Biblioteca digital: E-books completos sobre Coronavírus, Covid-19 e a Conjuntura Geopolítica

A cruel pedagogia do vírus, ensaio do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, novo volume da coleção Pandemia Capital, disponível exclusivamente em e-book, é uma didática argumentação sobre os desdobramentos da pandemia do coronavírus à luz da situação econômica e política dos últimos anos.

Na obra, o autor reflete sobre as súbitas mudanças de hábitos impostas em todo o planeta, como o tempo dispensado aos filhos, a diminuição da poluição nas grandes cidades e a redução do consumo desenfreado. Segundo ele: “Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas”.

Boaventura faz uma importante menção aos grupos mais afetados pela crise ao redor do mundo e credita ao capitalismo enquanto modelo social nossa inabilidade de fazer frente a ela: “Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar uma sociedade em que a humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita”.

Pandemia Capital é uma série especial de obras curtas, objetivas e com preços acessíveis que aborda a crise atual do novo coronavírus e suas implicações na sociedade, na psicologia e na economia.

Via Boitempo. Faça o download:


Saiba mais: PANDEMIA CAPITAL da BOITEMPO

DOSSIÊ COVID-19


Ebook – Editora Terra Sem Amos


Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais impactantes.  Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de “volta à normalidade”, uma “normalidade” em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela qual o mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no modo como vivemos. “Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.”


ACESSAR E BAIXAR PDF (EM ESPANHOL)


A LUTA É PELA VIDA >>> ACESSAR PDF (84 pgs): https://faccaoficticia.noblogs.org/files/2020/03/LUTA_PELA_VIDA_F.pdf

“A publicação A Luta é Pela Vida reúne textos escritos por anarquistas em diferentes partes do planeta. Este é um esforço inicial de difusão das análises feitas no calor da situação em que nos encontramos por conta do surgimento e propagação do novo coronavírus, causador da Covid-19. São escritos produzidos em meio ao ronco surdo de uma batalha que travamos pela vida de cada um e não, como Estado vem fazendo, em torno da ideia de vida como ativador de dispositivos de segurança.

Sabemos que os textos não dão conta das especificidades de cada território, mas nosso objetivo ao editá-los é promover as análises que vêm sendo feitas nas últimas semanas para estimular novas publicações, comentário e trocas e sob uma perspectiva anarquista. São notas, sugestões, referências para uma luta em curso que podem inspirar ou auxiliar na busca de saídas.

Ao contrário do que os Estados tentam nos fazer crer, não é por meio do isolamento que vamos conseguir nos cuidar e resistir ao que nos é colocado. E com isso não estamos negando a necessidade de reforçar cuidados temporários na relação entre os corpos para evitar o adoecimento e a transmissão do vírus, e sim que isso não significa assimilarmos a quarentena, a atomização, o silêncio, a interceptação das trocas entre nós. É hora de inventar na luta sem descuidar da orientação ética que baliza nossas ações: a expansão da liberdade e da autogestão.

Tomar o isolamento como a principal maneira para combater a propagação do vírus explicita muito sobre qual situação enfrentamos e quais dispositivos securitários são ativados com os estados de emergência, de urgência, de sítio etc. Somado ao “(auto) cuidado” e a “prevenção”, os Estados tentam romper os laços solidários entre as pessoas, fomentando o medo para instaurar o pânico e o entendimento de que só é possível manter as vidas humanas por meio de uma solução única: uma individualização a ponto de ver em cada pessoa ao redor, um outro, um perigo, um potencial transmissor de uma pandemia.
A utopia governamental de controle total e irrestrito de nossas subjetividades ganha campo por meio de uma retórica de combate ao inimigo comum (i. e. de toda “espécie humana”) e que ao mesmo tempo pode estar habitando, de forma invisível, o corpo de cada indivíduo. Isso produz uma forma de regulação das mortes que é, a um só tempo, o mais genérica possível e extremamente individualizada. Assim atualiza-se e expande-se as funções assassinas do Estado, o seu racismo próprio. Tudo isso guiado pela precisão dos controles algorítmicos. A crise dá novos contornos aos controles biopolíticos e amplifica sua forma assassina, o racismo de Estado.

Desse modo, a responsabilidade passa a ser de cada um e de todos, o dano é pulverizado entre todas as pessoas e simultaneamente socializado. Contudo, no capitalismo, o gozo, o prazer, os benefícios, a bonança, são privados. E quando emergem catástrofes naturais, vírus, quando o uso da terra pelo sistema capitalista se mostra insustentável, insuportável, aparece o discurso de “precisamos cuidar do futuro de todos”, é preciso “socializar a responsabilidade”.

Por isso, entendemos ser necessário a difusão dos textos a seguir, pois trazem relatos de experiências de apoio mútuo, solidariedade e informações sobre autocuidado para nos ajudar a pensar, a partir do contexto de cada localidade, em práticas possíveis para responder à urgência da situação na qual o planeta se encontra.

Abraços solidários, saúde e anarquia!”

Anarquistas
no território dominado
pelo Estado brasileiro


OUTRAS LEITURAS BOAS PARA A QUARENTENA:

  • ALBERT CAMUS – “A PESTE”
  • BOCACCIO – “DECAMERON”
  • GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ – “O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA”

 

A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

PUNINDO OS POBRES PELA PANDEMIA: Esqueçam a falácia do “estamos todos no mesmo barco” || A Casa de Vidro

Diante da crise que definirá nossa geração (como escreveu Jamil Chade no El País Brasil), temos ouvido muito que “estamos todos no mesmo barco”, como reza um velho clichê. Que barco é este em que estamos todos embarcados senão o planeta? Embarcados na Espaçonave Terra, de fato podemos nos considerar – nós, os mais de 7 bilhões e 700 milhões exemplares atuais do homo sapiens – como unidos em nossa humana condição.

Porém, um barco tão complexo a ponto de abrigar tanta gente assim jamais poderia ser descrito como algo similar a uma canoa de madeira repleta de náufragos igualmente desprovidos de recursos além de seus corpos, ou seja, munidos apenas de suas vidas nuas.

O nosso é um barco cheio de subdivisões. Para mencionar apenas uma, com o perdão do dualismo um pouco reducionista: neste barco planetário, há áreas VIP de difícil acesso aos reles mortais desprovidos de capitais e propriedades – e estas áreas para very important people estão brutalmente apartadas dos favelões e cortiços onde padecem, em péssimas condições de salubridade, um imenso número dos humanos.

O necroliberalismo hoje vigente – resultado da fusão do neoliberalismo com o neofascismo – explicita hoje, através das ações de figuras execráveis como Bolsonaro, que certas vidas valem menos que outras, e podem ser tranquilamente sacrificadas no altar do Deus Mercado para que a economia capitalista prossiga em sua normalidade. Obscena normalidade!

Pode parecer, à primeira vista e na falta de mais reflexão, que o coronavírus, nesta pandemia global (2019 –  2020), “age” de maneira “democrática” (dizê-lo desta maneira é cair na prosopopéia… peço a todos que não levem a mal esta “licença-poética”). Estes micro-organismos que nem mesmo são considerados organismos e que são obrigatoriamente parasitas de células, afinal de contas,não possuem nada parecido com uma mente, e disso decorre que não têm capacidade de discriminação. Não escolhem quem infectar baseados em preconceito de classe, gênero ou cor.

A cadeia de transmissão não é restringível a partir de parâmetros raciais impostos por humanos: as hordas de vírus não enxergam cor de pele, não poderiam se importar menos com os níveis de melanina na pele dos sujeitos humanos que estão disponíveis no ambiente. O que os vírus “querem” é entrar no motel de uma célula humana, para ali produzirem em ritmo frenético as cópias de si mesmos, os viruzinhos-filhos, numa louca orgia reprodutiva. A pulsão de vida em sua forma mais básica e selvagem.

Assim, nesta perspectiva, estamos de fato todos juntos nisso. Os corpos de ricos e pobres, presidentes e mendigos, proprietários e precarizados, machões e gays, pessoas cis e trans etc., estão todos vulneráveis diante desta ameaça. We’re all in this together. O que supostamente nos solidariza, nos une, gerando a noção de que diante dum problemática global precisamos de uma solucionática também global.

Porém, esta leitura do “todos no mesmo barco”, isto é, a noção de uma suposta igualdade de todos os humanos diante do flagelo, cai por terra quando consideramos os efeitos das pandemias ou das catástrofes sócio-ambientais sobre diferentes classes sociais. Não, não estamos todos no mesmo barco! Como compartilhou Gunther Zibell, “estamos todos nos mesmo mar, mas uns em iates e outros agarrados a um tronco.”

Torna-se claro para qualquer um que estude as questões sociais seriamente que os efeitos catastróficos das pandemias são sofridos muito mais pelas vítimas das injustiças sociais. O sistema que hoje impera está programado para punir os pobres, para emprestar a expressão que nomeia a obra de Löic Wacquant.

Quem soube expressar isto muito bem foi o cineasta sul-coreano Bong Joon-Ho (que marcou época nas premiações cinematográficas com Parasita em 2019 e 2020), em seu filme Snowpiercer – Expresso do Amanhã.  Ali, em cenário pós-apocalíptico, toda a pequena parcela da Humanidade que conseguiu sobreviver à catástrofe ambiental planetária está reunida em um único trem.

O que poderia nos conduzir à repetir, com outro meio de transporte que não o barco, a mesma lenga-lenga igualitária: “agora estamos todos no mesmo trem”. Porém o cineasta expressa com força em sua obra que este trem é altamente segregado, cada um dos vagões servindo, em micro-escala, como um estamento duma sociedade piramidal. Quem fala que estamos todos no mesmo barco deve fazer o adendo: e neste barco está vigente o mais brutal apartheid. É o que a filósofa Judith Butler soube expressar muito bem em seu texto sobre a epidemia de covid-19:

“A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazem, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.” – Judith Butler na Boitempo

Quando Butler fala de “distinção espúria”, pode-se sentir a indignação que motiva a filósofa-ativista: ela está fazendo a crítica da tendência em discriminar entre vidas passíveis de luto e aquelas dos que podem morrer sem que ninguém se lamente. Apesar de sermos todos mortais, ou seja, finitos no tempo e no espaço, vulneráveis a ataques de outros organismos, destrutíveis por elementos naturais que superam nossas forças, ou seja, apesar de compartilharmos esta condição ontológica de precariedade, não seria verdadeira dizer que “somos todos precários”. Alguns são socialmente construídos como mais precários que outros, algumas vidas são construídas como sendo passíveis de luto na hora da morte, e outras como mortes que não passam de “danos colaterais” que não merecem nossas lágrimas.

Por isso soa, infelizmente, tão autêntico este prognóstico: Favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil”, diz líder de Paraisópolis à BBC. Carol Proner, em um texto poderoso, soube descrever bem os abismos que há entre as vivências do vírus entre classes tão apartadas quanto Os Ricos e Famosos VS As Comunidades Carentes:

“É claro que o vírus acéfalo, que veio de avião e frequentou as colunas sociais nas festas e casamentos de famosos, já se espalhou nas comunidades carentes. E não foi por acaso que uma das primeiras mortes tenha sido a da empregada de 63 anos que cuidava dos patrões em quarentena na zona sul do Rio de Janeiro, um casal recém chegado da Itália e que passa bem.

Zizek, um dos primeiros intelectuais a opinar em meio à crise, tem insistido no argumento de que “estamos todos no mesmo barco”, de que saídas individuais não resolverão e que estamos diante da oportunidade de um “novo comum”, uma mudança ética que possa resgatar a racionalidade humana para salvar vidas. Mas talvez o filósofo esloveno, comovido pela solidariedade de outros países à Itália, mude de ideia ao conhecer a evolução do coronavírus no Brasil, onde a concentração de renda e de privilégios é extrema e que, por força dos golpes e das guerras híbridas, vem sendo governado por um bando de loucos violentos.

No Brasil das mentes planas, o governo e também a mídia classista, devidamente higienizada com álcool gel, ignoram a escala discriminatória dos efeitos desta guerra. Talvez achem que a circulação no barco de que fala Zizek possa ser feita com as pulseiras fosforescentes de acesso privilegiado, como estas que são usadas nos cruzeiros de luxo e festas de bacanas, evitando a entrada do vírus nos andares superiores. Nos porões do Brasil, mesmo com um programa de assistência única de saúde que pode ser considerado um exemplo para o mundo, estarão as vítimas mais numerosas, como já previnem os especialistas. No porão também está a multidão prisional, que já é grandemente formada por mortos-vivos, mas isso também faz parte da guerra. (PRONER, Carol. In: Brasil de Fato)

A extensão da tragédia coletiva que a pandemia representará na História do Brasil ainda é desconhecida, e aqui não se trata de tentar quaisquer exercícios de futurologia. O que já é claro, desde o presente, a partir da leitura de suas tendências e fluxos, é que haverá uma distribuição diferencial do sofrimento e que os favelados, os prisioneiros, os refugiados, os que não tem teto nem terra, os mais pobres e desvalidos, vão sofrer bem mais do que a classe média que pode pagar plano de saúde e tem uma poupança, que por sua vez vai sofrer mais do que os banqueiros capazes de se fechar num bunker com um Disneilândia dentro.

Lelê Teles soube expressar isso bem em sua provocativa crônica publicada em Geledés:

“as pessoas devem ficar em casa”, grita o guarda municipal, com o apito na mão, numa praça em são paulo.

aí surgem as perguntas, tipicamente brasileiras: “onde é a minha casa?”, indaga o sem-teto.

“o que é uma pessoa?”, pergunta o “menino de rua”.

questões enigmáticas.

(…) nada é mais didático do que aquelas fotografias em preto e branco dos pretos estadunidenses marchando pelas ruas com um cartaz no pescoço onde se lia: “i’m a man.”

O autor tira a conclusão de que “no Brasil tem as pessoas, as não-não pessoas e as superpessoas; estas, são aquelas dos camarotes vips.” Por isso, é impossível des-politizar a pandemia, tratá-la “apenas” a partir do viés da ciência, por exemplo clamando para um trabalho comum em prol do desenvolvimento de vacinas e remédios.

É evidente que o trabalho científico conjugado, internacionalista, solidário, é a nossa melhor chance para amainar o impacto mortífero das pandemias, porém nosso maior problema também seja outro: o Sistema que produz, em seu bojo, as pandemias, as catástrofes sócio-ambientais, as mudanças climáticas antropogênicas etc.

Rosana Pinheiro-Machado escreveu no The Intercept Brasil sobre o tema que aqui estamos explorando:

O vírus, em princípio, não escolhe classe, raça e gênero. Ele simplesmente se espalha, entre partículas e superfícies, de um corpo para o outro. Mas sabemos que a maneira como corpos, partículas e superfícies estão dispostas no mundo variam de acordo com marcadores sociais de desigualdade.

(…) Na última semana, assistimos muitos vídeos de como lavar as mãos em 20 segundos. Aprendemos a abrir a porta com o cotovelo e realinhamos nossa distância física nos afetos e cumprimentos da vida. Enquanto passamos o sabonete no pulso, palma da mão e punho muitas vezes ao dia, as consequências extremadas de um mundo distópico pandêmico seguem seu curso, demarcando um apartheid sanitário. Bilionários pegam seus jatinhos particulares e vão para bunkers de luxo isolados em países não infectados. Enquanto isso, 736 milhões de pessoas vivem em extrema pobreza no mundo e consideram o sabonete um objeto de luxo.

Tudo isso indica a dimensão catastrófica da pandemia quando esta penetra em favelas, bantustões, presídios, campos de refugiados e comunidades desprovidas de recursos médicos e sanitários. Vijay Prashad, em artigo publicado pela Tricontinental, relembrou um episódio em que a História ilumina nosso presente sombrio:

“Pouco se sabe que a gripe espanhola de 1918-1919 teve seu pior impacto no oeste da Índia; dos milhões que morreram nessa pandemia, 60% eram desta parte do país e os que morreram já estavam enfraquecidos pela desnutrição imposta pela política colonial britânica. Hoje, os famintos vivem nesses cinturões de favelas que até agora não foram dramaticamente atingidos pelo vírus. Se a morte começar a assolar essas áreas, onde os cuidados médicos foram severamente esgotados, o número daqueles que morrerão será alarmante, a miséria da estrutura de classes ficará evidente nos necrotérios.”

Para aqueles que chegaram a pensar um dia que a segregação do apartheid havia sido extinta, para figurar somente em museus sobre a história da África do Sul ou do III Reich nazifascista, outra má notícia é que “a desumanidade terá um longo futuro”, como vaticinou o poeta Paul Válery. Como escreveu Eliane Brum em El País, também ela destacando que “não estamos todos no mesmo barco”, estamos diante de uma década que nasce marcada pelo conceito de apartheid climático:

“Não estamos todos no mesmo barco. Nem para o coronavírus nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o conceito de apartheid climático, um reconhecimento de que as desigualdades de raça, sexo, gênero e classe social são determinantes também para a mudança do clima, que as reproduz e as amplia. Aqueles que serão os mais atingidos pelo superaquecimento global —negros e indígenas, mulheres e pobres —foram os que menos contribuíram para provocar a emergência climática. E aqueles que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e proporções —os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países pobres, os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo até aqui— são os que serão menos afetados por ela. São esses que já passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do coronavírus porque temem os refugiados climáticos que criaram e que serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.

Na pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a população que tem o direito a não ser contaminada e qual é a população que aparentemente pode ser contaminada. Não é coincidência que a primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o retrato do Brasil e das relações entre raça e classe no país, expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma pandemia.

(…) Muitas das ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos anos tiveram como objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição das periferias, no sentido mais amplo, que começava a questionar, de forma muito contundente, os privilégios de raça e de classe. Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle Franco era um exemplo icônico destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o lugar subalterno e mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia mostrou explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto das Filhas e dos Filhos das Empregadas Domésticas e das Diaristas”, afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães morrer pelo coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste momento, impensável apenas alguns anos atrás. (BRUM, Eliane)

O vírus não tem cérebro, nem moral, é incapaz de discriminação e malevolência. Está aqui por resultado das ações humanas no seio da Natureza – marcadas por uma destrutividade que beira a insanidade. Seus efeitos catastróficos são devidos a um sistema pré-existente onde proliferam os apartheids, as zonas de sacrifício, as injustiças sociais baseadas em distinções de raça, gênero e classe. Por isso, no perturbador e salutar texto Monólogo do Vírus, publicado por Lundi Matin, a prosopopéia humana atribui a ele uma função pedagógica (saibamos ser aprendizes!): “Eu vim parar a máquina cujo freio de emergência vocês não estavam encontrando. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da ’normalidade’.”

 

Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Brasil – 23/03/2020

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUM, Eliane. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). El País Brasil, 25 de Março de 2020.
BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. Blog da Boitempo, 20 de Março de 2020.
CHADE, Jamil. A crise que definirá nossa geração. El País, 17 de Março de 2020.
LUNDI MATIN. O Monólogo do Vírus. 24 de Março de 2020.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Coronavírus não é democrático: pobres, precarizados e mulheres vão sofrer mais. The Intercept, 17 de Março de 2020.
PRASHAD, Vijay. Profissionais da saúde movem um mundo mutilado. Tricontinental, 19 de Março de 2020.
PRONER, Carol. Nesta guerra, Bolsonaro é um aliado do coronavírus. Brasil de Fato, 21 de Março de 2020.
TELES, Lelê. Coronavírus, uma abordagem antropológica. Geledés, 18 de Março de 2020.


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A ARTE DE DINAMITAR BINÔMIOS: Sobre as revoluções filosóficas e ético-políticas de Preciado || A Casa de Vidro

“Não creio na nação nem em Deus. Se sou homem ou mulher? Esta pergunta reflete uma obsessão ansiosa do ocidente. Qual? A de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio. Eu dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do sexo!” – PRECIADO [1]

A pessoa nunca se reduz a seu nome – “e se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”, como ensinou o bardo Bill Shakespeare. Mas comecemos por aí, pelas relações entre nomes e identidades, a questionar algo crucial para o desvendamento e transformação do mundo de que somos contemporâneos: aquela que um dia chamou-se Beatriz, e que hoje atende ao chamado de Paul, mantendo-se neste entretempo da transição de gênero com o sobrenome Preciado, é uma pessoa que revoluciona a filosofia?

À primeira vista, a originalidade de Preciado estaria num devir-trans da filosofia, na revelação confessional e reflexiva da experiência de transexualização através de testosterona em gel que ela realiza pondo em prática a ética da cobaia-de-si que está no cerne de Testo Junkie, uma obra-prima da queersofia. Mas para além destas vivências, é preciso perguntar mais a fundo: como Preciado faz para transtornar e tirar de órbita toda a história do pensamento “ocidental” hegemônico? Quais são as práxis subversivas que ela propõe no âmbito da filosofia prática, ou seja, da ética – considerada como campo dos “estilos de vida”, das múltiplas artes do viver?

Preciado diz que está devotada à tarefa “dinamitar os binômios” que tentam dizer a verdade definitiva sobre o sexo. Para levar a bom termo o processo de dinamitar os binômios redutores (como macho/fêmea, homem/mulher, homo/hetero etc.), como procede Preciado em sua obra e em sua vida? Como faz para propor ao futuro humano as alternativas práticas e as metodologias táticas para que, no real concreto, possamos de fato “afirmar a multiplicidade infinita do sexo”?

Se a ética é uma estilística da existência, como dizia Foucault, Preciado ilumina as revoluções em curso nesta área em nossa época – esta que é por ela intitulada “farmacopornográfica”. Uma obra que revela toda a extensão do choque dos dissidentes sexuais contra os conservadorismos heteropatriarcais que desejariam manter tudo em estado estacionário. A obra de Preciado fornece alguns mapas para navegar neste confuso clash entre os subversores da heteronormatividade (com seu reinado de binômios opressores), digladiando com os defensores da velha ordem maniqueísta-teocrática do patriarcado impositor da heterossexualidade compulsória e de uma redutora leitura do sexo legítimo: aquele que se destina unicamente à procriação – situação descrita ironicamente pela banda God Is My Co-Pilot em seu álbum de título sarcástico, Sex Is For Making Babies.

A n-1 edições tem feito um trabalho primoroso na divulgação da obra de Preciado no Brasil, tendo já publicado o Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual (2017, 224 pgs) e Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018, 448 pgs). Ao ler estes livros, ficamos impressionados pela inteligência crítica que manifestam – e mais impressionados ainda pelos possíveis efeitos práticos que estas obras podem produzir. Em especial no que diz respeito a revoluções culturais, que são sempre também revoluções comportamentais. 

Nascida na Espanha, hoje Preciado é uma potência intelectual-prática no cenário francês, onde seu destino cruza-se e entremescla-se com o da escritora e cineasta Virginie Despentes.  Com um texto provocativo, de sabor literário subversivo, mobilizando uma sagaz prosa que eu apelidaria de beatnik-queer, Preciado vem levantando debates também entre os amantes de literatura – pois o tratamento literário da sexualidade que produz evoca similaridades mas também dissonâncias com a obra de figuras como Michel Houllebecq.

Transitando entre Barcelona e Paris, Preciado é hoje uma espécie de encarnação do parisiense cosmopolita. Destaca-se no cenário filosófico como herdeiro e subversor de Derrida, Foucault, Deleuze, Guattári, Judith Butler, Wittig etc. Segundo Marie-Hélène Bourcier, “o que Preciado faz com a filosofia se parece com o que o punk ou mesmo o rap fizeram com a música.” Bourcier – autora dos três livros da série Queer Zones – avalia que:

“O trabalho de desconstrução contrassexual realizado por Preciado, alinhado com projetos alternativos de modernidade, como o empirismo radical ou o espinosismo, rompe com toda uma série de binômios oposicionistas: homossexualidade / heterossexualidade, homem / mulher, masculino / feminino, natureza / tecnologia, que serviram até agora não só de fundamento da filosofia moderna, mas também como centro de reflexão das teorias feministas, assim como de certas teorias gays, lésbicas e inclusive queers. (…) Preciado utiliza com agilidade os recursos da desconstrução derridiana (…) e perfila-se em sua obra uma filosofia do corpo em mutação…” (BOURCIER, p. 13) [2]

Se Preciado de fato realiza algo capaz de “fazer com a filosofia” algo similar ao que o rap e o punk fizeram com a cultura, talvez seja pelo efeito de contestação das identidades fixas e das caixinhas binárias onde costumamos encerrá-las como que em gaiolas. Pensemos, por exemplo, no que põe Preciado em sintonia com o Punk.

Sabe-se que o movimento Punk é um dos mais libertários em relação à inclusão das mulheres nos espaços de expressão e no acolhimento espontâneo das dissidências sexuais e subversões de gênero. Tendo sido marcado por bandas pioneiras lideradas por travestis (o The New York Dolls, banda-matriz de onde nasce também a obra do ícone Johnny Thunders), ou que continham mulheres na liderança tanto nos vocais quanto nas composições (X-Ray Spex, The Slits, Blondie etc.).

Além disso, nascem dentro do punk sub-estilos inteiros – como o riot grrl de grupos como Bikini Kill, Sleater-Kinney, L7, Hole, Lunachicks, Babes In Toyland, Six Year Bitch etc. – marcados por uma revolta contra a heteronormatividade, o machismo e a opressão patriarcal.

riot grrrl transcendia a música pois, inspirando-se no ethos punk, desejava ser uma força de transformação social, demolindo uma hegemônica divisão sexual na arte que queria impor o rock and roll como algo exclusivamente acessível aos homens urrantes e ogros. Com o surgimento do riot grrrl, na esteira do estouro grunge, por volta de 1991-1992,

“a new generation of feminist musicians stopped accepting the “beergutboyrock” status quo and started making their voices heard. As loudly as possible. Riot Grrrl sent a ripple effect through culture with an influence that can be seen today in the proliferation of zines, pro-inclusivity spaces and plenty of sharp, hard-rocking all-girl bands to carry the torch.” (PAGET, Erika.) [3]

As atitudes de Kurt Cobain – criticando os rednecks escrotos, os machistas, os racistas, os homofóbicos, dizendo a eles no encarte de In Utero para que não comprassem os discos nem consumissem ingressos para shows do Nirvana – é uma das principais encarnações grunge-punk deste ethos de afirmação dos desviantes e outsiders. Assim como, no cenário contemporâneo, a impressionante trajetória do Against Me!, à frente de um cenário queercore que tem no álbum Transgender Dysphoria Blues um marco contemporâneo (um guia pode ser encontrado na Revista O Grito).

A transição identitária-corpórea envolvida em processos de transexualização tem cada vez mais exemplos encarnados de gente que tem a coragem de fazê-la em público: o Against Me!, que um dia foi uma banda punk liderada por um cara cis chamado Tom Gabel, e que hoje quer ser conhecido como a banda punk liderada por uma mina trans chamada Laura Jane Grace, faz parte do mesmo processo sócio-cultural complexo revolucionante de que Preciado participa.

Beatriz ou Paul? A própria confusão sobre como nomear esta pessoa, a proliferação de contraditórias descrições desta pessoa que a certo ponto foi “filósofa” e hoje é “pensador”, serve à esta dinamitação de certezas, dogmas e identidades com pretensão ao status pétreo de estátua. Ler a obra de Preciado, escutar Against Me! ou assistir à série True Trans (com Laura Jane Grace) é essencial para quem quiser, nesta vida, ser mais como mel do que como estátua.

Se Preciado tem algo de punk no âmago não é somente pois gosta de ir aos shows de Lydia Lunch e não tem pudores de escrever em seus livros expressões nada acadêmicas como “dar o cu”. Sua punkidade está essencialmente na sua “rebelião de gênero” que aponta para “o crepúsculo da heterossexualidade”; aquela que foi declarada, no nascimento, como mulher cis, chamada de Beatriz, criada com brinquedos “femininos” como bonecas e panelas, cresceu para tornar-se dinamitadora deste sistema, como evidencia o seguinte trecho de Testo Junkie, de impressionante radicalidade, em que ela segue os rastros de Butler, Federici e Fanon:

“Podemos dizer que a heterossexualidade feminina branca é, antes de tudo, um conceito econômico que designa uma posição específica no centro das relações biopolíticas de produção e de troca baseadas na transformação do trabalho sexual, do trabalho de gestação, do cuidado dos corpos e outras atividades não remuneradas no capitalismo industrial. É próprio desse sistema econômico sexual funcionar por meio do que Judith Butler chamou de coerção performativa: processos semiótico-técnicos, linguísticos e corporais de repetição regulada que são impostos por convenções culturais.

É impossível imaginar a rápida expansão do capitalismo industrial sem o comércio de escravos, a expropriação colonial e a institucionalização do dispositivo heterossexual como modo de transformação em mais-valia dos serviços sexuais não remunerados historicamente realizados pelas mulheres. É razoável falar de uma dívida de trabalho sexual que os homens heterossexuais teriam historicamente contraído com as mulheres da mesma forma que países ocidentais deveriam, de acordo com Franz Fanon, ser forçados a ressarcir os povos colonizados com uma dívida colonial. Se houvesse interesse em pagar a dívida por serviços sexuais e saques coloniais, todas as mulheres e povos colonizados do planeta receberiam uma renda vital que os permitiria viver sem trabalhar durante o resto de suas vidas.” (p. 133) [4]

Preciado, que dá a impressão de conhecer a fundo todas as vertentes de dissidência sexual, todas as marés do feminismo, todas as propostas de descolonização, também é uma grande conhecedora da arte underground dos dissidentes sexuais, dos outsiders da caixinha do gênero binarizado. Uma pequena lista de produções artísticas audiovisuais, literárias, performáticas e musicais fornece um panorama da riqueza e da diversidade desta produção cultural dinamitadora de binômios:

Preciado & Butler

“Por meio dos filmes pornôs feministas de Annie Sprinkle; dos documentários e ficções de Monika Treut; da literatura de Virginie Despentes, Dorothy Allison e Kathy Acker; das tirinhas cômicas de Alison Bechdel; das fotografias de Del LaGrace Volcano e Axelle Delauphin; das performances de Diana Pornoterrorista, POst-op e Lady Pain; das performances queer de Tim Stüttgen; das políticas zine e ready made de Dana Wise; dos shows selvagens dos grupos Tribe 8, Le Tigre ou Chicks on Speed; das pregações neogóticas de Lydia Lunch; e dos pornôs transgêneros de ficção científica de Shu Lea Cheang, cria-se uma estética feminista feita de um tráfico de signos e artefatos culturais e da ressignificação crítica de códigos normativos que o feminismo tradicional considerava como impróprios à feminilidade.” [5]

Não tenho dúvida de que Preciado quer contribuir para a libertação humana em relação à opressão dos binômios que nos trancam em uma vida que não flui. Em entrevista a Jesús Carrillo, Preciado afirma-se conectada à toda a galáxia da interseccionalidade: “Trata-se de estarmos atentos, diria Bell Hooks, ao entrecruzamento de opressões (interlocking opressions)”:

“Não é simplesmente questão de se ter em conta a especificidade racial ou étnica da opressão como mais uma variante junto à opressão sexual ou de gênero, mas de analisar a constituição mútua do gênero e da raça, o que poderíamos chamar a sexualização da raça e a racialização do sexo, como dois movimentos constitutivos da modernidade sexo-colonial.

Kimberly Crenshaw indicará a necessidade de evitar a criação de hierarquias entre as políticas de classe, raça, nação, sexualidade ou de gênero e, ao contrário, apelar ao estabelecimento de uma ‘interseccionalidade política’ de todos esses pontos de estratificação da opressão.

Trata-se, disse Avtar Brah, ‘de pensar uma política relacional, de não compartimentar as opressões, mas formular estratégias para desafiá-las conjuntamente, apoiando-se na análise de como se conectam e se articulam’.” (PRECIADO @ Revista Poiésis da UFF) [6]

por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, Janeiro de 2020
A ser continuado…

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. In: “Entrevista a Víctor Amela, La Vanguardia, 1 de abril de 2008″. N-1 Edições, pg. 223.

[2] BOURCIER, Marie-Hélène. Prefácio ao Manifesto Contrassexual. Pgs 9, 13.

[3] PAGET, Erika. The 10 Best Riot Grrrl Albums To Own On Vinyl. 2017. Acesse no site Vinyl Me Please.

[4] PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica.N-1, 2018, p. 132.

[5] Ibidem, p. 359.

[6] PRECIADO. Entrevista a Jesús Carrillo. In: Revista Poiésis / UFF, n 15, p. 47-71, Jul. de 2010. Acesse PDF.

ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO – Em “Espero Tua (Re)Volta”, de Eliza Capai, o ativismo juvenil é retratado no calor das lutas e contradições que povoam a História

O ponto de cultura A Casa de Vidro, em parceria com Levante Popular da Juventude e Taturana Mobilização Social, promoveram a exibição e o debate sobre Espero Tua (Re)Volta, de Eliza Capai.  O filme foi o vencedor dos prêmios da Anistia Internacional e do “Filme da Paz” no Festival de Berlim: “o primeiro deles premia o autor do filme que melhor aborda questões relacionadas aos Direitos Humanos e o segundo coroa a produção que se destaca com uma poderosa mensagem de paz e execução estética habilidosa dos seus temas.” (Ultimato do Bacon)

Exibimos e debatemos o filme em 21 de Setembro de 2019, com a presença de aprox. 40 pessoas, na convicção de que é salutar que a sociedade conheça, debata e valorize as mobilizações do movimento estudantil brasileiro na atualidade e no passado recente. Acompanhe no nosso vídeo – disponível em YouTube, Facebook e Vimeo – os preciosos diálogos que tivemos após a projeção com os debatedores:

* Helen Clara (do Levante Popular da Juventude)
Juliana Marra (Historiadora, Produtora Cultural, Doutoranda em História na UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Sociologia da UFG e ativista do PT – Partido dos Trabalhadores)
* Isadora Malveira (Estudante da UFG e realizadora do curta-metragem Seja Realista, Exija o Impossível, também exibido na ocasião junto com outro curta-metragem, Tsunami da Balbúrdia, de Eduardo Carli de Moraes).

No vídeo, também registramos as contribuições ao debate feitas pelo fotógrafo José Carlos Almeida, da Mídia Ninja.

Agradecemos a todos que estiveram presentes, assistiram aos filmes, acompanharam e participaram dos debates, fortalecendo este rolê cultural de alta relevância e instigância. Também manifestamos nossa gratidão ao jornalista Marcus Vinícius Beck, que publicou a reportagem Resistência na Telona no Diário da Manhã (20/09/2019), destacando a importância da obra que retrata “minas, manos e tantos outros personagens que foram indispensáveis na luta contra o conservadorismo e em defesa da educação pública.” Na sequência, uma tentativa de artigo crítico-reflexivo escrito após a sessão por Carli:

CINECONFLUÊNCIAS DEBATE “ESPERO TUA (RE)VOLTA”:




ESPEREM DE NÓS TUDO, MENOS O SILÊNCIO! 

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Vamos botar ponto final em todos ativismos do Brasil” – esse foi um dos objetivos anunciados por Jair Bolsonaro pra seu governo assim que se confirmou sua vitória no 1º turno das eleições de 2018. Farejando as atrocidades envolvidas na proposta de extermínio dos ativismos, “mais de 4 mil organizações da sociedade civil e movimentos sociais, como Conectas, Greenpeace, Intervozes e Instituto Alana, divulgaram uma nota de repúdio à declaração de Bolsonaro (PSL) sobre acabar com o ativismo no país” (Folha de S. Paulo, 12.12.2018).

Em Espero Tua Re(Volta), retomada em citação direta, a frase autoritária do governante neofascista do Brasil recebe uma resposta coletiva à altura: “esperem de nós tudo, menos o silêncio!” No arco temporal de 2013 a 2018, desenvolve-se a epopéia de ativismo estudantil-juvenil que propulsiona um dos mais pulsantes documentários já realizados no país. Cinema-ativista, sinal salutar de que a cultura não vai se calar, o filme de Capai, segundo Eduardo Escorel na Piauí, “é acessível, descontraído, ágil e alegre”, além de “bem narrado, valioso como registro histórico e que agrega ao olhar da realizadora gravações feitas por vários documentaristas independentes.”

O filme de Eliza Capai condensa em 93 minutos toda a potência do “audiovisual como forma de luta” e serve como plataforma para as imagens captadas por Caio Castor (Agência Pública), Henrique Cartaxo (Jornalistas Livres) e Tiago Tambelli (documentário 20 Centavos). Este é um dos aspectos a enfatizar na obra: a conexão íntima entre o cinema documental e os fenômenos de midiativismo que ganharam inédita propulsão a partir das Jornadas de Junho de 2013 (contexto muito bem analisado por Ivana Bentes em seu livro Mídia Multidão).

O filme é protagonizado por 3 jovens que participaram ativamente das ocupações das escolas paulistas em 2015, em resposta aà reorganização escolar anunciada pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A proposta previa o fechamento de mais de 90 escolas e o remanejamento de cerca de 300 mil alunos para outras unidades. Sob o lema “Ocupar e resistir”, os estudantes protagonizaram a ocupação de mais de 200 escolas, o que serviu de inspiração para jovens de todo o país e ajudou a deflagar, ao final de 2016, a maior onda de ocupações de escolas e universidades públicas de que se tem notícia na História deste planeta.

No Festival de Berlim, o júri responsável por premiar o filme assim se manifestou sobre seu mérito:

“Imagine seus filhos marchando pelas ruas porque o governo quer fechar suas escolas. Imagine seus filhos sendo atingidos por gás lacrimogêneo e espancados com cassetetes. Isso faz parte da realidade brutal do Brasil atualmente. Setenta anos após ser promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, crianças e jovens no Brasil são privados de seus direitos humanos à educação de qualidade. Centenas de escolas públicas correm o risco de ser vítimas de políticas governamentais que negligenciam a necessidade e o direito à educação de todos, independentemente de seu status social. Famílias pobres e desfavorecidas são particularmente afetadas. Mas a juventude do Brasil não aceita isso sem resistência intensa, clara e corajosa.

O vencedor deste ano do Prêmio da Anistia Internacional rompe as estruturas convencionais usando narrativa documental não linear. Ilumina os jovens em sua luta pela democracia e pela educação. Também mostra como esses jovens protagonistas vivem relações pautadas por valores solidários e democráticos. Eles são assim por obrigação e, ao mesmo tempo, de modo irresistível, nunca deixando que suas vozes sejam silenciadas por aqueles menos corajosos e menos comprometidos entre eles. Eles lutam por seus objetivos, expressam seus sonhos, suas esperanças e seus direitos humanos, e é por isso que estão sempre um passo à frente de todos ao redor. Este filme extraordinário nos dá esperança e nos inspira, através de todas as gerações e além de todas as fronteiras, a elevar nossas próprias vozes e a tomar posição em defesa dos nossos direitos humanos básicos. E um dos direitos humanos mais básicos que nos cabe defender, e que devemos defender unidos, é a educação para todos.” (Via Revista Piauí)

Espero Tua (Re)Volta é um notável capítulo da história do cinema documental brasileiro ao apostar numa narrativa polifônica, que dá voz e vez à diversidade que constitui o movimento estudantil e juvenil no Brasil. Com sua tríade de protagonistas, o filme fala muito sobre corpos revolucionários, pondo seus cus na reta, rompendo com o status quo da letargia instituída.  É a juventude fogo-no-pavio que se une na resistência contra a opressão e improvisa soluções para os graves dilemas que vivenciamos. São atitudes que encontraram reflexões à altura na obra de Judith ButlerCorpos em Aliança. 

São manos, minas e monas querendo dançar e beijar na revolução – como queria Emma Goldman. É uma juventude que não se deixou domar pelos chicotes e açúcares do fascismo. Eis onde mora a esperança concreta de renovação. Porém, não há nada de homogêneo ou uniforme neste microcosmo da juventude brasileira que são os movimentos estudantis organizados (UNE, UBES, APNG, mas também C.A.s, grêmios, coletivos etc.). O filme de Capai é didático na explicitação das fraturas que dividem e partidarizam os jovens, sobretudo na cena em que é descrito o CONUNE 2017 – e vale lembrar que A Casa de Vidro produziu um documentário no CONUNE 2019, Não Matem Nosso Futuro, que flui por rios semelhantes:

O desafio maior, para a eficácia coletiva de um movimento cidadão, é criar unidade na diversidade. O filme Espero Tua (Re)Volta é brilhante ao focar neste dilema através do diálogo entre os 3 protagonistas que vão lutando por seus lugares-de-fala, numa espécie de cabo-de-guerra onde se decide: “quem narrará este rolê, e como?” A perspectiva do homem é questionada pela perspectiva da mulher; a perspectiva da UJS é questionada pela perspectiva “autonomista”; e nesta irônica metalinguagem constrói-se o concerto da contradição que é o charme maior no cerne do filme.

O filme dirigido por Eliza Capai utiliza-se de seus três protagonistas principais para enfatizar as diferenças que povoam tanto o movimento estudantil quanto a esquerda, porém insere as relações da tríade de narradores em uma estrutura básica de empatia uns pelos outros, já que compartilham a mesma luta, estão no mesmo campo de batalha contra inimigos compartilhados. É evidente, por exemplo, que a Nayara, sendo uma menina branca de raízes no interior paulista, não vivencia na pele a violência policial dos “enquadros” racistas que os fardados impõe a adolescentes negros como Lucas “Koka” Peteado. Porém, ao invés de erguer um muro de indiferença e de cegueira voluntária entre o eu e o outro, Nayara é uma jovem capaz de empatia com o sofrimento do companheiro estudante que, para além das opressões que ambos compartilham enquanto pobres e vulneráveis, sofre ainda mais do que ela nas mãos dos fardados e suas práticas truculentas e racistas.

O Congresso da UNE, evocado logo no começo do documentário em sua 56ª edição, em 2017, serve como excelente emblema das fraturas expostas do movimento estudantil brasileiro. No filme, é evidenciada a diferença entre as diferentes “tribos” que ocupam o Ginásio Nilson Nelson nesta ocasião, com oposições um tanto radicais entre as frações à esquerda capazes de alianças e coalizações (Juventude do PT, UJS do PC do B, Levante Popular da Juventude etc.) em contraste brutal com os estudantes do Tucanato (PSDB) – tanto que estes últimos são trollados no filme como “gente jovem falando um monte de baboseira como se fossem uns velhotes” (cito de memória).

O Congresso da UNE exige pois o conceito de hegemonia para a compreensão das forças políticas que dominam e as que são mantidas subalternas: dizer que nos dois últimos CONUNES (2017 e 2019), constituiu-se uma hegemonia da UJS na presidência da UNE, com o Levante Popular da Juventude na vice-presidência, é um modo de apontar para as coalizões que, no concreto das lutas, constituem os arranjos possíveis de construção da união na diversidade. Em um processo todo polvilhado de contradições e no qual não faltam os disparos de fogo amigo.

Seria mentir sobre nós mesmos, ativistas mobilizados em prol da causa da educação ou dos direitos civis básicos, caso pretendêssemos nos pintar como extremamente unidos e solidários – a união e a solidariedade são desafios, construções difíceis, tarefas intermináveis, e cada um de nós carrega as cicatrizes das fraturas que já vivenciou. Lendo e aprendendo, nos últimos anos, com Audre Lorde, fui desenvolvendo a noção de que estaríamos equivocados desde a linha de partida se acreditássemos que nossa unidade e nosso poder exigem uma união homogênea.

Precisamos banir de corações e mentes a noção de que qualquer revolução é feita com uniformes, isto é, com indivíduos uniformizados – por fora e por dentro – que constituiriam a mais eficaz das massas revolucionárias para tudo mudar. Não é a uniformidade que faz nossa força, mas nossa capacidade de sermos diversos, mas não dispersos (como Marielle Franco também compreendeu: sejamos diversas mas não dispersas!). Como mudaríamos tudo se repetíssemos esta falácia do homogêneo e do uniforme como cimentos necessários de nossas forças?

Se queremos agir desde hoje na transfiguração concreta do mundo para que ele se pareça com o mundo em que desejamos viver, então desde o princípio precisamos enxergar nossas diferenças não pelo prisma de algo que nos separa e nos fratura, mas sim pelo prisma de diferenças que podem nos engrandecer caso saibamos sintonizá-las. Desde que saibamos fazer mais do que aquele pouco que hoje nos pedem os reformistas acomodados, os desejos de mudancinhas que não balancem as estruturas: eles, os reformistas que se conformam com pouco, dizem-nos que precisamos tolerar as diferenças. Mas isto é pouco demais, cheira demais a mesquinharia, a horizontes utópicos estreitos. Queremos rumar para um além onde nossas diferenças, mais do que toleradas, pudessem ser celebradas.

Não há facilidade nenhuma nisso, mas quem jamais disse que a transformação radical do mundo é fácil, rápida e indolor estava sendo ingênuo, falsificador ou coisa pior. É nossa capacidade de celebrar nossas diferenças ao mesmo tempo que permanecemos unidos que fará o caldo heterogêneo, complexo e multifacetado das pessoas partejando um futuro menos sórdido.

Sei que, ao dizê-lo, deixo que fantasmas de pessoas mortas infundam sua sabedoria às minhas palavras e reconheço minha dívida de gratidão com Audre Lordeshe’s speaking throught me. Conheço poucas mentes que foram capazes de expressar com tanta potência e eloquência esta filosofia da diferença enquanto positividade do que Lorde. Ela ensinava: “In order to work together we do not have to become a mix of indistinguishable particles resembling a vat of homogenized chocolate milk. Unity implies the coming together of elements which are, to begin with, varied and diverse in their particular natures.” (Sister Outsider, p. 136)

Em Espero Tua (Re)Volta, não se vende a farsa de que o movimento estudantil brasileiro fosse de fato uma entidade monolítica e uniforme. Também sabemos muito bem que aquilo que se chama de “esquerda”, no espectro político, é algo fragmentado e que não está imune aos males do sectarismo (fenômeno investigado por Sabrina Fernandes em seu livro, lançado em 2019, Sintomas Mórbidos). 

Espero tua (Re)volta não está aí pra nos mentir sobre as possibilidades de vitória neste cenário de adversidade daquelas forças que lutam em prol de educação pública, gratuita, laica, de qualidade. As adversidades são tremendas e transcendem o âmbito da educação – e nos vínculos que estabelece entre diferentes opressões, o filme é extremamente lúcido: sabe que os problemas da mobilidade urbana, da especulação imobiliária e do encarceramento em massa não são desvinculáveis; que o fechamento das escolas, proposto pelo Picolé de Xuxu, tinha relações com muita coisa além de decisões pedagógicas e “técnicas”, envolvendo o interesse de grandes construtoras em construir condomínios de luxo no local onde estão hoje escolas públicas que se queria liberar para demolição.

Além disso, o filme é repleto de denúncias pungentes de uma violência policial onipresente nas ações de repressão contra os movimentos estudantis, o que o filme não desvincula do gravíssimo cenário que Koka torna explícito: São Paulo é disparado o estado brasileiro com o maior número de presos, sendo o Brasil um dos 3 países no mundo que lidera o ranking do encarceramento em massa. Argumenta com claridade o Koka: “se prender geral resolvesse alguma coisa, não estaríamos entre os 10 países mais violentos do planeta”. Assim é desvelado, como o feminismo negro tanto destaca através de figuras como Angela Davis e Michelle Alexander, o vínculo sórdido entre a opressão policial e a carcerária, entre a violência dos PMs no asfalto e a violência contra os milhares de detentos nos Carandirus repletos dos que antes moravam nas quebradas.

Se a crítica social que o filme inclui é ampla o bastante para abraçar várias formas de opressão coligadas, a expressão das individualidades não fica nisto soterrada. Pelo contrário, Espero Tua (Re)Volta carrega toda a força destas 3 singularidades que propulsionam o filme adiante com suas narrativas confluentes. A Marcela de Jesus, com suas mutações identitárias radicais, é um excelente exemplo do que eu chamaria, para homenagear Raul Seixas, de uma singularidade em metamorfose ambulante.

De cabelos roxos, ela revê cenas dos primórdios de sua atuação enquanto estudante secundarista mobilizada politicamente, contrasta suas madeixas atuais com as de outrora: para ela os cabelos são mais do que estética ou aparência, envolvem sua essência como pessoa em travessia. No caso, uma pessoa de essência transformante, uma mutante identitária – mas não seríamos todos?

A juventude, sendo a fase da vida de acelerações destas mutações vitais, com toda a radicalidade alteritária que se destrava quando a infância flui rumo à puberdade e à adolescência, é capaz de nos ensinar um bocado sobre esta profunda verdade da existência: estamos condenados à mudança. Tudo flui é uma lei universal e cada um de nós está incluído neste tudo flui: borboleta precária a voejar efêmera por uma vida cuja única certeza com que podemos caracterizá-la é que ela não dura. Estamos aqui de passagem, e que esta passagem possa ter ao menos o sentido precário de que lutamos juntos por um mundo melhor.

Marcela não quer ficar muito tempo presa a si mesma. Não só acolhe a mudança, ela a procura e a produz. Quer expulsar quaisquer vestígios de racismo interiorizado que porventura os opressores possam ter lhe imposto. A juventude é esta idade da vida em que, como Marcela, facilmente passamos a discordar de nós mesmos, pois já não somos o que éramos há pouco, pois mudamos para outra posição singular de nossa jornada identitária. Queimem os RGs e CPFs, pois é uma fraude que aqueles números fixos pretendam descrever algo sobre os rios que somos! Marcela se transforma em profundeza (o que, é claro, expressa-se por muitos sinais extremamente aparentes, e não só o cromático exuberante do roxo em suas novas madeixas).

O filme faz magia ao encapsular modificações-de-si tão profundas no fluxo impetuoso de uma obra que parece propulsionada pela energia indomável de corpos juvenis que não aceitam coleira. Nem vão se calar quando explodem contra estudantes as bombas de tóxico gás lacrimogêneo – cada um deles de preço equivalente ao de 500 merendas.

“Marcela Jesus participou das ocupações estudantis de 2015 e 2016 em que ocupou sua própria escola contra um projeto de reorganização escolar do governo do Estado de São Paulo. Em 2016, iniciou sua formação artística em 2016 com a peça ROZÁ. Em seguida, entrou para a ColetivA Ocupação, dirigida por Martha Kiss Perrone e em 2017 se apresentou na MIT – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – com a performance “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar” e em 2018 integrou como atriz e dançarina a peça “Quando Quebra Queima” que é seu atual trabalho com a ColetivA Ocupação. Com a peça, chegou a viajar para a Inglaterra, onde se apresentou em Leeds e Manchester e também deu oficinas de teatro para alunos da The University of Manchester.” – TATURANA

É Emma Goldman e seu anarquismo festivo-combativo que o filme acaba por evocar fortemente – pois ele parece marcar o percurso não só de Marcela, a Senhorita “Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar”, mas também de Koka e Nayara. Esta juventude quer estar dançando nas ruas rufando seus tambores em uma realidade social de corpos mais livres para se expressarem.

Na atualidade, os corpos que se mostram em seus processos de mutação identitária radical – como nos casos das transições de gênero dos transexuais – vivem sob a paranóia justificada que a cultura de ódio e extermínio reinante visa impor. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil não chega aos 40 anos de idade, o que significa que uma das categorias sociais que mais está condenada à morte precoce, por extermínio violento nas mãos de um agressor alterofóbico, é o das pessoas trans, párias entre as párias, matáveis entre as pessoas matáveis.

É contra isto que se insurgem estes estudantes, plenamente cientes de suas diferenças, reivindicando a construção coletiva de uma cultura outra: mais colaborativa do que competitiva; mais solidária do que individualista. E a ocupação é o aqui-e-agora onde a urgência da História obriga a transformar a Escola em Casa.

Espero Tua (Re)Volta ajuda-nos a compreender um fenômeno histórico inédito: no segundo semestre de 2016, em especial nos meses de Outubro e Novembro de 2016, o Brasil chegou a ter mais de 1.000 escolas e universidades públicas ocupadas pelos estudantes em protesto contra as medidas do governo nascido após a deposição de Dilma Rousseff. Especialistas apontam que não há nenhum precedente histórico para uma onda de ocupações desta magnitude em nenhum país do mundo.

Os estudantes secundaristas e universitários brasileiros protagonizaram a principal frente de resistência contra o carro-chefe do governo Temer, a Emenda Constitucional que instituiu o Teto de Gastos Públicos por 20 anos, aprovada pelo Congresso ao fim de 2016 mesmo com uma intensa onda de mobilizações contrárias a ele.

Naquela ocasião, A Casa de Vidro, enquanto centro de mídia independente, produziu uma tríade de documentários em Brasília: “A Babilônia Vai Cair”, “Levantem-se!” e “Ponte Para o Abismo”, que retratam os protestos estudantis na capital federal contra aquilo que se chamava de “PEC do Fim do Mundo”. Dando sequência a este trabalho documentarístico, produzimos em 2019 uma série de curtas-metragens documentais que retratam os levantes em defesa da rede federal de educação que ocorreram no primeiro ano do governo neofascista-neoliberal de Bolsonaro. Tais movimentos, que ficaram conhecidos como “Tsunamis da Educação”, dão sequência à onda de ocupações e protestos que marcaram o ciclo de lutas de 2015 em São Paulo e em 2016 em todo o Brasil (com destaque para as ocupações de mais de 800 escolas no Paraná).

O filme de Capai retrata com empatia e entusiasmo o ativismo destes jovens em prol de um ensino público de qualidade. Revela também a defesa apaixonada que estes jovens fazem de uma educação para o pensamento crítico, em que professores não sejam silenciados ou criminalizados com base em propostas autoritárias como aquelas do “Escola Sem Partido”. Além disso, revela que estas lutas por direitos coletivos incluíram debates interseccionais sobre o feminismo, os movimentos LGBTQ e as lutas antirracistas, pautas que estiveram vivas e atuantes dentro das ocupações e marcaram presença em todos os atos cívicos conexos.

O filme revela de que maneiras as escolas e universidades sob ocupação estudantil foram transformadas em laboratórios de outros mundos possíveis. Revela as ações de jovens em um esforço de contestação de um status quo visto como injusto e opressor, conectado a um esforço coletivo de prefiguração de alternativas societárias. Deste modo,um filme como este ajuda a alimentar nossa potência crítica e contestatória ao mesmo tempo que dá oxigênio novo às energias utópicas de construção daquilo que Paulo Freire chamava de “inéditos viáveis”.

Nos 93 minutos do filme, podemos ver as ocupações como “zonas autônomas temporárias”, como diz Hakim Bey, onde as estruturas das relações humanas foram radicalmente transformadas, no âmbito restrito daqueles microcosmos de ativismo estudantil, onde a cidadania ativa era exercida de modo radical, ainda que às vezes através de táticas improvisadas e espontâneas. Neste sentido, a importância de “Espero Tua (R)evolta” está também na ênfase que dá às novas gerações como protagonistas na pré-figuração de realidades alternativas em que as opressões de gênero, raça e classe estivessem superadas por modelos radicalmente democráticos, inclusivos e autonomistas de educação e de sociedade.

Na ocupa, a galera improvisa o rango, dividindo as tarefas de limpeza e segurança, fazendo os corres dos colchonetes e barracas, num autêntico mutirão em que cada um sai da segurança dos ninhos familiares, deixa a dependência que as figuras de pai-e-mãe querem a estabelecer nos sujeitos, aventuram-se numa fascinante jornada de maturação. As ocupas podem ter sido inspiradas por muitas fontes – o filme evoca o MTST e sua liderança mais conhecida, Guilherme Boulos, como uma das inspirações, mas também reconhece a importância do Movimento Estudantil Chileno e do documentário de Carlos Pronzato que o retrata, A Revolta dos Pinguins. Mas a verdade talvez esteja não tanto nas influências externas que impulsionaram os jovens às ocupações, mas algo de mais íntimo, do âmbito das forças subjetivas, uma vontade muito disseminada de testar nossas forças no vôo, em perigo, justamente para expandir estas forças que, na inatividade, estagnariam.

São jovens que sabem o valor de uma liberdade em exercício. Pois uma liberdade só sonhada não é nada senão obscena quimera inútil – e bendito aquele que estraçalha idealizações no altar da ação concreta e conjugada! Na Ocupa, descobrem-se cidadãos. Tomam para si a gestão do que deveria ser administrado pelo Estado, instauram mecanismos de governança autonomista quando os que governam manifestam seu intento de fechamento (enclosure) do território declinante do comum (commons). Enquanto famílias, igrejas e partidos conduzem sujeitos às patologias deformantes do individualismo sectário, as ocupas podem servir como Zonas Autônomas Temporárias que conduzem às práticas comunais de cidadãos colaborantes. No caldeirão do improviso de outros mundos possíveis, forjados no calor das lutas, animados por beijos bem molhados e rabas bem reboladas.

Eduardo Carli de Moraes – Setembro de 2019

TSUNAMI DA BALBÚRDIA: Documentário sobre a mobilização em defesa da Educação pública em 15 de Maio de 2019 (Goiânia, 23 min)

“Se ele nos chama de idiotas úteis, eu digo que na presidência tem um idiota inútil.” – Guilherme Boulos (MTST/Povo Sem Medo/PSOL)https://bit.ly/2WKoe3j

Éramos mais de um milhão de pessoas, em mais de 200 cidades, participando do Tsunami da Educação e “protestando contra o avanço da barbárie”, como bem definiu Bob Fernandes. Éramos aqueles que não serão feitos de otários pela enganosa retórica do “são só 3 chocolatinhos que vocês vão deixar pra comer depois” (discurseira devidamente detonada pelo sarcasmo salutar de Gregório Duvivier no episódio B de Balbúrdia do Greg News).

Éramos, no #15M, um rio de gente, de uma diversidade pulsante, numa explosão de colorido indomável. Um pouco deste caleidoscópio humano está encapsulado no filme que agora lançamos, no calor da hora. Tsunami Da Balbúrdia, documentário curta-metragem produzido por A Casa de Vidro (veja no Youtube, no Vimeo ou no Facebook),  é o primeiro passo em um processo criativo mais amplo, que une os aspectos cinematográfico, jornalístico e político, visando à produção de um longa-metragem sobre o Tsunami da Educação em 2019 (auxilie no financiamento colaborativo e deixe um troco na nossa Vakinha!).


Filmado durante as manifestações goianienses do 15 de Maio, Tsunami da Balbúrdia está em sintonia com os ideais e as práticas do jornalismo Ninja. Nesta obra – com montagem, som direto e direção de Eduardo Carli de Moraes (professor de filosofia do IFG)buscamos amplificar a voz e disseminar as mensagens dos manifestantes através do audiovisual.

Contribuindo tanto para o registro histórico deste evento político quanto para o incentivo ao prosseguimento das mobilizações no futuro próximo (o 30 de Maio e o 14 de Junho sendo as datas de iminente grandiosidade e relevo histórico). A obra contêm, além dos agitos de rua e de um registro da assembléia geral unificada dos DCEs do IFG e da UFG, entrevistas e depoimentos de:

* Frank Tavares (prof. de Sociologia da UFG)
* Angela Cristina Ferreira (da Comissão de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno)
* Dalmir Rogério Pereira (Prof. de artes na EMAC/UFG)
* Mateus Ferreira (Estudante de Ciências Sociais / UFG)
* Renato Costa (Ativista e Estudante de Jornalismo / UFG), dentre outros.

Agrademos o apoio, na produção, de Lays Vieira e Frederico Monteiro. Na trilha sonora, canções de Dani Black e convidados (“O Trono do Estudar”), The Interrupters (“Babylon”), Moska e Rennó (“Nenhum Direito a Menos”), Chico Buarque (“Apesar de Você”).

Éramos aqueles que sabem muito mais do que “qual o resultado de 7 vezes 8” e “qual a fórmula química da água”. Aqueles que sabem da nossa responsa diante do desmonte e do sucateamento que o governo Bolsonaro planeja impor. Aqueles que estão conscientes dos impactos catastróficos acarretados pelos cortes de cerca de 30% nos investimentos discricionários do Ministério da Educação (MEC), ainda mais quando sabemos que as 10 melhores universidades do Brasil são públicas e gratuitas. Aqueles que sabem que balbúrdia mesmo é o que faz no país este péssimo governo.

Somos aqueles que, ao contrário do Bozo e seus lacaios, não somos nem idiotas nem analfabetos políticos: sabemos que os cortes incidem sobre hospitais e centros de excelência em atendimento psicológico à população; sabemos também que, ao contrário da asneira presidencial de louvor às faculdades privadas, 95% da pesquisa científica brasileira ocorre em universidades públicas (é só jogar no Google, seu ministro!):

Antes de dizer que universidades são “balbúrdias” e não geram pesquisas, titular do MEC deveria se informar: Brasil é o 13º na produção de artigos científicos – e participação das públicas representa 95% – LEIA O ARTIGO EM OUTRAS PALAVRAS

Excelentes vídeos já foram publicados para esclarecer a opinião pública sobre os acontecimentos recentes no que tange às políticas públicas educacionais no Brasil e a resistência cívica que elas vem encontrando: acesse o material recomendado em BBC News, Brasil de Fato e Levante Popular da Juventude.

 

O histórico 15 de Maio de 2019 marca um ponto alto na curva das mobilizações populares no Brasil nestes tempos sombrios de predomínio da “necropolítica”, esta fusão entre neoliberalismo e neofascismo que hoje nos desgoverna com a perversa tesoura da Austeridade em mãos (aquela que corta da população para manter a mamata das elites).

Éramos, nas ruas, e seremos nas ruas do futuro, aqueles que não foram estupidificados por fake news no Whatsapp e estamos cientes de nossa responsabilidade histórica na defesa dos bens comuns. O “contingenciamento” que o (des)governo busca impor não é uma medida isolada, mas soma-se às tendências do ultradireitismo bozorista que consegue a educação como espaço a ser militarizado, “expurgado” de esquerdistas, “higienizado” contra o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”, contra o pensamento crítico propulsionado por filósofos e sociólogos, por historiadores e pedagogos Paulo Freireanos…

Enfim, a extrema-direita hoje empoderada sonha com a Escola reduzida a apêndice servil do Mercado, onde reinariam supremos os valores evangélicos, as fardas dos milicos e os testas-de-ferro “apartidários” do Escola Sem Partido.

Foi o mais amplo e significativo movimento de massas desde o ELE NÃO de 2018 – o levante mais importante a marcar o processo eleitoral do ano passado, repleto de fraudes, de “laranjal do PSL”, de #Caixa2DoBolsonaro pra disseminação de fake news calúnias. Primeiro processo eleitoral pós-Golpe, corroído em sua legitimidade pela desleal e ilegal lawfare que aprisionou o candidato Lula, criminosamente privado de sua liberdade num contexto em que todas as pesquisas indicavam que venceria o pleito.

Reativando afetos e práticas que deram o tom do #EleNão, a galera na rua esbanjou irreverência. “Ô Bolsonaro, seu fascistinha! A estudantada vai botar você na linha!” Com essas e muitas outras rimas, os estudantes bradaram pelas ruas – e Maio de 2019 já possui o mérito maravilhoso de ter oferecido a muitos de nós um gostinho de Maio de 1968, um sabor da Paris em insurreição.

A golpes de rimas, os criativos protestadores diziam: “ô Bolsonaro, seu fanfarrão! Balbúrdia é cortar da educação!” Fanfarrão, pois Bozo insiste na discurseira contra a balbúrdia. Tanto o Chefe quanto seu serviçal Weintraub – o cara dos “três chocolatinhos e meio” – insistem na ideologia “balburdiana”, que supostamente dominaria nas universidades públicas. Estas são pintadas pelos bullys do Bozonistão como antros de comunistas, marxistas culturais, feminazis abortistas, queers Marielleanos, todos alimentados com mortadela, pelo PT e pelo PSOL, para disseminar o evangelho satânico do comunismo gayzista que virá colonizar a pátria com seus kits gays e suas mamadeiras de piroca.

Contra tal delírio do poder no Bozonistão, os estudantes e professores, os servidores técnico-administrativos e os cientistas, os artistas independentes e os empresários-de-si-mesmos que estão insatisfeitos contra o precariado do Uberismo, as mães que querem creches para os seus filhos e os pais que querem bolsas para seus filhos, crianças e idosos (e todas as faixas etárias entre eles) juntaram-se para bradar legítimas insatisfações contra os desrumos das coisas.

ÁLBUM FOTOGRÁFICO DO ATO EM GOIÂNIA

Empunhavam escudos-livros e lanças-lápis, como fez a “Tropa” da EMAC/UFG em sua performance em pleno protesto aqui em Goiânia. Uma potência expressiva que certamente agradaria a Judith Butler, uma das mais brilhantes pensadoras do mundo e que acaba de publicar um belíssimo livro de resistência e solidariedade chamado Corpos em Aliança.

Nossos mortos querem que lutemos, nossos mortos pedem que cantemos. E nós mandamos nosso recado: Paulo Freire, presente! Marielle, semente! E cá estamos, corpos aliançados, na luta unida contra a tirania dos idiotas inúteis.

Se o presidente da república não estivesse ocupado em tacar as pedras de seu desdém elitista contra os jovens que estavam bradando nas ruas, talvez pudesse, ao invés de xingar-nos de “idiotas”, ficar calado e ter a humildade para aprender. Mas seria pedir demais desta arrogância brucutu, de quem acha que tudo se resolve no tiro, que pudesse haurir um pouco disto que temos de sobra no âmbito social da Educação: a humildade para aprender e a disposição para reconhecer que somos todos incompletos, inconclusos, aprimoráveis.

Nesta inconclusão aberta ao aprimoramento, nesta humildade aberta ao convívio e ao aprendizado, aí está a raiz que alicerça toda a prática educativa, mas nosso presidente não consegue aprender e talvez morrerá um completo analfabeto em relação às práticas de um autêntico Estadista atento ao bem comum e ao coletivo bem viver. A isto, o apologista da tortura, dos grupos de extermínio e do “fuzilar a petralhada” é completamente cego.

Infelizmente, Bolsonaro é um “analfabeto educacional”, nunca aprendeu nada que prestasse sobre a importância da educação no mundo, e é o perfeito exemplar do idiotes dos grego – aquele que só enxerga, em sua semi-cegueira, os interesses privados e nunca o bem comum. Ao xingar os manifestantes de “idiotas”, desconhecendo completamente a etimologia da palavra original grega, Bolsonaro demonstra que em sua boca é a linguagem que está indo pro pau-de-arara.

Quem esteve no #TsunamiDaEducação é justamente o oposto do significado de “idiota”, e o próprio Bolsonaro ao dizer que “queremos uma garotada que comece a não se interessar por política” é que demonstra seu plano de construir uma educação idiotizante – à sua imagem e semelhança. Vejam a esclarecedora palestra de Mário Sérgio Cortella:

Se Bozo tivesse a modéstia de pôr-se na posição do aprendizado, descobriria quanta esperteza e inteligência, quanta solidariedade e esforço por justiça, pulsa nas ruas e nas redes, expressando-se atualmente nestes que constituem as vastas teias da Resistência a seu desgovernado projeto de tirania.

Acima: manifestações de massa levam mais de 1 milhão de pessoas às ruas. Fotos acima tiradas nas cidades de Goiânia, Rio de Janeiro, Curitiba e São Paulo.

Em EL PAÍS Brasil, Juan Arias escreve:

“Ao menos desta vez, o poder de turno no Brasil entendeu a mensagem oculta levada pelos quase um milhão de jovens estudantes que no último dia 15 saíram às ruas em 26 Estados e em centenas de cidades para defender o ensino contra quem deseja barbarizá-lo. Cansados de serem vistos como o futuro do país, que nunca chega, os jovens decidiram ser o presente e participar de sua construção.

O novo Governo pretende transformar o ensino, da escola primária à Universidade, para livrá-lo da ideologia esquerdista que, segundo ele, o havia desviado de seus valores tradicionais. O ensino que o novo poder pretende impor deve estar isento de debate político, de diversidade de ideias, dominada por um pensamento único, que, como nos melhores fascismos do passado, é imposto pelo Estado.

Uma escola em que não se perca tempo estudando o que depreciativamente chamam de “ciências humanas”. Nada de filosofia, que obriga a pensar e a questionar o poder, ou de sociologia, que abre os olhos para o abismo das desigualdades. Uma escola em que os alunos se transformem em guardas que vigiem e denunciem os professores se tentarem falar de política ou de sexo, ou das dores do mundo. A escola é moldada pelo poder. Os alunos escutam e se calam.

Contra o perigo desta nova era de obscurantismo educacional que o Governo deseja impor, com uma nova cruzada contra os livros e as ideias enquanto exalta as armas que pretende distribuir como doces, os jovens ocuparam pacificamente as ruas e praças do país, para desafiar quem tenta castrar seu direito à liberdade de expressão e impor suas ideias.”

Já o professor de Ciência Política da UnB Luis Felipe Miguel aponta: “Bolsonaro, em Dallas, desfia os impropérios de sempre contra estudantes e professores. Mas eu sei que ele está com medo. Que ele olhou na internet as manifestações enormes de Norte a Sul no Brasil e sentiu medo da nossa força. Que ouviu o pessoal gritando Bolsonaro, seu fascistinha, a juventude vai botar você na linha, engoliu em seco e pensou que não era uma bravata vazia.

Movido por sua própria arrogância e delírio, o governo errou: agrediu, insultou, provocou até que sacudiu a anestesia em que estávamos imersos. Para quem esteve na rua ou mesmo acompanhou de fora, os atos de hoje fizeram redobrar o ânimo de luta. Se esse ânimo se estender pela classe trabalhadora – e há indícios de que esta é uma possibilidade palpável – teremos uma greve memorável no dia 14 de junho e poderemos empunhar com esperança a bandeira da resistência: “Nenhum direito a menos”. >>> https://bit.ly/2w4yxn6

Por sua vez, o jornalista Leonardo Sakamoto escreve em seu blog no UOL duras e justas críticas ao governo Bolsonaro: “Ao atacar quem está indo às ruas pedir educação de qualidade, interdita o debate sobre a construção do futuro e põe a democracia no pau de arara. Estudantes que resolvem refletir e se organizar pela melhoria da educação não são ‘idiotas’, nem ‘imbecis’. Pelo contrário, reside neles a esperança da criação de uma nova forma de fazer política – ao contrário dos simulacros toscos que se chamam de “novo” mas cheiram a anacronismo. Burrice é atacar esses estudantes por medo da realidade mudar…”.

“A vida deu os muitos anos da estrutura
Do humano à procura do que Deus não respondeu.
Deu a história, a ciência, a arquitetura,
Deu a arte, deu a cura, e a Cultura pra quem leu.
Depois de tudo até chegar neste momento 
Me negar Conhecimento é me negar o que é meu.

Não venha agora fazer furo em meu futuro
Me trancar num quarto escuro
E fingir que me esqueceu!
Vocês vão ter que acostumar:

Ninguém tira o trono do estudar,
Ninguém é o dono do que a vida dá!
E nem me colocando numa jaula
Porque sala de aula essa jaula vai virar!

E tem que honrar e se orgulhar do trono mesmo!
E perder o sono mesmo pra lutar pelo o que é seu!
Que neste trono todo ser humano é rei,
Seja preto, branco, gay, rico, pobre, santo, ateu!
Pra ter escolha, tem que ter escola!
Ninguém quer esmola, e isso ninguém pode negar!
Nem a lei, nem estado, nem turista, nem palácio,
Nem artista, nem polícia militar!
Vocês vão ter que engolir e se entregar:
Ninguém tira o trono do estudar!”

Como professor do IFG, nos últimos anos pude vivenciar de dentro o que significam para o país os Institutos Federais, que atualmente constituem um patrimônio do povo brasileiro que merece ser defendido por todos os seus cidadãos conscientes de seu papel da salvaguarda dos bens comuns.

Para ilustrar o mérito dos IFs, vale lembrar que em 2016, ano em que findou prematuramente via golpeachment o governo de Dilma Rousseff, um fenômeno fascinante se explicitou através dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): caso os alunos dos IFs fossem considerados como porta-vozes da educação no Brasil, o país seria o 4º melhor do mundo na área (Saiba mais em The InterceptEl País).

“Na contramão do resultado geral obtido pelo País, que aponta pouca evolução nas áreas avaliadas ao longo dos anos, a pontuação das instituições federais de ensino no exame supera a média nacional e aproxima-se daquelas alcançadas por países desenvolvidos.

Cerca de 23 mil estudantes brasileiros, com idade entre 15 e 16 anos, das redes de ensino municipal, estadual, federal e privada participaram da avaliação, que contempla as áreas de matemática, ciências e leitura. As notas gerais alcançadas pelo Brasil, considerando-se a pontuação média das quatro redes de ensino, foram de 401 pontos em ciências; 407 pontos em leitura; e 377 pontos em matemática. Em todas elas, o país ficou abaixo da média geral Pisa, que foi de 493 em ciências, 493 em leitura e 490 em matemática. A análise dos resultados específicos da rede federal, no entanto, aponta um cenário diferenciado, que aproximaria o Brasil do topo do ranking: 517 pontos em ciências, 528 em leitura e 488 em matemática.

O desempenho positivo dos alunos da Rede Federal destaca-se, sobretudo desde 2009, na esteira da revitalização e expansão da Rede. Nesse ano, a média da nota dos alunos da Rede Federal atingiu 535 em leitura, principal área de concentração daquela edição. Com essa média, os alunos da Rede Federal teriam ocupado a 4ª posição no ranking, atrás apenas de Xangai (China), Coréia do Sul e Finlândia.

Para o coordenador de Formulação e Supervisão de Políticas para o Ensino Técnico do IFMG, Lucas Marinho, se, como se propõe, o Pisa fornece um importante parâmetro para avaliação e monitoramento da qualidade das políticas públicas em educação, esses resultados evidenciam que as escolas da Rede Federal, apesar da sua tão recente reestruturação e expansão, já despontam como o mais acertado esforço do Estado brasileiro para a promoção de uma educação de qualidade.

“E isso não por qualquer reforma especialmente complexa ou arrojada, mas por que veio constituindo-se até aqui, de acordo com algumas diretrizes óbvias que, infelizmente, têm sido sistematicamente ignoradas nas redes municipal e estadual de educação: investimento público suficiente para assegurar instalações adequadas; gestão autônoma e democrática; professores trabalhando, em sua maioria, em regime de dedicação exclusiva à mesma escola, bem remunerados e bem formados, numa carreira atrativa e bastante concorrida”, avalia Lucas.

Instituto Federal de Minas Gerais

É com arte e criatividade, corpos em aliança, solidariedade de existências, que caminhando e cantando entoaremos, como outrora, “afasta de mim esse cale-se!” e “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, como agora, “tira a mão do meu IF!”, “ninguém solta a mão de ninguém”, “nenhum direito a menos”!

Bem-vindos ao Tsunami da Educação. Em breve ele vai atravessar com suas ondas indomáveis muito mais do que timelines e grupos de Whatsapp. Pois as margens que comprimem este rio são muito violentas, e assim nossas águas conjuntas ao invés de lago se estão fazendo tsunami. Em sintonia com a crise climática do global heating e em compasso com Greta Thunberg e com os “Pinguins” Chilenos, na sabedoria que Bertolt Brecht já ensinava:

Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 17/5/19

SAIBA MAIS:

O RUGIDO DAS RUAS – Por Bob Fernandes

METEORO: A BALBÚRDIA COMEÇOU

PALAVRAS MUDAM O MUNDO? – Reflexões sobre a performatividade da linguagem e a transformação da realidade

PALAVRAS MUDAM O MUNDO?

Há certos mitos, poderosos e hegemônicos, que nos convidam a crer na Palavra como força criadora de uma nova realidade. Basta que nos lembremos do Gênesis bíblico, recentemente re-apresentado nos traços malandros de Robert Crumb:

Neste mito fundador das religiões monoteístas, afirma-se que Deus possuiria o dom de transformar suas falas em atos. Em suma: com Deus, é dito e feito. O cara abre a boca pra falar fiat lux, e no momento seguinte, eis a Luz surgindo pela primeira vez para iluminar a infindável treva cósmica.

Aquilo que atribui-se a deus – a potência de tornar meras palavras em autênticos atos – é aquilo que se conhece hoje, na boca de linguistas, filósofos e psicólogos, como performatividade. No âmbito humano, também são performativas as falas de um juiz que fala um veredito e bate um martelo ou as falas de um casal que diante do padre faz seus votos de matrimônio e assim acarreta a consumação de um pacto jurídico.

Mas voltemos um instante nossa atenção mais demorada ao Fiat Lux, fenômeno mítico-imaginário já ilustrado por vários pintores, como Gustave Doré. Segundo Debray, a performatividade (teorizada pelo filósofo da linguagem inglês J. L. Austin) tem este paradigma no faça-se a luz e nós costumamos transpô-lo para outras esferas da existência humana:

A CRIAÇÃO DA LUZ de Doré

“A divina aptidão para transformar um dizer em fazer: fiat lux, e a luz se fez… Enunciação = Criação. Já esquecemos, talvez, o Gênesis, mas o senso comum, no fundo, julga sempre que é Javé quando evoca não as trombetas que derrubam as muralhas de Jericó, mas os livros que ‘criam rupturas’, ‘as palavras que abalaram o mundo’, ‘as ideias que modificam a face das coisas’ etc.” (DEBRAY, 1995, p.20)

Poderíamos nos perguntar, é claro, que sentido isso tem de um Deus, antes de fazer a Humanidade, já falar latim… Mas este não é o momento de colocar dúvidas ímpias e sacrílegas, pois como nos ensinam papas e padres, diante de questões como “o que fazia Deus antes de inventar Adão e Eva?”, a resposta é: estava preparando o fogo da eterna condenação infernal para aqueles que põe questões heréticas assim. Portanto, deixemos de lado nossas cruciantes dúvidas sobre se Adão e Eva tinham umbigos, e voltemos ao fiat lux.

A dessemelhança entre o humano e o divino aí se torna explícita. Obviamente, e por sorte, nós humanos não somos nada como o Javé do Antigo Testamento. Nada do que dissermos será capaz de acender nosso cigarro caso não tenhamos à mão um fósforo ou isqueiro. Nem tentem, na ausência de algum apetrecho gerador de fogo concreto, apelar para um fiat lux meramente labial, pois vocês ficarão no escuro e com o baseado sem queimar. E aí não tem graça…

 

II. LIVROS MUDAM PESSOAS?

No entanto, ouvimos por aí, da boca de Quintanas e outros poetas, que os livros, apesar de não mudarem o mundo, mudam as pessoas, e estas sim transformam o mundo. Donde, indiretamente, de modo enviesado, por misteriosas e múltiplas influências, o Verbo teria sim um poder sobre a Carne.

É o que Régis Debray chama de “o mistério performático”, ou seja, a capacidade da palavra gerar efeitos no mundo. O enigma da palavra-ação, do Verbo-fecundo, da linguagem que causa efeitos no mundo:

“O fato de que uma representação do mundo possa modificar o estado do mundo – e não somente sua percepção, considerada como natural – terá de ser encarada como um enigma”, escreve Debray. Ele enumera alguns exemplos “evidentes” do mistério performativo:

“Que a palavra de Jesus de Nazaré tenha conseguido, em certo ponto de seu percurso, transformar o Império Romano e dar origem à cristandade; que a pregação do Papa Urbano II, em Clermont – lançando nas estradas bandos de peregrinos e depois exércitos inteiros – tenha conseguido fazer surgir a primeira Cruzada; que o Manifesto Comunista tenha conseguido fazer surgir um ‘sistema comunista’…” (DEBRAY, op cit, p. 20)

Façamos uma reflexão sobre “the power of words” (os “os poderes da palavra”, na expressão de Edgar Allan Poe). Este poderio de transformação que a palavra carrega entre suas potencialidades também se manifesta nas ciências humanas, em várias de suas especialidades.

Como lembra Debray, “a eficácia dos signos, a respeito desse mamífero simbólico que é o Homo sapiens e loquens, tem sido amplamente abordada. A partir do exemplo das recitações do xamã diante da parturiente de sua tribo, a antropologia nos mostrou como ‘a passagem à expressão verbal desbloqueia o processo fisiológico’ (Lévi-Strauss). O psicanalista confirma em seus clientes as virtudes da talking-cure (Freud). O sociólogo da cultura coloca em evidência a violência simbólica exercida pelos dominadores (Bourdieu)…” (DEBRAY, op cit, p. 19)

Também ouvimos falar de “livros que fazem a Lei”. Também não faltam exemplos de execuções capitais que retiram sua legitimidade de códigos jurídicos (quantas leis de pena-de-morte ainda não estão por ser revogadas?). Não faltam homicidas, terroristas, suicide bombers, serial killers, que deixem de invocar justificações verbais para seus atos, dizendo-se inspirados pelas palavras da Bíblia, do Alcorão, do Mein Kempf ou de um discurso de Stálin.

A revolução que Régis Debray propõe para as ciências humanas está na fundação de uma nova ciência, a midiologia, que busca compreender a eficácia dos signos, o poder das palavras, a disseminação social das mensagens, o poder de contágio e mobilização do verbo. Nos seus Manifestos Midialógicos, Debray propõe que o midiólogo está interessado em “defender o direito do texto – surgido de experiências e necessidades estranhas à ordem das palavras – a produzir algo diferente do texto”:

“Já que os homens, após a invenção da escrita, têm feito uma mistura entre a informação simbólica e a decisão política, entre batalhas de interpretação e batalhas sem mais (como na querela das imagens, as guerras de religião ou as insurreições nacionalitárias), com verdadeiros mortos e verdadeiras armas, o midiólogo gostaria de acompanhar de perto os avatares extralógicos do lógos. Já que um dizer, em determinadas condições, pode produzir um fazer, ou um mandar fazer…” (DEBRAY, p. 90)

Sabe-se que o poder de sugestão, ou seja, capacidade não só de comover mas de mover à ação, de discursos feitos púlpitos ou tribunas, pronunciados diante de um exército ou de uma multidão rebelada, é capaz de fazer da retórica, da eloquência, da poesia, da cantoria, da palavra-de-ordem, uma força concreta, objetiva, um poder psico-físico que gera transformações no mundo.

Para que a Bastilha fosse tomada, em Paris, em 14 de Julho de 1789, as palavras tiveram seu papel, não há dúvida; porém a eficácia concreta destas palavras não pode ser compreendida apenas pela força imanente a elas, pelas ideias que veicula, pelos conceitos que mobiliza. É preciso compreender o veículo que transmite estas palavras, a mídia através da qual ela viaja.

É preciso perguntar, por exemplo: é o deus Hermes, aquele das sandálias aladas, ou um trem a vapor que leva um certo recado de seu emissor a seu destinatário? Esta mensagem, de coração a coração, vai numa carta manuscrita levada pelos ares por um pombo-correiro, ou então consiste em caracteres digitais transmitidos pela Internet de PC a PC? O suporte material da palavra tem importância crucial em sua eficácia.

III. A INVENÇÃO DA MIDIALOGIA

Entre o fiat lux do mito judaico-cristão e nosso atual estado civilizacional, muitas revoluções aconteceram pelo caminho, dentre elas a invenção da imprensa, ou seja, dos meios tecnológicos e científicos de levar o verbo aonde ele nunca antes estivera. As novas mídias nascidas da Revolução Gutenberguiana alçam a linguagem verbal para novos vôos de poder.

Agora o Verbo é mais “viralizável” (e muito antes desta viralização se tornam uma palavra que é moeda corrente na era digital). Com a imprensa, se podia fazer usos mais extremos do Verbo como ferramenta de mobilização, disseminá-lo pelo tecido social de maneira inaudita e inédita, enterrando a era do manuscrito, descortinando horizontes midiáticos novos.

“A técnica de Gutenberg devia transtornar, se não as modalidades de leitura, pelo menos o estatuto simbólico e o alcance social do documento escrito através da alfabetização de massa. Por exemplo, a análise do movimento das ideias na França do século XVIII, interessante para a midiologia, há de privilegiar esses espaços-chave, pólos de atração social e centros de elaboração intelectual, como foram os clubes, salões, cenáculos, lojas, câmaras de leitura, sociedades literárias, círculos, sem falar das academias e instituições mais regulares.

Sob este ponto de vista, as Luzes não são um corpo de doutrinas, um conjunto de discursos ou princípios que poderiam ser apreendidos e restituídos por uma análise de texto, mas uma mudança no sistema de fabricação ; circulação / estocagem dos signos. Ou seja, o aparecimento de núcleos e redes de sociabilidade, interfaces portadoras de rituais e de novos exercícios, valendo como meios de produção de opinião… Trata-se de uma reorganização (…) do espírito público. Não foram as ideias ou as temáticas das Luzes que determinaram a Revolução Francesa, mas essa logística (sem a qual tais ideias nunca teriam tomado corpo.” (DEBRAY, p. 24 e 31)

Paul CeŽzanne (French, 1839 – 1906 ), The Artist’s Father, Reading “L’ƒvŽnement”, 1866, oil on canvas.

Encontramos uma reflexão sociológica inovadora sobre estes temas na obra de Gabriel de Tarde, A Opinião e As Massas, que também reflete sobre a Revolução Francesa chamando a atenção para este elemento fundamental para sua compreensão plena: a prévia invenção da imprensa e, por consequência, o advento do jornalismo público; o nascimento conexo, no seio da sociedade, daqueles agrupamentos de pessoas que são bem diferentes das meras multidões: vem ao palco da história “o respeitável público”, a quem a imprensa se dirige querendo estabelecer uma conversa entre cidadãos.

“O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvolvimento da invenção da imprensa, no século XVI. O transporte da força à distância não é nada, comparado a esse transporte do pensamento a distância. O pensamento não é a força social por excelência? Pensamos nas idéias-força de Fouillé…

Da Revolução Francesa data o verdadeiro advento do jornalismo e, por conseguinte, do público, de que ela foi a febre de crescimento. Não que a Revolução também não tenha suscitado multidões, mas nisso não há nada que a distinga das guerras civis do passado… Uma multidão não poderia aumentar além de um certo grau, estabelecido pelos limites da voz e do olhar, sem logo fracionar-se ou sem tornar-se incapaz de uma ação de conjunto, sempre a mesma, aliás: barricadas, pilhagens de palácios, massacres, demolições, incêndios. (…) Contudo, o que caracteriza 1789, o que o passado jamais havia visto, é esse pulular de jornais, avidamente devorados, que eclodem na época.” (TARDE, p. 12)

Polemizando com a obra de Gustave Le Bon, inovadora no campo da psicologia das massas, Gabriel de Tarde contesta que o período histórico da passagem do século XIX ao XX seja “a era das multidões” e propõem chamá-lo de “a era dos públicos”.

“Não é que as multidões foram aposentadas, pararam de existir, muito pelo contrário, perseguem visivelmente presentes em vários espaços sociais, como uma espécie de re-presentificação perene de uma força de sociabilidade primitiva, ancestral, antiquíssima, mas ainda atuante. A multidão acompanha a história deste animal social que somos, mas está vinculada a um estado mais próximo da natureza, ainda pouco transformada pelo engenho humano, do que da civilização tecnológica-científica-industrial de hoje: “a multidão está submetida às forças da natureza – um raio de sol a reúne, uma tempestade a dissipa…” (TARDE, op cit, p. 15)

Dizer que entramos na “era dos públicos” significa dizer que agora lidamos com a potência social, performativa, das mensagens transmitidas por publicistas com diferentes poderes midiáticos, ou seja, capacidades diversas de eficácia performativa. O público de um zine anarco-punk pode até constituir-se em pequena multidão e manifestar-se em ato, por exemplo, através de meia dúzia de molotovs lançados contras as vidraças de agências bancárias ou lojas de carros importados.

Era Primeiro de Abril, 1964, uma quarta-feira, e o jornal carioca O Globo dava boas vindas à ditadura militar no Brasil.

Porém a capacidade de mobilização deste micro-empreendimento midiático, quer circule em 100 cópias xerocadas, quer seja entregue em 1.000 caixas de e-mail, torna-se miúda diante do público de um jornal televisivo ou impresso que atinge diariamente dezenas de milhões de pessoas e que pode, tal qual a Rede Globo no Brasil, ser peça-chave de um golpe de Estado (como fez em 1964), da determinação de uma eleição para a presidência (como fez em 1989 no duelo entre Collor e Lula, em que tomou o partido de seu queridinho “Caçador de Marajás”), da convocação de mega-manifestações de rua (como fez durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, 2015-2016, em que foi determinante para chamar multidões a manifestarem-se em prol do impeachment).

O poderio das empresas privadas que dedicam-se à comunicação social é uma das características mais notáveis da sociedade atual: no século XXI, muitas mega-corporações transnacionais realizam uma pervasiva ação sobre inúmeros públicos, controlando simultaneamente cadeias de TV, estações de rádio, editoras de livros, jornais e revistas impressos, além de websites e portais cibernéticos. Constituem oligopólios de tal poderio que tornam difíceis até mesmo de serem punidos aquilo que Tarde, ainda no início do século XX, chamava de “delitos de imprensa” e que já percebia como gozando de altos privilégios de impunidade:

“Eis porque é tão difícil fazer uma boa lei sobre a imprensa. É como se houvessem querido regulamentar a soberania do Grande Rei ou de Napoleão. Os delitos de imprensa são quase tão impuníveis como eram os delitos de tribuna na Antiguidade e os delitos de púlpito na Idade Média.” (TARDE, p. 22)

IV. O CASO “DEAR WHITE PEOPLE”

Um seriado de TV pode ser reduzido a uma mercadoria no mercado de bens simbólicos, a um mero item no supermercado dos entretenimentos audiovisuais? É o que torna-se cada vez mais insustentável diante de obras-primas da teledramaturgia em série como Black Mirror, A Sete Palmos (Six Feet Under), Breaking Bad, Handmaid’s Tale, Alias Grace e Dear White People.

Esta última, série original Netflix baseada em um filme homônimo dirigido por Justin Simien, tem interesse não só pela crônica inteligente que faz das relações humanas em um câmpus universitário da Ivy League, a Winchester. A série, de roteiro espertíssimo e montagem dinâmica, foca nas relações inter-raciais e no debate sobre o que constitui racismo – e quais as maneiras de enfrentá-lo.

Para além da multifacetada discussão sobre racismo, capaz de gerar acalorados debates, Dear White People é interessante e importante também como comentário sobre o poder da mídia e do jornalismo na transformação de certos contextos sócio-culturais.

Dois dos personagens principais, a radialista e cineasta Samantha White e o jornalista investigativo e escritor Lionel Higgins, buscam renovar as práticas midiáticas em seus respectivos campos de atuação.

A série, em sua primeira temporada, levantou muitas questões importantes em uma era caracterizada por muitos como dominada por um jornalismo abandonado à noção pouquíssimo ética da “pós-verdade”.

Sam White crê em uma mídia que toma partido, quer fazer no rádio uma provocação à reflexão que as autoridades universitárias e políticas logo irão querer estigmatizar como se fosse incitação à rebelião.

De fato, esta deliciosa e deslumbrante personagem que se dirige à Cara Gente Branca para denunciar microfascismos e racismos escondidos no cotidiano parece ter no sangue um pouco do espírito de Angela Davis. Seu programa de rádio é um pouco panfletário e incendiário, procura pôr a palavra falada (o rap radiofônico) para agir na base de uma diária intervenção pública de um verbo irreverente e rebelde, capaz de desembocar em riots, sit-ins, protestos.

Sam White é o tipo de âncora midiático que subverte todos os padrões tradicionais – como fez Antonio Abujamra na TV brasileira com seu programa de entrevistas Provocações. O tipo de ser-falante que evoca o exemplo de Jello Biafra, o vocalista dos Dead Kennedys, cujos discursos, transpostos para CDs de spoken word, também contêm frases que são autênticas incitações a cessar de odiar a mídia para tornar-se a mídia. Exatamente como fez o personagem de Christian Slater em Pump Up The Volume (1990), interessante obra do cineasta do Québec Allan Moyle.

A temporada de Dear White People termina com um ato de puro “heroísmo jornalístico” de Lionel. Ele é uma figura que trabalha no jornal The Winchester Independent. Ele descobre, através de suas investigações de repórter que não tem pudor de meter a fuça onde não é chamado, que a “independência” de que o órgão se gaba em seu nome não é autêntica. Ele descobre que as fontes financiadoras do jornal determinam a censura a certos temas, transformados em tabu. Os tabus são justamente aquilo que Lionel afronta, tomando o microfone e programando um flooding dos celulares e computadores de todos com o seu furo (scoop).

Cara Gente Branca possui um tecido narrativo todo atravessado por táticas de resistência típicas da cibercultura, como os procedimentos de hacking propostos por grupos como Anonymous ou de leaking tal como praticado pelo Wikileaks de Julian Assange.

Na série, a revolta dos estudantes afro-americanos, em especial os residentes de Armstrong-Parker, é vinculada com o fato de serem público do programa de rádio de Sam White e das colunas de Lionel no Independent. Esta comunidade, incendiada pela mídia, vê-se na necessidade de mobilizar-se em repúdio e revolta contra a festa “Dear Black People”, em que os branquelos racistas e supremacistas do câmpus pintam os rostos de negro como nos Minstrels Shows, para fazerem folias com processos altamente KKK de “denegrimento” do outro…

Porém, descobre-se que a própria Sam White hackeou uma conta de Facebook de seus adversários, entocados da revista supremacista-racista Pastiche. Sam White acabou convidando para a infame festa racista uma pá de gente que ali se revoltaria contra as práticas dos atuais propagadores da ideologia da Klu Klux Klan (hoje infelizmente re-empoderada por presidentes da república como Trump e Bolsonaro).

Sam White quis expor uma realidade, quis que debaixo dos holofotes de todos, para que fosse plenamente reconhecido: temos sim um problema de racismo e de supremacismo étnico nesta prestigiosa instituição educacional destinada a formar uma parte da elite cultural estadunidense do amanhã. Sam White, força performativa. Uma mulher negra empoderada que varre pra escanteio o fiat lux do MachoDeus para apostar em sua própria infinita potência feminina para produzir a luz. E o incêndio.

James Baldwin, recentemente retratado no excelente documentário de Raoul Peck I Am Not Your Negro, costumava dizer: “Not everything that is faced can be changed, but nothing can be changed until it is faced.” Este pensamento fecundo de James Baldwin, na série, inspira não só Samantha White e Lionel, os “heróis midiáticos” de Dear White People, mas sugere também algo para quem quer refutar a noção de que as palavras não mudam o mundo.

Precisamos de palavras para encarar a verdade do mundo e para estruturar nosso pensamento e nossa comunicação; se o Verbo não pode tudo, o que é verdade e deve ser reconhecido, isto não implica que não possa Nada. Na verdade, não há revolucionário que tenha desprezado a potência misteriosa das palavras que comovem e que o mundo mudam. The Word works in mysterious ways…

V. JUDITH BUTLER – UMA TEORIA EXPANDIDA DA PERFORMATIVIDADE

Em breve…

 

BIBLIOGRAFIA

DEBRAY, Régis. Manifestos Midiológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

TARDE, Gabriel. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CRUMB, Robert. Gênesis. Graphic Novel.

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, Fevereiro de 2019

POR UMA ÉTICA DA DESPOSSESSÃO DE SI – Sobre Judith Butler e seu “Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética” (Editora Autêntica, 2015, 200 pgs)

judithbutler2013

POR UMA ÉTICA DA DESPOSSESSÃO DE SI

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Não é à toa que “identidade” e “idêntico” são palavras tão semelhantes. O sujeito dotado de identidade é aquele que, supostamente, permanece idêntico a si mesmo. Flui através do tempo conservando intacta sua identidade, como uma espécie de diamante que a ferrugem nunca corrói. Assim como os anjos da mitologia não envelhecem com o devir, nem nunca se ouviu falar de querubins com mal de Alzheimer, as identidades seriam entes angelicais, intocáveis pelo poderio tão vasto e profundo do Tempo-Rio, velha criança que corre sem cessar no frescor de sua juventude infatigável.

Os documentos de identidade que nos servem como números identificatórios no seio da comunidade civil também pretendem ser imutáveis: não conheço quem tenha mudado de RG ou CPF, ainda que já esteja na décima solicitação de uma segunda via… Tanto a linguagem consolidada, quanto as instituições políticas, parecem exigir de cada pessoa que seja um eu dotado de identidade fixa, sólida, como se algo em mim, algo em ti, sobrevivesse do berço ao túmulo. Como se algo de indestrutível unisse o bebê ao ancião – a mesma identidade diamantina que os ventos do tempo jamais são capazes de abalar.

Há nessa crença no si que não muda algo de falacioso, de ilusório, algo que os filósofos materialistas, pela História afora, não cessam de denunciar nos seus adversários, os idealistas. A filosofia materialista, com a epistemologia e a ética que lhe são consubstanciais, anunciam um outro tipo de si, jamais idêntico a si mesmo, jamais mônada isolada de outros sis, mas sim um si inerentemente em fluxo, necessariamente envolvido numa teia relacional. Um si inseparável do social e que só pode ser compreendido em suas interações com outros sis, jamais como individualidade estanque e separável, jamais como entidade idêntica-a-si-mesma. O materialismo convida a pensar no eu-identidade como uma quimera invivível, como o sonho alucinante de uma identidade perpetuamente perdurável.

A ética, inseparável do que Foucault chamará de um cuidado de si, um cultivo de si mesmo, pode até soar como empreendimento um tanto individualista, compreendida como os trabalhos que um alguém realiza sobre si mesmo, tendo em vista e como meta o próprio aperfeiçoamento. Mas é evidente que este trabalho sobre si da ética é impossível para o eu isolado e desconectado – o espaço da ética é sempre o de entre-outros. Mas já que ninguém escolhe nascer, e cada um pinta no mundo em circunstâncias que independem de sua vontade, sendo lançado a uma situação que formou-se a partir de uma imensa cadeia de causas precedentes, este surgimento-de-si jamais é um fenômeno plenamente compreensível. Os atos mais básicos do viver, sua gênesis e seu aniquilamento, o nascer e o morrer, são imensas portas abertas para um mistério sem fim. Ninguém compreendeu jamais a contento porque nascemos e morremos, nem tudo o que aconteceu antes de acontecermos e ainda acontecerá depois de termos acontecido.

A filosofia, em sua criticidade da faculdade de conhecer, chegou sim à noção do incognoscível, do impossível de conhecer, como a coisa-em-si de Kant. Segundo o autor da Crítica da Razão Pura, era absurda qualquer pretensão de saber a verdade absoluta sobre Deus, a alma imortal ou a liberdade da vontade. Estas são coisas de que não temos experiência empírica e que são objeto mais da fé do que da razão.

O que estou buscando comunicar aqui é a noção de que também o auto-conhecimento envolve uma dimensão de inconhecível, isto é, jamais alguém conhece-se plenamente e perfeitamente. Está redondamente enganado qualquer um que diga, com presunção hiperbólica sobre seus próprios poderes de auto-compreensão: “eu conheço-me perfeitamente bem!” Mesmo que fosse possível que alguém algum dia chegasse a exercer tão bem a arte do conhece-te a ti mesmo, aquela que o velho Sócrates já vinculava tão intimamente à prática da sabedoria (sophia), este sujeito escorregaria na banana da ambição desmedida e cairia de bunda no chão das ilusões nocivas se dissesse: “hoje, atingi o perfeito auto-conhecimento! Mesmo que eu viva mais 40 anos, e mesmo que jamais volte a praticar a auto-inspecção lúcida, não hei de perder jamais este conhecimento-de-mim que hoje possuo!”

Partir da pressuposição, plausível, de que não há identidades fixas e imutáveis, nem auto-conhecimento que possa chegar a um ponto-final, não significa abandonar-se a um ceticismo infértil de quem dissesse: já que não é possível tudo saber, contento-me em não saber nada. Há muito a ser sabido, ainda que nunca cheguemos ao saber-tudo. Saber-tudo com plenitude completa é uma quimera de filósofos que, ao idolatrar tão perigoso ídolo, às vezes fazem como Tales de Mileto, de quem caçoava a trabalhadora ao vê-lo despencar de fuça no poço pois, ao invés de mirar o chão debaixo do nariz, admirava sem fim as estrelas… Ponhamos nossos pés no chão e lidemos com o fato de que cada um de nós nasceu sem ter pedido, sem ter sido consultado sobre as circunstâncias específicas em que veio-a-ser: somos lançados a um turbilhão que não é de nossa escolha, e todas as nossas escolhas serão determinadas por este evento colossal do nosso surgimento e que nenhum cérebro humano é capaz de compreender em sua inteireza.

Afinal, “nascer é muito comprido”, como dirá o poeta Murilo Mendes, sugerindo que a na vida estamos sempre nascendo e que nunca já estamos nascidos e pronto. Nascemos para a velhice e nascemos para a agonia, assim como nascemos antes para a juventude e para a luz do dia após meses de caverna uterina. Nascer, pois, nunca é missão cumprida. E convêm continuar nascendo até mesmo na hora de findar, pois o fim é só um outro começo na grande sinfonia cósmica. Lucrécio, no poema mais belo já escrito por um pensador materialista, terá muito a dizer sobre a sobrevida dos átomos, eles sim imortais e indestrutíveis, quando a vida abandona um dos entes atômicos, agregados materiais, destes que nós  provisoriamente somos. Os átomos entretecidos para constituir tudo que é vivo não são passíveis de destruição: a eternidade em dança da matéria contrasta com a efemeridade destes agregados de partículas imortais que por enquanto estamos sendo, e que no passado outros estiveram sendo, até que não foram mais, e que futuramente muitos serão, até que não mais sejam.

No seio desta impermanência onde estamos sendo, ética é o nome para o trabalho de um certo impulso criativo que pulsa em nós, mais ou menos conscientes que somos de que o eu não é uma sina, um fardo, algo imposto a nós de fora de uma vez por todas, mas também algo do quê podemos ser os co-criadores. Jamais sós, porém, mas sempre no espaço do entre-outros, do among others, pois uma ética cega à alteridade é muito pior que uma toupeira.

Aqueles que enxergam apenas a negatividade da ética – ou seja, acham que este troço escroto de ética e moral só servem mesmo para cagar-regra e ficar condenando comportamentos… – perdem de vista a perspectiva de que a ética possa ser a própria vida no exercício de uma criatividade que se dá em conjunto, no concerto e desconcerto dos contatos com outros.

Uma das grandes questões que surge é, então, quais os limites desta criatividade? Por que tantas pessoas aceitam ser tão pouco, criar tão pouco, ousar tão pouco? Por que tanta gente enxerga o si como uma jaula, e não como um ateliê de pintura, de escultura, de criação e recriação? Por que tantas pessoas resignam-se a fixar-se numa postura de estátuas, quando a vida nos quer bailarinas de gelo, a dançar até o derretimento, dissolvendo-se pelo palco da galáxia?

A leitura das obras de Judith Butler e Michel Foucault, acredito, podem contribuir para que pensemos em uma ética da despossessão de si, o que de modo algum quer dizer alguma espécie de displicência consigo, mas sim uma ética que funda-se na incapacidade em que estamos todos, eu e ti, quem quer que sejamos, de realmente sermos os possuidores de um eu da mesma maneira que alguém possui um colar de diamantes. É afirmar o óbvio ululante dizer que o eu não tem nada a ver com um colar de diamantes, e muito mais certeiro na metáfora foi o velho Heráclito quando em sua inesquecível parábola ensinou: “não se entra duas vezes no mesmo rio”. No rio do tempo, você não é mais o mesmo que um segundo atrás; e daqui dez anos, será que o teu eu será idêntico a este que agora aqui está?

Falar em rio do tempo, porém, não deve nos fazer cair num naturalismo que exclui a história do quadro: o ser humano é fluxo, sim, e o rio que nos arrasta em suas águas precisa ser compreendido sim como natureza necessária e inescapável. Porém fluímos também pelo rio da História, é em determinado espaço-tempo que calhamos de “pintar”, e isto também determina de modo radical o nosso leque de possibilidades existenciais.

Os heróis homéricos não tinham a chance de praticarem proezas bélicas enquanto aviadores ou pilotos de helicópteros, nem as legiões de César tinham à sua disposição metralhadoras e granadas, de modo que as limitações tecnológicas destas épocas determina também a natureza de suas épicas e de suas éticas. A figura do herói muda consideravelmente no tempo que vai, digamos, de Ulisses a Luke Skywalker. Portanto a ética nunca é a-histórica, os valores nunca são eternos e fora-do-tempo, sempre nasce-se em uma situação que tratará de impor certos limites e normas vigentes ali e então (ainda que possam ser transcendidos e subvertidos).

Em um texto chamado “O que é crítica? Um ensaio sobre a virtude em Foucault”, Judith Butler (2015, p. 29) comenta que “a realização ética de si mesmo em Foucault não é uma criação radical do si-mesmo ex nihilo”, ou seja, ninguém cria-se do nada, ninguém pratica a ética no vácuo:

“Esse trabalho sobre si mesmo acontece no contexto de um conjunto de normais que precede e excede o sujeito. Investidas de poder e obstinação, essas normas estabelecem os limites do que será considerado uma formação inteligível do sujeito dentro de determinado esquema histórico de coisas. Não há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação (assujettisement) e, portanto, não há criação de si fora das normas que orquestram as formas possíveis que o sujeito deve assumir. A prática da crítica, então, expõe os limites do esquema histórico das coisas, o horizonte epistemológico e ontológico dentro do qual os sujeitos podem surgir. Criar-se de tal modo a expor esses limites é precisamente se envolver numa estética do si-mesmo que mantém uma relação crítica com as normas existentes…

Na introdução de O Uso dos Prazeres (História da Sexualidade – Volume II ), Foucault especifica essa prática da estilização de si mesmo em relação às normais quando deixa claro que a conduta moral não é uma questão de se conformar às prescrições estabelecidas por determinado código, tampouco de interiorizar uma proibição ou interdição primárias. (…) Para Foucault, tanto como para Nietzsche, a moral reorganiza um impulso criativo. Para Foucault, a moral é inventiva, requer inventividade, e além disso tem um custo. No entanto, o si-mesmo engendrado pela moral não é concebido como agente psíquico de autocensura. Desde o princípio, a relação que o eu vai assumir consigo mesmo, como vai se engendrar em resposta a uma injunção, como vai se formar e que trabalho vai realizar sobre si mesmo – tudo isso é um desafio, quiçá uma pergunta em aberto. A injunção força o ato de criar a si mesmo ou engendrar a si mesmo, ou seja, ela não age de maneira unilateral ou determinística sobre o sujeito. Ela prepara o ambiente para a autocriação do sujeito, que sempre acontece em relação a um conjunto de normas impostas. A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido.

Se nessa luta a capacidade de ação, ou melhor, a liberdade, funciona de alguma maneira, é dentro de um campo facilitador e limitante de restrições. Essa ação ética não é totalmente determinada nem radicalmente livre. Esta luta com as condições não escolhidas da vida – uma ação – também é possível, paradoxalmente, graças à persistência dessa condição primária de falta de liberdade.” (BUTLER, Relatar a Si Mesmo, 2015, p. 29)

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Dar um relato de si mesmo é tarefa complexa justamente pois um ser humano não cabe num relatório, e ademais ninguém é bom juiz em causa própria. As dificuldades acumulam-se umas sobre as outras até formar uma montanha que nos obstaculiza a vista lúcida: como é possível a gente ser verdadeiro numa narrativa sobre nós mesmos se há tanto, afogado no passado, que já esquecemos, ou que nunca pudemos experimentar de fato? Quem é que pode relatar como foi sua experiência no útero da mãe, ou descrever o que sentiu após a gloriosa junção, microscópica mas repleta de consequências, de um espermatozóide com um óvulo? Muitas das experiências que constituem os nossos corpos estão para além de qualquer capacidade de “resgate” pelo nosso cérebro atual. Butler afirma que “a história deste corpo não é inteiramente narrável”, “o corpo tem uma história da qual não posso ter recordações” (p. 54):

“Não posso estar presente numa temporalidade que precede minha própria capacidade de autoreflexão, e qualquer história que eu possa dar sobre mim tem de levar em consideração essa incomensurabilidade constitutiva… Isso quer dizer que minha narrativa começa in media res, quando já aconteceram várias coisas que me fazem possível na linguagem e fazem possível minha história na linguagem. Eu sempre recupero, reconstruo e encarrego-me de ficcionalizar e fabular origens que não posso conhecer. (…) O relato que faço de mim mesma é parcial, assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva. Não posso explicar exatamente por que surgi dessa maneira, e meus esforços de reconstrução narrativa são sempre submetidos à revisão. Há algo em mim e de mim do qual não posso dar um relato. Mas isso quer dizer que, no sentido moral, eu não sou responsabilizada por aquilo que sou e faço? Se descubro que, apesar de meus melhores esforços, ainda resta certa opacidade e que não posso relatar a mim mesma totalmente para o outro, seria isso um fracasso ético? (…) Nessa afirmação de transparência parcial, existe a possibilidade  de reconhecer uma relacionalidade que me vincule à linguagem  e ao tu de maneira mais profunda do que antes?” (BUTLER, op cit, p. 56)

Se o mérito de um filósofo também decorre da profundidade das perguntas que ele é capaz de formular, considero que Judith Butler conseguiu passar com louvores no teste: ela coloca-nos questões assombrosas, daquelas capazes de deixar o sujeito insone e boquiaberto a refletir pelas madrugadas. De fato, quando perscrutamos demoradamente a questão do auto-conhecimento e do relato-de-si, trombamos com obstáculos intransponíveis, dificuldades epistemológicas, impossibilidades existenciais, todas decorrentes de estarmos embarcados no fluxo de um rio cujo princípio e fim não podemos enxergar.

Esta “cegueira” quanto à verdade sobre nós só pode ser parcialmente corrigida pelos avanços de nossa audaz auto-inspecção, porém jamais chegaríamos a bom termo nesta jornada caso abandonássemos a consideração das normas morais, dos paradigmas de comportamento, que estão dados em uma determinada época, formas de subjetivação que podem ser acatadas ou contestadas, aceitas ou resistidas, mas que de todo modo constituem-nos até mesmo quando vivemos para revolucioná-las. Donde a importância do procedimento genealógico, na ética, que Nietzsche não inaugurou, mas que levou a graus extremos e intensos de criticidade, e que figuras como Michel Foucault e Gilles Deleuze / Félix Guattári irão continuar, re-trabalhando o legado da Genealogia da Moral, de Além de Bem e Mal, de Assim Falava Zaratustra etc.

O espírito livre de que Nietzsche tanto falava, prenunciado pelas figuras dionisíacas na tragédia grega, encarnado na figura trágico-lúdica de Zaratustra, é afinal alguém em quem ética e estética deram-se as mãos e que dançam uma ciranda criativa em que o Übermensch está no horizonte como uma espécie de estrela-guia. Síntese de criança, camelo e leão – ingenuidade acrítica mas criadora, conformismo aos fardos impostos pela civilização, ousadia libertária de contestação do que nos é exigido… – o espírito livre, dionisíaco e zaratustriano, não é crédulo do conhecimento de si, ou seja, não acredita jamais possuir por completo a verdade de si mesmo. A ética nietzschiana é muito mais a do perene esforço de auto-superação, inclusive dos limites do nosso auto-conhecimento, do nosso alter-conhecimento, do nosso mundo-conhecimento, e jamais de repouso na suposta resposta certa, verdadeira, imutável, possuível de uma vez para sempre.

É justamente a noção de uma identidade, imóvel, possuível, diamantina, que o pensamento de Judith Butler tanto esforça-se para pôr em crise. Ela quer refletir sobre a possibilidade de uma “ética baseada em nossa cegueira comum”, uma ética que passaria pelo “reconhecimento de que não somos, em casa ocasião, os mesmos que nos apresentamos no discurso”: “Para mim, suspender a exigência da identidade pessoal, ou, mais especificamente, da coerência completa, parece contrariar certa violência ética, que exige que manifestemos e sustentemos nossa identidade pessoal o tempo todo e requer que os outros façam o mesmo.” (p. 60)

Devemos reconhecer, com humildade, os limites do conhecimento no campo relacional: nunca te conheço nem nunca me conheces por completo, e isto faz o desafio e o charme dos encontros e das convivências. Não é a transparência perfeita, mas a opacidade parcial que constitui o campo minado e o palco iluminado para as aventurosas incursões do amor e da amizade. A philia e a sophia só se praticam em meio à borrasca desta viagem que fazemos pelo rio da vida neste bote tão frágil que é este corpo mortal. Butler sugere uma ética onde saibamos experimentar os limites de nosso mútuo saber: “isso pode constituir uma disposição tanto da humildade quanto da generosidade: terei de ser perdoado por aquilo que não posso conhecer totalmente e terei obrigação semelhante de perdoar os outros, que também são constituídos com uma opacidade parcial em relação a si mesmos.” (p. 61)

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“Se a identidade que dizemos ser não nos captura e marca imediatamente um excesso e uma opacidade que estão fora das categorias da identidade, qualquer esforço de fazer um relato de si mesmo terá de fracassar para que chegue perto de ser verdade. Quando pedimos para conhecer o outro, ou pedimos para que o outro diga, final ou definitivamente, quem é, é importante não esperar nunca uma resposta satisfatória. Quando não buscamos a satisfação e deixamos que a pergunta permaneça aberta e perdura, deixamos o outro viver, pois a vida pode ser entendida exatamente como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos dar.” (BUTLER, p. 61)

Para pôr em crise todos os sistemas que impõe rigidez identitária, Butler procede de modo bastante Heraclítico, mas destacando não apenas a fluência do sujeito em meio ao rio imparável dos eventos no tempo, mas também o fato de que não há sujeito que exista desvinculado da teia de alteridade: “sou invariavelmente transformada pelos encontros que vivencio; o reconhecimento se torna o processo pelo qual eu me torno outro diferente do que fui e assim deixo de ser capaz de retornar ao que eu era… O encontro com o outro realiza uma transformação do si-mesmo da qual não há retorno.” (p. 41) Assim, o que está em questão é uma ética da despossessão de si, em que o sujeito não acredita-se “dono” de uma identidade, mas aventureiro navegante da imprevisível e mutante ciranda do viver-com-outros. Pois viver é sempre conviver e fluir.

Talvez existam mesmo janelas de conexão entre o que diz Judith Butler e a ética em Paulo Freire, onde somos enxergados como seres inconclusos e conectíveis, onde a importância do diálogo está justamente num avançar contras as trevas de opacidade que tendem a nos deixar em situação de mútua estranheza e gélida solidão. Também Condorcet, um dos luminares da pedagogia iluminista na França revolucionária, falará na nossa condição humana como a de sujeitos perfectíveis, mas nunca perfeitos; e a educação ética seria justamente  destinado a nos fazer trilhar a estrada do aperfeiçoamento perene que jamais repousará na perfeição suprema. Nietzsche não está longe: é uma corda sobre o abismo que devemos atravessar, e não se sabe de ninguém que tenha conseguido atravessar como equilibrista a corda sobre o abismo ao estagnar na imobilidade.

Albert Einstein também dizia algo similar: viver é como andar de bicicleta e para não perder o equilíbrio é preciso estar sempre em movimento. O conviver, parece sugerir Butler, também é assim: é preciso dar-se permissão e permitir a outrem que estejam despossuídos de si, abertos assim à aventura de mudar, já que a mudança não nos impede de nos reconhecer, ainda que conheçamos os limites de nosso mútuo conhecimento. As metamorfoses ambulantes cantadas por Raul Seixas não podem nunca dormir na sensaboria, denunciada em “Medo da Chuva”, de acreditarem-se como pedras quando são rios. O psicólogo Reichiano brasileiro J.A. Gaiarsa falará muitas maravilhas sobre o tema, apelando em uma de suas obras-primas para a antinomia entre A Estátua e a Bailarina.

 Em seu posfácio à obra de Butler, Vladimir Safatle tenta sintetizar essa ética em que “minha opacidade em relação a mim mesmo é uma forma de abertura àquilo que, no outro, implica-me sem que eu possa controlar, abertura àquilo que,  no outro, desfaz minhas ilusões de autonomia e controle. (…) Com Butler o sujeito moral aparece claramente como aquele capaz de assumir uma heteronomia sem sujeição, como diz Jacques Derrida, de se impulsionar a uma processualidade contínua própria ao que não se estabiliza completamente em imagem alguma da vontade.” (SAFATLE, p. 195)

Despossuir-se é abrir-se à outridade, esta belíssima palavra cunhada por Octavio Paz. É uma ética do deixar-se tecer pelos encontros, o avesso do solipsismo e do individualismo do auto-encerramento, mas que têm no cerne da sua reflexão crítica a problematização do tema do reconhecimento, sua dificuldade, seus desafios, sua tão frequente catástrofe, manifesta na violência das crises de reconhecimento, da recusa de reconhecimento, da subjugação e humilhação do outro em práticas racistas, homofóbicas, xenofóbicas etc. Safatle, um dos que mais tem feito no Brasil para sublinhar a importância de Judith Butler no cenário global contemporâneo, diz que esta ética “permite a Butler operar como quem diz: dos travestis e queers aos palestinos apátridas e aos prisioneiros de Guantánamo – um só problema.” (p. 196)

O relato de si, se quiser fugir ao solipsismo de um quimérico indivíduo isolado, tem que tornar-se nada menos que uma inspecção da posição do sujeito na teia de relações na qual ele está necessariamente imbricado. Falar sobre si sem falar do meio social onde se vive, dos vínculos que se tem, dos intercâmbios materiais e simbólicos que se dão neste espaço entre-outros, não é falar sobre si verdadeiramente, mas forjar o equívoco enganador de uma mônada sem relação, algo que não existe senão na imaginação autista de alguns.

A própria presença em nós de uma linguagem, de uma capacidade de expressão e interlocução, já é sinal de nossa necessária sociabilidade, de nossa pertença a um espaço-tempo específico, e alguém que fosse privado do convívio com seus semelhantes, criado no isolamento completo, como o Kaspar Hauser cuja crônica cinematográfica impressionante foi realizada por Werner Herzog, emergeria desta experiência solitária com sérios handicaps, desprovido dos meios linguísticos de relatar a si mesmo e de, assim, perceber-se como partícipe de um network social que o envolve, que o condiciona e é por ele condicionado, que o determinada mas é por ele determinado etc.

“Quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse ‘si mesmo’ já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um teórico social.” (BUTLER, p. 18)

Quaisquer que sejam as circunstâncias em que realizamos um relato de si – em um diário, em um divã psicanalítico, em um tribunal… – o que sempre emerge dele é a dependência em que  a identidade mutável encontra-se dos outros; não há identidade definível em absoluta independência de sua imbricação numa particular teia de outridade. Essa intrínseca relacionalidade do sujeito é que torna todo relato de si também um problema ético-moral, ou seja, uma averiguação sobre os efeitos de nossos ditos e atos sobre os universos afetivos daqueles com os quais nos relacionamos: escrever um diário, narrar um nó emocional ao psicanalista, explicar ao júri no tribunal o que foi feito, é sempre mergulhar nas angustiosas questões relacionadas à responsabilidade pela felicidade e sofrimento de outrem que possam ter como causas, diretas ou mediadas, a ação às vezes semicega do sujeito que se move na inescapável matrix relacional.

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Para além das violências concretas, físicas, como infligir dor ao outro ao dar-lhe uma pancada com um toque de baseball, há aquilo que Butler chama de violência ética. Franz Kafka foi um gênio na descrição destas, como Butler sabe bem desvelar, e um conto como “O Veredito” serve como parábola para o poderio que uma violência ética pode desencadear: o protagonista Georg é condenado pelo próprio pai à morte por afogamento – “e Georg, como se movido pela força da declaração, sai correndo de casa e salta sobre o parapeito de uma ponte. É claro, a declaração de tem de apelar a uma psique disposta a satisfazer o desejo do pai de ver o filho morto… Georg deve assumir  a condenação como princípio de sua própria conduta e participar da vontade que o incita a se atirar para fora de casa.” (p. 66)

O que soa como absurdidade forjada pela imaginação pungente e atormentada de Kafka – autor que, como se sabe, revela todos os dilemas e neuroses de sua relação com a figura paterna em sua Carta ao Pai – parece ser mobilizada por Butler a fim de revelar um exemplo memorável de violência ética em que o sujeito Georg aparece como dependente e vulnerável ao extremo em relação à vontade do genitor. Espécie de deus encarnado – Deus-Pai nos céus, deus-papai na Terra? – o pai aparece aqui como entidade arbitrária e autoritária, mas que Georg não consegue contestar ou contra ela se rebelar; Georg assume a posição de obediência estrita que confunde-se com o masoquismo suicida.

Kafka é um mestre na pintura de sujeitos que estão como que amarrados, sem chance de libertação, na teia-de-aranha de uma matriz relacional insanizante – na qual a aranha acaba sempre por devorá-los como se não passassem de suculentas moscas ou baratas. Ler O Veredito junto com A Metamorfose é uma excelente porta-de-entrada para uma abordagem poética, metafórica e repleta de parábolas para a problemática disto que Butler chama “violência ética” e outros chamam de “violência (ou dominação) simbólica”.

No que diz respeito à psicanálise, Butler também problematiza a noção de que a cura do sujeito complexado ou neurótico possa se dar através da obtenção de uma perfeita compreensão de si, decorrente da confecção de uma narrativa coerente da própria vida. É verdade que a psicanálise, desde sua origem com Freud e Breuer, tem um forte elemento de terapêutica da verbalização, talking cure, que concebe como libertadora a prática de realizar um relato de si que ocasione uma espécie de “conquista”, por parte do consciente, deste vasto território incógnito e ameaçador do inconsciente. Há algo em Freud do racionalista que crê nos poderes redentores da razão compreensiva – algo, é bem verdade, que faz parte do legado iluminista e que, antes disso, era também forte em Spinoza (“não chorar, não rir, não lamentar, mas compreender”). Butler comenta, sempre problematizante:

“Dentro de alguns círculos, doutrinas e práticas psicanalíticas, um dos objetivos declarados da psicanálise é oferecer ao cliente a chance de formar uma história sobre si mesmo, de relembrar o passado, entrelaçar os eventos ou as vontades da infância com eventos posteriores, tentar dar sentido, por meios narrativos, à vida que passou, aos empasses encontrados vez ou outra e ao que ainda está por vir. Com efeito, argumenta-se que o objetivo normativo da psicanálise é permitir que o cliente conte uma história única e coerente sobre si mesmo, de modo a satisfazer a vontade de conhecer a si próprio, ou melhor, de conhecer a si próprio em parte por meio de uma reconstrução narrativa na qual as intervenções do analista ou terapeuta contribuem de diversas maneiras para recriar e retramar a história. Roy Schafer defender essa posição…

É claro, aprender a construir uma narrativa é prática crucial, principalmente quando pedaços descontinuados da experiência permanecem dissociados entre si em virtude de condições traumáticas. Minha intenção não é subestimar a importância do trabalho narrativo na reconstrução de uma vida que, de modo geral, sofre de fragmentação e descontinuidade. Não se deve subestimar o sofrimento que pertence às condições de dissociação. (…) No entanto, a conexão demasiada pode levar a formas extremos de isolamento paranoico. De todo modo, se uma vida necessita de alguma estrutura narrativa, não se pode deduzir que todas as vidas tenham de ser traduzidas de forma narrativa. Tal conclusão transformaria um requisito mínimo de estabilidade psíquica no objetivo primeiro do trabalho analítico.” (p. 72)

Tentarei traduzir o que Butler quis dizer: a noção de que narrar a própria vida é o todo da terapia parece algo suspeito de excessivo racionalismo, algo que Nietzsche acusaria de “socratismo”, calcado na noção de que o auto-conhecimento, aqui concebido como capacidade de forjar uma narração-de-si translúcida e coerente, é o que basta para a saúde psíquica. Sem subestimar a importância da narratividade, é preciso denunciar nesta perspectiva um certo excesso de verbalismo, uma concepção da saúde psíquica que tende a deixar o corpo um pouco nas sombras, como se fôssemos essencialmente entes verbais, e não corpos libidinosos e com ânsias corpóreas que estão para além da linguagem. Se fosse verdade que a narrativa de si é a panacéia psicoterapêutica, seríamos levados a concluir que beijos, abraços e orgasmos pouco ou nada tem a contribuir com a vida feliz do sujeito, o que é obviamente uma falácia. Nisto sou visceralmente Reichiano.

Para Wilhelm Reich, a terapia tem que ser intensamente corporal e relacional, não pode fechar-se no verbalismo. É perfeitamente plausível que um sujeito saiba realizar um relato de si racional e coerente, e no entanto permaneça profundamente neurótico pois apegado de modo excessivo à couraça de seu caráter. O que o sujeito são necessita não é somente narrar-se, mas encontrar uma teia de relações onde possa satisfazer-se emocional e sexualmente. Narrar-se numa vida desprovida de orgasmos, contar histórias coerentes sobre si mas não ter seu corpo beijado nem abraçado por ninguém, só pode ser um deserto e um pesadelo. No Brasil, acredito que Gaiarsa tenha sido um de nossos mais sábios pensadores da antinomia normal e patológico, e o interesse de sua obra consiste não só em sua apropriação criativa extremamente fértil do pensamento e das práticas de Reich, mas na sua capacidade de afirmar que os atuais paradigmas de normalidade é que são neuróticos (a “normopatia”), e que a sanidade está do lado daquelas práticas normalmente ditas “contra-culturais”, de liberação sexual, afetiva, corporal.

Não quero com isso subestimar a importância do domínio simbólico e reduzir-nos a corpos tarados, libidinosos, que só querem gozar. A obra de Butler fornece um mergulho profundo nos meandros da questão do reconhecimento, que é descrito, parece-me, como uma necessidade psíquica humana básica e muitas vezes insatisfeita. A nossa frequente incapacidade mútua para nos relacionarmos em regime de empático reconhecimento decorre também de causas sociais, de ideologias introjetadas, como aquelas que pretendem recusar o devido reconhecimento a outros a quem se atribui determinada raça ou etnia, determinada orientação sexual ou corporalidade desviante.

O racismo, a homofobia, a xenofobia, são as montanhas que obstaculizam o caminho do reconhecimento empático, mas também a noção de identidade como sujeito idêntico a si mesmo é uma trava grave em nossas relações. Como procurei mostrar, Butler aposta numa ética que seria mais saudável justamente por pôr em crise as identidades fixas, tidas por imutáveis; uma ética em que nos reconhecemos melhor justamente pois nos permitimos ser metamorfoses ambulantes. Uma ética que está para além da caretice estreita e limitante de um sujeito que só aceita relacionar-se com aqueles que considera seus iguais: por exemplo, o homem branco, heterossexual e de primeiro mundo que mantêm distância de todos os negros, homossexuais e terceiro-mundistas com medo de contaminar-se com uma outridade que considera tóxica ou inferior. Estes tipos de elitismo, isolacionismo, aristocratismo, merecem ser tratados como patologia, por mais “normais” que nos pareçam…

Ao invés de ir ao encontro do outro exigindo dele uma identidade fixa e claramente delimitada, uma orientação sexual precisa, uma etnia ou raça perfeitamente reconhecível, uma postura rapidamente catalogável no âmbito da normalidade, mais vale estar no mundo, entre outros, com uma atitude de abertura à diversidade humana e a todo o colorido das posturas queer. Como destaca Vladimir Safatle, “o termo ‘queer’ aparece no inglês do século XVI para designar o que é ‘estranho’, ‘excêntrico’, ‘peculiar’. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada como xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final dos anos 1980, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo da palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria endereçada e que procura excluir.

Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro momento das lutas por reconhecimento de minorias. Momento não mais centrado na defesa de alguma identidade particular aos homossexuais, mas na identificação de si com o que parece expulso do universo da reprodução ‘normal’ da vida. De onde se seguiu a produção do sintagma ‘Teoria Queer’, enunciado primeiramente pela feminista italiana Teresa de Lauretis em The Practice of Love: Lesbian Sexuality and Perverse Desire (Bloomington, Indiana, 1994).

Desta forma, Butler pode sintetizar uma crítica do capitalismo enquanto forma social baseada na organização a partir do princípio de identidade que anima a figura do indivíduo. Ela se baseará na possibilidade de constituição de relações intersubjetivas fundadas na desarticulação de um princípio de identidade definido como posse… Como se a afirmação da despossessão fosse estratégia maior para toda e qualquer crítica do capitalismo como forma de vida. E é na escuta da experiência sexual que aprendemos inicialmente a viver despossuídos.” (SAFATLE: p. 178)

Laerte

No Brasil, uma figura emblemática para estas discussões sobre gênero, sexualidade e identidade é certamente Laerte, que muito além do crossdressing ou do “travestismo”, parece ter embarcado em uma viagem existencial ousada e aventurosa em busca de viver e criar para além das imposições estreitas das fôrmas caretas de normalidade. A genialidade da arte Laertiana está no modo conciso, pedagógico, irônico, sagaz e crítico com que esta obra põe em questão a imposição social de padrões de conduta baseados na dominação masculina, heterossexual, branca – dominação esta que funciona como uma espécie de mega-máquina-de-moer-diversidade e que merece que mobilizemos contra ela toda a potência de nossa revolta criativa.

Em uma espécie de resenha em quadrinhos do livro “Judith Butler e a Teoria Queer”, de Sara Salih (Ed. Autêntica), Laerte oferece uma excelente introdução ao âmbito da queerdade e da ética e política a ela conexas. Já passou da hora de percebermos, na sociedade, a sabedoria convivencial que há na desconstrução da noção de identidades possuíveis e no aniquilamento de velhas e mofadas classificações sobre o normal e o patológico. A invenção de si, no espaço entre-outros em que estamos condenados à nossa liberdade, será tão mais sábia quanto mais despossuídos de preconceitos  e mais desagarrados de identidades fixas formos capazes de sermos. Se joga na relação, sem pré-concepção, e deixe o outro, como ti, ser metamorfose ambulante e sujeito transindividual em contínua reinvenção!

– Carli, Goiânia, 28/11/16

RESUMO DA ÓPERA – Por Laerte:

 

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LEIA TAMBÉM:

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Daniel Pereira

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JUDITH BUTLER – “Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética”
(Editora Autêntica, 2015, 200 pgs)
Tradução: Rogério Bettoni || Posfácio: Vladimir Safatle

SINOPSE VIA EDITORA AUTÊNTICA: “Butler nos mostra neste livro como é difícil relatar a si mesmo e como essa falta de autotransparência e narratividade é crucial para um entendimento ético do ser humano. Em um diálogo brilhante com Adorno, Lévinas, Foucault e outros pensadores, Butler nos oferece uma crítica do sujeito moral, argumentando que o sujeito ético transparente e racional é um construto impossível que busca negar a especificidade do que é ser humano. Só podemos nos conhecer de forma incompleta, e apenas em relação a um mundo social mais amplo que sempre nos precedeu e moldou de maneiras que não somos capazes de apreender inteiramente. Se somos opacos a nós mesmos, de que maneira o ato ético pode ser definido pela explicação que damos de nós? Um sistema ético que nos considera responsáveis por nosso pleno autoconhecimento e nossa consistência interna não nos inflige um tipo de violência ética, levando a uma cultura de autocensura e crueldade? Ao reformular a ética como um projeto em que ser ético significa tornar-se crítico das normas que nunca escolhemos, mas que guiam nossas ações, Butler ilumina o que significa para nós, criaturas falíveis, criar e compartilhar uma ética da vulnerabilidade, da humildade e da responsabilidade.”

ASSISTA:
CONFERÊNCIA MAGNA COM JUDITH BUTLER | I Seminário Queer
SESC Vila Mariana – SP | Setembro de 2015
(Legendas em PORTUGUÊS, INGLÊS e ESPANHOL)

 

“FILÓSOFAS – A PRESENÇA DAS MULHERES NA FILOSOFIA” – Juliana Pacheco (Org.) – Ed. Fi, 2016: Baixe o ebook ou compre o livro

filosofas“FILÓSOFAS – A PRESENÇA DAS MULHERES NA FILOSOFIA” – Juliana Pacheco (Org.) – Ed. Fi, 2016.
Baixe o ebook ou compre impresso em http://www.editorafi.org/filosofas.

Existiram filósofas? Existem filósofas? As mulheres participaram da história da filosofia? Estas são questões que ainda se mostram presentes dentro do campo filosófico, gerando surpresa e espanto – em certos casos resistência – quando alguma pensadora é mencionada. Portanto, o livro Filósofas: a presença das mulheres na filosofia busca evidenciar e mostrar a participação das mulheres na filosofia, desde a Idade Antiga até a Idade Contemporânea. Neste livro estão reunidos diversos textos, cada qual abordando uma respectiva filósofa. As leitoras e os leitores irão encontrar a vida, obra e pensamento de filósofas como: Hipátia, Aspásia, Safo de Lesbos, Hildegarda de Bingen, Olympe de Gouges, Lou Andreas-Salomé, Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Susan Sontag, Graciela Hierro, Angela Davis, Judith Butler e tantas outras.

ISBN: 978-85-5696-050-4
Nº de pág.: 395

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Desafios, dilemas e descaminhos da democracia representativa na obra de Luis Felipe Miguel (Ed. Unesp, 2013) – Por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro / Novembro de 2016

Para refletir profundamente sobre a democracia, seus descaminhos e dilemas, suas aspirações e esperanças, conheço poucas companhias melhores do que a do excelente pensador político brasileiro Luis Felipe Miguel. Neste livraço que é Democracia e Representação – Territórios em Disputa (Editora Unesp, 2013) ele revela o quanto a democracia é desafiadora, problemática:

“São ao menos quatro problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si”, afirma Luis Felipe Miguel: “(1) a separação entre governantes e governados, (2) a formação de uma elite política distanciada da massa, (3) a ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e, por fim, (4) no caso da representação de tipo eleitoral, a distância entre o momento em que se firmam os compromissos com os constituintes (a campanha eleitoral) e o momento do exercício do poder (o exercício do mandato).”  (MIGUEL, p. 15-17)

terra-em-transeUm exemplo da problematicidade do poder político e do difícil desafio de instaurar um regime autenticamente democrático está em Terra em Transe, o filme de Glauber Rocha, lançado em 1967, em que populismo e a demagogia do tirano elitista dá o que pensar sobre o problema (4) mencionado acima: “Como responderia o governador eleito às promessas do candidato?”, pergunta o personagem do poeta Paulo Martins.

Excelentemente destrinchado na obra do crítico de arte Ismail Xavier, Terra em Transe põe o espectador diante de um xadrez-do-poder que nos permite refletir sobre o quadrilátero problemático evocado por Miguel. Sabe-se que Glauber inspirou-se na figura de José Sarney, documentado pelo cineasta em Maranhão 66 ainda como jovem líder populista em ascensão, tomando posse como governador de seu Estado, para evocar em Terra em Transe um cenário de golpe de Estado, em que um líder elitista, Diaz, planeja governar apartado do povo, sem vínculo com a vontade dos representados.

A hierarquia política de Eldorado nada tem de democrática. O filme de Glauber é irremediavelmente um fruto da ditadura militar brasileira e busca criticá-la de modo mordaz. Emblemática é a cerimônia de coroação em que “os súditos do reino levantam suas espadas para saudar o novo monarca, todos vestidos como serviçais do Antigo Regime”, “condensando numa cena a estratégia alegórica de Glauber. Representa o chefe de Estado como um rei portador dos emblemas do poder absoluto (a coroa, o cetro, o manto).” (XAVIER, p. 68 de Alegorias do Subdesenvolvimento) 

Diaz, triunfante, em uma cena altamente alegórica e intensamente memorável, é descrito junto com os sustentáculos de seu poder: “o líder do golpe de estado desfila triunfante, em carro aberto, pela capital de Eldorado. Diaz (o branco europeu) chega às praias de Eldorado, acompanhado do conquistador ibérico e do padre, observado pelo índio, e junto a uma enorme cruz na praia celebra a primeira missa.” (op cit, p. 87)

Ou, trocando em miúdos, digamos que, diante de quaisquer de nossos representantes políticos podemos perguntar: qual o tamanho do abismo entre o que ele prometeu e o que ele irá entregar? Como evitar que a democracia degringole num circo das promessas ilusórias tão criticado sob o nome de demagogia?

No Brasil, atravessamos neste turbulento ano de 2016 mais uma fase crítica de exacerbação da crise de representação política. A noção de que o establishment político é corrupto até o osso, viciado até o tutano, que quase ninguém no Congresso Nacional nos representa, atingiu novos cumes com a recente onda de vômito cívico gorfado sobre Michel Temer e Eduardo Cunha, por exemplo. Mas manifesta-se explicitamente também nas urnas, no altíssimo índice de votos brancos e nulos nas eleições, no horror que tantos de nós sentimos diante da hegemonia parlamentar das Bancadas “BBBB” (Boi, Bala, Bíblia e Banco), a corja golpista e plutocrática que acaba de lançar a Democracia, estuprada, para escanteio. Não é piada, é verdade: no Brasil, tem muito candidato eleito que perdeu as eleições para um cabra chamado Ninguém… “Ninguém” é um dos políticos mais populares da pátria.

A catástrofe do sistema de representação política hoje vigente, a contestação deste status quo por parte da militância social (reformista ou revolucionária), está no zeitgeist brasileiro em doses talvez muito mais intensas do que as manifestações de descontentamento que por vezes afloram no Norte da América com algo como o Occupy Wall Street (2011) ou nos riots à la Ferguson que, para além da indignação justa contra a brutalidade policial e o racismo institucionalizado, também são revoltas contra o sistema político estabelecido (stablishment).

“No segundo turno das eleições presidenciais de 2010, no Brasil, 21,5% dos eleitores registrados se abstiveram, o maior índice desde a redemocratização do país. Dos votos contados, 6,7% foram em branco ou nulos. Somem-se a isso os mais de 2 milhões de pessoas em idade de votar que não se alistam (o registro é opcional para analfabetos e jovens entre 16 e 18 anos). No final das contas, quase 30% dos brasileiros em idade de votar desprezaram o direito de escolher a nova presidente da República.” (p. 99)

A crítica deste “sistema que não nos representa” é algo que não nasceu nas Jornadas de Junho de 2013 nem vai morrer com a Primavera Secundarista de 2016. É toda a problemática da “representação”, nas democracias, aquilo que Miguel permite-nos sondar, em profundidade, em sua obra. Debatendo com a obra de Hanna Pitkin (1967), ele mostra que a polissemia, a pluralidade de sentidos, do termo representar merece uma reflexão mais demorada:

“Fazer passar-se por outra pessoa é representar (a atriz representa sua personagem); defender os interesses de outra pessoa é representar. Um quadro de Van Gogh representa um vaso de girassóis, indicando-se aí uma relação de mímese com o objeto representado. Mas uma bandeira representa o país sem que se estabeleça qualquer continuidade desse tipo, por mera convenção. Acrescente-se uma última distinção com inegável repercussão nos debates políticos sobre a representação política: uma amostra aleatória de uma população é representativa, no sentido estatístico.” (p. 18)

POLISSEMIA DAS REPRESENTAÇÕES

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Van Gogh

Van Gogh “representa” um vaso de girassóis

“Lula, representante do povo brasileiro”

René Magritte, em um quadro irônico que foi recentemente reformulado em homenagem-escracho a Michel Temer, expõe numa imagem pedagógica um pouco da complexidade envolvida no conceito de representação. “Isto não é um cachimbo” (“Ceci n’est pas un pipe”), frase que ele escreve logo abaixo do desenho (da representação) de um cachimbo, revela o abismo entre a linguagem e a coisa.Quando paramos para refletir sobre os problemas da representação política, ou seja, uma manifestação específica da representação, não é possível separar a reflexão linguística da reflexão política, não há segregação possível entre mídia e poder.

Sobram ocasiões em que o representante político pode muitas vezes estar representando em vários diferentes sentidos: no sentido de Elizabeth Taylor quando encarna Cleópatra (Eduardo Cunha estava representando Scarface ou Don Corleone?); similarmente, a palavra representação pode evocar a prática de uma encenação, de um fingimento, de um jogo-de-cena, de um interesseiro e manipulatório mise en scène midiático, como quando dizemos que figuras com Berlusconi, Trump ou Temer “representam” diante das câmeras uma persona que é forjada para o programa eleitoral.

No debate político, outro sentido de representação também aparece frequentemente, em que “estar representando um grupo social” é usado no sentido de “falar em nome de outros”, de ser a expressão singular de um grupo coletivo, como nas frases “Lula, um ex-operário, representa o operariado que chegou à Presidência da República” ou “Jean Wyllys representa a população LGBT na Câmara dos Deputados”. “A polissemia da palavra [representação] faz com que a ideia de representação política seja contaminada pelos diferentes usos nas artes visuais, nas artes cênicas, na literatura e no campo jurídico, entre outros.” (MIGUEL. p. 117)

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Ren? Magritte, The Treachery of Images, 1928–29, Restored by Shimon D. Yanowitz, 2009

Magritte.

Em seu capítulo “A Democracia Elitista”, paradoxal desde seu título, Luis Felipe Miguel explicita as vísceras contraditórias de um sistema político que se pretende, a um só tempo, democrático e gerido por uma elite. Lê-lo faz lembrar, com saudosismo, do falecido Eduardo Galeano, conhecedor profundo das Veias Abertas da América Latina, que ensinava que as eleições atuais, ditas democráticas, muitas vezes só nos permitem escolher com que molho seremos cozinhados.

vomitoMuitas vezes, no “cardápio eleitoral”, só encontramos pratos que nos enchem de repugnância, que de modo algum nos abrem o apetite. Pelo contrário: assistir na TV o horário eleitoral não é muito recomendável para quem acabou de comer pois dá engulhos e pode acabar em vômito. Só nos permitem escolher entre diferentes membros da elite – a um só tempo econômica e política, dotada da conjunção de capital financeiro e cultural, simultaneamente ricos e cheios de prestígio – e quando alguém de classes subalternas começa a atingir, pelo voto, degraus mais altos da pirâmide, ou mesmo alça-se a alturas palacianas, não tardam para que forças se congreguem para, com ou sem tanques e tiros, golpeá-lo e derrubá-lo.

“O pensamento elitista, na sua feição contemporânea, nasce em oposição às correntes igualitárias da modernidade. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, ergueu-se um importante corpo de reflexões políticas que afirmavam a possibilidade e necessidade de maior igualdade nas sociedades, expresso em pensadores como Rousseau, Fourier, Proudhon ou Marx, que, de diferentes maneiras, propugnavam uma sociedade equitativa.

Mas o fantasma da igualdade não estava encarnado apenas em teorias. Na Europa começava a haver, de fato, uma democratização da vida social, sobretudo desde que a classe operária irrompeu com face própria na cena política, com a Revolução de Fevereiro de 1948, na França. Antigos privilégios foram questionados e perderam sustentação legal. O direito ao voto foi paulatinamente estendido até se alcançar o sufrágio universal masculino… Em suma, as estruturas aristocráticas foram sendo corroídas. Uma das análises mais perspicazes do processo foi feita por Alexis de Tocqueville, no clássico A democracia na América (1835-1840).” (MIGUEL, p. 31-32)

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Na contra-mão destas correntes políticas que defendem o igualitarismo, a justiça social, o equilíbrio, a equanimidade, o direito de participação na decisão dos rumos coletivos, o pensamento elitista argumenta pela impossibilidade ou pela indesejabilidade da democracia, o “governo do povo”. Obviamente, o elitismo não é fruto da história recente – é coisa velha, velhíssima, e que infelizmente ainda parece conservar o frescor da juventude ao invés de declinar rumo à morte como é destino da velhice. A definição mais simples de “elitismo”, diz Miguel, é a ideia de que a desigualdade é “natural” e “eterna”:

“No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado detentor dos cargos de poder. Não se trata de ideia nova: o sonho de Platão na República, com a divisão de castas (de acordo com a capacidade de cada uma), reflete essa visão, bem como a crença de Aristóteles na existência de ‘escravos por natureza’. A palavra ‘natureza’ é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato natural. Isto está na raiz da atração que esse pensamento tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em vez de estarem nestas posições como fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade e aos padrões de dominação nela vigentes, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos.” (MIGUEL, p. 33)

Já se destacou algumas vezes que Platão, apesar de ter chamado sua sociedade ideal de República, fantasia sobre uma aristocracia monárquica, onde o Filósofo Rei – aquele que tem o mérito superior de sua Razão límpida, ascética, descolada das paixões e seus delírios – há de reinar sobre a multidão ignara, presa dentro da caverna das atrações sensíveis e dos prazeres carnais. O platonismo não tem nada de democrático: instaura a tirania dos que pensam que sabem, bota no poder os que se consideram donos da verdade, e nada tem a conceder, em termos de participação igualitária na definição dos destinos da pólis, às mulheres, aos estrangeiros e aos escravizados (numericamente, a maioria da população de uma cidade dita “democrática” como a Atenas de que Sócrates e Platão foram contemporâneos). O elitismo platônico incide sobre o elitismo aristotélico, que marcará o elitismo escolástico e todas as teocracias monárquicas baseadas no princípio de que devemos ser governados pela casta dos melhores, dos mais sábios, dos que conseguem chegar mais perto de Deus ou da Verdade…

Miguel reconhece e analisa novas modalidades do pensamento elitista no pensamento mais recente – em Ortega Gasset (autor de A Rebelião das Massas) e em Friedrich Nietzsche (que foi de fato um crítico feroz daquelas correntes democratizantes e socialistas que pôde conhecer em sua época e em seu espaço social – porém, demonstra desconhecimento total do marxismo e suas críticas não parecem incidir sobre a teoria e práxis formuladas por Marx e Engels…).

Miguel sonda as raízes daquilo que hoje se conhece pelo nome de meritocracia, ou o governo do mérito, mais recente embrulho para um velho conteúdo: elitismo, elitismo, elitismo…

“Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades inerentes, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelas que não são tão boas. Ela poderia pensar diferente; que estar na universidade, por exemplo, num país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, ao invés da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para a balconista da loja, para a operária, para a engraxate e pensar ‘puxa, como sou superior’ do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições.

A fruição estética é extremamente importante para gerar esse sentimento de superioridade: o intelectual que lê Proust e ouve Bach menospreza a massa que consome programas de auditório e livros de autoajuda. Isto seria fruto de uma sensibilidade mais apurada, inata. Daí provém o fascínio que muitos artistas e escritores sentiram pelo elitismo, inclusive em sua versão mais extrema, fascista. Ezra Pound, T.S. Eliot, W. B. Yeats, Salvador Dalí, Louis Ferdinand Céline, Knut Hamsun são apenas alguns nomes de uma longa lista. Há um poema de D. H. Lawrence que reflete bem a postura; um dos versos afirma: ‘a vida é mais vívida em mim do que no mexicano que conduz minha carroça’…” (p. 33)

Esta oposição entre democracia e elitismo parece-me interessante para pensar muitos dos problemas políticos contemporâneos e L. F. Miguel mostra em sua obra o quanto esta tensão já existia nas origens gregas da democracia, do kratos (poder) do demos (povo). O que é curioso, no caso da Atenas onde afirma-se comumente que a democracia calhou por nascer, é que por lá o sistema democrático tinha necessariamente uma dimensão de sorteio:

 “a própria instituição da eleição era vista, da Antiguidade ao século XVIII como oposta ao ordenamento democrático, que pressupunha a igualdade entre os cidadãos e, portanto, devia utilizar o sorteio como forma de escolha dos governantes. Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum dos regimes hoje aceitos como democráticos, o povo realmente governa. As decisões políticas são tomadas por uma minoria fechada, via de regra mais rica e mais instruída do que as cidadãs e cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade. Tudo isso está longe da concepção normativa que a palavra ‘democracia’ continua a carregar: uma forma de organização política na igualdade potencial de influência de todos os cidadãos, que concede Às pessoas comuns a capacidade de decidirem coletivamente seu destino. Está longe, também, da experiência clássica. Sobre a Atenas dos séculos V e VI a.C., é possível dizer que, em alguma medida, o povo governava – se entendemos por “povo” o conjunto dos cidadãos, que não incluía a maior parte da população (mulheres, escravos e metecos).” (p. 29)

Obviamente, não existe igualdade entre cidadãos para influenciar os destinos públicos quando vivemos em uma sociedade onde os acessos diferenciais aos meios de produção, ao capital cultural e às tecnologias massmidiáticas geram as fraturas sociais que tão bem conhecemos e que, de modo bem didático, o movimento Occupy Wall Street resumiu assim: a batalha entre o 1% e os 99%. A extrema concentração de capital em poucas mãos, conectada à miséria a que são condenados centenas de milhões de espoliados, faz da grande maioria dos países neste mundo que auto-intitulam-se “democráticos” uma fraude hipócrita, onde a igualdade existe como forma vazia, mas não como conteúdo real do espaço social.

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A crise de representação política é a constatação dos limites, muito estreitos e insatisfatórios, da democracia representativa quando enquadrada detrás das grades do liberalismo burguês. “O descontentamento com o desempenho das instituições democráticas se alia a uma firme adesão aos princípios da democracia, que se funda na constatação sensata de que as instituições atualmente existentes privilegiam interesses especiais e concedem pouco espaço para a participação do cidadão comum, cuja influência na condução dos negócios públicos é quase nula. Em suma, de que as promessas da democracia representativa não são realizadas.” (p. 103)

Luis Felipe Miguel lembra das teorizações do sociólogo C. Wright Mills, em especial seu livro A Elite do Poder, em que o autor tornava explícito que, “por trás da fachada democrática e dos reclamos rituais de obediência à vontade popular, cristaliza-se o domínio de uma minoria que monopolizava todas as decisões-chave. Os 3 pilares da elite do poder eram os grandes capitalistas, os principais líderes políticos e os chefes militares. Graças a mecanismos de integração, que geravam uma visão de mundo unificada e interesses compartilhados, formavam uma única elite, dividida em três setores, e não três grupos concorrentes… A perspectiva de Wright Mills coincidia com a denúncia marxista quanto ao caráter meramente ‘formal’ da democracia burguesa.” (p. 109)

A democracia representativa burguesa pode até fornecer a ilusão de que é igualitária, pois o voto do pobretão analfabeto vale, em tese, o mesmo que o voto do empresário CEO de multinacional. Porém, o pobretão analfabeto não só não tem como candidatar-se a cargo público, como tampouco tem a mínima chance de vencer o pleito. Ademais, suas preferências políticas, longe de serem uma decisão independente e autônoma do sujeito que delibera racionalmente, são moldadas e manipuladas por um aparato midiático que, como sabemos muito bem, tem dono e é gerido pela grana. Os donos da mídia: eis figuras que não podemos ignorar se quisermos compreender a crise da representação política, o colapso de nossas democracias de baixa intensidade e a ascensão de um novo tipo de fascismo “teleguiado”, midiaticamente induzido.

“A mídia é, de longe, o principal mecanismo de difusão de conteúdos simbólicos nas sociedades contemporâneas e, uma vez que inclui o jornalismo, cumpre o papel de reunir e difundir as informações consideradas socialmente relevantes. Todos os outros ficam reduzidos à condição de consumidores de informação. Não é difícil perceber que a pauta de questões relevantes, postas para a deliberação pública, deve ser em grande parte condicionada pela visibilidade de cada questão nos meios de comunicação. A mídia possui a capacidade de formular as preocupações públicas. Os grupos de interesses e mesmo os representantes eleitos, na medida em que desejam introduzir determinadas questões na agenda pública, têm que sensibilizar os meios de comunicação.” (p. 120-121)

Resta a questão, crucial, de saber se os meios de comunicação de massa representam uma força social que auxilia o ideal democrático a consolidar-se, ou se, pelo contrário, solapa a democracia ao fornecer-nos dela apenas um simulacro. O poderio midiático, concentrado em poucas corporações capitalistas, que formam verdadeiros oligopólios e perseguem interesses privatistas de lucro empresarial, está bem longe de servir à participação social igualitária, à construção de uma sociedade onde todos tenham voz e vez.

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O filme mexicano A Ditadura Perfeita, de Luis Estrada, é uma brilhante e mordaz sátira do poderio dos donos das mídias-de-massa em manipular a opinião pública e, se quiserem, elegerem governadores e presidentes, transformados em grandes heróis da nação apesar de serem crápulas plutocratas e desumanos genocidas. Também a série britânica Black Mirror tematiza este mega-poderio da mídia em influenciar o processo político quando, no terceiro episódio da segunda temporada, faz do personagem de cartoon Waldo – um urso azul, comandado por um comediante, que fala muitas obscenidades e começa a atacar sem dó os figurões do establishment político – o maior hit eleitoral (saiba mais no excelente artigo de Moysés Pinto Neto).

A bandeira da democratização da comunicação, como explica Luis Felipe Miguel, tem a ver com “a necessidade de que os meios de comunicação representem de maneira adequada as diferentes posições presentes na sociedade, incorporando tanto o pluralismo político quanto o social. Hoje, via de regra, a mídia desempenha mal esta tarefa, por diversas razões, que incluem os interesses dos proprietários das empresas de comunicação, a influência dos grandes anunciantes, a posição social comum dos profissionais do setor e a pressão uniformizadora da disputa pelo público” (p. 124).

A democratização da comunicação “não possui solução mágica”:

“engloba um conjunto de medidas que começa na desconcentração da propriedade de empresas de comunicação. (…) O ponto mais importante é dissociar capacidade de prover informações  – isto é, do usufruto da liberdade de expressão como liberdade positiva – da posse do poder econômico por meio de instrumentos como o direito de antena (que reserva tempo na mídia comercial para movimentos sociais e organizações da sociedade civil veicularem suas posições), o incentivo ao jornalismo, rádio e televisão comunitários e o financiamento público para estimular a expressão de grupos desprivilegiados. São medidas voltadas à equalização do acesso às formas de expressão pública entre os diversos grupos sociais, que devem ter condições de participar do debate com sua própria voz.” (p. 124)

0745621090whichequalmat.inddInspirando-se na obra de Anne Philips, Luis Felipe Miguel dirá também que há “uma precondição do funcionamento de um regime democrático: a difusão das condições materiais mínimas que propiciem, àqueles que o desejem, a possibilidade de participação na política. (…) O ‘empoderamento’ dos grupos sociais marginalizados – ou seja, seu acesso às esferas de poder, com a capacidade de pressão daí derivada – é, por vezes, um prerrequisito para a transformação estrutural, como argumenta Phillips em Which Equalities Matter? (London: Polity, 1999).” (p. 135)

Que o empoderamento dos marginalizados passa também por um empoderamento midiático, em que tornem-se capazes de disseminar suas próprias mensagens e criações através do espaço social, impactando na formação da opinião pública e nos espaços decisórios, não nos deve levar a uma idolatria ingênua da disseminação das novas tecnologias digitais de informação. Uma série televisiva como Black Mirror esforça-se por mostrar, em suas três primeiras temporadas, através de roteiros muito bem bolados e repletos de criticidade à civilização contemporânea, que os avanços tecnológicos estão longe de produzir automaticamente avanços nas nossas capacidades cognitivas, morais e políticas, produzindo avanços nas nossas aptidões para os diálogos mutuamente proveitosos e os  relacionamentos sábios uns com os outros.

Muito pelo contrário, Black Mirror – que recebeu uma pertinente análise de Ivana Bentes em uma Cult recente – oferece uma série de sombrios espelhos onde vemos refletidas as novas barbáries que se manifestam através de celulares, notebooks e PCs conectados à Internet, numa verdadeira procissão de distopias hi-tech que soam bastante plausíveis e lançam duchas de água gelada sobre os otimistas de plantão.

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também tem pertinentes ponderações:

“Não é possível ignorar o impacto crescente das novas tecnologias – embora ainda muito diferenciado de acordo com clivagens de geração e de classe – nos padrões de sociabilidade e na produção das identidades, algo que possui evidente peso político. A internet tem fomentado novas formas de ativismo, muitas vezes marcadas por seu caráter individualista com foco na autoexpressão, mas que representam um fenômeno importante a ser estudado. É uma ferramenta de comunicação primordial para novos e velhos movimentos sociais, grupos minoritários e organizações contra-hegemônicas, proporcionando compartilhamento de informação de forma quase instantânea e a baixo custo. Mas o jornalismo, em particular, e os conteúdos simbólicos da grande mídia empresarial, em geral, continuam ocupando uma posição central.

O jornalismo permanece sendo o grande alimentador da informação, graças à sua condição de ‘sistema perito’. Redes de ativistas podem cumprir um papel importante na disseminação de visões de mundo alternativas, mas é o jornalismo profissional que está equipado para distribuir informação abrangente, geral, de forma permanente. Os grandes conglomerados de mídia ocupam a posição de principais provedores de informação no próprio espaço da internet, por meio de portais que aproveitam a sinergia oferecida pelas estruturas de produção de notícias para os meios convencionais; seus conteúdos são, com enorme frequência, a principal ou mesmo única fonte de outros emissores dentro da rede.

Assim, esses conglomerados seguem sendo capazes de gerar o ambiente social de informação compartilhada, isto é, a agenda comum do público; e os grupos alternativos permanecem nas posições (importantes, mas secundárias) de comentaristas que reagem a essa agenda, de ativistas que tentam influenciá-la a partir das margens ou de comunidades de gueto que mantêm uma faixa própria, paralela, com pouco ou nenhum diálogo com o público mais amplo. É a diferença entre uma página qualquer da internet – potencialmente acessível a todos, mas de fato procurada apenas por umas poucas pessoas – e um grande portal que concentra fluxo de visitantes e cujo conteúdo é acessado, comentado e reproduzido inúmeras vezes.

cibercultua(…) As utopias iniciais de uma nova era em que os meios de comunicação estariam pulverizados eram também utopias de um salto numa política pós-representativa, em que todos poderiam se fazer ouvir e sentir de forma direta, plástica e ‘molecular’, como dizia, nos anos 1990, seu principal arauto, o francês Pierre Lévy em obras como Cibercultura A Inteligência Coletiva. Hoje, aparece muito mais a ideia de uma representação autoinstituída, em que cada um se coloca como porta-voz nas redes sociais, e que se une à ideia de uma pluralização selvagem das fontes de informação. Mas, sem negar relevâncias às múltiplas apropriações alternativas dos novos meios, a importância crescente da internet continua ocorrendo dentro do modelo da comunicação de massa, em que uns poucos centros emissores são capazes de distribuir conteúdos simbólicos a uma multiplicidade de receptores cuja capacidade de resposta é limitada.” (MIGUEL, p. 145)

A determinação dos resultados eleitorais está umbilicalmente vinculada à capacidade dos candidatos de utilizarem os aparatos da comunicação em massa, o que torna a democracia refém dos grandes oligopólios empresariais de mídia e suas predileções políticas. Que Donald Trump tenha sido eleito o presidente dos EUA em 2016, e não Bernie Sanders (que perdeu as primárias dos Democratas para Hillary Clinton), também envolve o grau de exposição midiática muito superior do primeiro, como bem analisado pela excelente jornalista norte-americana Amy Goodman, âncora do Democracy Now!, um dos mais interessantes exemplos de um bem-sucedido empreendimento de jornalismo alternativo e contra-hegemônico que põe as novas tecnologias a serviço da verdadeira democracia – que é pra já e não pode esperar.

Em sua lúcida explanação, Amy Goodman faz menção ao pensamento de Noam Chomsky e sua noção de que a mídia “manufatura consenso” (manufactures consent), ou seja, é um instrumento ideológico de alta penetração nas consciências dos eleitores e com alta capacidade de moldar condicionar as decisões do eleitorado. Amy cita como exemplo a rede de TV ABC, que chegou a dedicar 81 minutos de sua cobertura ao candidato Donald Trump, tendo relegado Bernie Sanders à quase-invisibilidade de meros 20 segundos on air! A pergunta que não quer calar: o que teria acontecido caso Bernie Sanders tivesse tido, por parte da mídia corporativa Yankee, um tratamento mais igualitário e equânime em relação a Trump? Em uma constelação midiática que fosse de fato democrática, e não altamente oligopolizada como é nos EUA, não seria concebível que Sanders, o único candidato autenticamente democrático e de ideais renovadores e inclusivos, vencesse o pleito?

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também é um comentador perspicaz: “o que os elitistas apontam como natural – a desigualdade política, a profunda divisão entre governantes e governados – é fruto de uma organização social que concentra em poucas mãos o capital político. Alguns poucos monopolizam a capacidade de intervir no campo político, exatamente porque os outros internalizam a própria impotência e oferecem o reconhecimento de que aqueles poucos são os ‘líderes’. Se o reconhecimento social é a chave da conquista do capital político, avulta a importância da mídia, principal difusora do prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas.” (p. 153)

A mídia corporativa, oligopolizada, é uma força anti-democrática e proto-fascista quando só dá voz e vez àqueles que são dotados de capital, lançando ao silêncio e à invisibilidade toda a pluralidade de perspectivas e interesses que constitui uma sociedade. Ao trancar para fora imensos contingentes populacionais que não ganham nunca o direito de terem voz e vez na mídia de massas, esta mídia trabalha em prol da elite do poder e acaba contribuindo sobremaneira para a consolidação do poderio de tiranos bons de Ibope como Silvio Berlusconi, na Itália, ou Donald Trump, nos EUA.

“A democratização da esfera política implica, portanto, tornar mais equânime o acesso aos meios de difusão das representações do mundo social. Isto significa, principalmente, dar espaço na mídia às diferentes vozes presentes na sociedade, para que participem do debate político. Mas significa também, e crucialmente, gerar espaços que permitam aos grupos sociais, em especial os dominados, formular suas próprias interpretações sobre suas necessidades e seus interesses – os contrapúblicos subalternos tematizados por Nancy Fraser. O caminho, portanto, não passa pela ‘neutralidade’ dos meios de comunicação, como se depreende do modelo Habermasiano da esfera pública, mas por um verdadeiro pluralismo, que os mecanismos de mercado, como visto, não proveem.” (MIGUEL, p. 154)

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Reagan e Schwarzenegger em 1984

Reagan e Schwarzenegger em 1984

O problema central do livro de Miguel – democracia e representação – acaba necessariamente levando o autor a adentrar o labirinto das representações midiáticas, dado o fato de que as eleições ditas democráticas, na atualidade, estão totalmente imbricadas com a capacidades do candidato de tornar-se uma espécie de celebridade. Foi o que ocorreu, nos EUA, com Ronald Reagan, medíocre ator de Hollywood e garoto-propaganda de um sem-número de anúncios televisivos, que depois se elegeria governador da Califórnia e presidente da república. Reagan está longe de ser exceção ou caso isolado: o bombadão dos blockbusters da truculência pipocável, Arnold Schwarzenegger, trilhou caminhos semelhantes e serviu dois mandatos como governador da Califórnia. No Brasil, é impensável o sucesso eleitoral de figuras como o palhaço Tiririca se não fosse o efeito sobre as urnas causado pela celebridade midiática.

“O que se observa é que a visibilidade na mídia é, cada vez mais, componente essencial da produção do capital político. A presença em noticiários e talk-shows parece determinante do sucesso ou fracasso de um mandato parlamentar ou do exercício de um cargo executivo… a celebridade midiática tornou-se o ponto de partida mais seguro para quem deseja se lançar na vida política. (…) Isto fica especialmente claro na grande quantidade de profissionais de mídia que ingressam na vida política, sobretudo ocupando cargos parlamentares. São radialistas, repórteres de televisão, apresentadores de programas de variedades… Os exemplos, só na política brasileira, são incontáveis: Antônio Britto, Celso Russomanno, Cidinha Campos, Ratinho, João Paulo Bisol, Marta Suplicy, Hélio Costa.” (p. 158)

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Co-autor, em parceria com Flávia Biroli, do livro Feminismo e Política (Boitempo Editorial), Luis Felipe Miguel também é um autor muito atento ao problema da representação feminina nos cargos públicos. Mundo afora, o voto feminino é uma conquista muito recente, que só começa a ser consolidada a partir do século XX (vejam, sobre o tema, a excelente crônica cinematográfica sobre o movimento britânico das Sufragistas, um filme de Sarah Gavron). É verdade que hoje não nos parece mais tão anormal que uma mulher seja chefe-de-Estado em um país importante: Dilma Rousseff no Brasil, Michelle Bachelet no Chile e Angela Merkel na Alemanha são exemplos de presidentas da república que assumiram cargos outrora reservados aos machos (nos EUA, por exemplo, jamais aconteceu de uma mulher ser eleita para a Casa Branca…). Porém, estas conquistas ainda estão longe de ter aniquilado as assimetrias entre homens e mulheres nos cargos públicos. Sobre o tema, Miguel comenta:

9789896413484“É possível, ainda hoje, encontrar quem leia tal situação como demonstração de um desinteresse ‘natural’ nas mulheres pela política. Uma percepção minimamente sofisticada, porém, entende que o acesso à franquia eleitoral é uma condição necessária, mas nem de longe suficiente, para se chegar às esferas  de exercício do poder político. A participação política das mulheres é limitada por fatores materiais e simbólicos que prejudicam sua capacidade de postular candidaturas, reduzem a competitividade daquelas que se candidatam e atrapalham o avanço na carreira política daquelas que se elegem. Principais responsáveis pela gestão das unidades domésticas e pelos cuidados com as crianças, as mulheres dispõem de menos tempo livre, recurso crucial para a ação política. Também tendem a receber salários menores e a controlar uma parcela inferior de recursos econômicos. Ao mesmo tempo, o universo da política é construído socialmente como algo masculino, o que inibe o surgimento, entre elas, da ‘ambição política’, ou seja, da vontade de disputar cargos. Há, aqui, uma excelente ilustração daquilo que Pierre Bourdieu chamava de efeito de doxa, isto é, nossa visão do mundo social constrange nosso comportamento, comprovando (e naturalizando) aquilo que pensamos.” (p. 204)

Aquilo que o mesmo Bourdieu teorizada sob o nome de Dominação Masculina, e que as feministas denunciam como O Patriarcado, até hoje têm uma insidiosa influência até mesmo sobre os estudiosos de política: não faltam tratados sobre política que discutem apenas as teorias e práticas de homens, como se mulher nenhuma já tivesse dito algo que chegasse aos pés das ponderações de um Aristóteles, de um Hobbes, de um Marx. Diante deste preconceito lamentável, nunca é demais afirmar que a nossa capacidade de reflexão e ação políticas ficaria enormemente empobrecidas caso decidíssemos ignorar as inestimáveis contribuições de Hannah Arendt, Rosa Luxemburgo, Emma Goldman, Simone Weil, Angela Davis, Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Judith Butler, dentre muitas outras. Um dos méritos do livro de Miguel, aliás, está na intensa interlocução que ele estabelece com autoras como Iris Marion Young, Nancy Fraser, Hannah Pitkin, dentre outras.

Uma mais interessantes reflexões de Miguel diz respeito à presença das mulheres na literatura, espaço onde tendemos a pensar que elas possuem uma representação mais forte, dada a grande quantidades de “gênias” das letras que somos capazes de citar (Jane Austen, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Toni Morrisson, Hilda Hilst etc.). Porém, a hegemonia masculina também aí manifesta-se com força, como fica claro pelo fato de nos mais de 115 anos de Prêmio Nobel de Literatura, apenas 14 mulheres venceram-no (8 delas, é bom que se diga, foram laureadas recentemente, a partir dos anos 1990). Comentando a obra de Regina Dalcastagnè (2005, p. 31 e 47), pondera Miguel:

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“Embora em princípio qualquer um possa fazer literatura ou fazer política, o reconhecimento de um discurso como literário ou como político passa pela adequação aos códigos consagrados no campo. (…) Tomando como base os romances publicados pelas editoras de maior prestígio entre 1990 e 2004, verifica-se que 93,9% dos autores são brancos, 78,8% têm diploma universitário, 72,7% são homens. As personagens também são quase todas brancas, heterossexuais e pertencentes às elites econômicas ou às classes médias, com uma significativa maioria do sexo masculino, disparidades acentuadas quando são isolados os protagonistas. Num universo de 258 romances analisados, aparecem apenas 3 mulheres negras como protagonistas e uma única é narradora. Nesse cenário, surgem, vez por outra, vozes diferenciadas. O caso mais emblemático é o de Carolina Maria de Jesus, negra, pobre, favelada, mãe solteira, catadora de papel, descoberta por um jornalista e que publicou seu diário – Quarto de Despejo – em 1960.” (MIGUEL, p. 228-29)

Somente confrontando as assimetrias de gênero e de classe, sedimentadas em privilégios injustos e em representação política desigual, é que uma democracia digna deste nome se instaurará. Miguel aponta que “trabalhadores, mulheres e negros formam grupos que se encontram severamente sub-representados nas esferas de representação política formal, um indício poderoso de sua subalternidade. Como as interdições legais foram revogadas, após décadas de lutas dos integrantes desses grupos, não deixam de surgir exceções, algumas delas relevantes. Mas o fato de que, no Brasil, uma mulher tenha sucedido a um ex-operário na Presidência da República (ou que, nos EUA, o cargo tenha sido ocupado por um negro [Obama]) não cancela o caráter classista, machista e racista do campo político.” (p. 304)

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Um infame exemplo desta predominância classista, machista e racista no campo político é o próprio Ministério instalado no Brasil após o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, em que Michel Temer, após a fraudulenta derrubada de Dilma Rousseff no putsch que usou como pretexto as “pedaladas”, nomeou apenas homens, brancos, ricos e cis para os cargos naquilo que mereceria mudar de nome para Esplanada do Machistério Patriarcal dos Plutocratas Golpistas. A mulher foi novamente “posta em seu lugar” através da disseminação midiática do paradigma “bela, recatada e do lar” encarnado pela Marcela Temer, uma espécie de boneca Barbie de carne-e-osso.

Para não deixar dúvidas sobre o seu caráter elitista, o desgoverno Temer logo buscou impor a famigerada PEC 241-55, que pretende precarizar os sistemas públicos de saúde, educação e previdência, num verdadeiro genocídio planificado que incide de modo cruel e desumano sobre a vida e a dignidade dos milhões de brasileiros mais desvalidos e vulneráveis. Após terem estuprado e chutado para escanteio a jovem e frágil democracia brasileira, os usurpadores que assaltaram o poder só fazem a crise de representação se acirrar e atingir níveis cada vez mais críticos, uma vez que eles explicitamente assumem um programa que não representa ninguém além do 1% no tope da pirâmide do dinheiro.

Assim como C. Wright Mills, em A Elite do Poder, “acusa as democracias realmente existentes de não cumprirem sua promessa central: o governo do povo”, um autor como Robert Dahl realizou “a primeira síntese abrangente de uma teoria pluralista da democracia”. “Reservando o termo ‘democracia’ para um ideal que raras vezes é concretizado no mundo real (e nunca em agrupamentos tão numerosos e complexos quanto Estados-nações), Dahl cunha a palavra poliarquia para designar a aproximação possível a esse ideal. O ponto crucial – que transparece já no significado etimológico da palavra – é a presença de uma multiplicidade de polos de poder, sem que nenhum seja capaz de impor sua vontade de dominação a toda a sociedade.” (p. 111)

Avesso e antônimo da oligarquia (o governo dos ricos) e da monarquia (o governo de um só), a poliarquia seria o governo (arche) da multiplicidade (poli). A democrática poliarquia seria uma constelação em micro-poderes em diálogo, em que a sociedade em sua intrínseca pluralidade acolheria uma governança poliárquica e polifônica, onde a ninguém seria negado o direito de ter voz e vez. A democracia, assim concebida, é decerto uma utopia que flamula no horizonte e que, como dirá Eduardo Galeano, pode até afastar-se dez passos a cada passo em sua direção que damos, mas que serve justamente para isso: para que caminhemos.

Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, Novembro de 2016

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SOBRE O AUTOR DE “DEMOCRACIA E REPRESENTAÇÃO”:

luis-felipeLuis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Trabalha nas áreas de mídia e política, teoria da democracia, representação política e gênero. É doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e publicou, entre outros, os livros Mito e discurso politico (Editora Unicamp, 2000), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), e O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015).

ASSISTA:

ESCOLA DEMOCRÁTICA:

MULHER E MÍDIA:

TRAJETÓRIA DO GOLPE: aspectos políticos e jurídicos de uma ruptura democrática. 11 de agosto de 2016. Debate promovido pela Frente Ampla de Trabalhadoras e Trabalhadores do Serviço Público pela Democracia, com Beatriz Vargas, professora da Faculdade de Direito da UnB, e Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciência Política da UnB.

“O golpe não iniciou em 17 de abril ou 12 de maio, ou mesmo no pedido de recontagem de votos após as eleições presidenciais. Que elementos, nas relações sociais e políticas em nosso país, possibilitaram o advento do golpe? Quais falhas da esquerda impulsionaram os movimentos conservadores (e machistas, e racistas, e elitistas) na construção do golpe? De que forma o judiciário vem sendo utilizado como elemento facilitador do golpe? Que interpretações jurídicas podem ajudar a barrar o golpe ou ao menos, denunciá-lo?” Na ocasião, a Frente também lança o documento “90 dias de desgoverno golpista”, que apresenta uma sistematização de diversas análises produzidas com o objetivo de evidenciar os ataques aos direitos sociais e os retrocessos ocorridos nestes 90 dias de governo interino, bem como suas consequências para o desmonte das diversas políticas públicas.

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APROFUNDE-SE NOS AUTORES ESTUDADOS:

HANNAH PITKIN

Hanna Pitkin, Professor Emerita of Political Science at the University of California, Berkeley, talks about her life and career with Nancy Rosenblum, Professor of Ethics and Politics in Government at Harvard University and Co-Editor of the Annual Review of Political Science. Dr. Pitkin discusses her childhood, growing up between two “Jewish intellectual left-wingers” who fled 1930s Germany to Oslo, Prague, and eventually Los Angeles. She describes how her refugee status and acquisition of new languages led her to become a scholar in political science. In 1967, she published “The Concept of Representation,” which won the 2003 Johan Skytte Prize in Political Science “for her groundbreaking theoretical work, predominantly on the problem of representation.” She went on to study other topics such as gender and politics in Machiavelli and Hannah Arendt’s concept of “the Social.”

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ROBERT DAHL

Download dos ebooks Poliarquia – Participacion y Oposicion (em espanhol) Dilemmas of Pluralist Democracy (em inglês)