PROIBIDO ESQUECER – Os deveres da memória em tempos de genocídio: O caso “Black Earth Rising” (BBC/Netflix)

“A million candles burning
For the help that never came
You want it darker
We kill the flame…”
LEONARD COHEN

Ruanda, 1994: cerca de 800.000 pessoas são assassinadas em 100 dias de carnificina. Recontada no cinema em Hotel Ruanda (de Terry George, 2004), em livro-reportagem no Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas Famílias de Philip Gourevitch (Cia das Letras) e nos romances de Scholastique Mukasonga (três deles publicados no Brasil pela Editora Nós), a história do genocídio ruandês agora volta à tona: Black Earth Risingsérie de 8 episódios produzida pela BBC e que está no acervo da Netflix, retrata os traumas e cicatrizes que marcam os sobreviventes, as testemunhas e os perpetradores deste monumental e trágico evento histórico. Ao fim do século 20, a violência ainda inundava a História Humana, este pesadelo do qual tentamos acordar (para lembrar do personagem de James Joyce, S. Bloom, que afirma no Ulisses: “History is a nightmare from which I am trying to awake”). [1]

Escrita, produzida e dirigida por Hugo Blick (também responsável pela minisérie The Honourable Woman (A Mulher Honrada), Black Earth Rising foca no trabalho de uma equipe de juristas que dedicam suas vidas ao esforço de penalização de genocidas e criminosos-de-guerra, processados em tribunais penais internacionais como o de Haia (Holanda). A personagem principal, Kate Ashby (interpretada por Michaela Coel), atravessa radicais transformações de identidade em uma trajetória para desocultar os segredos de seu passado: ela era uma criança em meio à matança generalizada deflagrada em 1994 lá em sua terra natal Ruanda, e que se estendeu pelos anos seguintes no país vizinho (Zaire / Congo).

Sem memórias claras de sua primeira infância, Kate – que foi adotada pela advogada inglesa Eve Ashby – só poderá compreender muito mais tarde os maiores mistérios de seu destino prévio. Transformada numa mulher em ação, na luta pela memória e pela justiça, ainda que tardias, Kate Ashby vai numa jornada em busca do tempo perdido bastante peculiar, desvelando os nós que entrelaçam seu destino pessoal com os destinos coletivos dos povos do Continente Matriz da humanidade, a África.

Em entrevista à BBC, Blick revelou um pouco do que o inspirou a realizar a série:

“Onde eu cheguei não é o destino que eu esperava. Alguns anos atrás, olhei para os julgamentos de Nuremberg como parte de uma pesquisa de fundo para a série “A mulher honrada “. Consequentemente, fiquei interessado em explorar como perseguimos hoje os criminosos de guerra internacionais. Comecei com o Tribunal Penal Internacional (TPI) e fiquei surpreso ao descobrir, no momento da minha pesquisa, que a maioria, senão todas as acusações formais, eram contra africanos – negros africanos. Isso então me atraiu para o Congo. O TPI não estava apenas perseguindo os perpetradores do genocídio de Ruanda, fiquei ainda mais intrigado ao descobrir que ele também estava perseguindo indivíduos que ajudaram a pôr fim ao genocídio. Ambos os lados eram procurados pelo TPI por supostas atrocidades cometidas na República Democrática do Congo após o genocídio em meados da década de 2000. Eu queria entender por que aparentes vilões e heróis estavam sendo perseguidos. E quanto mais eu olhava, mais fundo eu tinha que ir. ” (BLICK, Hugo. BBC.) [2]

A compreensão do que ocorreu em Ruanda, em 1994, é um desafio cognitivo tremendo. As dificuldades começam pelo fato de que poucos tem estômago para mergulhar no estudo de fenômenos que são tão chocantes e angustiantes, devido à escala monumental do horror e da violência que envolvem. Philip Gourevitch escreve, sobre aquela época, de maneira bem punk, que “o governo ruandês adotara uma nova política, segundo a qual todo mundo do grupo majoritário hutu era convocado a matar todo mundo da minoria tutsi. O governo e um impressionante número de seus súditos imaginavam que exterminando os tutsis poderiam fazer do mundo um lugar melhor – e o assassinato em massa começou.” (GOUREVITCH, P. Cia das Letras, leia um trecho) [2]

O trecho de Gourevitch estabelece uma distinção entre a minoria Tutsi e maioria Hutu, afirmando que a maioria, através do assassinato em massa da minoria, “imaginavam que poderiam fazer do mundo um lugar melhor”, o que é o supra-sumo do contra-senso: utilizar um meio como o assassinato em massa para atingir a finalidade de um mundo melhor é algo estapafúrdio. Só temos a lamentar a crença de muitos na tese de que “o fim justifica os meios”, quando na verdade meios atrozes e cruéis sempre hão de conspurcar os fins, mesmo os supostamente mais elevados. Creio, porém, que o buraco é mais embaixo, que o ímpeto idealista de fabricar uma realidade social melhorada através da purificação, da limpeza étnica, está calcada num dos mais sérios problemas a desgraçar a caminhada humana sobre o planeta – o racismo. Tema que Black Earth Rising evita encarar de frente.

Outra dificuldade que se interpõe como obstáculo na nossa tentativa de compreensão das ocorrências em Ruanda, em 1994, parece-me ser a seguinte: por comodismo e facilidade, ou seja, pela lei-do-mínimo-esforço que preside o trabalho de muitas mentes que se abandonam ao Império da Preguiça, temos uma certa tendência a simplificar as coisas através da perigosa prática do binarismo – e também do maniqueísmo que muitas vezes o acompanha. Usualmente, desejamos enquadrar o mundo e a história em um esquema em que separamos o joio do trigo de modo bastante tosco: há vilões e heróis, bandidos e mocinhos, a luta entre o Bem e o Mal, “ou você está conosco ou está contra nós” (recentemente, um presidente genocida como George W. Bush reciclou esta desgraça de maniqueísmo binário ao lançar sua Guerra Contra o Terror).

A realidade, porém, é muito mais complexa e destroça nossos binarismos maniqueístas. Jamais faríamos o mínimo de Justiça, nem honraríamos os deveres da Memória, tentando enquadrar, em massa, Tutsis e Hutus em uma dessas categorias: Vítimas e Carrascos. Precisamos ir além do simplismo de opor uma “coitada minoria massacrada” e uma “desumana maioria assassina”. Temos que complexificar o quadro e olhar de frente no rosto da Besta Humana. Pois a Humanidade sabe muito bem ser desumana. Nossa união ainda está por ser inventada.


PARA ALÉM DO BINARISMO E DO MANIQUEÍSMO

Um dos ensinamentos de Black Earth Rising é que não podemos cair no binarismo fácil de classificar estas etnias como vítimas (Tutsis) carrascos (Hutus) – as posições de vítimas e carrascos são muito mais intercambiáveis. Ser um Tutsi não é um atestado de vítima, nem imuniza a pessoa contra o cometimento de atrocidades, nem tampouco ser um Hutu é um atestado de genocida, nem impede a pessoa de militar em prol da convivência pacífica.

É isto que Kate Ashby não consegue compreender a princípio: ela está aferrada à noção de que os Tutsis são as vítimas, os Hutus os genocidas. Aferrada, além disso, à crença sobre si mesma: está certa de que é uma Tutsi sobrevivente do genocídio, e tudo fará para que os responsáveis pelo morticínio escapem da impunidade de que ainda gozam. Por isso Kate suporta tão mal que sua mãe tente incriminar em Haia o General Simon Nyamoya, um chefe Tutsi que ajudou a pôr fim ao massacre, em 1994, mas depois se envolveu em crimes de guerra e tráfico de minérios no Congo, além de ter participado de uma carnificina contra um campo de refugiados Hutu em território congolês.

Baseado em fatos reais que o Mirror reconta, assim como a reportagem da BBC, Black Earth Rising merece ser vista na íntegra para que se possa ter uma experiência plena das metamorfoses de Kate Ashby no decorrer da série. Ema espécie de 1º ato, Kate Ashby reluta em ver seu herói Nyamoya sendo destronado, caindo do pedestal em que ela, e tantos outros, mantinham-no. É uma primeira amarga lição, que a impede de idealizar cegamente os chefes Tutsis que lutaram para pôr fim ao genocídio em 1994: apesar de “libertador” dos Tutsis que estavam sendo massacrados, revela-se que Nyamoya também é culpado por crimes contra a humanidade e limpeza étnica – sobretudo no episódio do “desmantelamento” (eufemismo para extermínio!) do campo de refugiados Hutus no Congo.

Mais para o fim da série, será revelado que a própria Kate esteve neste campo, sendo dele resgatada por um ativista de ONG. Quase no desfecho da série, Kate está dentro de uma cova coletiva, temendo por sua vida, como se tivesse ganho algumas décadas de sobrevivência para finalmente perecer no buraco onde deveria ter ficado enterrado seu cadáver infantil, mas percebe que um mutirão de pessoas decidiu, como ela, trabalhar para trazer à tona no presente os ossos enterrados de uma História mal contada e ocultada.

Não é possível compreender as ocorrências de que fala a série com o nosso foco exclusivamente em Ruanda em 1994: os precedentes do genocídio incluem necessariamente as ações das grandes nações imperialistas do Ocidente. Não é fora de propósito averiguar quanto do sangue derramado em Ruanda tem origens numa insanidade racista que foi inicialmente propagada pelo colonizador europeu e pelas ideologias supremacistas que marcaram não apenas o nazifascismo, mas também o escravismo nos EUA calcado na white supremacy. Sim, precisamos falar sobre ideologias racistas típicas do imperialismo “ocidental” – aquele que praticou por séculos a escravidão contra milhões de africanos – para chegar perto de entender melhor o destravamento das carnificinas ruandesas de 1994.

No fim do século XX d.C., a Humanidade descobria, atônita, nossa resiliente capacidade para o pior, somada à nossa incapacidade de autenticamente aprender com erros passados e suas funestas consequências. Parecíamos condenados a repetir, com Maslow: “O Horror! O Horror!”, frase com que se encerra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, retrato do Congo belga no livro que depois se transformou em Apocalypse Now (filme de F. F. Coppola). O pesadelo do fratricídio entre Tutsis e Hutus segue desafiando nossa Razão a decifrar seus porquês – e diante de vidas humanas reduzidas em massa à morte, é preciso cuidado redobrado naquilo que dizemos e escrevemos. Aqui estou na postura de quem se estarrece que acontecimentos assim estejam entre nossos possíveis, mas não na postura de quem traz todas as respostas em uma bandeja.

Pelo contrário, trago uma bandeja cheia de questões: nós, que nos acostumamos a pensar sobre o racismo como um fenômeno vinculado ao “preconceito de cor”, para lembrar um samba de Bezerra da Silva, como podemos reconfigurar nossa compreensão do racismo diante daquilo que parece ocorrer entre grupos humanos que não estão separados pela barreira epidérmica das dosagens de melanina? O III Reich hitlerista assassinou em massa judeus e bolcheviques, homossexuais e ciganos, mas não consta que tenha visado, como alvos, as populações de descendência africana que estavam naquela Europa que o nazismo pretendeu subjugar a seu sinistro império. Porém, o Holocausto – o genocídio imposto pelo governo nazifascista alemão a mais de 6 milhões de judeus europeus – não é menos racista pelo fato de que, olhado através de um viés bem superficial, trata-se de brancos matando brancos, europeus chacinando europeus.

Algo semelhante me angustia diante do contexto em Ruanda nos anos 1990: Tutsis e Hutus não são distinguíveis por sinais visíveis – similarmente, olhando através de um viés epidérmico, de uma perspectiva que pára na pele, trata-se de negros matando negros, africanos chacinando africanos. O racismo estaria, portanto, riscado da lista de motivações possíveis para estes genocídios? Não creio. O que exige repensar o racismo de modo mais aprofundado, como uma espécie de crença coletiva que um grupo social compartilha e que inclui a desumanização de um outro grupo social. Um dos elementos mais interessantes de Black Earth Rising está na flutuação identitária que o seriado retrata ao descrever as descobertas bombásticas que realiza, em sua vida, a personagem Kate Ashby.

Para todos os efeitos, Kate Ashby aparece-nos, no começo da série, como uma cidadã britânica, uma falante da língua inglesa, uma londrina que cresceu sob os cuidados de sua mãe adotiva, a célebre jurista Eve Ashby. Porém, Kate Ashby é um nome postiço e tardio que vem para encobrir o anonimato de uma criança que sobreviveu sozinha ao genocídio: sem familiares nem amigos que pudessem dizer seu autêntico nome, privada das informações sobre seu batismo africano originário, ela se torna uma sobrevivente do genocídio ruandês a quem se oferece um novo começo no United Kingdom: cresce acreditando, a partir das narrativas que lhe contaram, que é uma Tutsi, sobrevivente de um massacre cometido pelos Hutus.

Qual não será a sua surpresa quando descobrir, conforme avançam suas investigações relacionadas com a tentativa de condenação em Tribunal Penal Internacional do general Hutu Patrice Ganimana, que na verdade Kate Ashby foi em sua primeira infância algo bem diferente de uma criança Tutsi sobrevivente de um genocídio: era uma criança Hutu que deixou o país após o fim da carnificina, tornando-se uma emigrante e depois uma refugiada no país vizinho, então o Zaire, hoje a República Democrática do Congo. A mulher que se conhece por Kate Ashby, cujo nome africano nunca se soube, descobre que lhe mentiram sobre as circunstâncias em que foi resgatada em meio à insana matança dos adultos que a rodeavam: ela acreditava ser um Tutsi que perdeu tudo devido a sanguinários Hutus, e descobre que era uma Hutu que sobreviveu a um massacre perpetrado contra um campo de refugiados no Congo onde estavam 50.000 pessoas, cerca de 9.000 delas crianças.

O que pensar sobre o tema da identidade diante deste caso? Apesar de fictício, o enredo de Black Earth Rising pode nos instigar a seguinte reflexão: nossa identidade não é independente das narrativas que interiorizamos sobre quem somos e sobre a qual grupo social pertencemos. Kate Ashby, em Black Earth Rising, é sempre descrita como uma pessoa sob o risco de colapso psíquico: no primeiro episódio, ela consegue pílulas para tentar controlar seus ímpetos suicidas e faz uma piada com a obra de Primo Levi, judeu sobrevivente do Holocausto. O fato de ser uma sobrevivente de genocídio é essencial à sua identidade, mas os fragmentos de seu passado que ela usou para compor sua auto-imagem revelam-se falsos.

Ela se vê então envolvida numa teia de acontecimentos em que seu destino individual se mescla com o destino de sua pátria e de todo o continente africano: Kate Ashby não está apenas numa viagem de “auto-descoberta”, mas também presa numa teia coletiva e histórica em que terá que reconsiderar radicalmente tudo o que acreditou sobre si, sobretudo a crença de sua pertença à raça/etnia Tutsi.

Um dos grandes temas de Black Earth Rising é o direito à memória e à verdade. A essência dos discursos da personagem Alice Munezero vão neste sentido, o de conclamar-nos para que acessemos o passado em sua verdade, pois em nada contribui para a reconciliação você recalcar o passado coletivo, não permitindo que venham à tona certos episódios que certos grupos não julgam convenientes tornar conhecidos e públicos. A lição que tiro disto é que não devemos “essencializar” a diferença entre Tutsis e Hutus, nem entre nazistas e judeus, como se houvesse de fato uma diferença de essência entre eles que justificasse a noção de que cada grupo pertence à uma diferente raça. Se a diferença não é de essência, é preciso que ela esteja em outra parte, que a diferença seja de pertença, de cultura, de aprendizado, de interiorização narrativa, em suma: de educação. Nurture, not nature.

O racismo, pois, é um construto: não existem raças humanas, mas sim grupos humanos capazes de acreditar na supremacia étnica ou racial. Não parecem existir justificativas para cindir a humanidade em raças superiores e inferiores por razões genéticas, como quiseram fazer os eugenistas de todos os tempos, o que nos conduz à tese de que o problema está de fato na presunção de superioridade que certos grupos acabam interiorizando como uma espécie de item narcísico identitário. Esta crença supremacista – que leva o sujeito à fé de que pertence a um grupo social, ou casta, ou raça, que é melhor, mais superior, mais civilizado, mais humana que o grupo, casta ou raça inferiorizado e desumanizado – está na raiz do problema.

Por isto a educação também está: se não “genes-Tutsi” nem “genes-Hutus”, ou seja, se ninguém nasce com um DNA Tutsi ou Hutu, estas diferenças são construídas, ou seja, as pessoas são ensinadas a aderir a uma certa pertença comunitária que define sua identidade. Se foram ensinadas, ou seja, culturalmente determinadas, isto significa, como é evidente, que a educação e a cultura, transformadas e revolucionadas, são as forças principais para que o racismo construído cesse de sê-lo. Raças humanas nunca existiram, agora é nossa tarefa desconstruir, criticar e aniquilar os racismos para que também eles cessem de ser.

O racismo a que me refiro, ou seja, esta presunção de superioridade e este supremacismo étnico-racial motivado por uma pertença identitária, pode se amparar em características corporais ou epidérmicas – como foi no racismo instituído no Sul dos EUA durante o domínio da white supremacy ou na África do Sul na vigência do apartheid. Mas a crença supremacista pode se amparar em outros elementos, menos epidérmicos, aparentemente desvinculados de questões cromáticas e das aparências do corpo humano.

Hoje, não resta muita dúvida de que Adolf Hitler e o regime que chefiou era alicerçado no racismo instituído, na fantasia de domínio dos “arianos”. E tampouco me parece contestável a tese, defendida por Domenico Losurdo (entre outros), de que há muita similaridade entre os nazis arianistas e os supremacistas brancos dos EUA; há mais em comum entre a Ku Klux Klan e o nazismo do que sonha a liberal filosofia… A insana “originalidade” do hitlerismo foi tratar judeus e bolcheviques como se fossem negros no Sul dos EUA na era escravagista. Se as raças humanas não existem de fato, como podem garantir muitos cientistas, o racismo de fato existe como fenômeno ideológico e como práticas instituídas, de modo que o combate ao racismo permanece necessário e urgente, sendo um dos grandes desafios educacionais que deve mobilizar os esforços de todos nós que trabalhamos com educação, comunicação social e mobilização de massas. Como disse Nelson Mandela:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” –
Nelson Mandela, “Long Walk to Freedom”, 1995. [3]

Genocídio é uma palavra nova, um fruto macabro da época que o historiador Hobsbawm chamou de “A Era dos Extremos”. Através de livros como A Problem From Hell, de Samantha Power, e de filmes como Watchers of the Sky, de Edet Belzberg (2010), podemos aprender que o termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin (1900-1959) e une o cide (assassinato em latim) e o genos (família, tribo ou raça em grego) para forjar um conceito que se refere ao assassinato em massa cometido por ódio étnico-racial. O antropólogo anarquista Pierre Clastres posteriormente irá distinguir o conceito de genocídio do conceito de etnocídio, em Arqueologia da Diferença. Aqueles que acompanham o cenário musical também sabem dos esforços de artistas atuais como M.I.A. (rapper inglesa, de origens no Sri Lanka), na denúncia de processos genocidários que ocorrem hoje contra os Tamil do Sri Lanka ou os Rohingya de Mianmar, ou do System of Down, banda de heavy metal que sempre quis relembrar episódios de m passado esquecido por muitos, como o Holocausto armênio de 1915 – 1923, tema também do filme The Cut de Fatih Akin.

Diante do genocídio ruandês, a pior das explicações é aquela que culpabiliza os próprios ruandeses por terem descido à barbárie de “uma insanidade tribal”, como diz um burocrata governamental inglês em Black Earth Rising. Esta explicação, de um racismo velado, parece atribuir toda a culpa às insanidades do tribalismo africano, conduzindo à noção eurocêntrica e supremacista de que as afiliações e pertenças étnicas dos ruandeses “atrasados” e “primitivos” são as culpadas pelo horror. Na verdade deveríamos estar nos perguntando qual é o grau de responsabilidade do Imperialismo Ocidental – que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, sendo que foram necessários muitos movimentos anticolonialistas na África e na Ásia após 1945, em luta por libertação!

As ideologias de supremacismo étnico-racial são bastante típicas de países que foram impérios escravocratas sediados na Europa, e não é fora de propósito supor que estas ideologias racistas possam ter sido exportadas pelos imperialistas colonizados, acabando por contaminar os povos colonizados: a Bélgica, a França, a Alemanha, a Grã-Bretanha, não podem se eximir de toda a responsabilidade pelo que se passou em Ruanda em 1994. Além disso, diante de 800.000 mortos em 100 dias, precisamos nos perguntar também: Estados Unidos da América, que pretendia ser após o colapso da URSS e da queda do Muro de Berlim, uma espécie de Xerife Global e o Super-poder de um mundo Unipolar, em um contexto em que Fukuyama previa o “fim da História” com o triunfo final do capitalismo liberal globalizado, por que diabos o Tio Sam, ou melhor, suas maiores autoridades, fizeram tão pouco e foram tão ineficazes para conter a carnificina, para amainar sua fúria, para salvar dezenas de milhares de vidas? A resposta de Samantha Power, vencedora do Prêmio Pulitzer, é chocante mas me parece verdadeira:

Romeo Dallaire, a Canadian major general who commanded UN peacekeeping forces in Rwanda in 1994, appealed for permission to disarm militias and to prevent the extermination of Rwanda’s Tutsi three months before the genocide began. Denied this by his political masters at the United Nations, he watched corpses pile up around him as Washington led a successful effort to remove most of the peacekeepers under his command and then aggressively worked to block authorization of UN reinforcements.The United States refused to use its technology to jam radio broadcasts that were a crucial instrument in the coordination and perpetuation of the genocide. And even as, on average, 8,000 Rwandans were being butchered each day, the issue never became a priority for senior U.S. officials. Some 800,000 Rwandans were killed in 100 days. No U.S. president has ever made genocide prevention a priority, and no U.S. president has ever suffered politically for his indifference to its occurrence. It is thus no coincidence that genocide rages on…” SAMANTHA POWER [4]

É bem-vinda a chega entre nós de Black Earth Rising, que demonstra que BBC e Netflix eventualmente se interessam por temas tão importantes quanto o direito à memória, a difícil concretização de uma justiça penal internacional e os mecanismos de prevenção ao genocídio. A série é ótima, no geral, apesar de algumas falhas – dentre estas, eu mencionaria que a série jamais revela porquê Kate Ashby teria sido iludida com mentiras explícitas por todos ao seu redor, sendo convencida de que era uma Tutsi e não uma Hutu. Qual o sentido desta teia de mentiras que depois será duramente desfeita? Apesar destes pontos obscuros, Black Earth Rising é uma obra potente, repleta de protagonismo feminino, que retrata também o empoderamento da mulher negra em espaços de poder, inclusive através da personagem da presidenta de Ruanda e seus dilemas no sentido de avançar no sentido da justiça social, tendo como uma das dificuldades maiores o neo-imperialismo que se manifesta pela fome ocidental por minérios. Sabemos que as minas de cobalto e outros minérios, em Ruanda e no Congo, estão na mira de várias corporações internacionais que fabricam celulares e computadores (vejam o documentário Blood in The Mobile).

Em uma das cenas mais inesquecíveis, Kate Ashby revisita em Ruanda uma igreja onde centenas de Tutsis foram massacrados. Transformada em Museu, a igreja agora acolhe apenas as roupas ensanguentadas dos que pereceram no massacre, assim como o Museu do Holocausto em Berlim visa dar uma noção do tamanho do extermínio perpetrado pelos nazis ao empilhar sapatos, aos milhares, dos que pereceram nos campos da morte erguidos pelo III Reich.

Diante de uma estátua de Cristo sem cabeça, Kate Ashby parece ter sua vida invadida pelos fantasmas de todos os massacrados, num transbordamento psíquico tão insuportável que ela precisa, na saída da igreja, chorar convulsivamente e buscar amparo no peito daquele que ela foi ensinada a odiar, um Hutu – que também foi ensinado a odiá-la. Instantes depois, conduzida ao local onde os refugiados Hutus no Congo foram massacrados pelos Tutsis, ela se surpreende com a aparição de centenas de pessoas da comunidade que decidem cavar para revelar, através da cruel pedagogia dos ossos, uma verdade que estava enterrada.

“She risked her future to uncover her past“, diz a frase no cartaz de Black Earth Rising: de fato, Kate Ashby tornou-se um emblema, concedido à Humanidade por uma competente teledramaturgia, de alguém que tem a ousadia de ir atrás do desocultamento de verdades, por mais amargas e cruéis que sejam, arriscando seu futuro para desocultar seu passado. Ensina, assim, sobre a importância suprema de cumprirmos com nossos deveres de memória e com nossos trabalhos de justiça, pois a possibilidade dos genocídios do futuro dependem de nossa negligência presente em aprender com o passado. Se nos recusarmos à lembrança e não buscarmos trazer à justiça carrascos e genocidas, só estaremos contribuindo para que nosso futuro esteja tão repleto de atrocidades quanto nosso passado.

Na canção tema da série, o bardo canadense Leonard Cohen canta um sombrio folk que fala sobre “um milhão de velas queimando por uma ajuda que não veio”. Sinistro, Cohen evoca o serviço atroz daqueles que se engajam nas tarefas do obscurantismo e querem tornar tudo, para todos, mais escuro (“you want it darker? we kill the flame…”). Diante disso, precisamos ser os que re-acendem a Iluminação plena para que esta se espraie pela História, aumentando nossa compreensão corajosa dos horrores que se passaram, de modo a evitar os genocídios do porvir – infelizmente prováveis, possíveis e plausíveis em uma época em que estão empoderados genocidas-em-potencial como Jair Bolsonaro, racista, misógino, homofóbico, notório defensor de Ditaduras Militares, fã de criminosos-contra-a-humanidade como Ustra, Pinochet e Stroessner, que prega o extermínio de opositores políticos e jamais escondeu suas posturas de supremacista branco que mede “afrodescendentes” em “arrobas”.

Em meio à pandemia de covid-19 em 2020, vimos Bolsonaro ser denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional de Haia que é cenário para Black Earth Rising. O presifake brasileiro, denunciado por incitação ao genocídio, demonstrou através de sua criminosa irresponsabilidade perante à crise da saúde coletiva, e também por sua participação em atos públicos que demandavam o colapso das instituições democráticas, que é um atroz agente de uma necropolítica do assassínio-em-massa e do ocultamento da História.

O Bolsonarismo deseja desmantelar o direito do povo brasileiro à memória e à justiça, cuspindo naqueles que trazem à luz os ossos de nosso passado real como se não passassem de cães, quando na verdade são figuras como o “Seu Jair” que, através da História, propiciaram as condições para os “massacres administrativos” e para a “banalidade do Mal” de que nos fala Hannah Arendt. Black Earth Rising nos ajuda a aprender que a atrocidade terá longo futuro enquanto formos incapazes de iluminar, com nossa compreensão e lucidez, com a coragem de nosso conhecimento, as atrocidades passadas e hoje ainda infelizmente tão possíveis. Só o passado iluminado pela lucidez atual é capaz de dar força e energia para que a geração atual possa ir mudando os rumos que já se mostraram que conduzem ao abismo e à carnificina.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020

Link para este artigo:
https://wp.me/pNVMz-6p1.

REFERÊNCIAS

[1] JOYCE, JamesUlisses.

[2] BLICK, Hugo. Entrevista à BBC.

[3] GOUREVITCH, Philip. Gostaríamos de Informá-lo De Que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas FamíliaCia das Letras.

[4] MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom, 1995.

[5] POWER, Samantha. A Problem from Hell: America and the Age of Genocide. 

VÍDEOS RECOMENDADOS:

SAMANTHA POWER:

LINKS DE INTERESSE: The GuardianCineset

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O Xadrez do Coronavírus: Geopolítica da Pandemia – Live: Segunda-feira, 20/04/20, 18h às 20h || A Casa de Vidro

Nesta segunda-feira, 20 de abril, A Casa de Vidro e o Grupo de Estudos em Complexidade promoveram o debate “Xadrez do Coronavírus: Geopolíticas da Pandemia“. Com David Maciel (Doutor em História, Professor da UFG, saiba mais abaixo), Eduardo Carli de Moraes (Jornalista, Mestre em Filosofia, Professor do IFG) e Renato Costa (Jornalista e Ativista). A proposta é analisar coletivamente os impactos da Covid-19 nas diferentes sociedades nacionais, levando em conta interesses políticos-estratégicos dos principais países atingidos em suas diferentes respostas diante da crise epidemiológica causada pelo novo Coronavírus: as diferentes versões para a origem da pandemia, os níveis de eficácia na contenção dos surtos e os possíveis cenários socioeconômicos daí resultantes. Acompanhe as nossas transmissões! Dê aquela força pra mídia independente e contra-hegemônica!

DAVID MACIEL, doutor em História, professor da UFG, também atua na editoria do Site Marxismo 21.org e no GT Marxismo e História da ANPUH (Associação Nacional de História). Atua também como músico na banda goianiense Aborto de Nazaré. É autor dos livros; “A Argamassa da Ordem: da Ditadura Militar à Nova República” e “De Sarney a Collor: Reformas Políticas, Democratização e Crise” (Alameda Editorial).

O Xadrez do Coronavírus: Geopolítica da Pandemia
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REQUENTANDO A MARMITA NAZISTA E MACARTISTA – O Bolsonarismo e sua guerra contra o “marxismo cultural”

Com seu cosplay de Goebbels ao som do Lohengrin de Wagner, o ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, deixou explícitos os vínculos ideológicos que unem a extrema-direita brasileira com o III Reich alemão (1933 – 1945).

Com o retrato do “Seu Jair” ao fundo, numa imitação barata da cenografia utilizada pelo Ministro de Propaganda do hitlerismo, Alvim – de fato encarnado toda a “alvura” de um ariano… – encenou ali um rito macabro. Nesta comunicação pública nazistóide, feita logo após de uma reunião com o chefe, Alvim desmascarou que temos na presidência da República um “projetinho de Hitler tropical”, como o apelidou Mário Magalhães.

Em artigos publicados em The Intercept Brasil e que integram seu livro Sobre Lutas e Lágrimas, o jornalista Mário Magalhães (que também é o autor da biografia de Marighella que Wagner Moura adaptou para o cinema) já denunciava desde 2018 o “parentesco do ideário bolsonarista com o arsenal ideológico nazi”.

Um dos elos mais fortes que une o Bolsonarismo e o Hitlerismo está no feroz combate que ambas ideologias buscam empreender contra o fantasma do “marxismo cultural”.

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Para contribuir com este debate, na alvorada de 2020 e já entrando em seu 20º ano de existência, a Editora Expressão Popular publica Dialética do Marxismo Cultural (69 pgs, R$ 3), um panfleto crucial para a compreensão do imbróglio em que atualmente nos debatemos. Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), a autora Iná Camargo Costa busca rastrear as fontes originais do conceito de “marxismo cultural”.

Torna-se claro que “marxismo cultural” é uma expressão criada por forças políticas da direita para combater os perigos encarnados pelo proletariado organizado e mobilizado na construção de uma sociedade pós-capitalista. O nazismo teve força para cometer suas gigantescas atrocidades ao conquistar a adesão a “dois de seus fundamentos mais conhecidos: o racismo e o anticomunismo”, escreve Iná:

“O racismo, dirigido abertamente ao genocídio do povo judeu na Europa, explorou uma das mais descaradas fraudes literárias de que se tem notícia: Os Protocolos dos Sábios de Sião… E o anticomunismo reage a duas causas muito imediatas: a vitoriosa revolução bolchevique de 1917 e a revolução alemã de 1918-1919, devidamente massacrada por uma original combinação entre social-democratas, militares e freikorps (estes últimos constituem um dos embriões das tropas de choque nazistas, conhecidas como SA. A combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo produz o caldeirão onde germinará o entusiasmo dos fanáticos de Hitler.” (pg. 15)

Os nazis e os bolsominions também estão unidos em sua sanha de utilizar-se desavergonhadamente da mentira e da fraude como arma política: aos Protocolos dos Sábios de Sião, documento repleto de teorias da conspiração estapafúrdias que apontavam o dedo para um plano de dominação mundial arquitetado por judeus diabólicos, corresponde no universo bolsonarista a mamadeira de piroca, kit gay e a fantasia engana-trouxa do PT Comunista. 

Uma operação ideológica, propulsionada por altos capitalistas que não tiveram pudor de injetar milhões na campanha do sujeito que integra o fã-clube de Ustra, foi construída para convencer os crédulos manipuláveis de várias mentiras. A começar pela mentira de que o PT é um partido comunista, gayzista e abortista, devotado à diabólica operação de espalhar pelo Brasil o marxismo cultural e a “ideologia de gênero”.

Rastreando o nascimento da expressão “marxismo cultural” nas obras da extrema-direita que o combate, Iná Camargo descobre que a certidão de nascimento deste fantasma foi lavrada por Hitler em seu lamentável Mein Kampf (Minha Luta): “o livro é uma declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo” (p. 16). O movimento nazista, através de suas lentes delirantes e paranóicas, enxerga no marxismo uma arma da conspiração judaica internacional e coloca-se como missão a aniquilação do marxismo judaico, incluindo suas manifestações culturais.

Marx é defenestrado pelos nazistas por ser judeu e comunista – e, para Adolf Hitler, “judaísmo e marxismo estão em simbiose, de modo que o combate a um é o combate ao outro.” (p. 18) Por isso, o Estado totalitário do III Reich tem que manter a imprensa sob controle, jamais caindo na armadilha de conceder liberdade aos jornais – afinal de contas, na Alemanha dos anos 1930, “a maioria dos jornais – tanto os liberais quanto os marxistas – está nas mãos dos judeus”, de modo que “esta imprensa deve ser destruída, inclusive a poder de granadas. (…) Assim como a imprensa judaico-marxista deve ser destruída, a arte bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações (…) pois seus apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros.” (p. 21-24)

O Bolsonarismo também se assemelha ao Hitlerismo na mobilização de um aparato de perseguição, censura e silenciamento contra tudo o que rotula como marxismo cultural. Um exemplo disso é a truculência com que se persegue no Brasil atual tudo que se relacione não só a Marx e Engels, mas também a Gramsci e a Paulo Freire. As declarações do führerzin tropical sobre a gestão ideal do Ministério da Educação foram exemplares: como exposto em reportagem de Época, Seu Jair disse que precisava pôr alguém no MEC com um lança-chamas pra reduzir a cinzas tudo que cheirasse a Pedagogia do Oprimido ou a “gramscismo”.

“Lança-chamas” contra Paulo Freire, queima de bruxas representando Judith Butler, perseguição contra professores marxistas pintados como “doutrinadores”, tudo isso faz parte do pântano em que o Bolsonarismo abraça o cadáver insepulto do nazifascismo, requentando esta amarga marmita.

Ao propor “tacar fogo” em Paulo Freire, o Coiso aproxima-se muito dos nazis: desde 1933, ano de ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, a Alemanha foi palco de vários processos de perseguição brutal contra artistas e de grandes queimas de livros, processo conhecido como bibliocausto

“Uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo cultural ou arte degenerada. Esta guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas e as obras que fizeram a paisagem da República de Weimar, nacionais e estrangeiras, com destaque para as de origem soviética, mas sem prejuízo de franceses, ingleses e estadunidenses. Artistas foram presos, conduzidos a campos de concentração e assassinados ou, quando tiveram sorte ou a devida sagacidade, partiram para o exílio.

Obras de arte foram confiscadas de museus e destruídas; livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O regime nazista produziu uma série de listas negras, tanto com os nomes dos seus inimigos, quanto com os títulos de obras banidas, a serem destruídas. Só da biblioteca do Instituto de Pesquisa Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que alimentaram a primeira fogueira realizada em Berlim pelos estudantes nazistas. Naquele espetáculo macabro, Goebbels disse, solenemente, entre outras barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a coragem de encarar o brilho cruel, de superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do passado.”

Para se ter ideia de quem eram os inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida pelos nazistas, enumeremos alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud, Albert Einstein, Bertolt Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz Kafka, Lasar Segall, Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente Marx, Engels, Lenin, Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion Feuchtwanger, Romain Rolland, Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich…” (pg. 24, 25)

De modo que Ray Bradbury, para escrever seu clássico da ficção científica distópica Farenheit 451, não precisou tanto de imaginação quanto de investigação histórica: livros queimando nas fogueiras da intolerância e do fanatismo não são nada de novo. Iná Camargo Costa revela, em sua crítica do Mein Kampf, que Hitler, no programa do partido nazista, declara-se favorável a um dogmatismo típico de religiões instituídas.

Segundo Hitler, “cada ponto deve ser tratado como dogma; deve-se seguir o exemplo da Igreja Católica Romana, que não recua em seus dogmas nem diante das verdades científicas, pois é assim que se inspira a fé cega na excelência da doutrina… o futuro do movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus adeptos o defendem como a única causa justa… a grandeza de toda organização política que corporifique uma ideia está no fanatismo religioso e na intolerância com que hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão com a razão…” (p. 23).

Alguns podem argumentar que os vínculos que tenta-se estabelecer entre bolsonarismo e nazifascismo são frágeis pois há um ponto crucial onde eles se separam: Bolsonaro é favorável ao sionismo israelense e deseja ser amiguinho de Netanyahu, de modo que não haveria em ação no bolsonarismo nada semelhante ao feroz antisemitismo nazi. Ou seja, o vínculo que os nazistas instituíram entre o judaísmo e o marxismo seriadesfeito na ideologia bolsonarista, que institui uma outra clivagem: os sionistas são do bem, do mal são apenas os judeus comunistas.

A demissão de Alvim, neste contexto, não significa que o ex-secretário de cultura estivesse dessintonizado com o führer, mas sim que exagerou na dose de nazificação de sua performance, o que causou escândalo na comunidade judaica: tudo indica que Bolsonaro chutou a bunda de Alvim para não ficar muito feio na fita em suas relações com o sionismo de Israel que, como bom vira-lata do Império ao Norte, ele deseja apoiar – ainda que a ocupação ilegal e o massacre cotidiano da população palestina prossigam sendo um descalabro global de violação sistemática dos direitos humanos e do princípio da autodeterminação dos povos.

Para compreender melhor o monstro híbrido que é a extrema-direita brasileira, precisamos seguir rastreando o passado do combate ao “marxismo cultural” e lidar com outra das grandes inspirações dos Bolsominions: a extrema-direita dos EUA. Tema também exposto em minúcias desde a campanha eleitoral, em que houve o episódio em que David Duke, liderança da Ku Klux Klan, reconheceu muitas similaridades entre o Bolsonarismo e a KKK.

Além de irmão-siamês do supremacismo branco que dá o tom em milícias racistas como a KKK, o Bolsonarismo está totalmente alinhado ao chamado macartismo, processo de caça-às-bruxas comunistas que marcou o período da Guerra Fria nos EUA. Na verdade, a dita guerra fria pode não ter esquentado entre os EUA e a URSS, mas foram quentes as guerras contra o comunismo empreendidas pelo Império capitalista na América Latina, na Ásia e na África. As chamadas ações de contrainsurgência foram responsáveis pela perseguição, prisão, tortura e extermínio de vários militantes de esquerda, da Colômbia ao Vietnã, do Brasil ao Congo.

Sabemos que as ditaduras militares na América Latina, instaladas após golpes de Estado, como aquele na Guatemala em 1954 e aquele no Brasil em 1964, implicaram o empoderamento de regimes ilegítimos e brutalmente alinhados à política Yankee de perseguição ao comunismo. Segundo Iná, “a guerra anticomunista estadunidense se trava preferencialmente na indústria cultural”:

“Seu momento de maior visibilidade foi o capítulo conhecido como ‘Os Dez de Hollywood’, uma lista de roteiristas convocados para depor perante a House of Un-American Activities Committee (HUAC). Dentre os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil é Dalton Trumbo, que recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga experiência de denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de trabalhar na indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo recurso aos ‘testas de ferro’ – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes para os roteiros que continuaram a ser escritos).

Produziu-se neste contexto uma lista negra com cerca de 300 ‘suspeitos’. Para ficar nos mais conhecidos entre nós, limitemo-nos aos seguintes: Bertolt Brecht; Howard Koch (roteirista de Casablanca, de 1942); Jules Dassin (diretor de Nunca aos Domingos, filmado já no exílio, em 1960); Orson Welles; Joseph Losey (diretor de Galileu, de Brecht); Charlie Chaplin; Elia Kazan; Dashiel Hammet; Dorothy Parker; Lena Horne; Langston Huhes; Arthur Miller; Harry Belafonte etc.

Ainda merecem destaque, por seus feitos posteriores ao mar de lama anticomunista, Ring Lardner Jr.,que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme dirigido por Robert Altman em 1970, e Martin Ritt, diretor de Testa de Ferro Por Acaso, de 1976, cujo roteiro foi escrito por Walter Bernstein, igualmente vítima da caça aos comunistas em Hollywood e participante da tática dos ‘testas de ferro’.” (INÁ CAMARGO COSTA. p. 35)

O site Tudo Sobre Seu Filme realizou um belo mapeamento do Macartismo no Cinema, um guia com filmes essenciais para compreender a perseguição aos comunistas na sétima arte. Torna-se claro que o Bolsonarismo não tem originalidade nenhuma: está apenas requentando a marmita azeda do nazismo e do macartismo no Brasil contemporâneo. Mas é preciso também frisar as conexões entre os bozolóides da extrema-direita brasileira e seus cupinchas nos EUA, pois é público e notório que “entre os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate ao marxismo cultural estão Steve Bannon e o canadense Jordan Peterson” (p. 37).

Um dos marketeiros da campanha vitoriosa de Donald Trump à Casa Branca, Bannon também tem documentadas relações com a familícia e ajudou a articular a estratégia, repleta de fake news e de intolerância sectária contra a esquerda, que pôs Bolsonaro na presidência do Brasil. Segundo Iná, data do início dos anos 1990 a utilização pejorativa e condenatória do termo “marxismo cultural”:

Iná Camargo da Costa, autora de “Dialética do Marxismo Cultural” (Expressão Popular, 2020)

“Seus primeiros usuários são cristãos fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas – enfim, a extrema-direita estadunidense. Uma das mais eloquentes manifestações da tendência é o movimento Iluminismo Sombrio – antítese assumida do iluminismo, que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e teocrática, declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro lugar, ao marxismo cultural. Os objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o feminismo, a ação afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o multiculturalismo, os direitos LGBTQ e o ambientalismo.

Para esta horda de reacionários, incluídos os integrantes do movimento Tea Party, a instituição precursora do marxismo cultural foi a Escola de Frankfurt pelas seguintes razões: imigrou para os Estados Unidos em sua fuga do nazismo, é constituída por judeus, combinou as teorias dos judeus Marx e Freud, e sobretudo promoveu a arte moderna (combatida pelos nazistas), contaminando o espírito da contracultura dos anos 1960. Em suma, a Escola de Frankfurt seria uma instituição de fachada do comunismo.” (p. 38)

Obviamente, não devemos esperar da extrema-direita em suas encarnações trogloditas nenhuma crítica razoável à Escola de Frankfurt – pois os neofascistas atacam uma caricatura e enchem de balas um espantalho de sua própria invenção. Não se deram ao trabalho de ler e estudar as obras de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Krakauer ou Benjamin. Também não estudaram as obras de Martin Jay ou Stuart Jeffries. A Escola de Frankfurt é apenas um bode expiatório para a fúria conservadora destes caçadores-de-comunistas que, infantilóides, não param de desenhar chifrinhos demoníacos sobre as cabeças de todos os comunistas. Como se requentassem aquela outra marmita fria do “comunista, comedor de criancinhas”.

Jair Bolsonaro jamais poderá ser acusado de ser uma pessoa original ou criativa: tudo nele fede à mediocridade. Mas a mediocridade está longe de ser inofensiva – e Seu Jair pode ser descrito como alguém tão medíocre quanto Adolf Eichmann. Em outras condições históricas de temperatura e pressão, tal figura medíocre e truculenta jamais teria saído do baixo clero do Congresso Nacional, tamanha a sua incompetência para a gestão pública e para o trato civilizado com as diferenças que constituem uma sociedade humana.

Caso as mentes do eleitorado brasileiro estivessem lúcidas, a imensa maioria teria percebido a tempo que Jair não está capacitado nem mesmo para ser o síndico de um condomínio residencial (no Vivendas da Barra, sabemos, ele estava mais interessado em suas interações com milicianos cheios de fuzis em suas casas que tramavam o assassinato de Marielle Franco do que em qualquer coisa parecida com gestão de um espaço coletivo).

Parte desta desgraça obscena em que estamos afundando vem também do “guru” do governo, Mr. Olavo de Carvalho – aquele charlatão delirante e boca suja, que argumenta aos coices e que pretende influir nos destinos do Brasil, mas morando bem longe dele. Olavo mora lá em Richmond, capital da Virgínia, onde estava sediada a central do exército escravocrata sulista que perdeu a Guerra Civil (1861 – 1865) – e o velhote que adora armas-de-fogo vai, a partir dali, teleguiando o Ministério Bolsonarete, indicando seus testas-de-ferro para o MEC e o Itamaraty.

O combate ao marxismo cultural passa, entre nós, pelo Olavismo, uma ideologia responsável por requentar a marmita da perseguição aos comunistas, servindo assim aos interesses da metrópole capitalista onde habita o próprio Olavo. O Bolsonarismo, turbinado por figuras como Bannon e Olavo, “não passa de extensão à neocolônia (por opção) da pauta metropolitana, graças ainda aos bons serviços da alfândega ideológica instalada no Estado da Virgínia, responsável pela péssima tradução dos dogmas americanos. Isto também explica a profundidade de pires de suas manifestações por estas plagas.” (p. 42)

Eis o pântano em que querem nos afundar: O Brasil reduzido à colônia, não mais de Portugal mas dos EUA. Os “novos lacaios da neocolônia”, esta elite econômica medíocre e racista, fanática e misógina, teocrática e anti-iluminista, vê uma de suas metas principais o combate ao marxismo cultural – aí inclusos no mesmo balaio de gatos não só Paulo Freire e Gramsci, Marighella e Rosa Luxemburgo, mas também o Porta dos Fundos, o Planet Hemp, o Pussy Riot, o Jean Wyllys, a Judith Butler…

Além disso, vale dizer que a guerra ideológica da extrema-direita também envolve a pauta do combate à “ideologia de gênero”, uma guerra “santa” que a Pastora Damares não inventou, e que inclusive não é originária dos cristãos evangélicos, mas do próprio epicentro da Igreja Católica Apostólica Romana. Este papo de “menino veste azul, menina veste rosa”, os discursos e práticas que transbordam com a fúria homofóbica e transfóbica, a defesa da “família tradicional brasileira” (heteronormativa, patriarcal, destinada a procriar novos cidadãos-de-bem…), foi uma das trincheiras de luta do Papa que precedeu Francisco (episódios que Fernando Meirelles tratou apenas en passant em seu filme):

“Esta guerra ideológica contou com os bons serviços da Santa Madre Igreja, que desde os anos 1990 desfraldou para todo o mundo a bandeira do combate à ideologia de gênero, num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e análogo ao combate travado contra a ‘ideologia comunista’ por nossa penúltima ditadura (1964 – 1985). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou uma importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais recentemente denominada Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé. Saiu da forja da reação católica a tese de que ‘ideologia de gênero’ é um conjunto de ideias falsas, marxistas, que objetivam aniquilar a ‘família natural’, para tanto fomentando a libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos não fossem seus mais contumazes praticantes]…

Para enfrentar esta pouco surpreendente aliança entre extrema-direita católica, extrema-direita evangélica e extrema-direita  propriamente dita (ou neofascismo) em guerra declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo esclarecimento e pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar nossas armas.” (INÁ CAMARGO COSTA, Expressão Popular, 2020, p. 43 – Compre o panfleto por 3 reais)

Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – Goiânia, Janeiro de 2020

NUESTRA AMÉRICA LATINA E CARIBENHA – Entre a ofensiva neoliberal conservadora e as novas resistências

Por Renato Costa para A Casa de Vidro

O dossiê n.22 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (ITPS), de novembro de 2019, tem como título: “Nuestra América Latina e Caribenha”. Inspirado na síntese do I Seminário Latino-Americano – realizado em Buenos Aires e São Paulo, em maio do mesmo ano – e nas palavras do cubano José Martí – intelectual nacionalista que atuou na independência da ilha durante o século XIX e se tornou o patrono intelectual da nação caribenha – o documento denuncia o novo avanço do imperialismo capitalista, de ideologia neoliberal e paradoxalmente reacionária, sobre nosso continente.

José Martí retratado em pintura de Jorge Arche, 1943. Museu Nacional de Belas Artes de Cuba.

Assim se propõe a definir, de início, os “desafios para os movimentos populares e para o pensamento crítico” ao apontar o processo de recolonização dos países da América Latina (AL) através da hegemonia dos mercados financeiros internacionais, em detrimento das economias produtivas nacionais, em prejuízo das populações e dos ecossistemas da região. Para além do controle financeiro-especulativo, a ingerência externa e o entreguismo local levam à efetivação de políticas devastadoras, tanto no plano social quanto no ambiental, o que configura uma verdadeira ruptura dos pactos democráticos estabelecidos em nome da distribuição de renda, no continente mais desigual do mundo, e do equilíbrio ecológico, na região com a maior biodiversidade do planeta.

Diante da geopolítica de dominação e de ataques permanentes às soberanias nacionais, “novos processos de luta e mobilização” surgem em todas as partes, porém de modo generalizado no Chile, no Haiti e no Equador. Também na greve geral da Colômbia e na resistência aos golpes na Bolívia, Honduras e Brasil, além dos focos de resistência em todos os países da região.

Segundo o documento, o que há em comum nesses países é a corrosão da legitimidade dos governos que implementaram medidas neoliberais. Apesar disso, a ofensiva imperialista na AL estaria ainda longe de terminar, considerando que se apoia no controle do capital pelos grandes centros financeiros, na violência de Estado e na censura estabelecida pelos meios de comunicação corporativos hegemônicos. Os desafios aos movimentos populares e ao pensamento crítico estariam, portanto, pautados por esse “cenário complexo de uma batalha em curso” caracterizado por um ciclo regressivo de profundidade, com efeitos sociais e subjetivos impostos ao conjunto dos países, a serem superados também conjuntamente. Restaria estabelecer as especificidades do capitalismo contemporâneo para que se compreenda as estratégias e as dimensões de dita recolonização.

Promovida principalmente pelas corporações privadas com sede nos Estados Unidos, que pautam seu projeto imperialista e que direcionam a ação de um “estado estendido”, no sentido gramsciniano, direcionado pela oligarquia “liberal corporativa”, a ofensiva neoliberal não teria nenhum tipo de regulação política democrática, em qualquer esfera. Resta saber quais as formas de adaptação da resistência popular latino-americana e seu potencial de luta frente ao poder totalitário do capital financeiro globalizado, ou, segundo o texto do documento, “como repensar hoje as alternativas e a construção de um projeto popular de mudança”.

O documento do ITPS nos coloca, portanto, diante das tarefas de emancipação dos povos da AL, em seu desafio histórico de soberania democrática, inspirado pelo legado da independência do jugo colonial, pautada uma vez mais em pleno século XXI. Frente à recolonização, uma segunda independência seria necessária para defender a vida, a dignidade e a cidadania latino-americanas.

Leia em PDF o Dossiê n.22 do Instituto Tricontinetal de Pesquisa Social
O dossiê também inclui ilustrações em homenagem a grandes figuras de intelectuais-ativistas de Nuestra América

NÃO SEREMOS VARRIDOS DO MAPA – A mensagem dos oprimidos de Bacurau, escrita na linguagem das cabeças cortadas, é um recado para a tirania pós-golpe no Brasil

ANOTAÇÕES PRÉ-FILME – A história do cinema brasileiro ganha novas páginas turbulentas e intensas neste 2019. Ano em que desembarcam entre nós, com estrondo estético e político tremendo, Bacurau e Marighella. Em tempos pós-democráticos como os nossos, em que a censura vai levantando de novo os cornos, nossos artistas se mostram à altura das urgências da época. O tirano quer controlar com rédea ditatorial a Ancine, proibindo filmes do teor de Bruna Surfistinha mas dando o aval pra cinebiografia de pastor evangélico trambiqueiro.

Mas Edir Macedo que se foda, eu quero são filmes libertários como foram os de Glauber outrora, como são os de Cláudio Assis hoje em dia! O cinema que se conforma é um cinema moribundo e que apodrece. Queremos de novo um cinema que vá pro confronto e que se saiba instrumento coletivo de luta contra todas as opressões. Luta que envolve, na experiência coletiva compartilhada de uma sala de cinema, a necessidade incontornável de sermos afetados por imagens organizadas e narrativas comoventes capazes de explicar, esclarecer e refletir sobre nossa realidade fraturada.

O cinema luta ao nosso lado quando é trampolim pr’um salto de consciência rumo à outras percepções do nosso possível. Queremos de novo um cinema que não tema confrontar-se com as múltiplas fraturas que expõe os ossos quebrados da Nação Pau-Brasil, mas que também no processo nos abra vias libertárias que prefiguram um melhor mundo possível, um “inédito viável” – como dizia Paulo Freire. Com isso em mente, penetro na escuridão rumo a um encontro com Bacurau…

* * * *

ALERTA – O texto a seguir contêm spoilers.

Não seremos varridos do mapa com tanta facilidade como gostariam aqueles necropoderes que queriam nos dizimar como se não passássemos de pixels num videogame. Esta é uma das traduções possíveis das atitudes dos oprimidos-em-resistência que sangram, penam e se insurgem na obra de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Como escreveu Ivana Bentes na Cult, Bacurau é a “síntese do Brasil brutal”,  um microcosmo fílmico onde se entrechocam ogros mortíferos – semelhantes aos que hoje seguem a ideologia mortífera de Witzels, Moros e Bolsonaros – e os campesinos saturados de tantos lutos e de tanta dignidade arrombada.

Em uma conjuntura onde a Amazônia está em chamas, em que recentes rios de lama tóxica avançaram para varrer do mapa muitas vidas nas regiões de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, este filme distópico fica parecendo como obra do mais puro realismo. Nossas tragédias socioambientais e nossa violência epidêmica não estão desvinculadas jamais dos legados do imperialismo que nos colonizou. Bacurau, de modo esperto, transforma um museu histórico em um bunker de resistência onde vomitarão pólvora os bacamartes dos oprimidos em vendeta contra seus ofensores assassinos.

É um filme capaz de evocar várias de nossas tragédias recentes – como o Rio Doce, que teve sua vida dizimada na outrora próspera comarca onde afundou seus caninos o imperialismo estrangeiro para dali sugar riquezas fáceis, a custa de muito suor e sangue imposto às vítimas da espoliação e do escravismo. A questão da água, do controle dos fluxos de uma água escassa nos tórridos tempos de aquecimento global, faz deste Sertão um Mad Max do Capitalismo Gore. Nossa realidade está virando um splatter movie.

E agora, no cinema, ressurge um Nordeste insurgente e inconformista, com evocações das batalhas de Canudos, do cangaço e de seus heróis míticos como Lampião, dos filmes-manifesto de Glauber (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, O Leão de Sete Cabeças…). Em Bacurau, uma alegoria de nossa desgraça coletiva e uma profecia impiedosa: do jeito que vamos, o sangue seguirá esguichando. E nem venham com band-aids que a hemorragia é demasiado extrema.

Um filme como Bacurau emerge do pântano da Nação Pau-Brasil em 2019 todo coberto de sangue e com mensagens de resistência, pondo muitos dedos nas feridas abertas de nossos tempos pós-democráticos. Somos hoje um paradigma global da desgraceira ocasionada pelo neoliberalismo neofascista, submisso aos interesses imperiais, entreguista de empresas públicas para o capital privado, onde aplica-se sem pudor nem misericórdia a Shock Doctrine tão bem esmiuçada e criticada por Naomi Klein.

O prefeito de Serra Verde, município a que Bacurau pertence, é a encarnação caricata do riquinho engomadinho, vestindo Lacoste, que só sabe ganhar eleição com demagogia barata para depois abandonar o povo que deveria representar na miséria, na sede e no desabrigo. Pior: o político que deixa a população exposta à fúria genocida de tubarões imperialistas em transe psicótico.

Já o personagem do ator alemão Udo Kier aproxima-se de uma caricatura da vilania extrema. Um alemão que emigrou pros EUA, ele fica todo ofendido quando um dos milicianos mercenários que o acompanha lhe chama de “nazista”. Ele não quer ser ofendido com clichês assim. No entanto, este psicopata impiedoso parece sim uma versão contemporânea de um nazi que tivesse sido colonizado pela atual ideologia armamentista e Ku Klux Klanesca do Trumpismo. Ele parece matar por esporte mais do que por interesse. Um serial killer que evoca o American Psycho do filme de Mary Harron, mas que ironicamente expressa seu item único de “ética” pessoal assim: “eu não mato mulheres”.

Vilões que expressam toda sua falta de empatia, toda a extensão de sua desumanização, lançam a população de Bacurau na necessidade incontornável de uma guerrilha que, longe de ser revolucionária, é reativa, defensiva, desesperada.

Talvez esteja aí uma das falhas principais do filme: na motivação das hienas assassinas que caem sobre Bacurau, não se descrevem com clareza os interesses materiais que pudessem estar por trás da intentona de rapina. Não se fala no desejo dos gringos do controle de recursos naturais – faria mais sentido se, ao invés de psychos sedentos por sangue como vampiros, estes vilões tivessem motivações econômicas explicitadas, por exemplo se estivessem buscando domínio de um território para desmatamento e posterior instalação de pastos cheios de gado exportável ou vastas lavouras de monocultura.

Assim, Bacurau mobiliza suas caricaturas de vilania de modo a lançar sua cidadezinha numa rota necessária para a revolta armada. Os gringos vão ter que perder as cabeças para a vendeta destes sertanejos que encarnam os Condenados da Terra de Fanon. Os gringos, depois de terem abusado da hýbris, caçando nordestinos como se fossem bichos num jogo de caçada hightech, com drones e metralhadoras sendo manejados por quem deixou a sensibilidade moral adormecida na Idade da Pedra Lascada, sentirão toda a fúria da vingança dos oprimidos.

Este filme se parece de fato com um “western”, mas chamá-lo assim já seria escorregar na casca de banana de um estrangeirismo que este filme repudia em toda parte, sendo uma espécie de panfleto anti-imperialista para uso dos Lampiões e Marighellas do futuro próximo.

Tudo se passa no “oeste de Pernambuco”, e do western made in USA emprestam-se vários elementos de gênero, mas já há muita gente percebendo que, em termos de ideologia, Bacurau é o avesso do western ocidental e busca sua força numa narrativa anti-imperial que chega a evocar cineastas como Glauber Rocha, Gillo Pontecorvo ou Werner Herzog.

“Exaltando a cultura do nordeste, Kleber e Dornelles evocam também os cangaceiros, principalmente na figura de Lunga (Silvero Pereira), um foragido da Justiça que vive com seus comparsas em uma represa desativada e que volta para ajudar seu povo. Nesse sentido, não é por acaso que Lunga, que atua como a liderança principal da resistência contra o ataque à cidade, é personagem transgênero.

É justamente na reação ao ataque estrangeiro que reside o cerne do filme. Cabe à própria comunidade, abandonada pelo poder público, instituir seu próprio modelo de democracia radical, em um quase flerte com o anarquismo. Cabe a Bacurau também resistir, preservar sua cultura e sua memória, tarefa árdua já conhecida pelas milhares de comunidades tradicionais pelo Brasil.” – NONADA 

Há muito de alegoria neste filme que também evoca um magnum opus do cinema contemporâneo, a obra-prima Dogville de Lars Von Trier. Dogville e Bacurau são duas cidades tão pequeninas que estão vulneráveis a um tipo de ataque visando o extermínio coletivo total. Um tipo de massacre que apesar de não subir aos níveis de atrocidade de um genocídio motivado por limpeza étnica que atinge um território amplo, é manifestação dos mesmos males que conduzem às práticas genocidas.

A anti-heroína de Lars Von Trier, a Grace encarnada por Nicole Kidman, após passar toda a película sendo a forasteira inerme que os citadinos exploram de mil maneiras, quando reganha o seu poder de fogo, com a chegada à vila de seu powerpapai e seus milicianos, revela-se como uma genocida. Sua vendeta é o extermínio. Ela diz que “se há alguma cidade no mundo que não vai fazer falta, esta é ela”.

Grace ordena que Dogville e todos os seus habitantes humanos – a única exceção ao extermínio que ela ordena sendo do cachorro – sejam varridos do mapa. Já Bacurau, nem no mapa hightech está: o Google Mapas e seus satélites não se dão ao trabalho de conceder informações sobre um “cu-de-mundo” tão irrelevante. Isolado, o povoado vive na vulnerabilidade extrema, com escasso acesso à água potável, fora do radar de quaisquer organismos de defesa dos direitos humanos, no abandono por parte do poder público.

Os gringos exterminadores talvez pensem assim: eis uma cidadezinha tão irrelevante que, se for aniquilada por inteiro, o mundo nem sentirá sua falta, a não ser por uns poucos gatos pingados que chorarão por seus mortos até que morram eles também. O niilismo dos vilões, capazes de matar crianças em uniforme de escola, revela um mundo onde qualquer senso de solidariedade se perdeu.

Dois emblemas da situação social do filme são o caminhão-pipa com água potável todo furado de balas, uma evocação de um cenário distópico à la Mad Max, e o busão escolar sem pneus que enferruja inútil na comunidade onde também as escolas são alvo da chuva de balas dos invasores (o que evoca também a situação das escolas periféricas no Rio de Janeiro atual).

Ivana Bentes, ao responder do que se trata o filme, assinala:

“Antes de mais nada Bacurau trata de um rural contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa.”

Esta aí uma boa síntese: Black Mirror no Sertão, Bacurau é um retrato do Capitalismo Gore num Brasil desgovernado pelo fascismo Bolsonazi. É verdade que no Festival de Cannes, onde foi vencedor do Prêmio do Júri, a equipe de Bacurau não armou um escarcéu de protesto como havia feito a equipe de Aquarius, o filme anterior de Kleber Mendonça (também responsável por O Som ao Redor e por curtas-metragens como Recife Frio). Mas isto se explica pela própria mensagem do filme, que de certo modo dispensa protestos extra-filme, como relata a reportagem do UOL:

“O protesto, desta vez, está em meu filme.” É assim que Kleber Mendonça Filho explica a ausência de manifestação política no tapete vermelho de “Bacurau”, filme que ele e Juliano Dornelles apresentaram na noite de ontem em Cannes, na disputa pela Palma de Ouro. Diferentemente de quando esteve no evento em 2016, quando a equipe de “Aquarius” levou cartazes contra o impeachment de Dilma Rousseff, o red carpet de ontem não teve nenhum grito contra Jair Bolsonaro; foi marcado pela serenidade e alegria dos diretores e elenco do filme. Mendonça tem razão: “Bacurau”, mesmo que tenha sido concebido bem antes que Bolsonaro fosse sequer cotado para assumir a presidência do Brasil (o roteiro começou a ser pensado em 2010), fala do país de hoje como quase nenhum outro. E é um filme que prega a resistência a qualquer tipo de opressão, por meio de uma trama barroca, com um pé no fantástico e outro no realismo.

A trama se passa “daqui a alguns anos”, no sertão do oeste de Pernambuco. A cidadezinha (fictícia) de Bacurau sofre com sabotagens diversas: não recebe mais água, enquanto comida e medicamentos se tornam raridade. O sinal de celular está cortado, e a cidade literalmente sumiu de todos os mapas oficiais. Quando assassinatos começam a acontecer, a população local se une para resistir, mesmo que, para isso, precisem ser tão violentos e sanguinários como os grupos interessados em dizimar a cidadezinha.” (UOL)

É óbvio que o filme merece ser criticado a fundo pelo que expressa sobre violência e luta de classes pois pode ser lido de modo simplificador e reducionista – pois até mesmo convida a isto com suas caricaturas da vilania. Digo isto pois neste faroeste no sertão os gringos invasores são caricatos – um pouco como psicopatas “desenhados” por quem não estudou de fato as psicopatologias da barbárie fascista. Dirão alguns que no nosso real atual não faltam os vilões caricatos, como Witzel comemorando como se fosse um gol quando um sniper abateu um sequestrador de ônibus que carregava um arma de brinquedo. Estamos na era de um governador que manda a polícia “mirar na cabecinha e atirar” e de um presidente que trata o Torturador-em-Chefe Ustra como herói nacional – vilões caricaturais com poder demais.

No filme, lá estão eles: são psychos que matam crianças gratuitamente, que atiram em cães que repousam quietos na tranquilidade da tarde, que sentem tesão e adrenalina em experimentar os thrills de uma missão militar assassina… O filme fica mais interessante quando pontua, para além da monstruosidade dos vilões, os métodos do capitalismo shock-doctrinesco, aquele que apela para mercenários e os chama de private contractors. Tudo a ver com o capitalismo selvagem e miliciânico de Bolsonaro.

No geral, porém, a motivação por trás dos crimes dos vilões fica sem evocação crítica, de modo que os vilões acabam parecidos com caçadores, killing for sport, ainda que numa das principais cenas do filme suas personalidades se manifestem de modo mais explícito e aprofundado.

Estou pensando naquela cena em que os dois brasileiros sulistas, que fingem estar turistando de motorbike e fazendo trilhas pelo sertão, são também friamente exterminados pelos “gringos” em uma tensa “reunião” em que são questionados sobre terem “atirado em sua própria gente”. Uma cena de bullying se manifesta ali cuja essência está no racismo dos “brancos” estrangeiros se manifestando contra aquilo que eles chamam de pseudo-brancos. O Sul do Brasil, ou seja, os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, descritos pelos sulistas como repletos de “colônias de alemães e portugueses”, vomitou no sertão de Bacurau aquele casal de sulistas que se acham os fodões diante dos campesinos pernambucanos.

Os sulistas, arrogantes com a crença em sua superioridade sobre os nordestinos, aprendem uma amarga lição antes de serem metralhados: para os racistas estrangeiros, eles não são “brancos puro sangue” porra nenhuma, não passam de “latinos”, de tipinhos meio “mexicanos”. Pouco antes de morrer, tinham recebido também duras lições cantaroladas pelo “gaiato” cantador-violeiro, que os critica como deve ser: com arte e palavras farpadas que só ferem por dentro.

Quando a gangue chefiada pelo personagem de Udo Kier resolve assassinar os sulistas, Bacurau se alça, enquanto cinema, a uma aventura de interpretação sociológica mais ousada – que infelizmente o filme não recupera nem aprofunda, desperdiçando uma rara oportunidade de debater mais a fundo o problema do racismo no Brasil. Fica sugerido que os crimes dos psychos gringos são motivados por ideologias racistas, por um “arianismo” requentado nos EUA de Trump. Mas o filme de Mendonça e Dornelles prefere desviar todo o foco para a guerrilha chefiada por Lunga, a “bicha Che Guevarista”, uma espécie de Lampião afeminado mas feroz, numa irrupção um pouco arbitrária das temáticas de gênero que o filme em nenhum momento avança.

Lunga, interpretado por Silvério Pereira, é um dos personagens mais fascinantes do longa

Respondendo à violência brutal com a violência reativa dos oprimidos sob risco de extermínio, os habitantes de Bacurau não fornecem solução alguma para os problemas estruturais do país. Mas são uma irrupção de rebeldia que nasce das vísceras de uma condição de acuamento extremo. Há quem descreva este processo como o Nordeste resistindo à barbárie fascista e como emblema de que chegou o tempo do revide.

No filme, os seres humanos forçados a tremerem de pavor diante do poderio de um genocídio racista são obrigados a levar ao extremo o desencadeamento das violências destruidoras. Vingam-se em desforra lampianesca ao fim de um filme onde o prefeito demagogo e playboy é banido para o deserto. Já o gringo psicopata, que mata como se estivesse ao video game, é enterrado vivo numa cova. Não sem antes prometer, em seu inglês com sotaque germânico, que a violência não vai parar: ele diz que ninguém ali imagina a quantidade de gente que eles já mataram. O ciclo interminável da violência fratricida irá prosseguir sem cessar. A Nação Pau Brasil, onde Bolsonaros e Witzels se elegeram, seguirá com sangue esguichando e manchando de vermelho nossa bandeira e nosso solo. Na barbárie que atravessamos, vão faltar até os caixões pra tantas vítimas da necropolítica.

Neste filme repleto de mortos e caixões, de conflitos binários entre racistas e campesinos, entre gringos imperialistas e enraizados sertanejos, Lampião e seus cangaceiros são reanimados da tumba, seus feitos heróicos retrazidos à sala de jantar para serem apresentados à família tradicional brasileira – que provavelmente vai preferir ficar bem longe do cinema e irá aplaudir quando Bolsonaro fizer movimentos no sentido de censurar Bacurau e Marighella. Afinal, o cidadão-de-bem quer ir ao cinema ver a cinebiografia de Edir Macedo para depois lamber as botas sujas de sangue indígena e quilombola das botas de seu tirano-de-estimação.

A mensagem dos oprimidos de Bacurau, escrita na linguagem das cabeças cortadas pela violência reativa dos que tiveram seu direito à vida destroçado e que estão na mira de uma necropolítica racista, é um recado para a tirania pós-golpe no Brasil. Mas não fornece nenhuma réstia de luz que pudesse nos conceder a esperança de paz. Bacurau, síntese do Brasil brutal, só promete o sem-fim do sangue a esguichar e parece sugerir que, do jeito que a coisa vai, sempre degringolando mais, a reação guerrilheira à barbárie fascista não é só o possível que pode não se realizar, mas sim algo que vai se desenhando como o necessário, o inevitável, aquilo a que estamos, de novo, condenados.

Carli – A Casa de Vidro – 03/09/2019

BICHOS DA NOITE
por Sérgio Ricardo

“São muitas horas da noite
São horas do bacurau
Jaguar avança dançando
Dançam caipora e babau
Festa do medo e do espanto
De assombrações num sarau
Furando o tronco da noite
Um bico de pica-pau
Andam feitiços no ar
De um feiticeiro marau
Mandingas e coisas feitas
No xangô de Nicolau
Medo da noite escondido
Nos galhos de pé de pau
A toda dança acompanha
Tocando seu berimbau
Um caçador esquecido
Espreita de alto jirau
Não vê cotia nem paca
Só vê jaguara e babau
Alguém soluça e lamenta
Todo esse mundo tão mau
Picando a sombre da noite
Pinica o pinica-pau
Alguém no rio agoniza
Num rio que não dá vau
Alguém na sombra noturna
Morreu no fundo perau…”

TRAILER OFICIAL

ENTREVISTA COM OS REALIZADORES [1]

ENTREVISTA [2] – RFI

JORNAL TVT

Venezuela e as guerras híbridas na América Latina – Por Renato Costa em A Casa de Vidro

Venezuela e as guerras híbridas na América Latina é o título do dossier n.17 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado em junho de 2019. O documento, com cerca de 50 páginas, reporta de forma breve e contundente os acontecimentos do primeiro semestre do ano, extremamente turbulentos na política e na vida do povo venezuelano, sem deixar de contextualizar os antecedentes históricos dos conflitos que tiveram lugar no país. 

Em fevereiro deste ano, a fronteira colombiana, nos limites da cidade venezuelana de Cucutá, foi forçada com a prerrogativa da entrada, não autorizada pelas autoridades venezuelanas, de ajuda humanitária dos Estados Unidos, via Colômbia. Dois meses depois, no dia 29 de abril, um levantamento militar foi orquestrado por Juan Guaidó, deputado e ex-presidente da Assembleia Nacional, hoje em desacato à nova constituinte amplamente referendada pelo governo bolivariano. Apesar da intensidade dos ataques à ordem política do país em 2019, a história da intervenção à soberania da Venezuela tem uma passado longínquo. 

Só para tomar-se os governos bolivarianos iniciados em 1999, com a eleição de Hugo Chávez, o intervencionismo dos Estados Unidos, já em 2002, tentou promover uma reação à Lei de Hidrocarbonetos e à Lei de Terras em prol da distribuição de renda e da nacionalização das reservas naturais, prefigurando o que hoje se conhece como Guerra Híbrida (Korybko, 2018). Através da paralisação das atividades produtivas e do desabastecimento programado, os chamados locautes, promovidos por empresários alinhados ao capital extranjeiro e à ingerência imperial, a guerra econômica foi usada como método de desestabilização dos governos populares. 

O documento ainda aponta que ao longo dos anos, um renovado intervencionismo promove uma verdadeira guerra, um conflito permanente que, entretanto, adota métodos não convencionais na doutrina militar, caracterizando-se, por isso, como uma guerra difusa, não-declarada, porém com efeitos devastadores para o povo latino-americano. 

Também chamada de Guerra de Quinta Geração, as novas ofensivas imperiais se caracterizam por uma assimetria de forças em campo e por sua multidimensionalidade, abarcando os planos econômicos, territoriais e até psicológicos, sempre em vista a um domínio total do espectro político dos países alvos do interesse estadunidense em busca da perpetuação de seu frágil hegemonia. Dos liberais ao comunistas, ninguém estaria livre da fraude, da corrupção e do poder de chantagem dos estrategistas militares norte-americanos. 

Ao considerar-se a mudança do eixo de acumulação do capital para a Eurásia, especialmente em seu pólo oriental, na China, pode-se entender a voracidade renovada da ofensiva neoliberal estadunidense que busca reforçar o padrão de acumulação predatória; aprofundar a financeirização e a transnacionalização; e ainda exasperar a competição por territórios ricos em bens naturais, em busca da apropriação dos recursos escassos disputados entre as potências globais. 

Nesse sentido, teóricos como Thomas Barnett definem, sem nenhum pudor, a “América Latina” como área de atenção prioritária do Pentágono, ou ainda, como zona de influência natural. O nível de exploração de minérios, água, biodiversidade e, claro, petróleo na região referenda essa tutela, sendo que mais da metade das exportações destes materiais são destinados aos Estados Unidos, às vezes chegando à 93 por cento, como no caso do estrôncio, um importante material para fabricação de eletrônicos, equipamentos médicos e ligas metálicas de alta resistência. 

Essa visão neocolonial serve à exploração dos limites políticos ao fomentar as oposições com armas e logística operacional; controlar os bens naturais, o mercado produtivo, as rotas de distribuição de insumos, o transporte e até a energia essenciais às populações dos países alvos de intervenção. Na América do Sul, a região amazônica na qual está incluída a Venezuela é alvo de especial cobiça por parte do imperialismo neocolonial. 

A maior floresta tropical do planeta integra nove países, abriga vasta biodiversidade e recursos minerais ainda inexplorados. Certificada como a maior reserva de petróleo do mundo, além de saberes milenares em torno das aplicações médicas de sua flora, a Amazônia venezuelana é a jóia da coroa sob a qual a decadente hegemonia estadunidense busca se apoiar. Por isso o projeto de retomar a Venezuela como “espaço privilegiado de influência” ser orquestrado principalmente pelos executivos das petroleiras Exxon e Chevron, em detrimento do controle estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), que promove redistribuição de renda no país e teve suas transações bloqueadas para o comércio internacional e sua participação acionária recentemente expropriada em território norte-americano, através da concessionária Citgo. 

Em resposta ao cerco econômico, o governo bolivariano de Nicolás Maduro, continuador de Hugo Chávez, avançou em acordos comerciais com outros países, à revelia do dólar. Desenvolveu uma criptomoeda para comercializar petróleo sem a intermediação financeira, chamada “Petro”, seguindo medidas similares de China, Rússia e Irã, além das intenções correlatas anunciadas pela própria União Europeia, aliada militar dos EUA, de comprar gás da Rússia em euros. Como consequência da política de insubordinação aos bloqueios do norte por parte do bolivarianismo e da guerra comercial entre China e EUA, em 2018 a Venezuela tomou emprestado 5 bilhões de dólares da China e, ao longo dos primeiros meses de 2019, recebeu insumos militares e apoio logístico da Rússia. 

Renato Costa Silveira, estudante de Jornalismo da UFG, criador do blog Maduro Motorista

ACESSE E FAÇA O DOWNLOAD DO DOSSIÊ COMPLETO DA TRICONTINENTAL (55 PGS)

A Ofensiva do MinoTaurus: Austeridade, Armamentismo e Plutocracia || A Casa de Vidro

A OFENSIVA DO MINOTAURUS
Por Renato Costa & Eduardo Carli

O filme de terror que não sai de cartaz no Brasil de 2019 evoca a lembrança do mito grego do Minotauro. Este ser de natureza híbrida entre o humano e o bestial, encerrado dentro do labirinto do rei Minos de Creta, devorava ano a ano jovens atenienses entregues, como tributo em carne viva, ao feroz paladar da besta – até ser chacinado pela expedição de Teseu e Ariadne (saiba mais sobre este mito).

Aquilo que poderíamos chamar de massacre dos inocentes, para lembrar o título de uma obra do sociólogo José de Souza Martins, está funcionando a pleno vapor nesta época de predomínio da extrema-direita. Um símbolo deste predomínio é o monstro papavidas, a besta necrofílica, que aqui cognominamos MinoTaurus.

No Brasil, um dos piores exemplos da Ofensiva do MinoTaurus é a empresa brasileira de armas e munições que, sob a batuta Bolsonarista, está contente de obter lucros estratosféricos com a venda dos instrumentos da morte violenta: a Taurus já é a 4ª empresa no mercado armamentista dos EUA, onde está sendo denunciada e processada por vender armas com defeito (que no Brasil já ocasionaram 50 mortes). Em sua campanha eleitoral, Bolsonaro foi garoto propaganda da Taurus, apesar da fraude internacional de 600 milhões de reais envolvendo os seus controladores.

Uma reportagem do The Intercept Brasil, Um Monopólio Que Mata, destrinchou que “armas defeituosas da Taurus matam impunemente, blindadas pelo lobby e pelo Exército”. Chegando ao poder, Jair Bolsonaro publicou o Decreto Nº 9.785, de 7 de maio de 2019,  que a princípio muito bem recebido pela empresa.Sinal de que o MinoTaurus se assanhou com gozo foi a reação do presidente da empresa armamentista,  Salesio Nuhs, em entrevista ao Correio Brasiliense:

“A Taurus entende que o decreto assinado pelo presidente da República Jair Bolsonaro poderá aumentar de forma relevante a procura por armas de fogo pelos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e cidadãos de bem para sua legítima defesa e da propriedade. O Decreto é um marco neste seguimento e a Taurus está pronta para atender todo o aumento de demanda.” Porém, recente reportagem de Brasil de Fato, publicada em 22 de Maio de 2019, traça um quadro das tensões do Bolsonarismo com o monopólio armamentista da Taurus. Seja como for, com a extrema-direita Bolsonarista no poder, estamos claramente diante do triunfo de Tânatos sobre Eros  e da ascensão de uma perversa e nefasta Necropolítica.

O catastrófico crash do capitalismo globalizado em 2008 inaugurou uma era de hegemonia de uma “ideia perigosa”: a austeridade. Segundo o cientista político escocês Mark Blyth, da Brown University, “a austeridade é a penitência – a dor virtuosa após a festa imoral -, mas não vai ser uma dieta que todos partilharemos. Poucos de nós são convidados para a festa, mas pedem-nos a todos que paguemos a conta.” [1] Ao estudar a evolução da perigosa noção de austeridade, desde a época de Locke, David Hume e Adam Smith até chegar nos neoliberais como Hayek e Milton Friedman, o autor tenta provar que a austeridade simplesmente não funciona.

Neste artigo, propomos uma análise da ofensiva desta Besta a partir de três de suas cabeças: a austeridade, o armamentismo e a plutocracia. Três elementos que se explicitam quando atentamos para o noticiário, repleto de notícias sobre cortes no financiamento público de políticas sociais (a exemplo do atual corte de recursos para a rede federal de educação, imposto pelo MEC, e que sofreu a histórica resistência tsunâmica do Maio de 2019); sobre o libera-geral das armas de fogo e da violência policial genocida (sendo que Bolsonaro, Moro e Witzel agem como necro-políticos que fazem a festa dos lucros de empresas como a Taurus); sobre um projeto de reforma da previdência que impõe a vontade da plutocracia e faz com que o Estado brasileiro fortaleça sua insana tendência a ser um Robin Hood às avessas.

VÍDEO RECOMENDADO: Mark Blyth on Austerity

Grande conhecedora da obra de Blyth, e autora do prefácio de seu livro, a economista Laura Carvalho é uma das vozes mais fortes a esclarecer a opinião pública no Brasil sobre um monstro que vem sendo chamado de “Robin Hood às avessas”, outro dos cognomes do nosso “MinoTaurus”.

Em seu livro Valsa Brasileira, Laura Carvalho escreveu:

Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, reforça uma abordagem exclusivista e punitivista da marginalidade social.

A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie. – CARVALHO, Laura. “Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico”. Editora todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

Na esteira de Blyth, Carvalho dá um excelente exemplo de austeridade à brasileira ao lembrar de uma fala de Michel Temer, uma das piores expressões do capitalismo austero, que em abril de 2017, em defesa da PEC do teto de gastos públicos, disse que  “governos precisam passar a ter maridos” [2].

Ou seja, o governo é aí enxergado pelo viés masculinista: o Estado deve ser controlador como um “patriarca”, um maridão que fala grosso e controla com mão de ferro a economia doméstica fazendo uso de um instrumento supremo: a tesoura. Cortes e cortes e mais cortes nos serviços públicos é o que prega esta governamentalidade neoliberal colonizada pela noção de Estado mínimo. 

Austeridade, conceito de teor moral (e moralista) aplicado ao âmbito da economia capitalista globalizada pós-crise (o crash de 2008 é considerado o pior desde a Grande Depressão iniciada em 1929), é um elogio hipócrita do recato feito por homens que já se esbaldaram até o excesso na ganância e no financeirismo plutocrático.

Austeridade é a máscara de moralidade que visa vestir o capitalismo financeiro: “Em última análise”,  escreveu John Cassidy em The New Yorker, “a economia não pode ser divorciada da moral e da ética. A falha da austeridade não é apenas uma questão de decepção com PIB e déficits. É uma calamidade humana, e uma que poderia ter sido evitada.” [3]

No Brasil, uma das mais importantes iniciativas em prol do debate sobre austeridade são os livros publicados pela Editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Perseu Abramo e Partido dos Trabalhadores, que integram o selo “ECONOMIA DO COMUM: ANTIAUSTERIDADE”. Após a crise de 2008, uma das piores de toda a história do capitalismo, muitas corporações capitalistas, em especial as financeiras, que colapsaram e quase foram à falência, foram resgatas da bancarrota com dinheiro público…

“A ‘reestatização’ dos bancos aplicou um socialismo ao avesso, onde socializavam os prejuízos nas costas dos 99% enquanto capitalizavam os lucros no bolso do 1%. O aumento da desigualdade, do caos e as desastrosas consequências após o colapso deu fôlego a um novo ciclo de lutas e de ativismo a partir de 2011. (…) Confrontar o amargo remédio da austeridade no labirinto do caos deflagrado pela crise é pensar nas chaves para a construção de uma nova economia, desta vez a serviço dos 99%, do meio-ambiente e do bem-estar – em um momento de franco ataques aos direitos fundamentais aqui e mundo afora.” [4]

O “labirinto do caos” tem em seu centro um devorador MinoTaurus, servidor do 1%. Meio homem, meio touro, este híbrido de humano e bestial é um papa-gente insaciável. Que forças sociais seriam a reencarnação de Teseu e Ariadne? Que novelo de lã poderia nos ajudar a confrontar este monstro, cortar a cabeça medusante das austeridades neoliberais, e depois sairmos vivos do labirinto para seguir o trabalho de reconstrução do mundo?


Em seu livro “O Minotauro Global”, devotado à tarefa de analisar “A Verdadeira Origem Da Crise Financeira E O Futuro Da Economia Global”, o ex-ministro grego das Finanças no governo do Syriza, Yanis Varoufakis, um dos maiores expoentes antiausteridade na Europa, “destrói o mito de que a regulamentação dos bancos é ruim para a saúde econômica.” (Outras Palavras)

O aprofundamento da financeirização da economia global pós-2008 foi matéria de análise de Varoufakis neste seu paradigmático livro. “O Minotauro Global” reporta os efeitos da crise financeira de longo prazo e da consequente estagnação na economia de modo geral. O livro de 2011 já nos preparava para o ciclo de Crise (com c maiúscula, segundo o autor) que se estenderia ao longo desta década que se termina, e adiante, no alvorecer da década de 20, do século XXI.

George F. Watts (1877-86)

Segundo a metáfora proposta por Varoufakis, o mito do ser metade humano, metade touro, fruto híbrido de um adultério adultério mediado por Poseidon, o deus dos terremotos, o Minotauro seria uma forma acabada de se contrapor democracia e austeridade. O personagem labiríntico revelaria a incongruência entre o arrocho fiscal  – ou“teto de gastos” para o contingenciamento de 1 trilhão de reais, em prol do “equilíbrio das contas públicas”, leia-se pagamento da dívida pública, segundo proposta do Ministro das Finança brasileiro, Paulo Guedes – e um sistema político baseado nos direitos humanos.

A tese econômica que guia a metáfora da tributação de guerra exercido “sobre os vencidos” é a inferência de causalidade entre ajuste fiscal e guerra comercial, decorrendo em corrida militar supremacista, todas formas de promover e impor o arrocho das contas públicas em diferentes estados nacionais, invariavelmente plutocráticos, governados pela “elite do dinheiro”, a mando do capital financeiro especulativo.

O sistema de crédito corporativo internacional – representado por Wall Street e a sugestiva estátua do “touro em investida” – teria se transformado, em tempos de Crise, no grande ‘aspirador de pó’ dos excedentes produtivos internacionais que passaram a ser capitalizados através da compra de títulos da dívida pública estadunidense pelos países do mundo que precisam manter suas reservas em moeda forte, principalmente a China.

Entretanto, as mesmas operações que garantem o investimento de ativos à nível global; a supremacia cambial do dólar e o financiamento da dívida pública estadunidense, apesar da estabilidade precária de seus déficits gêmeos, comercial e orçamentário, garantem também que a crescente fome deste Minotauro por excedentes financeiros, promovendo o genocídio de jovens e emergentes empresas e economias nacionais, alimente a maior concentração de poder bélico e informacional jamais visto em uma estratégia totalitária de hegemonia geopolítica.

Essa estratégia teria criado este Minotauro financeiro, artífice de um Poder Global – empoderado pelo arbítrio da Reserva Federal estadunidense, que repassa às mega-corporações os ativos gerados através de créditos hipotecários de alto risco e altíssimo rendimento, as chamadas subprimes.  Altos riscos apenas até que estoure a bolha da inadimplência, o “risco” que é salvaguardado pelo contribuintes estadunidenses legitima a formação de imensas fortunas privadas, em último caso securitizadas pelo déficit fiscal que, por sua vez, é mantido pela dominação militar-financeira internacional. Os déficits gêmeos se retroalimentam: o desenvolvimento inter regional estadunidense se vale do déficit fiscal para promover instalações militares mundo afora, com produção fortemente protecionistas no registro de patentes de alto valor tecnológico vendidas na corrida internacional por armas e reservas em dólar americano.

Notadamente, os próprios títulos da dívida americana servem à equilibrar o déficit comercial crescente, mantido e legitimado pelo poder de arbitragem imperial, criando, assim, um ciclo potencialmente interminável, uma insaciável fome imperial pelos excedentes globais, que irão alimentar a própria dívida interna, a voracidade do Minotauro.

Através das projeções encasteladas de analistas ostentosamente céticos quanto a possibilidade mesma de segurança e arbitragem democrática dos investimentos públicos e da regulação da ganância privada, a fraude está completa e a guerra perpétua legitimada economicamente. Essa verdadeira ‘fraude dos doutos’, promovida  por economistas ‘ortodoxos’ a serviço de uma verdadeira joint-venture imperial, é artífice mitológica de um estado estendido, que entrega a soberania democrática dos povos a interesses econômicos particulares.

No Brasil e em toda parte em que se instala o arbítrio neoliberal das elites nacionais capturadas por sua renitente servidão voluntária, cria-se um simulacro de tragédia com roteiro fornecido não pelos gregos, mas sim pelo do Departamento de Estado dos Estados Unidos, versão armada de democracia-empresarial, anti-nacional, austericida, totalitária e surpreendentemente planetária. Democracias estão sendo abertamente saqueadas por uma política econômica a priori entreguista há muito arbitrada pelas atribuições públicas de Bancos Centrais privatizados que servem a repassar os custos da especulação financeira desenfreada às populações e ao setor produtivo.

   Constituída sua musculatura pela tendência concentradora do ‘imperialismo financeiro’ do dólar e pelo poder de ‘persuasão’ militar dos EUA, a fome da metade superior do Minotauro foi,  finalmente, responsável por suplantar consensos econômicos e políticos a nível planetário e agora metaboliza a excludente ‘democracia de cidadãos proprietários’ [6] que lhe deu suporte em ‘democracia militar’ com vistas ao espectro da total dominação (full-spectrum dominance/superiority); do poder solitário (lonely power) – segundo análise do cientista político brasileiro Moniz Bandeira em seu contundente livro A Desordem Mundial [7] – e prenunciado pelo pretendido excepcionalismo racista do ‘destino manifesto’ e reiterado pelo ‘patrioct act’.  

A versão dessa concentração financeira absolutista no século XX é atualizada pela ‘war on terrorism’, do presidente George W. Bush e de seu vice, o demente-mor, Dick Cheney.

A metade  mítica do touro em investida tem sua cabeça chafurdando na lama de fraudes financeiras de toda sorte. A Crise de 2008 pode ter sido, aponta Varoufakis, o tropeço que precede a grande queda do mundo unipolar há tanto anunciada. Portanto, um mundo multipolar se afirmar a cada investida em falso da ‘besta’ indomada: na tentativa de golpe na Venezuela; na ‘derrota por procuração’ na Síria; na anexação da Crimeia pela Rússia; além da crise diplomática generalizada e da mobilização popular anti-austeridade, crescentes em todas as partes do mundo.

Segundo M. Bandeira, através da Doutrina Monroe, professada pelo presidente Theodore Roosevelt em 1901, a a ‘corolária política’ do Big Stick ( traduzida singelamente como Grande Porrete sobre a mesa) promoveu os interesses estadunidenses na América Latina durante o seu american century (século americano), se valendo do provérbio africano que sugere diálogo com  suavidade, desde que garantida a posse de um grande porrete à mão. No início deste novo século, no país mais poderoso do planeta, reitera-se doutrinas diplomáticas abertamente colonialistas professadas há séculos, mas bizarramente encampadas ainda hoje.

Logo de ditaduras militares tuteladas terem aprofundado a dependência da região, hoje a violência e os traumas da ingerência reverberam no continente americano. A novidade agora é a extensão quase global e a projeção totalitária dessa política, contando agora com mais de 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares; ciberataques a democracias não-alinhadas; espionagem internacional a líderes soberanos; extermínio de jihadistas e civis através drones, aeronaves não-tripuladas, tudo disposto à guerras comerciais e psicológicas à revelia do Direito Internacional, dos Direitos Humanos e dos escrúpulos éticos.

Uma military democracy orquestrada pela dominação da elite econômica transnacional emerge em solo estadunidense e nas diferentes zonas de influência dessa espécie mitológica de capitalismo financeiro autocrático e absolutista. Esse modelo de sociedade tem ainda, apesar da desterritorialização dos investimentos econômicos, seu centro de controle no complexo industrial-militar e financeiro estadunidense. A financeirização articulada com a indústria cultural-especular hegemônica promove os assédios do poder imperial americano com a ilusão da estabilidade do dólar e o sonho americano de um mundo colonial de consumidores ordeiros e conservadores, ávidos pelas patentes, pela cultura e pela moeda metropolitana.

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VÍDEOS RECOMENDADOS


BIBLIOGRAFIA

[1] BLYTH, Mark. Austeridade: A História de Uma Idéia Perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

[2] CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira – Do Boom Ao Caos Econômico. Editora Todavia, 2018. Pg. 157 a 159. [2]

[3] CASSIDY, John. In: The New Yorker. apud BLYTH, 2017.

[4] AUTONOMIA LITERÁRIA. Apresentação do selo “Economia do Comum.” In: BLYTH, 2017, p. 8.

[5] VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Autonomia Literária, São Paulo, 2016.

[6] RAWLS, J. A theory of justice. 2 ed. Cambridge: Belknap Press, 1999.

[7] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

FEROZ ANO NOVO: Brasil começa 2019 com o Fascismo empoderado em plena Era da Pós-Verdade

Talvez a mais sagaz e sarcástica das definições que já encontrei sobre esta figura bizonha que é Jair Messias Bolsonaro seja esta: “a comunhão de todos os tiozões de zap num só animal” (Acessar post), definição proposta pelo Vitor Teixeira, cartunista e ativista do PCO.

Já suas massas de manobra e apoiadores idólatras – aqueles que ficaram conhecidos como Bozominions, podem ser caracterizados por analogia a avestruzes que escondem a cabeça debaixo do solo, para seguirem crédulos em fés inacreditáveis (como esta: Bolsonaro é o messias, um cara honesto, patriota, cidadão-de-bem que nunca se meteu em maracutaia de corruptos etc.).

Neste fim de 2018, vimos sair dos armários, em imensas hordas, estas figuras tão banais: eleitores irresponsáveis ao extremo, totalmente desprovidos de senso crítico, analfabeto políticos mas cheios de certezas, apegados a verdades absolutas a que chegaram depois de fazer graduação, mestrado e doutorado na UniZap. Figuras que outro cartunista, Custódio, apelidou de Whatstruz.

Em artigo recente, outra das mais perspicazes mentes do Brasil, a Eliane Brum, sugeriu que enfim chegou ao poder uma espécie de encarnação do homem médio – ao que poderíamos acrescentar, nos trilhos dos ensinamentos de Hannah Arendt, que Bolsonaro é medíocre como Adolf Eichmann. Bem-vindos à nova versão da Banalidade do Mal!

Estamos em plena distopia. Mas longe de ser somente catastrófica, esta cena distópica é também hilária, tão ridículos são as falas e ações de muitos de seus protagonistas.

Vivemos num tempo tragicômico: assim como nos EUA a eleição de Trump soa similar a um cenário bizarro em que fossem alçados à presidência personagens satíricos como Homer Simpson, Eric Cartman ou Waldo (de Simpsons, Southpark Black Mirror), no Brasil não é muito diferente: elegemos um sujeito que mais se parece um vilão caricato, um caubói lambe-botas de Tio Sam, um corajosão que sabe fazer sinal de arminha, mas não consegue juntar a audácia para participar de nenhum debate eleitoral com os outros candidatos.

Em artigos recentes, argumentei que Bolsonaro baseou sua campanha à presidência em um mergulho de cabeça na Era da Pós-Verdade. Inspirou-se nas táticas de sequestro de big data e de viralização corporativa de conteúdos fascistas nas mídias sociais para fazer por aqui aquilo que foi realizado por Donald Trump na América do Norte e exposto pelo importante documentário Trumping Democracy / Driblando a DemocraciaDeram mais um um golpe na democracia já duramente combalida após o impeachment sem crime de responsabilidade que derrubou Dilma Rousseff.

Foi um processo com direito a facada provavelmente fake, enxurrada de fake news pagas com caixa 2, além de tramas inconfessáveis de nepotismo para enriquecimento de seu clã familiar através de desvios via laranjas. O TSE, acovardado, permitiu que isso se desenrolasse, assim como o STF, cúmplice e co-partícipe do Golpe de Estado que faz o Brasil iniciar 2019 com hegemonia de togas e fardas com pendores para a extrema-direita.

Este “tiozão de zap”, hoje empoderado, de quem poderíamos rir como fazemos com Homer Simpson, mas que agora devemos temer como os romanos temiam Calígula, já está sendo comparado a outros tiranos neofascistas do cenário global (como Duterte e Orbán). Pois este ser humano não parece ser minimamente capaz de empatia com a pluralidade dos seres humanos com o quais compartilha o mundo.

Ele e sua turma vem imbuídos de um fanatismo ideológico que prega um Brasil re-militarizado e teocrático. Um regime autoritário ao extremo no aspecto policial-carcerário, ainda que neoliberal até as raias da insanidade em economia e extremamente careta no que toca às políticas sexuais e às pautas identitárias.

Em outras circunstâncias históricas, em que estivéssemos sob condições normais de temperatura e pressão, Bolsonaro seria apenas uma caricatura ridícula – uma figura semelhante a um Tiririca do mal, quase um personagem da Escolinha do Professor Raimundo, um afrontador do “politicamente correto” com uma enxurrada de pensamentos maldosos e intolerantes. Uma excêntrica espécie de dinossauro vivo, que esqueceu de ser extinto, e que fica vomitando racismo, misoginia e louvores a torturadores em uma época esclarecida e civilizada.

Porém, em nossos tempos, o poder de fascinação dele se manifestou de modo chocante – e muitos se tornaram idólatras de um “mito” que se sente no direito de pisotear os direitos humanos com seus discursos em que des-recalca a agressividade e a intolerância contra minorias. Bolsonaro encontrou massas imensas para aplaudi-lo e tratá-lo como “mito”, apesar de ser um mitomaníaco que vem levando o maquiavelismo populista, mentiroso e fraudulento, a níveis que merecerão entrar nos anais da história dos farsantes da política nacional.

Começamos o ano de 2019 com notícias como esta, por Exame:” O governo Jair Bolsonaro fará uma revisão de toda a estrutura da administração pública e exonerará os funcionários que defendam ideias ‘comunistas’, informou nesta quinta-feira o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.”

O fascismo sempre precisou construir um Inimigo Interno, demonizado e perseguido, para justificar as torturas, atrocidades e assassínios que comete em sua sangrenta e impiedosa marcha totalitária. E com a versão brasileira do neofascismo – distopia tragicômica encabeçada por Bozo / Onyx / Guedes / Damares / Moro / Olavo… – também é assim: fanatismo ideológico extremo, mas com políticos que ficam vestindo a máscara engana-trouxa da “neutralidade”, enquanto insistem no estúpido re-avivamento de cegueiras morais e políticas que deram à luz os monstros insepultos da “Banalidade do Mal” e dos “massacres administrativos” (a Alemanha do III Reich, a Itália sob Mussolini, a Espanha sob Franco, o Camboja sob Pol Pot, as ditaduras militares na América do Sul etc.).

Esta é uma extrema-direita cuja ideologia é ultraliberal em economia, chegando ao Pinochetismo explícito e à reedição de experiências macabras como o Peru sob Fujimori. Mas ultracareta e ultraautoritário nos “costumes”, impondo a ideologia do patriarcado supremacista heteronormativo de maneira truculenta e explícita. A caricata e risível Ministra Damares é a expressão mais explícita da imposição de uma camisa-de-força da caretice binária, amparada em crenças obscurantistas que reinstalam entre nós uma espécie de teocracia que nos deixa parecidos com uma versão tupiniquim do status quo de Gilead em The Handmaid’s Tale / O Conto da Aia (M. Atwood).

Nesse contexto é que já foi destravada uma caça às bruxas, que esses machões metidos a caubóis da extrema-direita Bozonazista já colocam em pleno curso, para salvar a Família Tradicional Brasileira, o Cidadão-de-Bem, a Moral e os Bons Costumes, do perigoso complô comuno-petista para tornar-nos uma nova Cuba.

Num re-ativamento do Macartismo da Guerra Fria, com a utilização da velha e mofada lorota do “combate ao comunismo” sendo mobilizada como ferramenta de propaganda para enganar os otários, os fascistas e plutocratas – homens, velhos, brancos e ricos, vomitando de tanto se deleitarem com os banquetes de seus privilégios injustos! – massacram os direitos mais fundamentais da população em prol de minúsculas elites econômicas.

Curioso que Bolsonaro, que adere de maneira acéfala e fanática à ideologia anti-comunista que anima o militarismo capitalista no Brasil, hoje esteja morando em um palácio projetado pelo notório arquiteto comunista Niemeyer. As obsessões cromáticas do alto escalão do governo – Bolsonaro mandando remover as cadeiras vermelhas dos palácios, Damares pregando em vídeo-viral que na “nova era” os “meninos vestem azul e as meninas vestem rosa” – são mais indícios da insanidade dos que agora pretendem nos governar. Os eleitores irresponsáveis que fizeram esta péssima escolha nas urnas realmente acreditam que existe qualquer novidade ou renovação nestas atitudes ridículas desses reacionários estúpidos?

A peste fascista já está entre nós, como já fareja quem tenha o mínimo de faro crítico e cuca lúcida. E a luta antifa terá que lidar, com a urgência que esta emergência histórica exige, que respondamos coletivamente de maneira sábia àquela “questão-chave” já formulada por Wilhelm Reich: como combater a peste emocional do fascismo sem nos transformarmos em autômatos e monstros como se tornaram aqueles que agora somos forçados a combater? Como combater o fascismo sem transformar-se em um monstro? “Tentar derrotar tais autômatos recorrendo aos seus próprios métodos é como tentar esconjurar o diabo por meio de Belzebu”, escreveu Reich em “Psicologia de Massas do Fascismo” (p. 311)

“Nossa concepção de luta antifascista é outra. É um reconhecimento claro e impiedoso das causas históricas e biológicas que determinaram tais assassínios. Só por este processo, e nunca pela imitação, será possível destruir a peste fascista. Não se pode vencer o fascismo imitando-o ou exagerando seus métodos, sem o perigo de incorrer, voluntária ou involuntariamente, numa degeneração de tipo fascista. O caminho do fascismo é o caminho do autômato, da morte, de rigidez, da desesperança. O caminho da vida é radicalmente diferente, mais difícil, mais perigoso, mais honesto e mais cheio de esperança…

É fácil provar que, quando a organização patriarcal da sociedade começou a substituir a organização matriarcal, o principal mecanismo que levou à adaptação da estrutura humana à ordem autoritária foi a repressão e o recalcamento da sexualidade genital nas crianças e adolescentes. A repressão da natureza, do ‘animal’ nas crianças, foi e continua sendo a principal ferramenta na produção de indivíduos mecânicos.” (REICH, São Paulo: Martins Fontes, 2001, 3a ed, p. 311 e 318)

Longe de estar numa vibe patriótica, sinto profunda vergonha de ser brasileiro neste momento escrotíssimo de nossa História. Que imensas massas tenham sido irresponsáveis a ponto de serem feitas de trouxas por um falso patriota e pseudomessias é desanimador para qualquer educador que acredite que senso crítico é uma virtude a ser desenvolvida por todos e quintessencial a uma autêntica democracia. Bolsonaro nada tem de patriota: sua única pátria é o dinheiro, a ganância e ambição de domínio. Presta continência à bandeira americana, admira a truculência do sionismo de Netanyahu, provavelmente aplaude o genocídio de palestinos com a mesma atitude em que comemora o massacre dos povos indígenas e quilombolas.

Quer entregar as riquezas da Amazônia, o petróleo do pré-sal e a água doce abundante do Aquífero Guarani para o saque corporativo transnacional. Deseja aventuras bélicas que custarão imenso sangue e sofrimento humana na iminente campanha golpista para a derrubada de Maduro na Venezuela. Quer massacrar os direitos trabalhistas e a previdência social, impondo austeridade para os 99% enquanto permanece gozando das mamatas junto ao 1% de ricaços em seus bunkers militares.

É uma turma que pretende sucatear o SUS e desmontar a educação pública, e para isso pôs nos ministérios um ex-presidente da Unimed, uns fanáticos discípulos de Olavo de Carvalho fãs da militarização escolar e da submissão aos EUA. Querem um Brasil capacho de Tio Sam, com um povo silenciado e imbecilizado, que se entretêm com memes idiotas enquanto qualquer horizonte de justiça social escorre pelo ralo.

Este é o funeral da democracia: o golpista Temer passou a faixa para o neofascista e tomou posse um governo encabeçado por um farsante ditatorial e desumano. Um cara que idolatra Ustra e Duque de Caxias. Um nazi tropical, fraudulentamente eleito com uma fakeada, uma enxurrada de fake news pagas com caixa 2, torrentes de propaganda fascista nos púlpitos evangélicos, para além do golpe desferido contra a candidatura do preso político injustamente encarcerado em Curitiba.

Uma figura que, para além de todo repúdio ético e nojo existencial que desperta em quem ainda tenha o poder de reflexão e a capacidade de empatia, é completamente desprovido de qualquer apego aos valores democráticos e qualquer amor pela pluralidade humana que é, como Arendt ensina, a lei ontológica da terra. Somos os que fomos estigmatizados como extermináveis, marcados para morrer, mas que ficaremos vivos. E com as bocas nos trombones. Com os corpos em aliança, nas ruas, nas camas, nas redes. Resistindo e re-existindo, na usina cotidiana da construção coletiva de um outro mundo possível.

Feroz ano novo. E vamos à luta!

A Casa de Vidro – 04 de Janeiro de 2018

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CONFIRA TAMBÉM:

 

ENTRE O FASCISMO E NÓS, SÓ HÁ NÓS – Como sobreviver à distopia real que encarnou-se no Brasil em 2018?

PARTE 1 – APOLOGIA DO VERMELHO

Todos os demônios estão soltos nesta terra que tem por nome Brasil.

A tragédia já estava prefigurada em nosso batismo: nos puseram um nome em homenagem a uma planta que havia nas terras de nosso litoral atlântico, o pau-brasil, com sua rubra madeira cor de brasa. O Brasil é um dos países do mundo com nome mais vermelho – e estou falando de linguística, não de política.

Os portugueses que nos invadiram com suas caravelas e bíblias, suas escopetas e doenças, logo viram no pau-brasil uma mercadoria rentável, pois podia ser usado no ramo da tinturaria de tecidos (fonte: etimologia de “Brasil” em Wikipedia). Rainhas da Inglaterra pisavam sobre tapetes vermelhos, signos de sua alta posição hierárquica e acesso a caríssimos luxos e privilégios, que haviam sido tingidos com pau-brasil.

Desde nosso batismo, partindo da palavra que nos nomeia, somos vermelhos na essência e constantemente espoliados por imperialismos. Por isso é tão estranho a meus ouvidos o grito-de-guerra de certos brasileiros, dizendo: “nossa bandeira nunca será vermelha!”

Compreendo que com isso manifestam sua fobia não de uma cor, ou seja, de uma configuração cromática específica, mas sim uma fobia daquilo que compreendem por “comunismo”. Às vezes, essa “rubrofobia” atinge as raias da loucura, como ocorreu com a senhora que revoltou-se diante da bandeira do Japão, que é branca com uma bola vermelha no centro, acusando os nipônicos de comunistas, o que não é puro nonsense (quem estudou História sabe, aliás, que os japoneses que estiveram aliados ao nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial).

Somos todos nós vermelhos no cerne: em nossas veias corre o mesmo rubro sangue. O que se classifica, com base em fenótipos aparentes, como “branco”, “negro”, “indígena”, segundo a tosca classificação vigente, colapsa diante de uma solidariedade ontológica mais funda, que nos une ao invés de nos segregar: todos nós sangramos sangue vermelho, todos nós temos a vida, em nós sustentada, pelos rubros fluxos deste líquido que nos comuna. Globalmente comunados estamos na condição humana, simbolizada pelo vermelho de todos os nossos sangues.

No Brasil de 2018, sinto medo de andar nas ruas de meu país vestido com uma camiseta vermelha onde se lê duas palavras: LULA LIVRE. Posso ser espancado, esfaqueado ou mesmo assassinado pelo delito gigantesco de vestir uma camiseta assim. Que país nos tornamos, quando não se pode manifestar discórdia diante de um processo que se julga injusto, um cárcere político? “Que país é este?” – como cantou, questionador, Renato Russo, em outra época mas ainda similar à atualidade.

Acreditamos realmente que um Brasil de tamanha intolerância alteritária  é um projeto sócio-político a se apoiar? Ou então devemos rechaçar e repudiar qualquer sistema político que queira reduzir a policromia do mundo à sua pobre paleta de cores? Nossa diversidade não é a mais preciosa de nossas riquezas? E você tem certeza que sabe de fato o que significa propor a “extinção dos comunistas” e a “extirpação dos vermelhos”? Sabe mesmo o que é uma pessoa comunista, para além da caricatura imaginária do Outro demonizado?

Eduardo Galeano ensina que o Arco-Íris Terrestre tem bem mais que 7 cores. Excluir o vermelho é um projeto que enfeia o mundo. O vermelho é maravilhoso. O vermelho é mágico como os raios de Sol quando se põe, despedindo-se deste setor do planeta girante. Pelo menos até amanhã de manhã. O vermelho sanguíneo é a continuação da vida, a transfusão dos ânimos. Aquilo que flui por dentro de todos nós, como um tônico revitalizante, distribuindo o alimento. Sangue vermelho bombeado por nossos corações, que ficam sempre do lado esquerdo do peito, independente de gênero e de sexo, independente de raça e de etnia, independente de classe e de pertença a castas.

Digo a todos os humanos terráqueos: “Do You Realize?”, como pergunta a música do Flaming Lips, que todos nós sangramos vermelho e temos um coração à esquerda no peito?

PARTE 2 – BEM-VINDOS À DISTOPIA DO REAL

  

Vivemos em dias nos quais a distopia não está restrita às obras de sci-fi pessimista ou aos filmes futuristas pós-apocalípticos. Somos contemporâneos de uma distopia que encarnou-se no real. Hoje convivemos com a instauração da barbárie brutal do Bolsonarismo.

A utopia, como Eduardo Galeano ensina, segue fugindo no horizonte, inalcançável por mais que caminhemos na sua direção, em nosso anseio insaciável de abraçar uma realidade menos opressiva e sórdida. A utopia segue inacessível, ainda que prossiga servindo à nossa incansável caminhada.

Já a distopia de nós se aproxima cada vez mais de nós com tanques, tropas e truculências que vão triturando nossas tristes vidas.

A nossa distopia tropical em processo de encarnar-se é, cada vez mais, a nossa realidade histórica contemporânea: a fase catastrófica em que embarcou a sociedade brasileira assusta pela escala colossal da tragédia autoritária e militarista que vem se empoderando.

O retrocesso brutal agora está encarnado no que venho chamando de “Bozonazismo” – a nova extrema-direita, seguidora de Jair Messias Bolsonaro, que se manifesta no país com brutalidade e descontrole.

O plano deste grupo político elitista, supremacista, interessado sobretudo em lucrar com o entreguismo de riquezas nacionais ao imperialismo Yankee, inclui a instauração de uma espécie de teocracia militarizada à la Gilead.

Refiro-me à distópica sociedade em que se transformou os E.U.A. após um Golpe de Estado fascista-teocrático na série The Handmaid’s Tale, inspirada no livro da autora canadense Margaret Atwood.

“Extirpar os ativismos”, “fuzilar a petralhada” e “dar carta branca pra polícia matar”: eis algumas das promessas de campanha proferidas pelo presidenciável do PSL (partido que terá a 2º maior bancada da Câmara dos Deputados, só menor que aquela eleita pelo PT). Apesar de fazer pose de “exterminador de corruptos”, Jair Bolsonaro passou a maior parte de sua trajetória política sendo liderado por Paulo Maluf no PP.

Nos palanques pelo Brasil, um dos gestos mais recorrentes do candidato de extrema-direita consiste em pegar crianças no colo e ensiná-las a fazer com as mãos o gesto de atirar uma arma-de-fogo. Comportamento que é um ícone de sua brutalidade. Um indício de que, em matéria de ética, ele age como um neandertal.


É com esse tipo de homem que estamos lidando: alguém que diz que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) “deve ser rasgado e jogado na latrina” (leia em O Globo: https://glo.bo/2BJ7cwr). É só um exemplos dentre dezenas que servem como sintoma claro de que Bolsonaro pretende lançar no lixo ou na privada a Constituição Federal de 1988.

Não há de respeitar a Constituição Cidadã alguém que se diz “favorável à tortura” e que promete transformar em “herói nacional” àquele que foi o comandante supremo, durante a Ditadura civil-militar (1964-1985), do aparato repressivo, torturador e exterminador, o facínora Brilhante Ustra.

PARTE 3 – POLÍTICA DA MORTE: TÂNATOS OPRESSOR DE EROS

O candidato a ditador, escudado por seu vice (o General Mourão), promete derramar muito sangue no Brasil: sua insana proposta para o complexo problema da segurança pública é permitir a aquisição de armas à torto e a direito, para felicidade das megacorporações armamentistas dos EUA, que lucram com a morte e a destruição, em um processo que é pura Necropolítica, conceito de Achille Mbembe:

“Neste ensaio, propus que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Sublinhei igualmente algumas das topografias recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular) e sugeri que o necropoder embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade.” [Achille Mbembe]

 SOBRE O AUTOR: Mbembe é considerado um dos mais agudos pensadores da atualidade. Leitor de Fanon e Foucault, com notável erudição histórica, filosófica e literária, vira do avesso os consensos sobre a escravidão, a descolonização e a negritude. Nascido nos Camarões, é professor de História e Ciências Políticas em Joanesburgo, bem como na Duke University, nos Estados Unidos. É autor, entre outros, de “Crítica da razão negra”, “De la postcolonie”, “Sortir de la grande nuit” e “Politiques de l´inimitié”.

Bolsonaro parece querer retroceder àquilo que o filósofo Thomas Hobbes chamou, no “Leviatã”, de “Guerra de Todos Contra Todos”. Em uma famosa entrevista ao programa Câmara Aberta, em 23 de maio de 1999, Bolsonaro disse: “Só vai mudar, infelizmente, quando, um dia, nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”

Atentem bem: vocês que digitam o número 17 nas urnas, votando em Bolsonaro, estão dando aval e sendo cúmplices de um sujeito que já disse repetidas vezes que, se depender dele, vão morrer milhares de inocentes durante seu governo – que mais parece, na verdade, um empreendimento bélico.

Os seguidores de Bolsonaro já estão pondo prática essa carnificina no período eleitoral, dando ao povo brasileiro um antegosto do inferno que os Bolsonaristas pretendem instaurar caso sejam eleitos. No período entre o 1º e o 2º turno das Eleições, já são pelo menos 3 vítimas fatais da escalada de ódio, violência e intolerância perpetrados por apoiadores do sr. Jair Bolsonaro:


Vítima: Moa do Katendê.
Local: Salvador – BA.
Data: 15/10/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/DS71oQ

Vítima: Priscila.
Local: São Paulo – SP.
Data: 16/10/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/BsW1yy

Vítima: Laysa Furtano.
Local: Aracaju – SE.
Data: 20/20/2018.
Arma do crime: faca.
https://goo.gl/RCUJDe


Caso esta tragédia se consume e a campanha eleitoral fraudulenta e propulsionada por fake vença nas urnas, o Brasil se tornará, no planeta Terra, uma espécie de paradigma da barbárie, vanguarda do atraso, palco de atrocidades que nos envergonharão diante das outras nações. 

Nenhum governo legítimo nascerá de um processo eleitoral tão marcado por ilegalidades e fraudes. O que permitiu a ascensão de Bolsonaro foi o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff em 2016, ao que somou-se a guerra jurídica ou lawfare que culminou com a prisão de Lula, um “impeachment preventivo” que transformou o Brasil no único país do mundo em que um ex-presidente da república foi encarcerado em ano de Eleições num contexto em que estava disparado em 1º lugar nas intenções de voto. É algo sem precedente global histórico que eu conheça.

PARTE 4 – ELITISMO E HIGIENISMO: UM PROJETO DE CARNIFICINA E GENOCÍDIO


Pregando a violência e o ódio ao seu rebanho de seguidores fanatizados, Bolsonaro cada vez se revela mais como um caso psiquiátrico grave: é um sujeito gravemente adoentado com sintomas de psicose e megalomania. 

A fusão que o Bolsonarismo opera entre o discurso higienista da “faxina” – muito próximo à ideologia nazi-fascista e também às práticas dos supremacistas brancos da KKK nos EUA – e o antipetismo fanático, típico daqueles que são incapazes de fazer qualquer tipo de avaliação sensata sobre os méritos e deméritos das políticas públicas petistas (como a expansão da rede pública de ensino, o combate às desigualdades sociais, os programas sociais de auxílio aos mais vulneráveis e desvalidos etc.) vai produzindo uma monstruosidade coletiva muito perigosa.

É tão perigosa que seria a maior das fake news dizer que o campo Anti-Bolsonarista é apenas um antro dos petistas. O repúdio a Bolsonaro é amplo e irrestrito, atravessa todas as classes sociais, ainda que possua regiões de maior intensidade de resistência (o Nordeste) e que possua nas mulheres a principal força de mobilização contestatária (leia em Vice: As Mulheres Fizeram A Maior Marcha Antifascista do Brasil).

O maior fenômeno de mobilização cívica de 2018 foi sem dúvida o movimento #EleNão, que manifestou a grandeza do repúdio organizado ao projeto de poder, elitista e genocida, da extrema-direita Bolsonarista. A crítica ao Bolsonaro é feita não só pela esquerda (PSOL, PC do B, PT etc.), mas até mesmo por setores mais ao centro e à direita: inclui até mesmo certos tucanos (o FHC já farejou o fascismo das práticas da família Bolsonaro), a maioria dos ciristas (PDTistas) e de marinistas (Marina Silva declara ‘voto crítico’ em Haddad).

 

PARTE 5 – INTOLERÂNCIA SANGUINÁRIA CONTRA A DIVERSIDADE HUMANA


Seguidores de Bolsonaro tem propagado a noção de que “petista bom é petista morto”, mas também a de que “gay bom é gay morto”, “feminista boa é feminista morta”, “sem terra bom é sem terra morto”, e por aí vai.

É uma doutrina que se baseia num tipo de pensamento tosco, maniqueísta, baseado na criminalização do outro e na construção de grandes generalizações imaginárias (“todos os esquerdistas não prestam, todos os petistas são corruptos e ladrões, logo eles precisam ser varridos do Brasil”).

Assim, a extrema-direita apóia milicianos e gangues estão tocando o terror: dando facadas em mestres da cultura popular, desenhando suásticas em mulheres, assassinando brutalmente transexuais, numa atitude de hooliganismo destrutivo que hoje aterroriza o país e que ameaça sair totalmente do controle.

Pois o instigador supremo dessas violências é um completo irresponsável, que diante dos homicídios e agressões perpetrados por seus seguidores diz simplesmente: “O cara lá que tem uma camisa minha comete lá um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?” (Bolsonaro, TV UOL, 10 de outubro de 2018)

Tal grau de irresponsabilidade mostra o total desprepo do candidato para o cargo que ambiciona. O transtornado líder dessa seita, embriagado com a ambição e a sede de poder, como um Macbeth ou um Ricardo III (mas sem a grandeza dos personagens shakespearanos), fala na linguagem dos ditadores brutais. Não se houve de sua boca nada em defesa da democracia. Mas sim elogios e mímesis dos que cometeram as piores atrocidades da História humana.

Bolsonaro promete uma “limpeza como nunca antes houve neste país”, o que soa como uma proposta de higienismo social que assusta pela proximidade com projetos genocidas e totalitários de “limpeza étnica” que constituem, na linguagem penal internacional, “crimes contra a humanidade”.

O pretendente a führer tropical tampouco se importa com esta besteira que são os Direitos Humanos Universais. Já prometeu que vai tirar o Brasil das Nações Unidas (Leia em O Globo: https://glo.bo/2N0tJWO). Para ele, esta babaquice esquerdista que é o Estado Democrático de Direito pode e deve ser sacrificado no altar do seu Estado Teocrático Militarista onde “as minorias tem que se curvar à maioria”.

Na verdade, por trás desta retórica que vem encantando tantos cidadãos brasileiros, frustrados com a política tradicional, está uma velharia mofada que ressurge em nossa história: Bolsonaro é a cara da nossa antiquíssima Elite do Atraso, um macho, branco, milionário, hetero, cis, que encarna tudo aquilo que o velho elitismo defende desde a época da escravatura. É um cara-pálida machista, supremacista racial, favorável aos ricos, apoiador do extermínio da diversidade humana, intolerante com modos de viver e de crer que se desviem de sua norma caduca e esclerosada.

Concedo que nesta tragédia há elementos cômicos – um eleitorado que elege, como fez em São Paulo, um ator pornô, um palhaço (sem muita graça), um herdeiro de um luso monarca, e ainda tem coragem de vomitar xenofobia contra os nordestinos que seriam cabras que “não sabem votar”.

Sabemos muito bem, pelo resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, que o Nordeste foi a única das 5 regiões brasileiras em que Bolsonaro perdeu, seja para Fernando Haddad, seja para Ciro Gomes. Sinal de que o Nordeste tornou-se a vanguarda ética da nação, o Nordeste é nossa estrela-guia para tentar “re-iluminar” o resto do Brasil, que tem estado refém das trevas de um obscurantismo fundamentalista que pôs a democracia na guilhotina.

PARTE 6 – UMA CATÁSTROFE PARA A EDUCAÇÃO E A CULTURA

Após o Golpe de Estado de 2016, vimos o governo Temer nascer instaurando o que foi chamado de Machistério: só havia homens, brancos e ricos comandando 100% dos Ministérios. Como nada é tão ruim que não possa piorar, a promessa de Bolsonaro é encher os Ministérios com militares, inclusive o Ministério da Educação – MEC: Bolsonaro já se manifestou no sentido de sua predisposição ao extermínio da obra e da influência pedagógico-política de Paulo Freire, considerado mundo afora como um dos pensadores brasileiros mais brilhantes que já nasceu. O “Andarilho da Utopia”, como Paulo Freire gostava de se referir a si mesmo, também está sob ameaça.

Como informa a reportagem de Época, segundo Bolsonaro, defensor do Escola Sem Partido (que é também o Escola Sem Darwin, o Escola sem Marx, o Escola Sem Nietzsche…), lá no MEC o plano é esta beleza: tem que pôr lá um milico, de pulso firme, que extirpe o “esquerdismo”: “Tem de ser alguém que chegue com um lança-chama e toque fogo no Paulo Freire.” 

E vocês pensando que Farenheit 451 era só uma obra de ficção científica sci-fi!  Bolsonaro disse que seu programa vai ser usar o “lança-chamas” contra o Paulo Freire, igual aos bombeiros que, ao invés de apagarem incêndios, botam fogo em bibliotecas no romance de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut, e que voltou aos cinemas na era Trump-Bolsonaro em produção da HBO.

Nenhum compromisso com a verdade, com a cultura, com o conhecimento, com a ciência. Bolsonaro só pensa em dinheiro e poder para pôr em prática seus ensandecidos planos de “purificação” da nação. Seu slogan é “Brasil acima de tudo” (similar ao Deuteschland Ubber Allez dos nazis alemães) e “Deus acima de todos” (o Deus como o concebem os evangélicos neopentecostais estupidificados pelas organizações teocráticas de Edir Macedo, Malafaia, Feliciano etc.).

É a distopia total da união de um nacionalismo fake, conversa pra boi dormir diante da explícita submissão vira-latística do Bolsonarismo aos EUA de Trump, com a teocracia do setor mais fundamentalista e obscurantista do mercado-da-fé no capitalismo brasileiro contemporâneo. Tudo o que Bolsonaro mais quer é poder ir lamber as botas de Trump na Casa Branca, faturando bilhões para si mesmo ao liberar o nosso petróleo e nossa Amazônia, além de nossa água doce e nosso espaço aéreo, para a exploração “livre” por parte do Império hoje gerido por um fascista, xenófobo, supremacista branco, cúmplice do genocídio do povo palestino.

PARTE 7 – QUANDO O NARIZ DE PINÓQUIO BATEU NOS ANÉIS DE SATURNO

O candidato Bolsonaro, além de basear sua campanha em mentiras difundidas em larga escala através de impulsionamentos patrocinados via caixa 2 (dinheiro investido por empresas que, aliás, estão diretamente interessadas na devastação de nossos direitos trabalhistas), também tem uma espécie de “plano piromaníaco” para a educação e a cultura. Um plano parecido com o de Nero, o incendiário de Roma.

Um programa que obviamente não tem compromisso algum com o processo coletivo de busca da verdade que engaja profissionais de tantas áreas, do jornalismo, da filosofia, das ciências sociais, da literatura, das artes, da tecnologia etc. Toda barbárie está liberada quando o líder supremo, como Goebbels no III Reich, como o Grande Irmão no 1984 de Orwell, julga-se no direito de mentir em massa. Aniquilando reputações a base de calúnias, difamações e memes ridicularizadores e mentirosos. Tudo com dinheiro ilegal vindo de empresas simpáticas ao projeto de aniquilação (lucrativa pro patronato) dos direitos trabalhistas.

É de se imaginar, num virtual regime Bolsonarista, o seguinte quadro aterrador para a educação e a cultura. Os militares estarão no domínio no MEC e no MinC. Estarão mobilizando o polvo repressor da Escola Sem Partido, mandando artistas e intelectuais pros novos porões do DOI-CODI. Os educadores considerados subversivos, pois aplicam a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, vão berrar no pau-de-arara… De agora em diante, só Educação Moral e Cívica, só Doutrinação Criacionista! E que se calem aqueles que não querem ser as bruxas e os hereges queimados na Nova Inquisição!

Os piromaníacos, os “profissionais da violência”, as milícias Bolsonaristas, neste futuro possível (ainda que intragável) podem aproveitar que o fogo das intolerâncias está acesso e ir no embalo da queima não só dos livros de Paulo Freire. O lança-chamas será também usado contra Charles Darwin, de Karl Marx, de Friedrich Nietzsche, de Judith Butler, de Jessé Souza… Arderá todo o “lixo esquerdista”: será a Segunda Morte de Rosa Luxemburgo, de Gramsci, de Mandela, de Malcolm X….

Os BolsoNeros também podem empolgar-se na piromania e tacar nas fogueiras também os professores de biologia que queiram ensinar o evolucionismo. Ou os professores de sociologia vão gemer torturas nos porões das delegacias militares para abjurar do pecado de ensinar Marx, Engels e Max Weber. Os professores de filosofia que julgam digna de ser ensinada na escola a vida e obra de figuras como Walter Benjamin ou George Lúkacs, serão truculentamente levados aos centros de detenção e “interrogatório” onde sangram aqueles que ensinam “lixo esquerdista”.

Pode até parecer que estou paranóico, que estou dando asas demais à minha imaginação distópica, mas lembro-me agora da frase de William Burroughs de que Kurt Cobain tanto gostava e que contrabandeou para dentro de uma música do Nirvana: “just because you’re paranoid, don’t mean they’re not after you”.

Na Alemanha do III Reich, os nazistas fizeram muitas fogueiras de livros. Fizeram também campos de extermínio e câmaras de gás em que tentaram reduzir a cinzas todo o povo judeu no processo que ficou conhecido como Solução Final. Puderam convencer boa parte do povo alemão a ser cúmplice do Holocausto – em um processo social desastroso, onde passa a ser dominante a obediência cega e servil aos ditames da tirania nazi e que a filósofa política Hannah Arendt conceituou como  “A Banalidade do Mal”, um dos mais importantes conceitos na história do pensamento do século XX.

PARTE 8 – A ESPERANÇA EQUILIBRISTA ESTÁ COM HADDAD E MANU

O Brasil, em Outubro de 2018, está diante de uma encruzilhada histórica colossal, em que nosso futuro coletivo está na balança. A maioria do eleitorado pode eleger um psicopata que promete a carnificina, a guerra, a violência, a intolerância, o destravamento de todos os ódios, o colapso de toda solidariedade e toda justiça. Pode acontecer, mas seria catastrófico, segundo todas as mais lúcidas previsões e prognósticos de gabaritados historiadores, sociólogos e filósofos.

Nós, que amamos a democracia e a liberdade, que somos educadores e intelectuais comprometidos com a defesa dos direitos humanos, que não aceitamos o argumento de que “ativismos” devem ser extirpados, prosseguimos incansavelmente na ação de conscientização para alertar o cidadão brasileiro do tiro-na-cabeça que é digitar 17 nas urnas.

Ao invés deste sádico opressor que é Bolsonaro, temos a oportunidade de eleger um sábio professor que é Fernando Haddad. É evidente para qualquer cidadão que não esteja cego pelo fanatismo que Haddad é um gestor público de comprovada competência, que realizou um primoroso trabalho como Ministro da Educação do governo Lula. Foi um prefeito de São Paulo premiado internacionalmente pelo seu trabalho inovador e humanista no processo desafiador de governar a maior cidade da América Latina. Sua mentora, a filósofa Marilena Chauí, garante-nos sobre as muitas excelências éticas e intelectuais de Haddad.

Haddad é um líder de centro-esquerda inteligente, dinâmico, capaz de diálogo amplo com todos os setores da sociedade brasileira. Sempre portou-se de maneira honesta, íntegro e digna, sempre na defesa dos valores civilizacionais elementares de uma república democrática como o Iluminismo a idealizou na “Era das Luzes”. É um intelectual crítico, iluminista, humanista, com incríveis capacidades no âmbito da práxis e da gestão pública.

Ao invés da carnificina que a extrema-direita fascista deseja instaurar, derramando o sangue dos inocentes, podemos eleger o projeto de valorização da educação e do trabalho, dos serviços públicos e da qualidade de vida, que hoje Haddad defende e representa.

 

O antipetismo de alguns atingiu tal grau de insanidade que, motivados pelo ódio irracional, alguns aplaudem quando seu líder Bolsonaro diz que “marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” e que “bandidos do MST e MTST” terão suas “ações tipificadas como terrorismo” (leia em UOL Notícias – https://bit.ly/2AlK4S0).

O discurso de Bolsonaro exibido num telão na Avenida Paulista em 21 de Outubro, faltando uma semana das eleições, nos dá o alerta: estamos diante de um tirano intolerante que pretende perseguir, silenciar ou mesmo assassinar impiedosamente, usando a máquina de repressão do Estado, os cidadãos que participam de movimentos sociais e partidos políticos estigmatizados como “esquerdistas e marginais”. Bolsonaro é a barbárie, e quem o apóia é cúmplice do projeto político mais exterminador, estúpido e nefasto da história da Nova República.

O que há de mais precioso na vida política popular do Brasil são aqueles que mobilizam-se por justiça no campo e na cidade, que querem a reforma agrária e o direito à moradia, que demandam condições dignas de existência e de florescimento. Temos a oportunidade histórica de empoderar, com a eleição do presidente Fernando Haddad, um projeto de Brasil muito mais justo, generoso, solidário, fraternal, inteligente, amoroso e sábio. Que saiba ouvir a sociedade civil organizada, ajudar a empoderá-la, criando condições para uma ressurreição democrática entre nós.

Votar Haddad é votar num Brasil que possa ter um futuro mais doce: o do diálogo democrático e colaborativo, re-instaurado. Bolsonaro só nos obrigará a beber um amargo cálice de Necropolítica, feito todo de intragáveis doses de silenciamento, brutalidade e carnificina, um projeto que inclui um grotesco massacre dos inocentes e uma tirania militarizada e teocrática que nos leva de volta à Idade das Trevas.

Sempre que deparo com os “Bozominions” (esta versão fascista do Coxinha) falando horrores criminalizadores sobre o PT, penso que o PT – Partido dos Trabalhadores merece mais respeito. É de um desrespeito brutal o que os Bozominions fazem com a biografia e a trajetória de Lula, Dilma, Haddad, Lindbergh etc. Tratá-lo como “organização criminosa” não é só falso, desonesto e obsceno, é um verdadeiro crime contra um partido que faz parte da nossa História há 38 anos e cuja trajetória merece ser estudada, avaliada, criticada, mas jamais descartada nem muito menos exterminada.

Ao final do mandato de 8 anos de Lula, o Brasil era um dos países mais admirados do mundo e vencia com ousadia alguns dos piores males que lhe haviam sido legados pelo passado de colônia e de ditadura. Vomitar o slogan “O PT é ladrão” jamais vai apagar os feitos de quem retirou 40 milhões de pessoas da miséria, fortaleceu o salário mínimo, levou-nos a um estado de pleno emprego, ampliou Universidades Federais e IFs como nunca antes na História, fortaleceu o SUS, criou Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, ProUni, Cultura Viva, dentre tantos outros programas sociais de valor e mérito que merecem nossa estima.

 

PARTE 9 – O FALSO DEUS DOS PSEUDO-MESSIAS

O grau de obscurantismo da extrema-direita brasileira nos ameaça com a instauração de um nova idade trevosa, com milícias à la Ku Klux Klan acendendo as fogueiras das novas intolerâncias. Sabemos que o tropicalführer está apoiando-se no poderio das igrejas neopentecostai$ do Brasil. Malafaia, Feliciano, Edir Macedo, Jair Bolsonaro: são “poderosos” da mesma laia.

São a laia dos mercadores de ilusões, megalomaníacos, doidos de ambição pela conquista do poder político, mercadores da fé que querem violar todos os princípios do Estado Laico, para que se empoderem para disseminar por toda parte o seu fundamentalismo ultracapitalista. Chamemos isso de Teologia da Prosperidade, nas antípodas da Teologia da Libertação defendida por Leonardo Boff, Frei Betto, dentre outros cristão progressistas.

O Bolsonarismo é aliado de empreendimentos como a UIRD e a Record, de Edir Macedo. A Indústria da Mentira une Bolsonaro e Macedo, e é justamente a mentira que lhes serve como lucrativa mercadoria, que tantos milhões de reais injeta nas máquinas de que eles são os patrões: suas “grandes empresas, imensos negócios”.

Para sua diabólica maquinaria de enganação em massa, estão usando o spam das mídias sociais para praticar a desinformação e também altas doses de calúnia e a difamação contra os adversários políticos. Estão produzindo, com isso, violento sectarismo, intensificação dos ódios e das violência, além de propagarem um tipo de subjetividade lamentável: os cabaços de Whatsapp, aqueles analfabetos políticos, que compartilham material falso e degradante.

 

Justificando​ – Bolsonaro, com seu discurso teocrático, agradou uma expressiva parcela de cristãos que – traindo o Evangelho de amor e paz, pregado por Cristo – estão propagando o ódio e o extermínio ao inimigo construído no imaginário (esquerdista, petralha, LGBTQIA+, comunista, minorias etc.), ou seja, tudo aquilo que, supostamente, não siga a cartilha idealizada do fundamentalismo religioso. São reedições sucessivas da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, embora tenhamos uma forte resistência de muitos cristãos contra esse avanço inquisitório da fé.

Isso revela um cenário preocupante de desejos e afetos que estavam represados. Não é à toa que, quando a comporta da represa foi aberta e Bolsonaro apareceu como mensageiro, o ódio e a vontade de exterminar tiveram tanta força. Portanto, torna-se bastante curioso que o lema da campanha de Bolsonaro seja “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Está em curso, no país, uma ressignificação interpretativa do que são valores cristãos por parte de um setor interno barulhento e com capilaridade política. É uma abordagem autoritária, com táticas eficazes de instrumentalização do medo do “inimigo”. A institucionalização da lógica bélica de professar a fé abandonou, de vez, os lindos ensinamentos bíblicos previstos em 1 Samuel (25:31), Mateus (5:38-48; 25:35-46), Romanos (12:20,21; 12-14), João (13:33-35), Efésios (4:31,32), Gálatas (5:14,15) e (Lucas 10:25-37). O Deus da vingança e da “justiça” sem misericórdia encontrou vários porta-vozes.

Mas não nos esqueçamos do que essa distorção gerou ao longo da história. Não nos esqueçamos do genocídio indígena, da escravidão e destruição dos negros, da Inquisição, da morte de mulheres nas fogueiras, do fascismo, da ditadura civil-militar de 1964, entre outras atrocidades. Nesse passado sombrio, a legitimação religiosa foi fundamental. Não esqueçamos que a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) apoiou o golpe de 64. Não nos esqueçamos da ligação do papa Pio XI com o ditador Benito Mussolini na ascensão do fascismo italiano. E hoje, reproduzindo erros do passado, temos um reencontro de vários setores cristãos com um presidenciável que elogia a ditadura civil-militar de 1964, bem como os torturadores dessa ditadura, além de ter, em seu gabinete parlamentar, 05 quadros com a foto dos 05 ditadores daquele período tenebroso de nossa história.

Jesus não é responsável por esse derramamento de sangue. Esse derramamento de sangue jorra das mãos daqueles que usam a religião para legitimar e promover a destruição do “outro” ou, quando distorcem os ensinamentos de Cristo, para capitalizar o ódio. Jesus é paz, amor, misericórdia e compaixão. Cristo viveu ao lado dos marginalizados. Jesus é celebração da vida, e não da morte. Talvez muitos cristãos não entendam o ritual do papa ao se ajoelhar e lavar os pés dos presos. Nesse ritual, o papa Francisco já disse aos presos: “Sou pecador como vocês”. O problema é que, em muitas igrejas, fazem falta pecadores com esse grau de espiritualidade. Ao resultado, estamos assistindo horrorizados. A teocracia bolsonariana avança. E Deus nos livre.

http://www.justificando.com/2018/10/08/a-teocracia-bolsonariana/

Os algozes – Edir Macedo, Silas Malafaia, Marco Feliciano, mercadores de ilusões que ficaram milionários na indústria da mentira e da exploração das ingenuidades alheias – já preparam as lâminas para o lamentável espetáculo. Jair Bolsonaro foi convidado para essa lúgubre cerimônia para que possa ir lá, ao cadafalso onde a democracia faz acorrentada (como Lula na PF de Curitiba), e acionar a queda da lâmina. Para depois sair de cena, descartado como uma palhaço patético mas bem útil, cedendo espaço a uma Junta Militar. O Vampirão Temer tratará ser o mordomo dessa tenebrosa transação. Um acordo de cúpulas entre golpistas, roubando a mente de massas gigantescas de cidadãos alienados que só vão perceber que foram enganados e estiveram equivocados quando já for tarde demais.

O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake), mas sim de Mr. Donald Trump.

O brasil era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930.  uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.

Leandro Karnal tem um ótimo vídeo em que explica o óbvio: “quem defende torturador é inimigo de Cristo”:

Nele, Karnal explica porque é absurda e sem noção a atitude de qualquer cristão que apoia Bolsonaro, um defensor da tortura, que prometeu transformar o facínora Ustra em herói nacional, o que já é prova de que o candidato do PSL é um sujeito de péssimo caráter e um canalha completo.

Alguém que em sua vida jamais trouxe nenhum benefício ao povo brasileiro, já que sua vida se resume em propagar o ódio, a violência e a discórdia, Bolsonaro é o completo oposto de Jesus de Nazaré, cuja mensagem resume-se em ensinamentos como “amai-vos uns aos outros”, “ofereça a outra face a quem te ofendeu”, propagando virtudes de resistência pacífica, empatia com os fracos e oprimidos, além denúncia dos ricos (a quem estará vedada a entrada no Reino) e da expulsão dos vendilhões do templo.

Se vivesse naquela época em que Jesus foi morto, Bolsonaro estaria entre os torturadores e assassinos de Cristo – e os Bolsominions estariam se deleitando com o espetáculo e gritando para o algoz: “mito! mito!”. E Bolsonaro estaria urrando de gozo sádico diante do torturado com a coroa de espinhos. Pois Bolsonaro é isso: um doente mental que goza com a crueldade que ele propaga. Os católicos e evangélicos que estão apoiando esse Coiso não entenderam nada sobre o cristianismo: tem que ser muito cego e alienado pra ficar lambendo a bota deste pseudo-Messias que vomita ódio por todos os poros. Bozo é o Anticristo e um baita dum engana-otário. E clamamos aos iludidos: acordem antes da tragédia! #EleNão

A atual ascensão do “Fascismo Evangélico” já estava prenunciada pelos “Gladiadores do Altar”, projeto que chocou o Brasil alguns anos atrás: nele, a mega-organização chefiada por Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus, começou a recrutar soldados para um “Exército do Senhor” (https://bit.ly/2J1LvrK).

Os mercadores de ilusões agora abraçam de vez o Capeta: a Rede Record, em atitude execrável, não vê problemas em violar a legislação eleitoral para colocar todos os holofotes de seu canal de TV e seu portal R7 como palanque para o fascista-facínora.

Além disso, a 3º esposa do Coiso, Michelle Bolsonaro, provável Primeira Dama do Brasil em um governo Bozonazista, é uma das crias e das prediletas de Silas Malafaia (https://bit.ly/2P286cW) – e seria, ainda mais que Marcela Temer, a imposição de um modelo feminino “bela, recatada e do lar”, somando-se a isso o agravante: “fanática e descerebrada”.

Já sabíamos que havia este perigo rondando o frágil Estado Laico do Brasil quando Marco Feliciano pôde levar todo seu obscurantismo para o Comitê de Ética e Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Esta tendência lamentável se aprofunda.

Também ficamos chocados, durante o impeachment de 2016, com a quantidade de parlamentares ficha-suja, investigados por corrupção, co-partícipes de um golpe de Estado contra a presidenta legítima, que votaram sim ao impeachment “em nome de Deus” e da Família Tradicional Brasileira.

Os gremlins do Bozo vomitam sem parar a frase “o PT vai transformar o Brasil numa Venezuela”, quando o projeto deles é nos transformar num Afeganistão sob o Taleban. Uma teocracia militarizada que lembra a distopia de Gilead em The Handmaid’s Tale.

O plano deles: retroceder o Brasil para 50 anos atrás – época do AI-5 (1968 a 1978). A gente elege Bolsonaro primeiro, depois a gente sai das Nações Unidas, pra não se preocupar com essa besteira que são os Direitos Humanos, uma invenção comunista para defender bandido. E depois a gente começa a Cruzada do Homem de Bem para “extirpar os ativismos”, começando por “fuzilar a petralhada” (cito frases do führer, que parece não ter compreendido nada do que disse Jesus de Nazaré com “amai-vos uns aos outros”).

Eles vão re-acender por aqui as fogueiras da Inquisição e tacar os livros e os professores de esquerda lá dentro – vai ser Farenheit 451 em meio à barbárie do neo-fascismo tropical. E haverá uma horda de imbecis que vão aplaudir a carnificina diabólica, dizendo amém a um deus que nunca existiu: o deus da intolerância e do obscurantismo, o deus homóbico e genocida de Sodoma e Gomorra, o deus que o ser humano inventou como pretexto para cometer as piores atrocidades na crença absurda de que derramando o sangue dos ímpios está comprando com isso um tíquete de entrada no Céu.

Triste pátria fanatizada por pastores corruptos e falsos profetas da Salvação!

PARTE 10 – A TORTURA É CRIME HEDIONDO, MAS OS BOLSOMINIONS PASSAM PANO

Vivemos tempos tão tenebrosos que é preciso explicar o óbvio: tornou-se tarefa dos cidadãos que ainda possuem o mínimo de lucidez, sensatez e senso ético elucidarem, para uma parcela imensa demais de um povo, porque não há nada de bom a esperar do processo de empoderamento de um facínora psicopata, que faz apologia da tortura e deseja transformar Ustra em herói nacional.

Em um país mais civilizado, dizer estas obviedades – que a tortura é um crime hediondo, que fazer o elogio de torturadores é sintoma de sadismo, perversidade e outras patologias psíquicas-afetivas etc. – seria desnecessário, pois já seria consenso social básico. No Brasil, sob o feitiço maléfico do Bozonazismo, tornou-se necessário relembrar as atrocidades cometidas pela Ditadura Militar, quando estamos sob a ameaça de que aqueles horrores recomecem.

Entre nós, falar sobre tortura tornou-se necessário e inadiável, dada a conexão umbilical de Bolsonaro com o elogio destas práticas de brutalidade contra o outro. O duro é que muitas vezes encontramos, no eleitorado que vota 17 com fanatismo e convicção inabaláveis, com ouvidos trancados. São pessoas dogmatizadas e intolerantes, que mobilizam todo um arsenal de racionalizações destinadas a justificar o injustificável. Você tenta criticar a postura aberrante e lamentável de um político que idolatra torturadores e puxa o saco do Ustra – e as pessoas logo dão um jeito de retrucar metendo o Lula ou o Marighella na história, para desviar o papo para os supostos “crimes dos esquerdistas” que supostamente justificariam, em todos os tempos, os tratamentos brutais “corretivos” que lhes foram infligidos.

Desfazer adesões de brasileiros à maré fascista / Bolsonarista tornou-se uma espécie de absurdo trabalho de Sísifo, pois muitos eleitores do Coiso não são capazes de ver sua adesão ao facínora abalada nem mesmo por tantas evidências de que Bolsonaro é um pretendente a tirano, doentio em sua megalomania, com ‘delírios de onipotência’ (como bem disse Ivana Bentes), que vomita um discurso de ódio e de segregação muito similar àquele de líderes que estiveram à frente de regimes totalitários e genocidas.

Empoderá-lo não tem a mínima chance de acabar bem.

O TSE, que censurou a veiculação deste vídeo na TV, tenta amordaçar o PT quando este procura resgatar verdades históricas e informar a opinião pública sobre o tipo de caráter diabólico que encontra seu porta-voz em Bolsonaro. Já em relação ao #caixa2doBolsonaro para disparar milhões de mensagens caluniosas, notícias falsas e memes de assassinato de reputações, o TSE mostra-se conivente, acovardado e até mesmo cúmplice deste processo golpista que envolve dúzias de empresas brasileiras que já aderiram ao Capitalismo Fascista, ao Neoliberalismo Militarizado.

Em outras palavras: o PT é silenciado e censurado por revelar a verdade, em um vídeo alinhado com os ideais e práticas da Comissão Nacional da Verdade, importante iniciativa do primeiro mandato de Dilma Rousseff; já a extrema-direita recebe carta branca para seguir fraudando a lisura do processo eleitoral com uma campanha de sórdida enganação e manipulação da opinião pública (com o beneplácito de Steve Bannon e Trump, da Havan e Edir Macedo, da Record e da Globo, tudo construído sobre a fraude jurídica que excluiu Lula das eleições, botando fogo no Comitê de Direitos Humanos da ONU e picando em pedacinhos a Constituição de 1988.

ASSISTA AO VÍDEO – via Meu Professor de História:

https://www.facebook.com/MPHistoria/videos/980852965581631/

 

PARTE 11 – NÓS SOMOS A ÚLTIMA BARREIRA CONTRA O FASCISMO

O Estado autoritário, ultra-conservador nos costumes, apesar de ultra-liberal na economia, que está sendo proposto pelo Bolsonarismo, tem a cara fétida de um Leviatã Hobbesiano: vende-se a idéia de que esse Monstro de autoritarismo e militarismo virá para o benefício de todos, para “limpar toda a corrupção do Brasil”. Mas este Leviatã ensandecido que é o projeto político Bolsonarista não vem para pactuar uma paz, mas sim para destravar a mais feroz guerra de todos contra todos.

 O cidadão brasileiro ainda não percebeu o tamanho do risco de processos bélicos (guerra civil ou guerra internacional) que se tornam agora muito mais palpáveis e possíveis entre nós. Por falta de formação política, a maioria do povo brasileiro não conheço o ovo da serpente do fascismo, não sabe de seus estragos, não sabe da dificuldade de vencê-lo, uma vez que ele conquista o domínio do Estado (como foi com Mussolini na Itália, Salazar em Portugal, Franco na Espanha, Hitler na Alemanha). Muito sangue é derramado para des-empoderar o fascismo, uma vez este tenha se apoderado do Estado.

O Brasil vai se tornando um dos epicentros globais do fascismo empoderado. E isso graças às desgraças que acarreta por aqui a nossa Elite do Atraso, como o sociólogo Jessé de Souza a batizou. Nós, que anos atrás oferecíamos ao mundo todo um paradigma de excelência em matéria de gestão do Bem-Estar Social através das políticas públicas criadas e aplicadas pelo governo Lula, hoje estamos decaídos a uma espécie de republiqueta de bananas que ameaça instaurar, com Bolsonaro, uma espécie de sub-führerdom que responde às ordens lá de cima: não de Deus, como reza o slogan (também ele fake!), mas sim de Mr. Donald Trump.

O Brasil da Era Lula era visto internacionalmente como um farol e uma inspiração para que a Europa, a América do Norte e a Ásia pudessem não se destruir no processo de navegar as turbulentas marés criadas pela crise econômica de 2008. O PT navegou através de uma das piores crises desde o crack de New York em 1929 que dá início à Grande Depressão dos anos 1930.  uma espécie de hospedeiro de um câncer que ameaça se espalhar pelo mundo inteiro.

Segundo o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, as 4 características do fascismo são:

1- Culto da violência.
2- Culto do Estado-nação paranóico.
3- Insensibilidade absoluta em relação às classes mais vulneráveis.
4- Entregar todo seu poder para um líder “cômico” que fala o que quiser sem nenhuma responsabilidade.

Nós agora somos a última barreira contra o fascismo. Ele fere nossa existência, então seremos resistência. Seguiremos criando novas maneiras de viver e conviver. Como disse Luis Felipe Miguel em um excelente artigo publicado no Blog da Boitempo: “entre o fascismo e nós, só há nós”: 

Com o golpe de 2016, as condições da disputa política no Brasil entraram em processo de rápida deterioração. A institucionalidade fundada na Constituição dita “cidadã” opera de maneira cada vez mais precária; suas garantias são cada vez mais incertas. A prisão do ex-presidente Lula, após julgamento de exceção, ao arrepio do texto expresso da própria Carta de 1988 e com inequívoca intenção de influenciar no processo eleitoral, simboliza com precisão a situação em que nos encontramos.

Ao mesmo tempo, a violência política aberta se alastra, seja por meio dos agentes do Estado (como mostra a repressão cada vez mais truculenta às manifestações populares e a perseguição aos movimentos sociais), seja contando com sua complacência. Das tentativas de intimidação à expressão de posições à esquerda em espaços públicos ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista Anderson Gomes), passando pelos atentados às caravanas de Lula, são muitos os episódios que revelam essa escalada.

Há rincões em que o assassinato político nunca deixou de existir – somos um país em que o latifúndio nunca parou de matar lideranças camponesas, por exemplo. Neles, o golpe agravou o quadro, dada a sensação de “porteiras abertas” que o retrocesso no Brasil gera para os mandantes dos crimes. E, nos lugares em que o conflito político apresentava um verniz mais civilizado, regredimos para patamar inferior.” – BLOG DA EDITORA BOITEMPO

por Eduardo Carli de Moraes, Professor de Filosofia, IFG.
22 de Outubro de 2018

OS ÚLTIMOS DIAS E PALAVRAS DE PAULO FREIRE (1921 – 1997): em Abril de 1997, um pataxó incinerado e uma Marcha do MST em Brasília são testemunhados pelo criador da Pedagogia do Oprimido

Em 02 de Maio de 1997, no Hospital Albert Einstein em São Paulo, faleceu Paulo Freire, fulminado por um “infarto agudo do miocárdio” (acesse: cronologia no Projeto Memória). Em seus últimos dias entre os vivos, ele havia testemunhado um Brasil cravejado por contradições, a um só tempo profundamente indignante e promissor.

No mês anterior ao falecimento de Freire, em Abril de 2017, uma imensa Marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) fez Freire vibrar e pulsar com seu ânimo revivificado. O MST descruzava os braços para a construção coletiva de um mundo menos opressivo e anunciava um outro Brasil, que tivesse vencido a “agressiva injustiça que caracteriza a posse da terra entre nós” – e por isso fez por merecer as palavras celebratórias do mestre:

“O MST, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há 10 ou 15 ou 20 anos. Suas raízes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que há 40 anos foram esmagados pelas mesmas forças retrógadas do imobilismo reacionário, colonial e perverso. (…) A luta pela reforma agrária representa o avanço necessário a que se opõe o atraso imobilizador do conservadorismo.

Exemplo histórico de retrocesso é a luta perversa contra a reforma agrária, em que os poderosos donos de terras e que querem continuar donos das gentes também, mentem e matam impunemente. Matam camponeses como se fossem bichos danados e fazem declarações de um cinismo estarrecedor: ‘Não foram os nossos seguranças que atiraram nos invasores, mas caçadores que andavam pelas redondezas.’ O menosprezo pela opinião pública revelado neste discurso fala do arbítrio dos poderosos e da segurança de sua impunidade. E isto no fim do segundo milênio… E ainda se acusam os Sem Terra de arruaceiros e baderneiros porque assumem o risco de concretamente denunciar e anunciar. Denunciar a realidade imoral da posse da terra entre nós e de anunciar um país diferente.

Com a experiência histórica os Sem Terra sabem muito bem que, se não fosse por suas ocupações, a reforma agrária pouco ou quase nada teria andado.” (FREIRE, P. Pedagogia da Indignação. P. 69-62-35)

E por falar em matar gente como se fosse bicho, vale lembrar o que ocorreria, neste Abril de 2017, poucos dias depois do MST colocar cerca de 100.000 pessoas na Esplanada dos Ministérios, acirrando a pressão sobre o governo FHC, no ano seguinte ao massacre de Eldorado dos Carajás. Na mesma Brasília que havia sido palco da grande manifestação dos Sem Terra, seria incinerado vivo o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. É sobre este tema que Paulo Freire escreve suas últimas palavras públicas, em uma carta pedagógica toda encharcada da emoção que tanto o caracterizou e o comoveu: a indignação ardente diante das opressões injustas e das “trágicas transgressões da ética”:

Galdino Jesus dos Santos, da etnia pataxó, na ala dos queimados do Hospital de Brasília. Ele foi queimado por cinco jovens enquanto dormia no dia 20 de abril de 1997. No dia seguinte, dia 21, Galdino morreu. (Brasília, DF, 20.04.1997. Foto de Leopoldo Silva/Folhapress). SAIBA MAIS: Memorial da Democracia

“Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que dormia tranquilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando. Que coisa estranha. Brincando de matar. Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma inutilidade. Um trapo imprestável. Para sua crueldade e seu gosto da morte, o índio não era um tu ou um ele. Era aquilo, aquela coisa ali. Uma espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva.

É possível que, na infância, esses malvados adolescentes tenham brincado, felizes e risonhos, de estrangular pintinhos, de atear fogo no rabo de gatos pachorrentos só para vê-los aos pulos e ouvir seus miados desesperados, e se tenham também divertido esmigalhando botões de rosa nos jardins públicos com a mesma desenvoltura com que rasgavam, com afiados canivetes, os tampos das mesas de sua escola. E isso tudo com a possível complacência quando não com o estímulo irresponsável de seus pais.

Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar de crescer.

Penso em suas casas, em sua classe social, em sua vizinhança, em sua escola. Penso, entre outras coisas, no testemunho que lhes deram de pensar e de como pensar. A posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar. Penso na mentalidade materialista da posse das coisas, no descaso pela decência, na fixação do prazer, no desrespeito pelas coisas do espírito, consideradas de menor ou de nenhuma valia. Adivinho o reforço deste pensar em muitos momentos da experiência escolar em que o índio continua minimizado. Registro o todopoderosismo de suas liberdades, isentas de qualquer limite, liberdades virando licenciosidade, zombando de tudo e de todos.

Imagino a importância do viver fácil na escala de seus valores em que a ética maior, a que rege as relações no cotidiano das pessoas, terá inexistido quase por completo. Em seu lugar, a ética do mercado, do lucro. As pessoas valendo pelo que ganham em dinheiro por mês. O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância.

Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo. A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador.

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.

Se a educação sozinha não transforma a realidade, sem ela tampouco a sociedade muda.

Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outros caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos.

Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros.” (FREIRE, Paulo. PI. P. 76)

Segundo Nita, estas foram as últimas palavras escritas por Paulo, em 21 de Abril de 1997, e servem como emblema para os últimos dias vivenciados pelo autor da Pedagogia do Oprimido: “Paulo mostrava sua alegria incontida ao ler em voz alta as passagens que escrevera sobre a Marcha do MST e indignado alguns esboços que então tinha feito, naquele mesmo dia, sobre o atentado criminoso contra Galdino”, relembra Nita (p. 79).

“As notícias da mídia estiveram voltadas para a dramática história que acontecera na madrugada de Brasília, irônica ou propositadamente (?) no Dia do Índio… Ao ter a notícia de que o nosso índio pataxó não resistira à ‘dor indizível de seu corpo em chamas’, Paulo escreveu então essas palavras derradeiras. Mais contundentes e mais cheias de indignação… Testemunharam a energia emanada de sua indignação e de seu amor; a vontade de trabalhar e de participar, criticamente, da vida de seu país; e o gosto de viver que Paulo levou consigo na madrugada de 2 de Maio de 1997.” (ANA MARIA ARAÚJO FREIRE, P.I., p. 79)

Segunda esposa de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire escreveu uma das mais completas biografias dele: Paulo Freire – Uma História de Vida, lançado em 2005 e premiado com o 2º lugar do Prêmio Jabuti daquele ano (em 2017, a Paz & Terra o relançou em luxuosa edição, com capa dura, com quase 600 páginas e recheada de fotos).  

Ali Nita relembra os últimos momentos entre os vivos de Paulo e seus planos para o futuro imediato (que nunca se realizariam). Ele estava prestes dar início a um curso que lecionaria na Universidade de Harvard, em parceria com Donaldo Macedo, e após ter acertado o contrato estava imerso em reflexões sobre como seria sua prática docente em uma universidade que, apesar de tão prestigiosa, era “tão elitista e conservadora”; além disso, Paulo Freire preparava-se para viajar para Cuba, onde receberia das mãos de Fidel Castro o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Havana. A indesejada das gentes, porém, veio fulminar o mestre enquanto este plantava suas couves (para relembrar um ensaio inesquecível de Montaigne). Escreve Nita (2017, p. 556):

“Paulo morreu da única coisa que o poderia matar: do coração. Seu coração dadivoso nunca tinha se poupado em oferecer-se aos que dele precisavam. Seu coração amoroso não suportou a malvadez e os desrespeitos praticados pelos invejosos e perversos sobre os fracos e oprimidos. Seu coração generoso não aguentou as dores do mundo. Paulo desgastou-se no amor. Por tanto amar. De muito e intensamente amar. Por sua valentia de tanto amar.

Lembro-me de que, ainda no Hospital Albert Einstein, Frei Betto foi abraçar-me… Escreveu esta carta de despedida intitulada A Leitura do Mundo:

«Ivo viu a uva», ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicarágua, descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.

Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É criação, é natureza. Paulo Freire ensinou que semear uva é ação humana e sobre a natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Cosmo.

Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários do SENAI de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.

Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Pedro. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social.

Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhes os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivoque a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto e contexto que Pedro extrai o pretexto para agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.

Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pensa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao imaginar-se com os pés no sol.

Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice do vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência.

Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranqüilo: Paulo via Deus.

Frei Betto

 

Que importância teria para nós, no Brasil de 2017, há 20 anos já separados da morte de Paulo Freire, relembrar as circunstâncias em que ele se foi? Para nós, acossados pelo avanço reacionário também na educação, com o projeto Escola Sem Partido mascarando a cavalgada dos neo-censores, com Mendoncinha do DEM(ônio) à frente do MEC e consultando Alexandre Frota sobre políticas públicas educacionais? Neste fundo-de-poço em que afundamos no período pós-democrático que se seguiu ao Golpe Parlamentar de 2016, de que multiformes maneiras pode a vida e a obra do criador da Pedagogia do Oprimido nos inspirar e iluminar?

Em primeiro lugar, eu diria que a importância é extrema pois ele é um daqueles poucos intelectuais públicos de impacto histórico que mantêm muita viva sua capacidade de nos comover. De nos acordar para uma vida ativa, de intervenção no mundo, e não de acomodação covarde a um mundo visto como imutável ou fatalmente determinado. Capaz de nos colocar na senda da prática coletiva que é a única que jamais trilharam os transformadores sociais que puseram mãos à obra na construção de um alter-mundo.

Em segundo lugar, relembrar e reavivar a chama de Paulo Freire é também essencial para pensarmos nossa utopia, aquilo que lá do horizonte distante guia os nossos passos presentes. Concretizar totalmente a utopia de um mundo menos opressivo e mais justo do que descalabro de mundo atual talvez seja impossível, talvez até mesmo indesejável, mas abdicar totalmente de utopia nos faz chafurdar na apatia dos que não se mobilizam, ou mesmo no conservadorismo imobilista dos reacionários, apegados demais às tradições passadas – por mais perversas e injustas que sejam – para ousarem inventar um amanhã melhor. Paulo Freire está aí, no presente e no futuro, para nos ensinar a “pensar o amanhã”.

Paulo Freire ensina-nos, a todos, sobre o “direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo… Inacabado como todo ser vivo – a inconclusão faz parte da experiência vital -, o ser humano se tornou, contudo, capaz de reconhecer-se como tal. A consciência do inacabamento o insere num permanente movimento de busca… Só o ser inacabado, mas que chega a saber-se inacabado, faz a história em que socialmente se faz e se refaz. (…) Aí radicam, de um lado, a sua educabilidade, de outro, a esperança como estado de espírito que lhe é natural.” (p. 139)

Frases assim – que fazem Freire merecer figuras nas páginas de O Princípio Esperança de Ernst Bloch – fazem de Freire uma espécie de profeta. Sua dialética da denúncia e do anúncio revela pensador atento àquilo que o filósofo marxista Karel Kosík chamada de A Dialética do Concreto. Somos seres vivos condenados à finitude, à inconclusão, e os únicos cientes de seu inacabamento que os move à permanente busca em que se radica o processo educativo – que também não pode ser concebido senão como processo permanentemente recomeçado, nunca acabado.

Nossa educação não acaba nunca, e nossas lutas contra a opressão tampouco. Recusar-se a participar do mundo comum, cruzar os braços e nada fazer, é uma ofensa que realiza-se contra nossa vocação ontológica de ser-mais. Juntos, coligados, nas lutas contra a multiplicidade de opressões que nos esmagam, solidários no ímpeto de rebeldia criativa contra um mundo caduco, é que mais fazermos rebrilhar o ser-mais que está entre os nossos possíveis. Freire, sábio do in: intervenção, inserção, interação, inconclusão na ciência de si mesma e que sai então em busca de uma inter-educação, dialógica e mutuamente instrutiva.

Em sua “radical recusa à ordem desumanizante” (p. 49), Paulo Freire afirma a necessidade do pensamento e da práxis utópicos. Em Pedagogia da Indignação, lemos Paulo Freire confessar ao leitor, com sua costumeira sinceridade desabrida, que suas cartas “devem se achar ‘ensopadas’ de fortes convicções ora explícitas, ora sugeridas. A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas da sociedade implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma… Gosto de ser gente porque o mudar o mundo é tão difícil quanto possível.” (PAULO FREIRE, op cit, p. 43)

O que o mundo exige de nós, como Marx já o dizia, não é apenas sua compreensão, mas sua transformação. E para cumprirmos esta meta, o mestre sempre ensinou, é preciso que tenhamos a coragem de sempre denunciar e anunciar. A unidade dialética entre a denúncia da realidade conspurcada por opressões multiformes e o anúncio de um outro mundo possível que não é somente sonhado, mas criado pela coletividade em conjunto em trabalho de parto de um alter-real, é um dos legados mais preciosos deste sábio que foi Paulo Freire. Relembrar como foram seus últimos dias e palavras entre os vivos – com o impacto que ele sofreu das mega-marchas do MST e do crime hediondo contra Galdino – é também reavivar a chama de um pensador da práxis que insistiu sempre: o que a vida exige de nós é a valentia de amar.

Eduardo Carli de Moraes
21 de Novembro de 2017

 

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TRILHA SONORA SUGERIDA:

“Índio”
Autores: Gabriel Moura, Seu Jorge e Sergio Granha
Intérprete: Farofa Carioca
Ano de lançamento: 1998
Ouça o álbum completo Moro no Brasil

“Hoje são 250 mil, mataram milhões
De tristeza e solidão
Na bala, no chicote, na humilhação
Índio foi queimado vivo quando dormiu
Índio comeu peixe poluído do rio
Índio quer saber se chega ao ano dois mil
Índio veio morar numa favela do Rio.”


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