucial a se colocar, diante da vida de um outrem não-humano, é esta: “esta criatura pode sofrer?” E só um mentecapto seria capaz de avaliar, no termômetro da sofrência, que um porco ou uma galinha sofrem menos que uma maçã ou um brocólis com a interrupção de sua existência para fins alimentícios humanos. O apego à vida é evidente maior quanto mais ampla é a consciência que o animal possui de sua condição existencial – e, como Peter Singer argumenta, é um escândalo global chocante o quanto nossas economias ainda estão baseadas no morticínio ultra-disseminado de criaturas que sofrem imensamente com o processo mortífero que os humanos lhes impõem, ao invés de adotarmos uma cultura culinária mais sábia pois atenta aos interesses de seres sencientes semelhantes a nós mesmos.

Passando ao largo dessas questões, o romance de Saramago prefere focar nas reações humanas diante da aproximação da data fatal nas novas condições impostas pela Dona Morte, que no âmbito do romance resolveu inovar em seus métodos. O affair quase romântico da morte com um violoncelista serve como emblema saramaguiano para os poderes transformadores da arte: sob o impacto da aproximação da morte, o músico toca seu Bach, seu Chopin, seu Beethoven, com tal feeling e potência expressiva que tudo transfigura a seu redor.

Saramago imagina então que a morte, encantada com a musicalidade deste mortal que ela não consegue se decidir a matar, escolhe fazer o que nunca antes fizera – é só lembrar que ela não teve piedades, em sua ação pretérita, de gênios musicais colhidos tão cedo do jardim da vida como Schubert, Mozart ou Janis. A morte depõe suas armas diante da música, adia suas tarefas, deixa para depois o único mandamento que segue – “matarás!” Enfeitiçada pela música que fazem os vivos, a morte que nunca dorme decide-se a deixar a foice encostada e vai tirar uma soneca – afinal suas pálpebras pesam após tanto tempo de ação em completa insônia. “E no dia seguinte ninguém morreu…”

“O que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naquela música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer… (p. 171)

É nossa sina de seres temporários que nunca possamos abandonar o palco depois de tudo termos dito. Resta sempre muito por dizer, e o resto é silêncio. Na literatura de Saramago, este incontornável da condição humana recebe um tratamento literário que é tonificante, não só pela liberação lúdica que nos fornece, aliviando a gravidade com que costumamos tratar do assunto e polvilhando tudo com um espírito de jocosa ironia, mas também pela intensificação de nossa consciência do quão tragicômico é este clarão entre dois nadas que cada um de nós chama de vida.

A morte saramaguiana tem muita graça e lendo este romance pude me divertir a imaginá-la como um funcionária exemplar, que desde a alvorada da vida exerceu suas funções de maneira impecável, mas que enfim decide reclamar seus direitos trabalhistas e reclamar do patrão (deus ou o universo, segundo o gosto do freguês…), já que ela já labuta há milênios, sem férias nem direito a greve, matando 24 horas por dia, inclusive em feriados religiosos e nos horários mais impróprios da madrugada.

A morte é parte inextricável e incontornável da vida de que cada um de nós não detêm a posse mas somente o fugaz usufruto. E a sabedoria epicurista sempre ensinou que não há carpe diem sem memento mori. Saramago, acredito, assinaria embaixo caso a morte tivesse lhe deixado mãos para escrever. Também assinaria embaixo, provavelmente, de duas idéias filosóficas que muito aprecio: a primeira, de Montaigne, que dizia que “filosofia é aprender a morrer”, e a segunda, de André Comte-Sponville, que ensina que “é preciso pensar a morte para amar melhor a vida – em todo caso, para amá-la como ela é: frágil e passageira.”

O pensamento de Saramago, tão filiado a um certo ímpeto de lucidez iluminista que batalha contra o obscurantismo e o fanatismo, busca conduzir-nos a esta sábia apreciação de nossa existência mortal que é tão rara e preciosa. Escrevendo logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, Saramago soube conectar com profundidade os fatores inextricáveis mortalidade religiosidade ao escrever “O Factor Deus”, excelente provocação filosófica-política que é recomendável como posfácio às Intermitências da Morte:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra…) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.” – SARAMAGO / O FACTOR DEUS

Por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Julho de 2018