PALAVRAS MUDAM O MUNDO? – Reflexões sobre a performatividade da linguagem e a transformação da realidade

PALAVRAS MUDAM O MUNDO?

Há certos mitos, poderosos e hegemônicos, que nos convidam a crer na Palavra como força criadora de uma nova realidade. Basta que nos lembremos do Gênesis bíblico, recentemente re-apresentado nos traços malandros de Robert Crumb:

Neste mito fundador das religiões monoteístas, afirma-se que Deus possuiria o dom de transformar suas falas em atos. Em suma: com Deus, é dito e feito. O cara abre a boca pra falar fiat lux, e no momento seguinte, eis a Luz surgindo pela primeira vez para iluminar a infindável treva cósmica.

Aquilo que atribui-se a deus – a potência de tornar meras palavras em autênticos atos – é aquilo que se conhece hoje, na boca de linguistas, filósofos e psicólogos, como performatividade. No âmbito humano, também são performativas as falas de um juiz que fala um veredito e bate um martelo ou as falas de um casal que diante do padre faz seus votos de matrimônio e assim acarreta a consumação de um pacto jurídico.

Mas voltemos um instante nossa atenção mais demorada ao Fiat Lux, fenômeno mítico-imaginário já ilustrado por vários pintores, como Gustave Doré. Segundo Debray, a performatividade (teorizada pelo filósofo da linguagem inglês J. L. Austin) tem este paradigma no faça-se a luz e nós costumamos transpô-lo para outras esferas da existência humana:

A CRIAÇÃO DA LUZ de Doré

“A divina aptidão para transformar um dizer em fazer: fiat lux, e a luz se fez… Enunciação = Criação. Já esquecemos, talvez, o Gênesis, mas o senso comum, no fundo, julga sempre que é Javé quando evoca não as trombetas que derrubam as muralhas de Jericó, mas os livros que ‘criam rupturas’, ‘as palavras que abalaram o mundo’, ‘as ideias que modificam a face das coisas’ etc.” (DEBRAY, 1995, p.20)

Poderíamos nos perguntar, é claro, que sentido isso tem de um Deus, antes de fazer a Humanidade, já falar latim… Mas este não é o momento de colocar dúvidas ímpias e sacrílegas, pois como nos ensinam papas e padres, diante de questões como “o que fazia Deus antes de inventar Adão e Eva?”, a resposta é: estava preparando o fogo da eterna condenação infernal para aqueles que põe questões heréticas assim. Portanto, deixemos de lado nossas cruciantes dúvidas sobre se Adão e Eva tinham umbigos, e voltemos ao fiat lux.

A dessemelhança entre o humano e o divino aí se torna explícita. Obviamente, e por sorte, nós humanos não somos nada como o Javé do Antigo Testamento. Nada do que dissermos será capaz de acender nosso cigarro caso não tenhamos à mão um fósforo ou isqueiro. Nem tentem, na ausência de algum apetrecho gerador de fogo concreto, apelar para um fiat lux meramente labial, pois vocês ficarão no escuro e com o baseado sem queimar. E aí não tem graça…

 

II. LIVROS MUDAM PESSOAS?

No entanto, ouvimos por aí, da boca de Quintanas e outros poetas, que os livros, apesar de não mudarem o mundo, mudam as pessoas, e estas sim transformam o mundo. Donde, indiretamente, de modo enviesado, por misteriosas e múltiplas influências, o Verbo teria sim um poder sobre a Carne.

É o que Régis Debray chama de “o mistério performático”, ou seja, a capacidade da palavra gerar efeitos no mundo. O enigma da palavra-ação, do Verbo-fecundo, da linguagem que causa efeitos no mundo:

“O fato de que uma representação do mundo possa modificar o estado do mundo – e não somente sua percepção, considerada como natural – terá de ser encarada como um enigma”, escreve Debray. Ele enumera alguns exemplos “evidentes” do mistério performativo:

“Que a palavra de Jesus de Nazaré tenha conseguido, em certo ponto de seu percurso, transformar o Império Romano e dar origem à cristandade; que a pregação do Papa Urbano II, em Clermont – lançando nas estradas bandos de peregrinos e depois exércitos inteiros – tenha conseguido fazer surgir a primeira Cruzada; que o Manifesto Comunista tenha conseguido fazer surgir um ‘sistema comunista’…” (DEBRAY, op cit, p. 20)

Façamos uma reflexão sobre “the power of words” (os “os poderes da palavra”, na expressão de Edgar Allan Poe). Este poderio de transformação que a palavra carrega entre suas potencialidades também se manifesta nas ciências humanas, em várias de suas especialidades.

Como lembra Debray, “a eficácia dos signos, a respeito desse mamífero simbólico que é o Homo sapiens e loquens, tem sido amplamente abordada. A partir do exemplo das recitações do xamã diante da parturiente de sua tribo, a antropologia nos mostrou como ‘a passagem à expressão verbal desbloqueia o processo fisiológico’ (Lévi-Strauss). O psicanalista confirma em seus clientes as virtudes da talking-cure (Freud). O sociólogo da cultura coloca em evidência a violência simbólica exercida pelos dominadores (Bourdieu)…” (DEBRAY, op cit, p. 19)

Também ouvimos falar de “livros que fazem a Lei”. Também não faltam exemplos de execuções capitais que retiram sua legitimidade de códigos jurídicos (quantas leis de pena-de-morte ainda não estão por ser revogadas?). Não faltam homicidas, terroristas, suicide bombers, serial killers, que deixem de invocar justificações verbais para seus atos, dizendo-se inspirados pelas palavras da Bíblia, do Alcorão, do Mein Kempf ou de um discurso de Stálin.

A revolução que Régis Debray propõe para as ciências humanas está na fundação de uma nova ciência, a midiologia, que busca compreender a eficácia dos signos, o poder das palavras, a disseminação social das mensagens, o poder de contágio e mobilização do verbo. Nos seus Manifestos Midialógicos, Debray propõe que o midiólogo está interessado em “defender o direito do texto – surgido de experiências e necessidades estranhas à ordem das palavras – a produzir algo diferente do texto”:

“Já que os homens, após a invenção da escrita, têm feito uma mistura entre a informação simbólica e a decisão política, entre batalhas de interpretação e batalhas sem mais (como na querela das imagens, as guerras de religião ou as insurreições nacionalitárias), com verdadeiros mortos e verdadeiras armas, o midiólogo gostaria de acompanhar de perto os avatares extralógicos do lógos. Já que um dizer, em determinadas condições, pode produzir um fazer, ou um mandar fazer…” (DEBRAY, p. 90)

Sabe-se que o poder de sugestão, ou seja, capacidade não só de comover mas de mover à ação, de discursos feitos púlpitos ou tribunas, pronunciados diante de um exército ou de uma multidão rebelada, é capaz de fazer da retórica, da eloquência, da poesia, da cantoria, da palavra-de-ordem, uma força concreta, objetiva, um poder psico-físico que gera transformações no mundo.

Para que a Bastilha fosse tomada, em Paris, em 14 de Julho de 1789, as palavras tiveram seu papel, não há dúvida; porém a eficácia concreta destas palavras não pode ser compreendida apenas pela força imanente a elas, pelas ideias que veicula, pelos conceitos que mobiliza. É preciso compreender o veículo que transmite estas palavras, a mídia através da qual ela viaja.

É preciso perguntar, por exemplo: é o deus Hermes, aquele das sandálias aladas, ou um trem a vapor que leva um certo recado de seu emissor a seu destinatário? Esta mensagem, de coração a coração, vai numa carta manuscrita levada pelos ares por um pombo-correiro, ou então consiste em caracteres digitais transmitidos pela Internet de PC a PC? O suporte material da palavra tem importância crucial em sua eficácia.

III. A INVENÇÃO DA MIDIALOGIA

Entre o fiat lux do mito judaico-cristão e nosso atual estado civilizacional, muitas revoluções aconteceram pelo caminho, dentre elas a invenção da imprensa, ou seja, dos meios tecnológicos e científicos de levar o verbo aonde ele nunca antes estivera. As novas mídias nascidas da Revolução Gutenberguiana alçam a linguagem verbal para novos vôos de poder.

Agora o Verbo é mais “viralizável” (e muito antes desta viralização se tornam uma palavra que é moeda corrente na era digital). Com a imprensa, se podia fazer usos mais extremos do Verbo como ferramenta de mobilização, disseminá-lo pelo tecido social de maneira inaudita e inédita, enterrando a era do manuscrito, descortinando horizontes midiáticos novos.

“A técnica de Gutenberg devia transtornar, se não as modalidades de leitura, pelo menos o estatuto simbólico e o alcance social do documento escrito através da alfabetização de massa. Por exemplo, a análise do movimento das ideias na França do século XVIII, interessante para a midiologia, há de privilegiar esses espaços-chave, pólos de atração social e centros de elaboração intelectual, como foram os clubes, salões, cenáculos, lojas, câmaras de leitura, sociedades literárias, círculos, sem falar das academias e instituições mais regulares.

Sob este ponto de vista, as Luzes não são um corpo de doutrinas, um conjunto de discursos ou princípios que poderiam ser apreendidos e restituídos por uma análise de texto, mas uma mudança no sistema de fabricação ; circulação / estocagem dos signos. Ou seja, o aparecimento de núcleos e redes de sociabilidade, interfaces portadoras de rituais e de novos exercícios, valendo como meios de produção de opinião… Trata-se de uma reorganização (…) do espírito público. Não foram as ideias ou as temáticas das Luzes que determinaram a Revolução Francesa, mas essa logística (sem a qual tais ideias nunca teriam tomado corpo.” (DEBRAY, p. 24 e 31)

Paul CeŽzanne (French, 1839 – 1906 ), The Artist’s Father, Reading “L’ƒvŽnement”, 1866, oil on canvas.

Encontramos uma reflexão sociológica inovadora sobre estes temas na obra de Gabriel de Tarde, A Opinião e As Massas, que também reflete sobre a Revolução Francesa chamando a atenção para este elemento fundamental para sua compreensão plena: a prévia invenção da imprensa e, por consequência, o advento do jornalismo público; o nascimento conexo, no seio da sociedade, daqueles agrupamentos de pessoas que são bem diferentes das meras multidões: vem ao palco da história “o respeitável público”, a quem a imprensa se dirige querendo estabelecer uma conversa entre cidadãos.

“O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvolvimento da invenção da imprensa, no século XVI. O transporte da força à distância não é nada, comparado a esse transporte do pensamento a distância. O pensamento não é a força social por excelência? Pensamos nas idéias-força de Fouillé…

Da Revolução Francesa data o verdadeiro advento do jornalismo e, por conseguinte, do público, de que ela foi a febre de crescimento. Não que a Revolução também não tenha suscitado multidões, mas nisso não há nada que a distinga das guerras civis do passado… Uma multidão não poderia aumentar além de um certo grau, estabelecido pelos limites da voz e do olhar, sem logo fracionar-se ou sem tornar-se incapaz de uma ação de conjunto, sempre a mesma, aliás: barricadas, pilhagens de palácios, massacres, demolições, incêndios. (…) Contudo, o que caracteriza 1789, o que o passado jamais havia visto, é esse pulular de jornais, avidamente devorados, que eclodem na época.” (TARDE, p. 12)

Polemizando com a obra de Gustave Le Bon, inovadora no campo da psicologia das massas, Gabriel de Tarde contesta que o período histórico da passagem do século XIX ao XX seja “a era das multidões” e propõem chamá-lo de “a era dos públicos”.

“Não é que as multidões foram aposentadas, pararam de existir, muito pelo contrário, perseguem visivelmente presentes em vários espaços sociais, como uma espécie de re-presentificação perene de uma força de sociabilidade primitiva, ancestral, antiquíssima, mas ainda atuante. A multidão acompanha a história deste animal social que somos, mas está vinculada a um estado mais próximo da natureza, ainda pouco transformada pelo engenho humano, do que da civilização tecnológica-científica-industrial de hoje: “a multidão está submetida às forças da natureza – um raio de sol a reúne, uma tempestade a dissipa…” (TARDE, op cit, p. 15)

Dizer que entramos na “era dos públicos” significa dizer que agora lidamos com a potência social, performativa, das mensagens transmitidas por publicistas com diferentes poderes midiáticos, ou seja, capacidades diversas de eficácia performativa. O público de um zine anarco-punk pode até constituir-se em pequena multidão e manifestar-se em ato, por exemplo, através de meia dúzia de molotovs lançados contras as vidraças de agências bancárias ou lojas de carros importados.

Era Primeiro de Abril, 1964, uma quarta-feira, e o jornal carioca O Globo dava boas vindas à ditadura militar no Brasil.

Porém a capacidade de mobilização deste micro-empreendimento midiático, quer circule em 100 cópias xerocadas, quer seja entregue em 1.000 caixas de e-mail, torna-se miúda diante do público de um jornal televisivo ou impresso que atinge diariamente dezenas de milhões de pessoas e que pode, tal qual a Rede Globo no Brasil, ser peça-chave de um golpe de Estado (como fez em 1964), da determinação de uma eleição para a presidência (como fez em 1989 no duelo entre Collor e Lula, em que tomou o partido de seu queridinho “Caçador de Marajás”), da convocação de mega-manifestações de rua (como fez durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, 2015-2016, em que foi determinante para chamar multidões a manifestarem-se em prol do impeachment).

O poderio das empresas privadas que dedicam-se à comunicação social é uma das características mais notáveis da sociedade atual: no século XXI, muitas mega-corporações transnacionais realizam uma pervasiva ação sobre inúmeros públicos, controlando simultaneamente cadeias de TV, estações de rádio, editoras de livros, jornais e revistas impressos, além de websites e portais cibernéticos. Constituem oligopólios de tal poderio que tornam difíceis até mesmo de serem punidos aquilo que Tarde, ainda no início do século XX, chamava de “delitos de imprensa” e que já percebia como gozando de altos privilégios de impunidade:

“Eis porque é tão difícil fazer uma boa lei sobre a imprensa. É como se houvessem querido regulamentar a soberania do Grande Rei ou de Napoleão. Os delitos de imprensa são quase tão impuníveis como eram os delitos de tribuna na Antiguidade e os delitos de púlpito na Idade Média.” (TARDE, p. 22)

IV. O CASO “DEAR WHITE PEOPLE”

Um seriado de TV pode ser reduzido a uma mercadoria no mercado de bens simbólicos, a um mero item no supermercado dos entretenimentos audiovisuais? É o que torna-se cada vez mais insustentável diante de obras-primas da teledramaturgia em série como Black Mirror, A Sete Palmos (Six Feet Under), Breaking Bad, Handmaid’s Tale, Alias Grace e Dear White People.

Esta última, série original Netflix baseada em um filme homônimo dirigido por Justin Simien, tem interesse não só pela crônica inteligente que faz das relações humanas em um câmpus universitário da Ivy League, a Winchester. A série, de roteiro espertíssimo e montagem dinâmica, foca nas relações inter-raciais e no debate sobre o que constitui racismo – e quais as maneiras de enfrentá-lo.

Para além da multifacetada discussão sobre racismo, capaz de gerar acalorados debates, Dear White People é interessante e importante também como comentário sobre o poder da mídia e do jornalismo na transformação de certos contextos sócio-culturais.

Dois dos personagens principais, a radialista e cineasta Samantha White e o jornalista investigativo e escritor Lionel Higgins, buscam renovar as práticas midiáticas em seus respectivos campos de atuação.

A série, em sua primeira temporada, levantou muitas questões importantes em uma era caracterizada por muitos como dominada por um jornalismo abandonado à noção pouquíssimo ética da “pós-verdade”.

Sam White crê em uma mídia que toma partido, quer fazer no rádio uma provocação à reflexão que as autoridades universitárias e políticas logo irão querer estigmatizar como se fosse incitação à rebelião.

De fato, esta deliciosa e deslumbrante personagem que se dirige à Cara Gente Branca para denunciar microfascismos e racismos escondidos no cotidiano parece ter no sangue um pouco do espírito de Angela Davis. Seu programa de rádio é um pouco panfletário e incendiário, procura pôr a palavra falada (o rap radiofônico) para agir na base de uma diária intervenção pública de um verbo irreverente e rebelde, capaz de desembocar em riots, sit-ins, protestos.

Sam White é o tipo de âncora midiático que subverte todos os padrões tradicionais – como fez Antonio Abujamra na TV brasileira com seu programa de entrevistas Provocações. O tipo de ser-falante que evoca o exemplo de Jello Biafra, o vocalista dos Dead Kennedys, cujos discursos, transpostos para CDs de spoken word, também contêm frases que são autênticas incitações a cessar de odiar a mídia para tornar-se a mídia. Exatamente como fez o personagem de Christian Slater em Pump Up The Volume (1990), interessante obra do cineasta do Québec Allan Moyle.

A temporada de Dear White People termina com um ato de puro “heroísmo jornalístico” de Lionel. Ele é uma figura que trabalha no jornal The Winchester Independent. Ele descobre, através de suas investigações de repórter que não tem pudor de meter a fuça onde não é chamado, que a “independência” de que o órgão se gaba em seu nome não é autêntica. Ele descobre que as fontes financiadoras do jornal determinam a censura a certos temas, transformados em tabu. Os tabus são justamente aquilo que Lionel afronta, tomando o microfone e programando um flooding dos celulares e computadores de todos com o seu furo (scoop).

Cara Gente Branca possui um tecido narrativo todo atravessado por táticas de resistência típicas da cibercultura, como os procedimentos de hacking propostos por grupos como Anonymous ou de leaking tal como praticado pelo Wikileaks de Julian Assange.

Na série, a revolta dos estudantes afro-americanos, em especial os residentes de Armstrong-Parker, é vinculada com o fato de serem público do programa de rádio de Sam White e das colunas de Lionel no Independent. Esta comunidade, incendiada pela mídia, vê-se na necessidade de mobilizar-se em repúdio e revolta contra a festa “Dear Black People”, em que os branquelos racistas e supremacistas do câmpus pintam os rostos de negro como nos Minstrels Shows, para fazerem folias com processos altamente KKK de “denegrimento” do outro…

Porém, descobre-se que a própria Sam White hackeou uma conta de Facebook de seus adversários, entocados da revista supremacista-racista Pastiche. Sam White acabou convidando para a infame festa racista uma pá de gente que ali se revoltaria contra as práticas dos atuais propagadores da ideologia da Klu Klux Klan (hoje infelizmente re-empoderada por presidentes da república como Trump e Bolsonaro).

Sam White quis expor uma realidade, quis que debaixo dos holofotes de todos, para que fosse plenamente reconhecido: temos sim um problema de racismo e de supremacismo étnico nesta prestigiosa instituição educacional destinada a formar uma parte da elite cultural estadunidense do amanhã. Sam White, força performativa. Uma mulher negra empoderada que varre pra escanteio o fiat lux do MachoDeus para apostar em sua própria infinita potência feminina para produzir a luz. E o incêndio.

James Baldwin, recentemente retratado no excelente documentário de Raoul Peck I Am Not Your Negro, costumava dizer: “Not everything that is faced can be changed, but nothing can be changed until it is faced.” Este pensamento fecundo de James Baldwin, na série, inspira não só Samantha White e Lionel, os “heróis midiáticos” de Dear White People, mas sugere também algo para quem quer refutar a noção de que as palavras não mudam o mundo.

Precisamos de palavras para encarar a verdade do mundo e para estruturar nosso pensamento e nossa comunicação; se o Verbo não pode tudo, o que é verdade e deve ser reconhecido, isto não implica que não possa Nada. Na verdade, não há revolucionário que tenha desprezado a potência misteriosa das palavras que comovem e que o mundo mudam. The Word works in mysterious ways…

V. JUDITH BUTLER – UMA TEORIA EXPANDIDA DA PERFORMATIVIDADE

Em breve…

 

BIBLIOGRAFIA

DEBRAY, Régis. Manifestos Midiológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

TARDE, Gabriel. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CRUMB, Robert. Gênesis. Graphic Novel.

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, Fevereiro de 2019

FEROZ ANO NOVO: Brasil começa 2019 com o Fascismo empoderado em plena Era da Pós-Verdade

Talvez a mais sagaz e sarcástica das definições que já encontrei sobre esta figura bizonha que é Jair Messias Bolsonaro seja esta: “a comunhão de todos os tiozões de zap num só animal” (Acessar post), definição proposta pelo Vitor Teixeira, cartunista e ativista do PCO.

Já suas massas de manobra e apoiadores idólatras – aqueles que ficaram conhecidos como Bozominions, podem ser caracterizados por analogia a avestruzes que escondem a cabeça debaixo do solo, para seguirem crédulos em fés inacreditáveis (como esta: Bolsonaro é o messias, um cara honesto, patriota, cidadão-de-bem que nunca se meteu em maracutaia de corruptos etc.).

Neste fim de 2018, vimos sair dos armários, em imensas hordas, estas figuras tão banais: eleitores irresponsáveis ao extremo, totalmente desprovidos de senso crítico, analfabeto políticos mas cheios de certezas, apegados a verdades absolutas a que chegaram depois de fazer graduação, mestrado e doutorado na UniZap. Figuras que outro cartunista, Custódio, apelidou de Whatstruz.

Em artigo recente, outra das mais perspicazes mentes do Brasil, a Eliane Brum, sugeriu que enfim chegou ao poder uma espécie de encarnação do homem médio – ao que poderíamos acrescentar, nos trilhos dos ensinamentos de Hannah Arendt, que Bolsonaro é medíocre como Adolf Eichmann. Bem-vindos à nova versão da Banalidade do Mal!

Estamos em plena distopia. Mas longe de ser somente catastrófica, esta cena distópica é também hilária, tão ridículos são as falas e ações de muitos de seus protagonistas.

Vivemos num tempo tragicômico: assim como nos EUA a eleição de Trump soa similar a um cenário bizarro em que fossem alçados à presidência personagens satíricos como Homer Simpson, Eric Cartman ou Waldo (de Simpsons, Southpark Black Mirror), no Brasil não é muito diferente: elegemos um sujeito que mais se parece um vilão caricato, um caubói lambe-botas de Tio Sam, um corajosão que sabe fazer sinal de arminha, mas não consegue juntar a audácia para participar de nenhum debate eleitoral com os outros candidatos.

Em artigos recentes, argumentei que Bolsonaro baseou sua campanha à presidência em um mergulho de cabeça na Era da Pós-Verdade. Inspirou-se nas táticas de sequestro de big data e de viralização corporativa de conteúdos fascistas nas mídias sociais para fazer por aqui aquilo que foi realizado por Donald Trump na América do Norte e exposto pelo importante documentário Trumping Democracy / Driblando a DemocraciaDeram mais um um golpe na democracia já duramente combalida após o impeachment sem crime de responsabilidade que derrubou Dilma Rousseff.

Foi um processo com direito a facada provavelmente fake, enxurrada de fake news pagas com caixa 2, além de tramas inconfessáveis de nepotismo para enriquecimento de seu clã familiar através de desvios via laranjas. O TSE, acovardado, permitiu que isso se desenrolasse, assim como o STF, cúmplice e co-partícipe do Golpe de Estado que faz o Brasil iniciar 2019 com hegemonia de togas e fardas com pendores para a extrema-direita.

Este “tiozão de zap”, hoje empoderado, de quem poderíamos rir como fazemos com Homer Simpson, mas que agora devemos temer como os romanos temiam Calígula, já está sendo comparado a outros tiranos neofascistas do cenário global (como Duterte e Orbán). Pois este ser humano não parece ser minimamente capaz de empatia com a pluralidade dos seres humanos com o quais compartilha o mundo.

Ele e sua turma vem imbuídos de um fanatismo ideológico que prega um Brasil re-militarizado e teocrático. Um regime autoritário ao extremo no aspecto policial-carcerário, ainda que neoliberal até as raias da insanidade em economia e extremamente careta no que toca às políticas sexuais e às pautas identitárias.

Em outras circunstâncias históricas, em que estivéssemos sob condições normais de temperatura e pressão, Bolsonaro seria apenas uma caricatura ridícula – uma figura semelhante a um Tiririca do mal, quase um personagem da Escolinha do Professor Raimundo, um afrontador do “politicamente correto” com uma enxurrada de pensamentos maldosos e intolerantes. Uma excêntrica espécie de dinossauro vivo, que esqueceu de ser extinto, e que fica vomitando racismo, misoginia e louvores a torturadores em uma época esclarecida e civilizada.

Porém, em nossos tempos, o poder de fascinação dele se manifestou de modo chocante – e muitos se tornaram idólatras de um “mito” que se sente no direito de pisotear os direitos humanos com seus discursos em que des-recalca a agressividade e a intolerância contra minorias. Bolsonaro encontrou massas imensas para aplaudi-lo e tratá-lo como “mito”, apesar de ser um mitomaníaco que vem levando o maquiavelismo populista, mentiroso e fraudulento, a níveis que merecerão entrar nos anais da história dos farsantes da política nacional.

Começamos o ano de 2019 com notícias como esta, por Exame:” O governo Jair Bolsonaro fará uma revisão de toda a estrutura da administração pública e exonerará os funcionários que defendam ideias ‘comunistas’, informou nesta quinta-feira o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.”

O fascismo sempre precisou construir um Inimigo Interno, demonizado e perseguido, para justificar as torturas, atrocidades e assassínios que comete em sua sangrenta e impiedosa marcha totalitária. E com a versão brasileira do neofascismo – distopia tragicômica encabeçada por Bozo / Onyx / Guedes / Damares / Moro / Olavo… – também é assim: fanatismo ideológico extremo, mas com políticos que ficam vestindo a máscara engana-trouxa da “neutralidade”, enquanto insistem no estúpido re-avivamento de cegueiras morais e políticas que deram à luz os monstros insepultos da “Banalidade do Mal” e dos “massacres administrativos” (a Alemanha do III Reich, a Itália sob Mussolini, a Espanha sob Franco, o Camboja sob Pol Pot, as ditaduras militares na América do Sul etc.).

Esta é uma extrema-direita cuja ideologia é ultraliberal em economia, chegando ao Pinochetismo explícito e à reedição de experiências macabras como o Peru sob Fujimori. Mas ultracareta e ultraautoritário nos “costumes”, impondo a ideologia do patriarcado supremacista heteronormativo de maneira truculenta e explícita. A caricata e risível Ministra Damares é a expressão mais explícita da imposição de uma camisa-de-força da caretice binária, amparada em crenças obscurantistas que reinstalam entre nós uma espécie de teocracia que nos deixa parecidos com uma versão tupiniquim do status quo de Gilead em The Handmaid’s Tale / O Conto da Aia (M. Atwood).

Nesse contexto é que já foi destravada uma caça às bruxas, que esses machões metidos a caubóis da extrema-direita Bozonazista já colocam em pleno curso, para salvar a Família Tradicional Brasileira, o Cidadão-de-Bem, a Moral e os Bons Costumes, do perigoso complô comuno-petista para tornar-nos uma nova Cuba.

Num re-ativamento do Macartismo da Guerra Fria, com a utilização da velha e mofada lorota do “combate ao comunismo” sendo mobilizada como ferramenta de propaganda para enganar os otários, os fascistas e plutocratas – homens, velhos, brancos e ricos, vomitando de tanto se deleitarem com os banquetes de seus privilégios injustos! – massacram os direitos mais fundamentais da população em prol de minúsculas elites econômicas.

Curioso que Bolsonaro, que adere de maneira acéfala e fanática à ideologia anti-comunista que anima o militarismo capitalista no Brasil, hoje esteja morando em um palácio projetado pelo notório arquiteto comunista Niemeyer. As obsessões cromáticas do alto escalão do governo – Bolsonaro mandando remover as cadeiras vermelhas dos palácios, Damares pregando em vídeo-viral que na “nova era” os “meninos vestem azul e as meninas vestem rosa” – são mais indícios da insanidade dos que agora pretendem nos governar. Os eleitores irresponsáveis que fizeram esta péssima escolha nas urnas realmente acreditam que existe qualquer novidade ou renovação nestas atitudes ridículas desses reacionários estúpidos?

A peste fascista já está entre nós, como já fareja quem tenha o mínimo de faro crítico e cuca lúcida. E a luta antifa terá que lidar, com a urgência que esta emergência histórica exige, que respondamos coletivamente de maneira sábia àquela “questão-chave” já formulada por Wilhelm Reich: como combater a peste emocional do fascismo sem nos transformarmos em autômatos e monstros como se tornaram aqueles que agora somos forçados a combater? Como combater o fascismo sem transformar-se em um monstro? “Tentar derrotar tais autômatos recorrendo aos seus próprios métodos é como tentar esconjurar o diabo por meio de Belzebu”, escreveu Reich em “Psicologia de Massas do Fascismo” (p. 311)

“Nossa concepção de luta antifascista é outra. É um reconhecimento claro e impiedoso das causas históricas e biológicas que determinaram tais assassínios. Só por este processo, e nunca pela imitação, será possível destruir a peste fascista. Não se pode vencer o fascismo imitando-o ou exagerando seus métodos, sem o perigo de incorrer, voluntária ou involuntariamente, numa degeneração de tipo fascista. O caminho do fascismo é o caminho do autômato, da morte, de rigidez, da desesperança. O caminho da vida é radicalmente diferente, mais difícil, mais perigoso, mais honesto e mais cheio de esperança…

É fácil provar que, quando a organização patriarcal da sociedade começou a substituir a organização matriarcal, o principal mecanismo que levou à adaptação da estrutura humana à ordem autoritária foi a repressão e o recalcamento da sexualidade genital nas crianças e adolescentes. A repressão da natureza, do ‘animal’ nas crianças, foi e continua sendo a principal ferramenta na produção de indivíduos mecânicos.” (REICH, São Paulo: Martins Fontes, 2001, 3a ed, p. 311 e 318)

Longe de estar numa vibe patriótica, sinto profunda vergonha de ser brasileiro neste momento escrotíssimo de nossa História. Que imensas massas tenham sido irresponsáveis a ponto de serem feitas de trouxas por um falso patriota e pseudomessias é desanimador para qualquer educador que acredite que senso crítico é uma virtude a ser desenvolvida por todos e quintessencial a uma autêntica democracia. Bolsonaro nada tem de patriota: sua única pátria é o dinheiro, a ganância e ambição de domínio. Presta continência à bandeira americana, admira a truculência do sionismo de Netanyahu, provavelmente aplaude o genocídio de palestinos com a mesma atitude em que comemora o massacre dos povos indígenas e quilombolas.

Quer entregar as riquezas da Amazônia, o petróleo do pré-sal e a água doce abundante do Aquífero Guarani para o saque corporativo transnacional. Deseja aventuras bélicas que custarão imenso sangue e sofrimento humana na iminente campanha golpista para a derrubada de Maduro na Venezuela. Quer massacrar os direitos trabalhistas e a previdência social, impondo austeridade para os 99% enquanto permanece gozando das mamatas junto ao 1% de ricaços em seus bunkers militares.

É uma turma que pretende sucatear o SUS e desmontar a educação pública, e para isso pôs nos ministérios um ex-presidente da Unimed, uns fanáticos discípulos de Olavo de Carvalho fãs da militarização escolar e da submissão aos EUA. Querem um Brasil capacho de Tio Sam, com um povo silenciado e imbecilizado, que se entretêm com memes idiotas enquanto qualquer horizonte de justiça social escorre pelo ralo.

Este é o funeral da democracia: o golpista Temer passou a faixa para o neofascista e tomou posse um governo encabeçado por um farsante ditatorial e desumano. Um cara que idolatra Ustra e Duque de Caxias. Um nazi tropical, fraudulentamente eleito com uma fakeada, uma enxurrada de fake news pagas com caixa 2, torrentes de propaganda fascista nos púlpitos evangélicos, para além do golpe desferido contra a candidatura do preso político injustamente encarcerado em Curitiba.

Uma figura que, para além de todo repúdio ético e nojo existencial que desperta em quem ainda tenha o poder de reflexão e a capacidade de empatia, é completamente desprovido de qualquer apego aos valores democráticos e qualquer amor pela pluralidade humana que é, como Arendt ensina, a lei ontológica da terra. Somos os que fomos estigmatizados como extermináveis, marcados para morrer, mas que ficaremos vivos. E com as bocas nos trombones. Com os corpos em aliança, nas ruas, nas camas, nas redes. Resistindo e re-existindo, na usina cotidiana da construção coletiva de um outro mundo possível.

Feroz ano novo. E vamos à luta!

A Casa de Vidro – 04 de Janeiro de 2018

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CONFIRA TAMBÉM:

 

O Golpe de Estado está consumado: do impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma à condenação sem provas de Lula, triunfou o brutal atentado contra a Democracia

Vivemos numa época, neste manicômio a céu aberto que se chama Brasil, em que o Golpe veste toga e não farda. Para estuprar a democracia e deixá-la largada na sarjeta toda arrombada, o golpismo hoje utiliza-se dos tribunais e não dos tanques. E o golpismo só interrompe suas transmissões midiáticas, repletas de fake news para consumo de massas e de criminalização caluniosa do lulopetismo, para os lucrativos reclames do plim-plim (Amém, Itaú! Aleluia, Ambev, Riachuelo, Volkswagen!).

O golpeachment só funcionou pela ampla aliança que conseguiu congregar: uma frente parlamentar, uma jurídica, uma midiática, uma empresarial, com apoio dos manifestoches teleguiados por MBL e Rede Goebbels, tudo sob a regência do Santo Império Yankee, sempre desejoso de aniquilar democracias pela América Latina para aqui instalar regimes-fantoche, servis aos interesses das corporações multinacionais.

O golpismo é entreguista e atentatório à soberania nacional: o pré-sal já está virando propriedade internacional (Shell from Hell já dominou geral…), assim como o Aquífero Guarani encaminha-se para ser propriedade da Nestlé… Em breve teremos uma Disneilândia em plena Amazônia? E várias Trump Towers na Avenida Paulista e à beira das praias de Copabacana e Ipanema? Pogré$$io, Pogré$$io… eu sempre escutei falar

E assim assistimos, vergonhosamente apáticos, ao truculento tropel dos brucutus que vem reduzindo nosso frágil Estado Democrático de Direito a uma papa de ossos fraturados que boiam sobre uma poça de sangue que vai se ampliando – e sobre os quais se alimenta fartamente a cadela do fascismo (que, segundo Brecht, está sempre no cio).

Re-eleita em 2014 com 54 milhões de votos, Dilma Rousseff estaria encerrando seu segundo mandato como presidenta da república caso não tivesse sido deposta ilegalmente por este Golpe de Estado que pôde unir a “nata” de nossa casta dominante para produzir a hecatombe humanitária hoje em curso. Se, ao fim do segundo mandato de Dilma, o desemprego estava em seu menor índice da série histórica, hoje estamos com mais de 15 milhões de desempregados, voltando ao mapa da fome e a caminho da barbárie plena: austeridade para os pobres, lucros imensos para os ricos, tudo defendido por um Estado policial-militar que já tirou seu fascismo do armário e nem mais se disfarça com uma máscara de democrata…

Hoje, aquele crápula golpista e aquele troglodita imbecil que é o Bozonaro – que votou “sim” para o impeachment elogiando um dos chefes da tortura do regime militar, o Ustra, e que fez uma campanha em que vomitou pela boca doses intragáveis de machismo, racismo, homofobia, armamentismo e apologia da tortura – é o grande beneficiário do processo putschista.

Àqueles que insistem na ladainha de que Dilma caiu por sua “incompetência”, pelo “conjunto de sua obra”, é preciso lembrar da intensa sabotagem que sofreu das gangues parlamentares de oposição, que aprovaram várias pautas-bomba tendo como objetivo explícito causar o caos no governo, com base na lógica repleta de sadismo do “quanto pior, melhor”. Figuras sórdidas como Cunha e Aécio, Anastasia e Jucá, Janaína e Ana Amélia, fizeram tudo para nocautear o segundo mandato de Dilma, apesar desta ter inclusive praticado aquela lamentável “guinada à direita”, para agradar seus futuros algozes, quando nomeou Joaquim Levy e tentou implementar, para acalmar os cães raivosos que haviam sido derrotados nas urnas, uma política mais ao gosto de nossas elites privilegiadas e fissuradas em desigualdade e injustiça.

Bozonazi hoje surfa na onda de antipetismo que vem sendo insuflada desde Junho de 2013 por aqueles que buscaram – com sucesso – se apropriar da insurreição popular que tomou as ruas na primeira fase das Jornadas de Junho. Tudo se desencaminhou quando, do protagonismo do MPL e das lutas populares focadas em mobilidade urbana e melhoria dos bens públicos, tudo tornou-se uma micareta do Coxinato, imbecilizado pelo MBL e usado como títere por aquela rede de mídia corporativa que, é bom lembrar, apesar da verdade ser dura: ela apoiou a Ditadura, e ainda apóia. Se de fato se confirmar que a Rede Globo está preferindo pôr no poder a chapa dos “profissionais da violência” (Bostossauro e Mourão), pode mudar de vez seu nome para Rede Goebbels.

Toda essa farsa grotesca e de graves consequência culminou em 2018 com a condenação grotesca (sem provas, mas com muitas convicções) do líder absoluto nas intenções de voto para a presidência da República. A prisão do ex-presidente Lula, o chefe-de-Estado que encerrou seu mandato com o melhor índice de aprovação popular da História, entrará para os anais deste país como uma das injustiças mais infames já perpetradas por aqui. Em ano eleitoral, num processo que fede de cabo a rabo a perseguição política, a prisão de Lula está destinada a se tornar objeto de estudo, pelo mundo afora, para aqueles interessados em compreender o quando as práticas do lawfare se tornaram cruciais no jogo político contemporâneo. Os mais lúcidos dentre nós já perceberam que a Ditadura Togada, por mais que faça suas poses de estar respeitando a Constituição, não se abstém nem mesmo de botar fogo no Comitê de Direitos Humanos da ONU.

As ações de parte do Poder Judiciário fedem a fascismo. Como escreveu Fernando Horta: “Em todo o lugar que se desenvolveu o fascismo, ele sempre precisou dos juristas. O fascismo troca a política pela norma. É a ditadura da ‘ordem’, o império da punição. A política dá lugar ao exercício do poder, e poucos recordam que o Direito sempre é feito por alguém e com algum objetivo. Em todos os lugares, o fascismo perverteu a lei para atacar seus opositores, ao mesmo tempo que fazia da ritualística vazia do judiciário a legitimidade da aniquilação política dos inimigos. No Brasil não é diferente.” (Jornal GGN)

Para desvelar as tenebrosas transações que levaram à derrubada de um governo legítimo (com o Supremo, com a Mídia corporativa, com a Fiesp e outras entidades patronais, com o PSDB derrotado nas urnas, com o MDB chefiado pelo gangster do Cunha, com o Vampirão Neoliberalista, com o Moro do bico de tucano, com tudo…), Dilma acaba de lançar um documentário histórico.  Assista já ao “Ato 1” de A HISTÓRIA DO GOLPE: 

“É o segundo golpe de Estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado em 2016 por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo” – Dilma Rousseff, presidenta do Brasil entre 2010 e 2016. In: SINGER, André. “O Lulismo em Crise”. Pg. 14. Companhia das Letras, 2018.

De volta à cena pública em 2018, Dilma é candidata ao Senado por Minas Gerais e lidera as pesquisas de intenção de voto por larga margem segundo o Ibope: https://glo.bo/2Qw5HFx. O novo filme soma-se a uma outra obra crucial na história do documentário político contemporâneo: O Processo de Maria Augusta Ramos, onde também escancaram-se as entranhas de um Impeachment kafkiano que fez colapsar no Brasil o Estado Democrático de Direito e foi um prelúdio para a prisão injusta de Lula, ferindo de morte a legitimidade das Eleições de 2018. Leia a resenha sobre “O Processo” em A Casa de Vidro.

Em brutal desrespeito à vontade da ampla maioria do eleitorado do Brasil, além de recusando a legitimidade do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o TSE agiu no sentido de cassar os direitos políticos de Lula, criminalizado pela guerra jurídica (lawfare) da Lava Jato como meio para perpetrar a violência que Renato Lessa chamou de “impeachment preventivo”. Torna-se cada vez mais evidente que a onda de criminalização do PT – Partido dos Trabalhadores é simultânea, concomitante e co-dependente à ascensão da extrema-direita fascista que hoje ameaça a democracia brasileira com seu colapso total através da chapa dos militares Bozonazi & Mourão.

Contra a ascensão dos “profissionais da violência”, figuras sádicas e desumanas, que fazem apologia da tortura, propagam o ódio machista e racista, estamos convictamente ao lado dos que lutam e lutarão incansavelmente por justiça social, inclusão, expansão dos bens públicos, comunitarismo, solidariedade, respeito às diferenças, celebração das diversidades. Por isso defendemos que após as violências institucionais cometidas contra Dilma e Lula, todo brasileiro sensato e lúcido deve repudiar com veemência não só a candidatura fascista, mas também as candidaturas veiculadas à Aliança Golpista (não a Meirelles, Alckmin, Amoêdo!).

Dilma e Lula agora estão apoiando com todas as energias a candidatura do ex-Ministro da Educação e ex-Prefeito de São Paulo Fernando Haddad, acompanhado pela Manuela D’Ávila  (PC do B), em defesa de nossa democracia tão combalida e golpeada. Estamos juntos na empreitada desafiadora e complexa de construirmos coletivamente um projeto de país onde o povo seja a solução, e não o problema; onde direitos sejam respeitados, e não aniquilados; onde investimentos em bens públicos sejam intensificados, e não congelados; onde o trabalhador seja valorizado, e não escorraçado e re-escravizado.

“Vocês já devem saber que PROIBIRAM minha candidatura. Proibiram o povo brasileiro de VOTAR LIVREMENTE. Há mais de 5 meses estou preso sem prova nem crime. (…) Se querem CALAR A NOSSA VOZ, estão muito enganados. Continuamos vivos, no coração e na memória do povo, e nosso nome agora é Fernando Haddad. Já somos milhões de Lulas, e de hoje em diante Haddad será Lula para milhões de brasileiros.” – Luiz Inácio Lula da Silva

Veja também: Manuela D’Ávila, do PCdoB – Partido Comunista do Brasil, candidata à vice-presidenta na chapa com Fernando Haddad, do PT – Partido dos Trabalhadores, expõe 10 medidas para reformar o sistema tributário de modo a diminuir as brutais desigualdades sociais do Brasil:

Por Eduardo Carli de Moraes / 15 de Setembro de 2018
Acompanhe www.acasadevidro.com

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LEIA TAMBÉM:

OBJETIVO ALCANÇADO – Por Eric Nepomuceno em Página/12:
https://www.pagina12.com.ar/141592-objetivo-alcanzado

Nesta semana, foi concluído o processo iniciado quando o juiz de primeira instância Sérgio Moro sentenciou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e seis meses de prisão – além de impedir que ele ocupe qualquer cargo público pelos próximos 19 anos. O motivo: ter (supostamente) recebido um apartamento de três andares e pouco mais de 200 metros quadrados, no decadente balneário do Guarujá, como propina em troca de contratos na Petrobras.

A sentença já era esperada. No fim das contas, desde o início da chamada “Operação Lava Jato” está mais que clara a obsessão fundamentalista deste juiz provinciano contra o ex-presidente mais popular do último meio século no Brasil e principal figura política do país nos nossos tempos.

Provas de que o apartamento foi realmente adquirido por Lula? Nenhuma. Para começar, o imóvel em questão teve sua propriedade repassada ao banco estatal Caixa Econômica Federal, como parte de um acordo de suspensão de pagamentos e recuperação judicial da empreiteira OAS. Mas há outros elementos: não existe um só registro de propriedade do imóvel no nome de Lula, e isso por uma simples razão: nunca pertenceu a ele.

A história do apartamento triplex é bastante conhecida no Brasil, e devidamente omitida pelos meios de comunicação hegemônicos, que foram um dos pilares do golpe institucional que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, mas cujo objetivo claríssimo sempre foi o de liquidar a figura política de Lula da Silva.

Efetivamente, há mais de uma década, a falecida esposa de Lula, dona Marisa Leticia, adquiriu uma quota de um apartamento, em um edifício que seria construído no Guarujá. De acordo com as leis e costumes do Brasil, é possível comprar uma quota de uma construção e, quando ela esteja terminada, escolher determinado apartamento e pagar a eventual diferença. Foi o que ocorreu: quando o edifício ficou pronto, dona Marisa foi visitá-lo, e desistiu do negócio, inclusive pedindo o ressarcimento da quota. A empreiteira, que obteve gordos contratos com a Petrobras durante os mandatos de Lula, entendeu o óbvio: ter o ex-presidente entre os proprietários do edifício seria um atrativo insuperável. Mandou reformar todo o imóvel, e até incluiu um elevador privado, e chamou Lula para vê-lo já com as remodelações. Quando o analisou, Lula – em sua única visita ao apartamento – deu o não definitivo da família ao negócio.

Não há uma só prova de que, em algum minuto, de qualquer dia, o ex-presidente tenha recebido o apartamento. Sobram provas, contudo, de que a empreiteira OAS continua sendo sua verdadeira e a única proprietária. Então, por qual motivo Lula foi condenado?

Por uma única e verdadeira razão: porque liquidá-lo era o objetivo final do golpe iniciado com a destituição de Dilma Rousseff.

A frustrada presidenta era uma pedra no caminho do grupo que armou o golpe: o atual senador Aécio Neves, derrotado por ela nas eleições de 2014 e que liderou a campanha de sabotagem legislativa do seu segundo mantado, entre 2015 e 2016, com o pleno aval do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; os meios hegemônicos de comunicação; os partidos políticos que negociam seu apoio nos bastidores de Brasília; o grande capital nacional e (claro) os interesses das multinacionais que pretendem se beneficiar da nova situação. Para que o plano pudesse se completar, era necessário liquidar Lula e seu partido, o PT – Partido dos Trabalhadores.

A chegada de Michel Temer e seus capangas ao governo teve como objetivo primordial o de impor “reformas” que, na verdade, significaram desmantelar tudo o que se construiu em termos de direitos sociais, não só durante os governos de Lula e Dilma como nos últimos 50 anos – e, no caso dos direitos trabalhistas, em mais de 70 anos. Agora, quando se vê quem são os verdadeiros bucaneiros, os personagens deixam de ser necessários. Temer é um presidente que, além de ilegítimo, está moribundo.

Lula da Silva se transformou no primeiro ex-presidente condenado por corrupção, graças à atuação de um juiz provinciano cujo autoritarismo e parcialidade são mais que evidentes, e não somente segundo os juristas como também para cada vez mais numerosas parcelas da opinião pública, que não se deixaram idiotizar pelos meios de comunicação hegemônicos, encabeçados pela Rede Globo.

Sempre é bom repetir: não há sequer uma mísera prova contra Lula no caso do apartamento do Guarujá, ao mesmo tempo em que abundam as provas do massacre que o ex-presidente sofre, de forma incessante, da imprensa cartelizada, que considera sua popularidade como uma ameaça. Para esses meios, Lula é um pássaro perigoso, que deve ser abatido antes que volte a sobrevoar o país.

Para defender interesses desse tipo, a direita mais retrógrada encontrou um jovem juiz do interior, obcecado pela fama e pelo troféu que significa prender alguém como Lula, e se esse mesmo magistrado ainda conta com a ajuda de promotores fanáticos, tudo isso amparado pelos meios de comunicação e a omissão cúmplice das instâncias superiores da Justiça, quer dizer que o roteiro do filme já está concluído.

Agora, é preciso ver como o público vai reagir. Se com a devida indignação, ou com a miserável resignação.

Eric Nepomuceno

Tradução por Carta Maiorhttps://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FO-objetivo-de-Moro-foi-alcancado%2F4%2F41712

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Ilustrações por Vitor Teixeira e Laerte

A MORTE QUE ERA SEMENTE – O Caso Marielle Franco (1979 – 2018) e a Recriação do Espaço Público na Era da Internet

Rio de Janeiro: comoção pública após o assassinato de Marielle Franco toma as ruas em 15 de Março de 2018

A MORTE QUE ERA SEMENTE…
por Eduardo Carli de Moraes || A Casa de Vidro || 19 de Março de 2018

Marielle Franco foi morta (não morreu de morte morrida, morreu de morte matada!), mas suas lutas e pautas nunca estiveram mais vivas do que nestes dias de Março de 2018. Pouco tempo depois do 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, um autêntico terremoto de indignação popular tomou redes e ruas.

Em especial no Rio e em Sampa, as manifestações chegaram a ganhar contornos de nova Primavera Feminista ou de uma re-encarnação das Jornadas de Junho, dado o caudal impressionante de participação em protestos públicos da galera que saiu à urbe, com os cartazes em riste e com o gogó berrando palavras-de-ordem, na cauda do cometa da comoção geral que se seguiu à execução de Marielle e Anderson.

Como escreveu Eliane Brum em seus comoventes artigos para El País (em espanhol e em português), o assassinato a converteu em totem, sua conversão em cadáver seguiu-se à sua transmutação em um corpo simbólico que não se pode assassinar, afinal suas lutas seguem vivas e, como têm expressado a Manu D’Ávila, na esteira do V De Vingança de Alan Moore, “nossas idéias são à prova de balas”:

Ao ser assassinada, Marielle revelou uma segunda realidade, esta ainda mais surpreendente: a de que os brasileiros, ora exibidos como polarizados e divididos, ora como passivos ou omissos, são capazes de se comover – e mover – por uma mulher nascida na favela, negra, lésbica e feminista.

Em nenhum momento se deve esquecer da força dessa ruptura simbólica. Com Marielle Franco há uma quebra de paradigma dos choráveis do Brasil. Como mulher negra e nascida na favela, Marielle Franco pertencia aos “matáveis” do Brasil, aqueles cujas mortes não causam espanto, normalizadas que são. O que seus assassinos não calcularam era que, com sua vida, ela já não era mais “matável”. O que ninguém poderia calcular é que Marielle havia se tornado também parte dos choráveis, aqueles por quem a maioria dos brasileiros faz luto e luta. Não é pouca coisa para um país como o Brasil. – ELIANE BRUM

Se a comoção pública com o assassinato de Marielle foi tão gigantesca, gerando uma maré de manifestações oceânicas e ampla repercussão midiática, talvez seja porque a vereadora é um emblema de um empoderamento múltiplo e interseccional que interessa às elites massacrar para calar.

Marielle reunia – “todas elas juntas num só ser”, para lembrar a canção de Lenine – o empoderamento negro, o feminino, o LGBT, o das classes despossuídas, o do socialismo. Empoderamentos concentrados numa mesma afro-mulher que florescia, a olhos vistos, ganhando cada vez mais espaços de poder e fazendo sua voz e seus argumentos serem ouvidos, não apenas dentro dos limites murados da política institucional, mas nas ruas, nas mídias, nas praças.

Escrita com o sangue de Marielle no asfalto do Rio de Janeiro está uma mensagem tétrica, que nos é mandada por aqueles que nos querem amedrontados e retraídos: com o sangue dela (e de Amarildo, e de Sabotinha, e de…), a nossa “Elite do Atraso”, conforme a expressão sagaz cunhada por Jessé Souza, vem tentando dizer-nos: “vocês, escória do mundo, favelados, bichas, sapatonas, pretos e pretas, índios, comunistas, anarquistas… esqueçam a vontade de ascensão, de reconhecimento, de participação! Quem mandará aqui seremos sempre nós, os senhores brancos, ricos, heteros, religiosos, gente de bem, cumprindo com o dever pátrio de reinar sobre os outros com pulso firme!”

Súmula do que seria desejável que acontecesse com o Brasil, como argumentou Alceu Castilho: uma enxurrada de novas Marielles invadindo o cenário político para reclamar, em alto e bom som, no espaço público, nossas batalhas anti-racistas, anti-machistas, anti-fascistas, anti-capitalistas, além de nosso direito (ainda por conquistar) a modos-de-vida e formas-de-amar destoantes da norma hegemônica imposta.

Marielle era também encarnação da ousadia dos que resistiram sempre, neste Brasil cujo Estado é tão frequentemente autoritário, aos desmandos de um terrorismo estatal que não cometeu poucos crimes e escalabros nos dois períodos ditatoriais prévios – o Varguista de 1937 a 1945 e a Ditadura Civil-Militar de 1964 a 1985. Marielle é do time daqueles que levantam a voz da soberania popular e dos direitos inalienáveis dos humilhados e ofendidos, demandando justiça e vida digna para todos, ao invés do apartheid defendido pelo Monstro-Leviatã de um Estado policial-carcerário, ainda todo contaminado com um racismo institucionalizado que nos foi legado pelo escravismo de outrora, tão mal enterrado entre nós.

Marielle era a salutar voz da interseccionalidade na práxis, a voz a um só tempo feminina-negra-lésbica-socialista-libertária, que ousava ter voz e vez em meio aos “hômi” e aos “dotô” – aqueles que nos queriam mudos, passivos, mortos-vivos comendo a pipoca da ideologia oficial nos cinemas comerciais e redes de TV, pastando na idiotia dos apolíticos que se enterram na vida privada, às vezes nem suspeitando o quanto são cúmplices de algozes, colaboradores de golpistas, louvadores da tortura…

Marielle agora entra como símbolo, como evocação constante, como emblema ensanguentado, no xadrez das novas lutas identitárias – e com certeza marcará manifestações futuras como a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. O momento é, portanto, mais do que propício para tentar refletir sobre as “lutas identitárias”, sua história, seu futuro, seus alvos e métodos. E é o que faz com tanta graça, e reflexão tão profunda, o Francisco Bosco (filho de João Bosco) em seu novo livro: A Vítima Tem Sempre Razão? Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro  (2017, Ed. Todavia).

Fotografia: Eduardo Valente

O livro começa falando que a Marcha das Vadias é realizada no Brasil pelas “bucetas ingovernáveis” desde 2011, mas nasceu bem longe dos trópicos, em Toronto, no Canadá. A Slut Walk torontonita nasceu em reação ao comentário de um policial: “diante de recorrentes casos de abuso sexual em Toronto, ele [o policial] recomendou às mulheres que, para evitá-los, evitassem se vestir como vadias. A pauta da marcha se tornou assim o direito à irrestrita circulação do próprio corpo no espaço público”, aponta  Bosco (p. 7-8).

Se o exemplo é invocado logo no comecinho do livro, é pra frisar com um caso concreto o quanto estamos vivenciando uma intensificação geral das pautas identitárias, que forçam suas demandas e denúncias no espaço público usando a sinergia redes-ruas. E é esta sinergia redes-ruas também o que faz da Mídia Ninja. da Nexo, da Pública, emblemas dos potenciais desta nova era comunicacional em que adentramos.

A partir de 2013, Bosco diagnostica no Brasil alguns “marcos de tensionamento social”: as “Jornadas de Junho de 2013”, “o colapso do lulismo com o impeachment da Dilma em 2016″ e uma “intensificação das lutas identitárias”, exemplificadas pelos movimentos negros, feministas, LGBTs etc. Tudo isso num contexto convulsionado pelo incremento considerável das “redes sociais digitais”, pelo uso massivo das ferramentas de comunicação como Facebook, Twitter, Instagram, Whastapp etc.

Estas lutas identitárias, que são batalhas de minorias por reconhecimento de seus direitos a formas alternativas de existência e de convívio, têm seu berço histórico enquanto movimentos sociais organizados e autoconscientes: segundo Bosco, elas nascem no “momento político do Maio de 1968”, pois “na História da esquerda – ou melhor, das esquerdas -, 1968 fez surgir outra vertente: a política das diferenças”:

“Ela emerge, como observa Fredric Jameson, em meio a uma crise da concepção clássica da classe social. (…) Já no período de 1968 se estabeleceu uma crítica ao trabalho alienado, de regime taylorista, hierarquizado, que era a base da perspectiva revolucionária marxista (o proletário como a classe totalmente despossuída, de onde partiria a insurreição).

Em oposição a essa forma de trabalho, deu-se uma valorização das atividades mais flexíveis e arriscadas, cujo sentido era a autorrealização, mesmo que isso implicasse perda de estabilidade e menor remuneração. No lugar da crítica clássica à exploração da força de trabalho, há uma crítica à inautencidade do trabalho tradicional, à sua incapacidade de responder às exigências individuais de autorrealização. É no contexto dessa crítica ao trabalho, considerado em sua dimensão impessoal, que emergem os pleitos por reconhecimento de formas de vida particulares: os movimentos identitários.” (BOSCO: p. 72-73)

“Abaixo as cadências infernais!”, gritavam os muros de Paris durante a insurreição proletária-estudantil de 1968. Mas também pediam: “deixem-nos gozar sem entraves!” e “é proibido proibir!” (depois transformada em estridente manifesto tropicalista por Caetano Veloso e sua trupe).

A luta anticapitalista de Maio de 1968 teve uma face econômica, através da greve geral do operariado e dos estudantes, que em concerto cruzaram os braços em número que alguns chegam a estimar em 1 milhão de pessoas, unida à face das lutas libertárias relacionadas ao comportamento, às relações afetivas, ao tempo de vida e seu sequestro pelas instituições capitalistas.

Parar as fábricas capitalistas não estava separado de um desejo de revolucionar os modos caducos de enquadrar os comportamentos nos velhos moldes patriarcais, racistas, elitistas. E essa dissidência não mais aceitava ficar em silêncio, em segundo plano: invadia o espaço público reclamando o incremento de sua potência, de seu direito à expressão e à participação política.

Na linguagem das barricadas e dos graffitis, das canções e dos filmes, quiseram que a vida não fosse cerceada em suas manifestações plurais e multi-diversas devido à censura e à repressão por parte de um Estado institucionalmente marcado por males de origem como o patriarcalismo machista e o racismo institucionalizado.

Naqueles tempos de 68, entre os revoltosos em Paris – herdeiros da Comuna instaurada em Março de 1871 – o Herbert Marcuse era um dos gurus dos insurgentes. Intérprete perspicaz de Freud e renovador das teorias da revolução de Marx, Marcuse propunha como imagem para a época a batalha épica “Eros Contra a Civilização” – emblema que não deixava de pegar uma certa carona no cometa de Nietzsche e da oposição que ele, em Ecce Homo, propôs como síntese de sua obra: Dioniso Contra o Crucificado.

A teoria crítica de Marcuse propunha a superação revolucionária da  Sociedade Industrial Unidimensional, culpada pela brutal exploração e espoliação dos frutos de nosso trabalho, além de denunciada pelo excesso de repressão e controle que exerce sobre os cidadãos através de seu Estado policial-penal e sua tecnocracia bélica. Elementos explodidos naquela época até as dimensões insuportáveis das guerras-de-agressão imperialistas (como a perpetrada pelos Yankees no Vietnã e no Camboja). Num mundo ainda em choque pelos cogumelos nucleares e já temendo um aprofundamento das hecatombes ecológicas e desequilíbrios sócio-ambientais.

Outro herói intelectual das lutas identitárias era (é e será) Michel Foucault. Antes de ser fulminado pela AIDS em 1984, o magistral intelectual francês foi um dos mais perspicazes reveladores dos mecanismos micropolíticos de poder que operam no cotidiano de prisões, manicômios, hospitais, quartéis, escolas, mosteiros, dentre outros espaços instituídos pela Sociedade Disciplinar. Esta, em sua sempiterna aliança com o ideal ascético e a mortificação da carne alçada à ética hegemônica, sob o capitalismo impõe com truculência seu  time is money, servindo como emblema do truste realizado pela união entre Capitalismo e Lutero para nos impedir de usufruir de qualquer tempo que não esteja sendo empregado por atividades feitas pela grana (símbolo da salvação)

O sujeito conformista acredita que é ser dever imolar sua vida, sacrificar sua autonomia, para oferecer-se como massinha-de-modelar nas mãos dos poderosos que impõe normais de viver e pertencer cujas estruturas patriarcais e machistas, racistas e segregacionistas, opressoras e dominadoras, são assim reproduzidas por rebanhos de conformados e conformadores (infelizmente dotados de porretes, palmatórias, prisões, tanques…).

As lutas identitárias emergem contestando as normas dominantes, a imposição de um jeito-de-viver único, o dogma de que a normalidade consiste na machidade, na branquitude, na heterossexualidade, na cisdade, na produtividade econômica, de modo que o pensamento reacionário, anti-moderno, agarrado a estruturas de poder elitistas (o machismo, o supremacismo racial, a heterossexualidades compulsória etc), reproduz as condições para que mulheres sejam reduzidas ao status de Segundo Sexo; negros sejam considerados como escravizáveis, torturáveis como se não fossem bois-de-carga; enquanto gays são xingados de doentes mentais e transsexuais humilhados (ou mesmo assassinados) como se fossem abomináveis aberrações.

Tal higienismo normopata tem muitas similaridades com a doutrina racista-higienista dos nazistas – o que significa que não faltam na sociedade de hoje elementos para uma re-edição tétrica da Solução Final posta em prática pelo III Reich alemão. O que José Ângelo Gaiarsa chamou de normopatia é a doença dos normais: os normais que desejam ver o nómos dominante imposto, de maneira totalitária, à sociedade inteira. É o que Laerte expressou com brilhantismo na síntese colorida que fez onde toda a multicor diversidade humana está sendo despejada sobre a fôrma estreita e confinante da Família Tradicional Brasileira.

Laerte

O livro de Bosco chega em muito boa hora, como precioso mapa para navegar pelo contexto sócio-político inédito gerado pela intensificação das lutas identitárias, no contexto de disseminação democratizada de mensagens propiciada pelas novas tecnologias digitais.

Vivemos agora em imersão cada vez mais ampla e acelerada nos mares informacionais hi-tech da rede mundial de computadores: A Internet, esta selva de bits da Aldeia Global, é a grande agente de uma “planetarização” da comunicação, nova na travessia da humanidade, como havia notado o visionário filósofo-da-comunicação canadense Marshall McLuhan.

“O homem cria a ferramenta. A ferramenta recria o homem.” – McLuhan

Pois a Galáxia de Gutemberg veio desaguar na World Wide Wide. Somos já os contemporâneos de um mundo interconectado, onde circulam os drones (de filmagens e de bombardeamento…) e as transmissões por satélite. O que ocorre hoje no Brasil pode repercutir imediatamente na China. O assassinato de Marielle Franco no Rio foi chorado, protestado, denunciado e lamentado no mesmo dia em outros centros globais, de Buenos Aires a Paris…

Neste mundo hiper-conectado, mas todo polvilhado de guerras e conflitos, as mega-empresas da informática e da comunicação digital se tornam gigantes, major players da economia global, como provam os valores de mercado de Google, Microsoft, Apple, Facebook (este, aliás, dono também do Instagram e do Whatsapp).

Neste novo contexto, posso publicar notícias falsas em um blog, que serão replicadas por 10.000 robôs programados para compartilhá-la nas timelines; posso receber e enviar nudes e vídeos XXX – até mesmo os que contêm pedofilia, zoofilia ou estupro – entre os continentes, de maneira instantânea (vide a alta frequentação de portais como RedTube e PornHub);  nos submundos do sistema circulam ainda toneladas de conteúdo cultural pirateado, de ebooks a discografias em MP3, de filmes em torrent a artigos científicos arrancados do monopólico acadêmico-editorial (vide SciHub); etc.

A Internet, em seu aspecto mais caótico e subversivo, fornece hoje um campo de atividades para a nova contracultura, favorecendo imensamente a livre circulação do conhecimento e de bens culturais, desviados de seu originários fins econômicos, que ficam boiando nas baías piratas das águas informacionais. Nunca na História Humana vivemos isto: tanto conhecimento precioso em circulação, à disposição, sendo transferido em altíssimas doses pelos mecanismos peer to peer. Cybercomunismo, como sabem bem os hackers, existe faz tempo – como ideal e como prática.

Estamos entrando numa fase da história humana, e que nada indica ser reversível ou stopável, em que um novo elemento geopolítico entrou em cena: aquilo que Francisco Bosco chama de “ágora das timelines” (p. 17), que vem constituindo um “novo espaço público”, onde as lutas identitárias têm alto protagonismo. Neste novo lócus para o debate público, onde ocorrem tantas polêmicas entre diferentes perspectivas sociais, o que não falta é conflito e agressividade. É a guerra de todos contra todos, atualizada de sua velha versão Hobbesiana para o atual arranca-toco das UFCs on-line.

As lutas identitárias são, neste vale-tudo, frequentemente alvejadas por xingamentos e tiros vindos da Direita, no espectro político: há quem deslegitime as denúncias feitas pelas mulheres de casos de estupro e assédio sexual, chamando isso de “mero mimimi de feminista”, sendo que esse tipo de argumento costuma vir acompanhado pelo desejo de extinção de leis de proteção da mulher contra violência doméstica (caso da Lei Maria da Penha) e militância para que casais homoafetivos nunca possam ser reconhecidos como casal em união civil.

Identificadas como “pautas de esquerda”, as ditas “pautas identitárias”, em larga medida, praticam demandas de justiça e igualitarismo nos moldes da ética republicana iluminista e da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, somando a isso a afirmação de um novo direito, o “direito à diferença” (que não entra em conflito com o “direito à igualdade”): como disse Joan Scott, “não se deve nem abandonar o direito à diferença, nem o direito à igualdade” (apud Bosco, p. 85).

Quando falamos em “direito à diferença”, queremos dizer também o direito ao amor dissidente, ao casal fora das normais que impõe uma heterossexualidade compulsório e uma divisão de gênero binária. “O direito à união civil entre homossexuais poderia ter seu princípio estendido a pessoas trans, a alianças diferentes do tradicional par (não há razão para o Estado impor essa lógica do dois) e assim se chegaria ao direito a qualquer tipo de união consensual”, argumenta Bosco (p. 86).

O Brasil, infelizmente, é líder global em assassinatos de ativistas dos Direitos Humanos e também em homicídios motivados por homofobia e transfobia. O caso Marielle Franco também é ilustrativo aqui: fazendo suas as bandeiras do movimento LGBT, ela atraía a fúria dos homofóbicos; fazendo suas as bandeiras do movimento anti-racista, fazia recrudescer os ímpetos de segregação e discriminação dos racistas; fazendo suas as bandeiras feministas, era alvo para o desprezo e a truculência do machismo ainda hegemônico; etc.

O livro de Bosco é precioso pois mostra o valor e a necessidade destas lutas identitárias, mas também pratica uma salutar crítica das “premissas problemáticas” e “métodos de luta que devem ser recusados” (p. 91). Bosco estuda casos emblemáticos e embrenha-se na problematização das reações da Internet e das ruas a episódios como:

  • Blocos carnavalescos no Rio de Janeiro que, no Carnaval de 2017, decidiram não tocar certas “marchinhas clássicas do cancioneiro brasileiro sob a alegação de que suas letras contêm trechos preconceituosos contra diversas minorias” (p. 93)
  • A polêmica envolvendo o video-clipe “Você Não Presta”, de Mallu Magalhães, acusado de racismo e objetificação do corpo negro (p. 129);
  • O caso da cantora Marcia Castro, acusada por suas fãs do movimento feminista de ser “fiel defensora de estupradores” (p. 135);
  • Uma polêmica viral sobre apropriação cultural no caso do debate sobre legitimidade (ou não) do uso de turbantes por mulheres brancas (p;
  • Denúncias de desvios no comportamento sexual desferidas por feministas contra artistas (como Gustavito Amaral) e intelectuais (como Idelber Avelar).

A estratégia de Bosco em dissecar estes casos concretos está plenamente justificada no livro como um modo de escapar aos perigos da generalização, das injustas formulações preconceituosas e falsas – tais como “todos os índios são preguiçosos”, “todos os homens são potenciais estupradores”, “todos os negros nasceram para ser escravos”. Para o autor, uma frase como “a vítima tem sempre razão” é tão problemática quanto as citadas, incorrendo numa petição de princípio (chamar de vítima à pessoa que denuncia, somente pelo fato de denunciar, é saltar a conclusões apressadas), de modo que “a adesão incondicional à palavra da vítima incorre em potencial injustiça quanto ao indivíduo particular que é acusado.” (p. 156)

Um dos méritos maiores da obra está na análise psicológico-filosófica apurada que ele realiza dos linchamentos, os reais e os digitais.

Bosco foca no linchamento como ato de humilhação do outro, realizado por uma gangue-de-linchadores em que cada indivíduo sente um certo gozo perverso na ação de linchar. O outro, pisoteado pelo grupo, serve como bode expiatório em um rito que congrega, uma cerimônia da violência que gera, entre o clã, a gangue, a seita, a milícia de linchadores, uma espécie de cimento invisível que os faz solidários no ódio.

Decerto que esta é a pior das solidariedades possíveis – estar unido pela fúria, cimentado pelos afetos agressivos direcionados a um outro visto como inimigo que merece todos os esporros – mas é também uma das mais comuns, rotineiras. Donde provêm, é claro, a célebre “Banalidade do Mal”. Tudo isto o autor esclarece, com pensamento de fato bastante claro e iluminador, recorrendo à Psicologia de Massas, tal qual desenvolvida por Freud, Le Bon, Fromm, W. Reich, dentre outros.

“Em seu ensaio ‘Psicologia de Grupo e Análise do Ego’Freud oferece uma interpretação para o comportamento tendencial dos indivíduos quando estão agindo como parte de um grupo. (…) Essa identificação grupal é uma espécie de máquina de reconhecimento, que propicia as recompensas narcísicas decorrentes dele. Ora, os indivíduos do grupo tendem a não querer abrir mão desse reconhecimento (…) e assim apresentam uma ‘compulsão a fazer o mesmo que os outros, a permanecerem em harmonia com a maioria’. (…) Está em jogo uma dinâmica de reafirmação dos laços identitários que exige uma exclusão para se instaurar. Pois se, como observa ainda Freud, ‘o líder ou a idéia dominante poderiam também ser negativos’ – isto é, o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva… ” (p. 158)

Bosco, porém, esquece ou deixa de lado fenômenos que poderiam compor um quadro mais amplo das táticas de ação como os escrachos, realizados pelo Levante Popular da Juventude, que merecem ser diferenciados dos linchamentos que ele tem em mente, em especial pela direção do alvo: o cuspe sobe aí de cima para baixo, trata-se de linchar o opressor ou a classe dominante. Alguns grupos de familiares de sobreviventes e desaparecidos da Ditadura Militar também se utilizam de táticas similares ao escracho levantino diante de torturadores e algozes que estiveram em ação no Regime de Exceção (64-85).

Expressões culturais mais agressivas, como o rap, punk, heavy metal, para nos limitarmos ao âmbito da música, podem conter práticas verbais e gestuais que sugerem o linchamento de autoridades. Aí nestas manifestações culturais uma transformação de indignações sócio-políticas em arte-de-combate, às vezes explicitamente chamando ao lynching, sendo o exemplo mais óbvio a banda The Dead Kennedys, cujo vocalista Jeffo Biafra conclamava com altíssima dose de decibéis: “Let’s Lynch The Landlord”.

De todo modo, Bosco mobiliza conceitos e achados de trabalhos brilhantes de antropologia cultural (em especial Antônio Risério, José Miguel Wisnik e Hermano Vianna) e debate as várias correntes feministas. Tudo isso no contexto atualíssimo das novas redes digitais de comunicação em tempo real, onde convivem:

  • Chamadas a manifestações públicas e insurreições populares através das mídias sociais, capazes de servir de ferramenta de mobilização (como na Primavera Egípcia, em que na Praça Tahrir se pôde ler, nas faixas dos manifestantes-revolucionários, ditos como “Facebook: instrumento da revolução” – o que decerto nunca esteve nos planos de Mark Zuckerberg…);
  • Linchamentos digitais, com milícias digitais especializadas em assassinato de reputações através de uma enxurrada de fake news – vide as calúnias contra a vereadora do PSOL, Marielle Franco, que se seguiram à sua execução brutal em 14 de Março de 2018;
  • Escrachos e denúncias via Facebook que visam, por exemplo, gerar sororidade entre as mulheres para que denunciem estupradores e assediadores;
  • Renhidas estratégias dos internautas para fazer seu blog, seu canal, sua hashtag, viralizar nos trending topics do Twitter, com a utilização frequente de conteúdos apelativos, agressivos, simplistas, preconceituosos.


Há um “novo espaço público” surgindo, com a inserção das mídias sociais nele como fator inédito, e isto não é necessariamente uma boa notícia: se de fato vemos a disseminação louvável de comunicação descentralizada e democratizada, que tem como emblema o midiativismo da Mídia Ninja e dos Jornalistas Livres, por outro vivemos agora sob a infestação das fake news e dos assassinatos de reputação através de linchamento cibernético. Tanto que Contardo Calligaris escreveu na Folha um artigo comentando o livro de Bosco em que avançou uma hipótese histórica ousada: “A virulência das redes sociais é sucessora do totalitarismo”:

“Acaba de sair pela Todavia “A Vítima Tem sempre Razão? – Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro”, de Francisco Bosco. Grande parte do livro (que é crucial e imperdível na atualidade) é dedicada a uma genealogia das redes sociais no Brasil, mostrando como se tornaram um novo espaço público em que não acontecem debates, mas linchamentos, e onde circulam não ideias, mas palavras de ordem.

Há quem diga que nesse novo espaço se revelaria a “verdadeira” natureza humana, sedenta de sangue. Talvez. Eu penso sobretudo que a virulência das redes sociais é a sucessora direta das políticas totalitárias de extermínio do século 20.

Ambos os fenômenos são filhos da razão abstrata (mas funcional) pela qual um debate é ganho quando consegue-se calar o adversário –exterminando-o ou gritando mais alto, fazendo com que a fala seja mais violenta, menos complexa e, portanto, mais facilmente apropriada, ganhando mais likes e retuítes.

Nessa dinâmica, ter razão equivale a silenciar o outro…

Tipo: Marx, Engels, Lenin, todos burgueses de classe média alta, podiam falar em nome do proletariado? Um homem pode se expressar, apoiando ou criticando, sobre o movimento feminista? E um branco, sobre o movimento negro, pode?

Pois bem, demonstrando minha tese sobre as redes sociais, os argumentos de Bosco, lá onde tentam abrir uma discussão, encontraram sobretudo argumentos silenciadores, do tipo: cala a boca macho branco, morador do Leblon etc.” (CALLIGARIS, FSP)

Francisco Bosco está alertando a todos nós – quer nos classifiquemos como Esquerda ou Direita, quer nos enxerguemos na imensa área entre estes dois extremos – sobre a re-ascensão do autoritarismo na sociedade brasileira, e que manifesta-se neste constante calar o outro, que é também um modo de castrar a diversidade humana, impedindo as dissidências e divergências de se manifestar e dialogar no mundo comum (o que é o sentido, afinal da democracia), atentando assim contra aquela pluralidade que, como dizia Hannah Arendt, é constituinte ontológico da nossa realidade social e telúrica (a sociobiodiversidade, além de valor, é fato).

A prática autoritária de calar o outro e não permitir a expressão social das diferenças manifestou-se de modo explícito no assassinato perpetrado contra Marielle Franco, seguido por aquilo que Leonardo Sakamoto diagnosticou como seu “segundo assassinato”, movido por milícias digitais que buscaram arrasar a reputação e denegrir a vida da vereadora e ativista. Tal uso bárbaro e perverso das mídias sociais, com discurso de ódio exacerbado, tão comum nos fã-clubes de Bolsonaros e MBLs, transforma o novo espaço público brasileiro, tão bem analisado por Bosco, em um ambiente tóxico e tenso.

Figuras públicas relevantes do PSOL como Marcelo Freixo e Guilherme Boulos, este último candidato à presidência, devem saber muito bem que entra em um pleito que não ocorrerá mais no lendário país cordial, da “democracia racial”, da miscigenação harmônica entre as raças que está expressa na fantasia de Stefan Zweig, daquela fraternidade fácil digna dos retratos idílico-líricos da “Aquarela do Brasil” Ary Barrosiana ou do “País Tropical” de Jorge Ben, mas sim num barril de pólvora em formato de país.

A execução de Marielle lança uma incógnita explosiva no cenário. O que explica o imenso impacto que o caso teve na opinião pública (assunto mais comentado no Twitter global, por exemplo, em 15 de Março de 2018), além da capacidade de mobilização de massas de que o episódio foi capaz, está conectado, a meu ver, com a aptidão do caso para congregar e fazer convergir os movimentos negros, feministas, socialistas, LGBT, Hip Hop, dos Direitos Humanos etc.

Na indignação, na revolta, na dor, no luto, em todos os afetos mobilizados pelo crime perpetrado contra Marielle, finalmente foi dado um salto quântico de consciência social, ao menos dos setores mais conscientes e ativos da sociedade. E ao menos por uns dias pulamos da teoria = os papos acadêmicos sobre a inter-seccionalidade em Angela Davis ou Audre Lorde – e realizamos na prática o nosso tropical ubuntu: eu sou porque nós somos, vamos do luto à luta, por um mundo em que caibam todos os mundos! Levantamos os punhos, abraçados (para usar uma bela e comovente imagem que a Mariana Lopes usou em sua fala no ato de Goiânia):

No que Antonio Martins chamou de “manifestações oceânicas”, a interseccionalidade se realizou, enfim, na prática, cimentada pela indignação compartilhada e efervescida no caldeirão das redes sociais digitais. De novo, a cibercultura invade as ruas. Os frutos desta morte-semente ainda serão muitos. Quais serão – se frutos de vida amelhorada ou de avanço ainda mais tétrico da Tanatopolítica e dos algozes do futuro, é hoje imponderável.  E nenhum jornalista ou filósofo que se preze deve se aventurar na aventura ilusória do profetismo. Quem viver, verá. O que virá será inédito, esperemos o imprevisto!

Tudo indica que as lutas identitárias entram no cenário sócio-político com tensão intensificada neste ano-chave que é 2018, com as eleições sob ameaça de não ocorrer, seja por excesso de convulsão social, por denúncias de sua ilegitimidade, ou mesmo por decreto ditatorial dos golpistas por enquanto no poder. Um contexto onde a prisão de Lula é cada vez mais iminente, com novo sequestro da soberania popular através da inviabilização, via lawfare, do candidato favorito no pleito. Um contexto onde o martírio de Marielle lança ao turbilhão das ruas e redes uma solidária aliança, à la ubuntu, entre lutas antes dispersas.

Marielle vive em seu legado e conclama: sejamos pessoas diversas, mas não dispersas! E façamos juntos um outro mundo, que começa desde já: queremos a Justiça, queremos a Verdade, e queremos que esta execução política não possa ser passível de anistia ou impunidade! Ela poderá ser, para as lutas identitárias, um martírio-trampolim, uma espécie de fundo-do-poço onde a gente pega impulso, para que possa saltar, enfim, para fora do lodaçal em que o Golpe de Estado de 2016 afundou o país.

Não se trata de simples oportunismo pragmático – utilizar uma morte como trampolim – mas sim de fidelidade pelas pautas que a falecida devotou sua vida a promover. Marielle, mártir que veio para marcar para sempre a história do ano de 2018, transforma-se em bandeira: está presente, vive, transcende a ausência de seu corpo material entre os vivos para transmutar-se numa espécie de ídolo mobilizador que reúne tantas das características de que precisamos mobilizar nas futuras batalhas contra as injustiças que se aprofundam.

No pós-golpe vivemos entre os escombros do Estado Democrático de Direito, em meio ao retrocessos brutais nos direitos sociais mais básicos, com o avanço das tendências à privatização de nossos recursos (do pré-sal entregue a preço de banana à Shell ao Aquífero Guarani, em processo de “rifa” ao capital transnacional estrangeiro). Através de reformas na legislação trabalhista, no teto de gastos públicos, no regime previdenciário, os ocupantes ilegais do poder.

Após a fraudulenta deposição da presidenta Dilma através de um impeachment sem crime de responsabilidade (um impechment usado como instrumento de putsch, meio para brutal lawfare), a Elite do Atraso vem instaurando por aqui uma das mais pavorosas Ditaduras do Dinheiro hoje em curso sobre a face da Terra. Naomi Klein poderá escrever um capítulo saboroso sobre o Brasil pós-2016 para uma nova edição do seminal A Doutrina do Choque.

Nossa luta tem mover as estruturas e ser inter-seccional: diversos, mas não dispersos, numa frente única contra o Bicho de 7 Cabeças das múltiplas opressões, inventar este outro mundo onde caibam todas as formas de viver, onde estejam mais livres as maneiras de conviver e se vincular, e onde a truculência assassina pare de trancafiar e exterminar o nosso futuro, inextricável dos grupos marginalizados, humilhados e ofendidos, que vão insistir e resistir em suas demandas de reconhecimento, participação, verdade, igualdade, justiça. Mãos à obra!

E, na conclusão de seu livro, Francisco Bosco nos endereça reflexões bastante propícias para este nosso comum obrar:

“Reafirmo, em primeiro lugar, que são justas as ações desequilibrantes em âmbito institucional, uma vez que se objetivo último é instaurar um sistema social justo, isto é, igualitário… São legítimas e desejáveis todas as ações que tenham como objetivo pressionar comportamentos institucionais a fim de que se tornem igualitários, mesmo que, para tanto, indivíduos pertencentes a segmentos privilegiados de poder tenham suas expectativas reduzidas, ou seja, suas oportunidades e acessos submetidos a um tratamento desequilibrante em seu prejuízo. Inscrevem-se nesse campo inúmeras agendas, como sistemas de cotas raciais em universidades e quaisquer órgãos públicos; exigências de composições paritárias de gênero também em quaisquer órgãos públicos; pressão em empresas privadas por representatividade de minorias em seus quadros de funcionários; exigência do fim das discriminações salariais entre homens e mulheres; exigência de legislações (como licença paternidade) com o objetivo de tornar igualitárias as funções domésticas do homem e da mulher com filhos pequenos; exigência de um funcionalismo institucional justo em casos de denúncias de estupro, assédio sexual, violência doméstica etc.

Por outro lado, não são justas as ações desequilibrantes voltadas contra indivíduos… Não são aceitáveis as práticas que denunciam comportamentos individuais e ao mesmo tempo exigem que essas denúncias sejam incondicionalmente acatadas, em deliberado prejuízo dos indivíduos acusados, que se veem, desse modo, moralmente condenados de saída… As ações, mesmo as que visam objetivos finais justos, que se autorizam a instrumentalizar indivíduos para atingir esses objetivos, essas ações são típicas de sistemas totalitários… Que os movimentos identitários  abandonem essa forma de ação e não instrumentalizem indivíduos em nome de suas justíssimas lutas, é o que defende esse livro.

Por outro lado, defende também ser preciso que o conjunto da sociedade tenha consciência quanto à justiça das reivindicações desse movimentos, sempre que se trate de lutas por igualdade. As condições sociais extremamente injustas sob as quais vivemos instauram um campo de possibilidades sujeito a todos os tipos de violência. Enquanto essas condições não forem profundamente modificadas, pedir às pessoas que sofrem graves injustiças cotidianas ‘ponderação’, ‘civilidade’ ou obediência a um imperativo categórico tem algo de inútil, e até de ridículo. Um ganho de consciência em larga escala da justiça dos pleitos identitários contribuirá para que as condições de injustiça social sejam modificadas. É pelo que eles lutam.” (p. 185 – 189)

Lutemos, pois, para que mortes injustas possam ser sementes que, cultivadas em comum, possam dar em árvores frutíferas de verdade e justiça neste mundo que roda cada vez mais distanciado destas.

Por Eduardo Carli de Moraes, Prof. de Filosofia do IFG
A Casa de Vidro – Livraria e Produtora Cultural (www.acasadevidro.com)



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1º DE MAIO: O NASCIMENTO DE UM RITO OPERÁRIO – Por Michelle Parrot em “Os Excluídos da História” (Ed. Paz & Terra)

Por Laerte Coutinho


1º DE MAIO: O NASCIMENTO DE UM RITO OPERÁRIO
Por Michelle Parrot em “Os Excluídos da História” (Ed. Paz & Terra)

Historiadora e feminista francesa, nascida em 1928, Michelle Parrot dedica um de seus artigos reunidos no livro “Os Excluídos da História – Operários, Mulheres e Prisioneiros” (Ed. Paz & Terra, 2017, 7ª edição, trad. Denise Bottman) à instigante e minuciosa descrição do “primeiro 1º de Maio” da história européia, ocorrido na França em 1890.

“Resultante de um ato político deliberado, essa manifestação ilustra o lado voluntário da construção de uma classe – a classe operária -, à qual os socialistas tentam dar uma unidade política e cultural através daquela pedagogia da Festa cujo princípio, eficácia e limites há muito tempo tinham sido experimentados pela Revolução Francesa.

Jules Guesde (1845 – 1922)

Em sua iniciativa, o 1º de Maio é incontestavelmente criação de cima, e em particular da corrente mais organizada em termos políticos, a corrente marxista (na França, os guesdistas).(…) Mas, por outro lado, essa manifestação foi precedida por proposições e experiências que, sob certos aspectos, ela cristaliza; assim é o caso da rica experiência americana com a qual, nessa época, o movimento operário se declara amplamente solidário. De modo mais indireto, ela se enraíza na combatividade habitual do maio operário, mês recordista de greves, e talvez, a mais longo prazo, na tradição da primavera dos maios aldeões…

Esse 1º de Maio tem a incerteza e o insólito dos inícios. De quem os primeiros manifestantes do 1º de Maio são herdeiros? Do que são portadores? Pelo menos quais são seus gestos e suas palavras?

A INVENÇÃO DO 1º DE MAIO

A invenção do 1º de Maio, como se sabe, está ligada ao nascimento da Segunda Internacional, cujo primeiro congresso se realiza em Paris em julho de 1889. Em 20 de Julho, ao cabo de um debate bastante confuso, no qual se discutiu principalmente a escolha da data, é votada, por proposta de Raymond Lavigne, um militante guesdista de Bordeaux, a seguinte moção: “Será organizada uma grande manifestação internacional com data fixa, de modo que, em todos os países e em todas as cidades ao mesmo tempo, no mesmo dia marcado, os trabalhadores intimem os poderes públicos a reduzir legalmente a jornada de trabalho a 8 horas.”

Vários traços surpreendem nesta resolução. Em primeiro lugar, a vontade de mostrar a força do proletariado pela simultaneidade da demonstração, reveladora de um certo sentido de encenação e de uso da mídia típico de uma psicologia das multidões em pleno desenvolvimento. Trata-se de dar à classe operária consciência de si mesma através da realização de gestos idênticos num amplo espaço e de impressionar a opinião pública com tal espetáculo.

Segunda característica: o interlocutor designado pelos trabalhadores são “os poderes públicos”, isto é, o Estado e suas diversas instâncias. Concorda-se em “intimá-los” a aplicar as reformas sociais, e particularmente a redução da jornada de trabalho, elemento unificador da reivindicação operária.

Terceiro traço: a referência ao precedente americano para a escolha da data do 1º de Maio, preferida a outras – 14 de Julho, 18 de Março ou 21 de Setembro -, descartadas por serem ligadas demais
à história política francesa, singular demais para um encontro universal. O 1º de Maio americano, inaugurado em 1886 pelos Cavaleiros do Trabalho (Knights of Labor), já tinha suas vítimas: naquele dia, a violência com as forças armadas resultara em mortes em Milwoukee e em Chicago.

O processo dos oito “mártires de Chicago”, entre os quais quatro foram enforcados em 11 de novembro de 1887, tivera uma repercussão real, visível nos jornais e no imaginário popular.

(SAIBA MAIS: A REVOLTA DE HAYMARKET / THE HAYMARKET AFFAIR)

Saiba mais no Portal Vermelho: “O Dia Mundial do Trabalho foi criado em 1889 por um congresso da Internacional Socialista realizado em Paris. A data foi escolhida em homenagem à greve geral que aconteceu em 1º de maio de 1886, em Chicago, o principal centro industrial dos Estados Unidos naquela época. Hoje, é celebrada em todo o mundo, menos no país onde sucederam os acontecimentos que a inspiraram, os EUA.”


A REIVINDICAÇÃO DAS OITO HORAS

Na França, a ideia de uma manifestação operária internacional está presente desde 1883-1884, principalmente nos meios libertários. Aos anarquistas franceses deve-se a ideia de greve geral e a prática da “intimação”, por ocasião da grande manifestação dos “sem trabalho” de março de 1883 em Paris. Aos anarquistas americanos cabe a escolha do 1º de Maio e das 8 horas de trabalho diárias – e sobretudo uma experiência de luta cruenta que, de certa forma, sacralizava a data.

Os guesdistas quiseram principalmente canalizar essas energias operárias em direção ao Estado, dar ao movimento um sentido político, mais que social e antipatronal. Daí o sentimento de logro, de confisco que sentiram e denunciaram os anarquistas. Para além dessas brigas sobre a paternidade, que aliás recobrem escolhas estratégicas reais, o que nos interessa são as origens mais distantes, as matrizes…

A reivindicação das 8 horas é de uma ambivalência que ilumina o significado do movimento. Denis Veiras, autor da História dos Sevarambos, utopia de 1677, imagina a jornada ideal, dividida em 3 partes iguais: trabalho, prazer, repouso. Sem dúvida seria preciso buscar ainda mais longe as raízes dessa visão trinitária e trifuncional do tempo, ligada às representações míticas e às regras dos números de ouro. “8 horas de trabalho, 8 horas de repouso, 8 horas de lazeres”: os famosos três 8s enunciados deste então, exprimindo ao mesmo tempo uma representação quase estrutural do mundo e o projeto de uma sociedade harmoniosa, equilibrada: por vir.

Assim é na ilustração de Grandjouan publicada em L’assiette Au Beurre (A Abastança – 28 de Abril de 1906), em que as três Graças, três mulheres nuas, com penteados e posturas diversas, encarnam os três 8.

O que impressiona às vésperas deste 1º de Maio francês é o contraste entre a pobreza das instruções precisas e a grandeza das evocações. Trata-se de mostrar a força do proletariado pela simultaneidade da manifestação, de dar à classe operária uma autoconsciência através da realização de gestos idênticos num vasto espaço – os “dois Mundos” (o Ocidente e o Oriente) – e impressionar a opinião pública com tal espetáculo. É preciso elevar “uma população operária adotando o hábito, de uma ponta a outra do país, de agir simultânea e energicamente”, de mobilizar “a força imponente, imperiosa, irresistível desse povo de trabalhadores erguendo-se unanimemente frente a seus senhores (…) para reclamar numa imensa e única voz seus direitos à vida, ao bem-estar e aos benefícios da civilização.

O peso das palavras e das imagens sugeridas revela um certo sentido da encenação e do uso da mídia, característicos de uma “psicologia das multidões” (Gustave Le Bon, 1895), em pleno desenvolvimento. Mas para além desse modernismo, o rito operário se inscreve nas mais antigas tradições religiosas: a da comunhão dos Santos, a da comemoração sacrificial. Fazer a mesma coisa ao mesmo tempo: esse grande princípio da prática religiosa encontra-se aqui, por um rasgo de gênio, transferido para o movimento operário, novo Moisés de uma nova Terra Prometida. Exaltação de um Povo unido por uma celebração comum, o Primeiro de Maio é em suma uma Missa Cantada operária.

PARROT, Michelle. Pg. 133-147.

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LEIA TAMBÉM:

TEXTO DE LENIN PARA O “MAY DAY” de 1904

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VOLTAIRINE DE CLEYRE: [ACESSAR POST]

André Dahmer: “A Cabeça É A Ilha” – Antologia com 238 tiras [LIVRARIA A CASA DE VIDRO]

“A CABEÇA É A ILHA” – André Dahmer
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Criador do fenômeno dos quadrinhos “Malvados”, André Dahmer nasceu no Rio de Janeiro, em 1974, é pintor e quadrinista. Neste livro, com prefácio de Arnaldo Branco, Dahmer sonda a solidão, o desencontro e a incompreensão em suas múltiplas formas. Nesta antologia de 238 tirinhas em preto-e-branco, repletas de sarcasmo e poesia, Dahmer revela um mundo em que “os solitários são muitos e estão em todos os lugares. Seguem morrendo aos poucos nos bares e dentro de quartos, varando madrugadas sinistras com a ajuda da pornografia em banda larga e álcool. Eles estão nos cinemas, comendo pipoca sozinhos. Despercebidos, os solitários se arrastam pelos labirintos da timidez ou vivem de um sentimento permanente de estranheza diante do mundo, com toda razão: é que hoje em dia o amor é artigo raro e a indiferença é vendida, aos borbotões, como moderno (e único) modelo a ser seguido. ‘A Cabeça É A Ilha’ é um livro para esses seres estranhos, gente que conversa com os outros olhando para o chão. Para os que falam sozinhos, bêbados em seus apartamentos. Para os que os olham para os edifícios altos como uma saída digna para o sofrimento. Não que o livro vá curá-los de toda angústia… mas rir da própria dor é uma forma de domesticar nossos monstros e aceitar nossa fragilidade diante do abandono, da indiferença…” (André Dahmer, prefácio, p. 8-9)

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“Tome um porre de livros que a ressaca é de cultura!” – é o que prega o meme, e quem somos nós pra discordar? Na sequência, novidades que estão à venda na livraria A Casa de Vidro – click sobre a capa e saiba mais na página de cada livro na Estante Virtual. Editora, ano de publicação, sinopse, número de páginas, preço e valor do frete estão a um click de distância. Enviamos pelos Correios pro Brasil todo. Em Goiânia, estamos com parcerias com a Evoé Café Com Livros (Rua 91) e a Trip – Música e Artes (Rua 115e), ambos no Setor Sul. Procurem-nos e leiam… leiam sem moderação! Confira:

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SATIRIZANDO TEMER: Poemas-escracho de Daniel Ramos, do perfil fake @temerpoeta, mostram a potência do escracho cáustico e criativo

Nada obriga a contracultura a ser tão sisuda e truculenta quanto seus adversários, os epígonos da cultura oficial, quase sempre moralista e autoritária. A sátira é uma das armas mais afiadas que as forças libertárias, ditas “contraculturais”, podem usar para destronar aqueles que só sobem aos tronos através de “tenebrosas transações”, para relembrar Chico Buarque (ele mesmo tão capaz de brilhar os cale-se com cálices de suingado lirismo e malandra esperteza).

No Brasil, em 2016, um exemplo muito interessante, instrutivo, criativo e potente de prática cultural, a um só tempo crítica e lúdica, são os trabalhos de escracho-arte do Daniel Ramos. Criador do perfil fake @temerpoeta, que rapidamente logrou atingir certo hype na cibercultura, ainda que não ao ponto de viralizar como clipes-só-de-nudes-da-Clarice Falcão, o Daniel Ramos é o criador da revista Caroço (disponível na livraria A Casa de Vidro por R$12) e autor de alguns dos petardos mais bem atirados à testa do usurpador que ora nos desgoverna lá do Palácio do Planalto.

Brasília(DF), 27/04/2016 - Michel Temer e Aécio Neves visitam Renan Calheiros - Foto: Michael Melo/Metrópoles

Brasília(DF), 27/04/2016 – Michel Temer e Aécio Neves visitam Renan Calheiros – Foto: Michael Melo/Metrópoles

 O deboche também é uma arma do levante popular antigolpista e nisto iniciativas como a de Daniel Ramos ganham uma dimensão que vai além do humor de entretenimento. Ainda não conheço pensadores e artigos que tenham se debruçado sobre este fenômeno social efervescente que é o escracho como forma de manifestação política, algo que tem decerto uma contundente tradição no Brasil (como o Pasquim em sua cruzada anti-careta e anti-canhões, antagonizando a ditadura militar do Brasil a golpes de charges e anedotas), mas que ganha novos contornos hoje com a cultura dos memes e com uma cibercultura infestada pelo fenômeno da trollagem. 

É minha aposta, provocativa, de que para além das gangues e hordas de trolls fascistas que, na internet, deixam extravasar todo seu repugnante racismo e elitismo, pedindo Bolsonaro como presidente ou exigindo intervenção militar seguida de fuzilamentos de veados tipo o Jean Wyllys, existe também no âmbito da esquerda uma insurreição sócio-política que sabe utilizar-se das armas do humor e que – eis minha provocação – sabe trollar as pessoas certas (os opressores, os golpistas, os plutocratas, os tiranos em conluio com juntas financeiras…).

A esquerda também trolla, e isto se torna bem evidente diante de fenômenos recentes, como aqueles protagonizados pelo Levante Popular da Juventude, que realizou escrachos na frente da mansão do interino-inelegível em São Paulo, ou da Frente Povo Sem Medo e MTST que estrondosamente manifestaram com fogos de artifício seu repúdio ao papel da Fiesp (sediada na Av. Paulista e presidida por Skaf) no golpe de Estado. Artistas como Laerte, Angeli, Latuff, Dahmer, Aroeira, Vitor Teixeira, Rafucko, também demonstraram neste 2016, através da criação de espantosa e prolífica obra, que no Brasil temos pelo menos o consolo, após este ano tenebroso de tantos retrocessos, de que por aqui o senso crítico não morre tão fácil e segue super alerta e operante em nossos melhores comediantes e cartunistas – cáusticos e espertos agentes de um escracho libertário, aos quais se junta uma legião de nomes menos conhecidos, mas também atuantes na criação de uma cultura brasileira contestatória.

Também percebo enquanto cinéfilo que alguns dos filmes que mais me impressionaram por sua capacidade crítica e por sua contundência de denúncia são obras como A Ditadura Perfeita, do mexicano Luis Estrada, e O Ditador, de Sacha Baron Cohen, duas comédias que demonstram o quanto o escracho e a trollagem estão sendo mobilizadas de modo construtivo-crítico bastante instigante, incidindo sobre fenômenos como a manipulação de massas induzida pelos consórcios midiáticos e partidos políticos hegemônicos, revelados a golpes de piadas como uma pantomima grotesca de democracia, uma democracia falsa e de fachada que encobre a tragicomédia obscena de uma plutocracia ultracapitalista, desmiolada e rasa, que apenas constrói Pontes Para o Abismo da austeridade e do apartheid social.

Uma boa matéria em Hypeness destaca o trabalho do Daniel Ramos nos seguintes termos:

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temer-poetaQue o presidente interino Michel Temer é poeta, já vazou na internet. Mesmo tendo publicado o livro Anônima Intimidade, em 2012, foi só depois que chegou ao poder que a fama dos seus versos viralizou de vez – principalmente após a reportagem da Veja sobre a Marcela bela-recatada-e-do-lar Temer, em que uma de suas poesias é usada para ilustrar a relação dos dois.

Agora, a veia poética do presidente ganhou sua primeira paródia na rede: o perfil do Twitter @TemerPoeta, que brinca com diversos aspectos da política nacional, além de fazer piada com a possível relação de Temer com o satanismo. Segundo a Época, o criador da conta é Daniel Ramos, um funcionário público de Brasília, também poeta. A data de nascimento que aparece no perfil falso é de 8 de maio de 1896 – seria a mais antiga permitida pela rede social.

As seguintes sátiras saíram na segunda edição da revista Caroço:

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SONETO DE BESTIALIDADE

Releitura do ‘Soneto de Fidelidade’ de Vinícius de Moraes

De tudo a Belzebu serei atento, antes
e com tal zelo, e sempre, e tanto
que mesmo a alface no sorriso branco
seja na sua boca ornamento

quero invocá-lo em cada pé-de-vento
e em seu louvor hei de investir no banco
metade dólar, meta franco
ou o que sobrar depois do parlamento

e assim quando mais tarde me procure
quem sabe a sorte (angústia de ser vice)
quem sabe a lava-jato (fim de quem dança)

eu possa me dizer do brasil (que tive)
que não seja europeu, posto que é bamba
mas que seja lucrativo enquanto dure

* * * *pecunia

Para mais pérolas, siga Daniel Ramos, o @temerpoeta, lá no Twitter.


SIGA VIAGEM:

ALGUMAS OBRAS DA ESCRACHO-ART BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

5 DOSES DE VITOR TEIXEIRA:
vitor-3
vitor-t-5
vitor-t-kafka
vitor-t
vitor-teixeira-2

5 DOSES DE AROEIRA:


aroeira5
aroeira4
aroeira3
aroeira2aroeira1

POR UMA ÉTICA DA DESPOSSESSÃO DE SI – Sobre Judith Butler e seu “Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética” (Editora Autêntica, 2015, 200 pgs)

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POR UMA ÉTICA DA DESPOSSESSÃO DE SI

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Não é à toa que “identidade” e “idêntico” são palavras tão semelhantes. O sujeito dotado de identidade é aquele que, supostamente, permanece idêntico a si mesmo. Flui através do tempo conservando intacta sua identidade, como uma espécie de diamante que a ferrugem nunca corrói. Assim como os anjos da mitologia não envelhecem com o devir, nem nunca se ouviu falar de querubins com mal de Alzheimer, as identidades seriam entes angelicais, intocáveis pelo poderio tão vasto e profundo do Tempo-Rio, velha criança que corre sem cessar no frescor de sua juventude infatigável.

Os documentos de identidade que nos servem como números identificatórios no seio da comunidade civil também pretendem ser imutáveis: não conheço quem tenha mudado de RG ou CPF, ainda que já esteja na décima solicitação de uma segunda via… Tanto a linguagem consolidada, quanto as instituições políticas, parecem exigir de cada pessoa que seja um eu dotado de identidade fixa, sólida, como se algo em mim, algo em ti, sobrevivesse do berço ao túmulo. Como se algo de indestrutível unisse o bebê ao ancião – a mesma identidade diamantina que os ventos do tempo jamais são capazes de abalar.

Há nessa crença no si que não muda algo de falacioso, de ilusório, algo que os filósofos materialistas, pela História afora, não cessam de denunciar nos seus adversários, os idealistas. A filosofia materialista, com a epistemologia e a ética que lhe são consubstanciais, anunciam um outro tipo de si, jamais idêntico a si mesmo, jamais mônada isolada de outros sis, mas sim um si inerentemente em fluxo, necessariamente envolvido numa teia relacional. Um si inseparável do social e que só pode ser compreendido em suas interações com outros sis, jamais como individualidade estanque e separável, jamais como entidade idêntica-a-si-mesma. O materialismo convida a pensar no eu-identidade como uma quimera invivível, como o sonho alucinante de uma identidade perpetuamente perdurável.

A ética, inseparável do que Foucault chamará de um cuidado de si, um cultivo de si mesmo, pode até soar como empreendimento um tanto individualista, compreendida como os trabalhos que um alguém realiza sobre si mesmo, tendo em vista e como meta o próprio aperfeiçoamento. Mas é evidente que este trabalho sobre si da ética é impossível para o eu isolado e desconectado – o espaço da ética é sempre o de entre-outros. Mas já que ninguém escolhe nascer, e cada um pinta no mundo em circunstâncias que independem de sua vontade, sendo lançado a uma situação que formou-se a partir de uma imensa cadeia de causas precedentes, este surgimento-de-si jamais é um fenômeno plenamente compreensível. Os atos mais básicos do viver, sua gênesis e seu aniquilamento, o nascer e o morrer, são imensas portas abertas para um mistério sem fim. Ninguém compreendeu jamais a contento porque nascemos e morremos, nem tudo o que aconteceu antes de acontecermos e ainda acontecerá depois de termos acontecido.

A filosofia, em sua criticidade da faculdade de conhecer, chegou sim à noção do incognoscível, do impossível de conhecer, como a coisa-em-si de Kant. Segundo o autor da Crítica da Razão Pura, era absurda qualquer pretensão de saber a verdade absoluta sobre Deus, a alma imortal ou a liberdade da vontade. Estas são coisas de que não temos experiência empírica e que são objeto mais da fé do que da razão.

O que estou buscando comunicar aqui é a noção de que também o auto-conhecimento envolve uma dimensão de inconhecível, isto é, jamais alguém conhece-se plenamente e perfeitamente. Está redondamente enganado qualquer um que diga, com presunção hiperbólica sobre seus próprios poderes de auto-compreensão: “eu conheço-me perfeitamente bem!” Mesmo que fosse possível que alguém algum dia chegasse a exercer tão bem a arte do conhece-te a ti mesmo, aquela que o velho Sócrates já vinculava tão intimamente à prática da sabedoria (sophia), este sujeito escorregaria na banana da ambição desmedida e cairia de bunda no chão das ilusões nocivas se dissesse: “hoje, atingi o perfeito auto-conhecimento! Mesmo que eu viva mais 40 anos, e mesmo que jamais volte a praticar a auto-inspecção lúcida, não hei de perder jamais este conhecimento-de-mim que hoje possuo!”

Partir da pressuposição, plausível, de que não há identidades fixas e imutáveis, nem auto-conhecimento que possa chegar a um ponto-final, não significa abandonar-se a um ceticismo infértil de quem dissesse: já que não é possível tudo saber, contento-me em não saber nada. Há muito a ser sabido, ainda que nunca cheguemos ao saber-tudo. Saber-tudo com plenitude completa é uma quimera de filósofos que, ao idolatrar tão perigoso ídolo, às vezes fazem como Tales de Mileto, de quem caçoava a trabalhadora ao vê-lo despencar de fuça no poço pois, ao invés de mirar o chão debaixo do nariz, admirava sem fim as estrelas… Ponhamos nossos pés no chão e lidemos com o fato de que cada um de nós nasceu sem ter pedido, sem ter sido consultado sobre as circunstâncias específicas em que veio-a-ser: somos lançados a um turbilhão que não é de nossa escolha, e todas as nossas escolhas serão determinadas por este evento colossal do nosso surgimento e que nenhum cérebro humano é capaz de compreender em sua inteireza.

Afinal, “nascer é muito comprido”, como dirá o poeta Murilo Mendes, sugerindo que a na vida estamos sempre nascendo e que nunca já estamos nascidos e pronto. Nascemos para a velhice e nascemos para a agonia, assim como nascemos antes para a juventude e para a luz do dia após meses de caverna uterina. Nascer, pois, nunca é missão cumprida. E convêm continuar nascendo até mesmo na hora de findar, pois o fim é só um outro começo na grande sinfonia cósmica. Lucrécio, no poema mais belo já escrito por um pensador materialista, terá muito a dizer sobre a sobrevida dos átomos, eles sim imortais e indestrutíveis, quando a vida abandona um dos entes atômicos, agregados materiais, destes que nós  provisoriamente somos. Os átomos entretecidos para constituir tudo que é vivo não são passíveis de destruição: a eternidade em dança da matéria contrasta com a efemeridade destes agregados de partículas imortais que por enquanto estamos sendo, e que no passado outros estiveram sendo, até que não foram mais, e que futuramente muitos serão, até que não mais sejam.

No seio desta impermanência onde estamos sendo, ética é o nome para o trabalho de um certo impulso criativo que pulsa em nós, mais ou menos conscientes que somos de que o eu não é uma sina, um fardo, algo imposto a nós de fora de uma vez por todas, mas também algo do quê podemos ser os co-criadores. Jamais sós, porém, mas sempre no espaço do entre-outros, do among others, pois uma ética cega à alteridade é muito pior que uma toupeira.

Aqueles que enxergam apenas a negatividade da ética – ou seja, acham que este troço escroto de ética e moral só servem mesmo para cagar-regra e ficar condenando comportamentos… – perdem de vista a perspectiva de que a ética possa ser a própria vida no exercício de uma criatividade que se dá em conjunto, no concerto e desconcerto dos contatos com outros.

Uma das grandes questões que surge é, então, quais os limites desta criatividade? Por que tantas pessoas aceitam ser tão pouco, criar tão pouco, ousar tão pouco? Por que tanta gente enxerga o si como uma jaula, e não como um ateliê de pintura, de escultura, de criação e recriação? Por que tantas pessoas resignam-se a fixar-se numa postura de estátuas, quando a vida nos quer bailarinas de gelo, a dançar até o derretimento, dissolvendo-se pelo palco da galáxia?

A leitura das obras de Judith Butler e Michel Foucault, acredito, podem contribuir para que pensemos em uma ética da despossessão de si, o que de modo algum quer dizer alguma espécie de displicência consigo, mas sim uma ética que funda-se na incapacidade em que estamos todos, eu e ti, quem quer que sejamos, de realmente sermos os possuidores de um eu da mesma maneira que alguém possui um colar de diamantes. É afirmar o óbvio ululante dizer que o eu não tem nada a ver com um colar de diamantes, e muito mais certeiro na metáfora foi o velho Heráclito quando em sua inesquecível parábola ensinou: “não se entra duas vezes no mesmo rio”. No rio do tempo, você não é mais o mesmo que um segundo atrás; e daqui dez anos, será que o teu eu será idêntico a este que agora aqui está?

Falar em rio do tempo, porém, não deve nos fazer cair num naturalismo que exclui a história do quadro: o ser humano é fluxo, sim, e o rio que nos arrasta em suas águas precisa ser compreendido sim como natureza necessária e inescapável. Porém fluímos também pelo rio da História, é em determinado espaço-tempo que calhamos de “pintar”, e isto também determina de modo radical o nosso leque de possibilidades existenciais.

Os heróis homéricos não tinham a chance de praticarem proezas bélicas enquanto aviadores ou pilotos de helicópteros, nem as legiões de César tinham à sua disposição metralhadoras e granadas, de modo que as limitações tecnológicas destas épocas determina também a natureza de suas épicas e de suas éticas. A figura do herói muda consideravelmente no tempo que vai, digamos, de Ulisses a Luke Skywalker. Portanto a ética nunca é a-histórica, os valores nunca são eternos e fora-do-tempo, sempre nasce-se em uma situação que tratará de impor certos limites e normas vigentes ali e então (ainda que possam ser transcendidos e subvertidos).

Em um texto chamado “O que é crítica? Um ensaio sobre a virtude em Foucault”, Judith Butler (2015, p. 29) comenta que “a realização ética de si mesmo em Foucault não é uma criação radical do si-mesmo ex nihilo”, ou seja, ninguém cria-se do nada, ninguém pratica a ética no vácuo:

“Esse trabalho sobre si mesmo acontece no contexto de um conjunto de normais que precede e excede o sujeito. Investidas de poder e obstinação, essas normas estabelecem os limites do que será considerado uma formação inteligível do sujeito dentro de determinado esquema histórico de coisas. Não há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação (assujettisement) e, portanto, não há criação de si fora das normas que orquestram as formas possíveis que o sujeito deve assumir. A prática da crítica, então, expõe os limites do esquema histórico das coisas, o horizonte epistemológico e ontológico dentro do qual os sujeitos podem surgir. Criar-se de tal modo a expor esses limites é precisamente se envolver numa estética do si-mesmo que mantém uma relação crítica com as normas existentes…

Na introdução de O Uso dos Prazeres (História da Sexualidade – Volume II ), Foucault especifica essa prática da estilização de si mesmo em relação às normais quando deixa claro que a conduta moral não é uma questão de se conformar às prescrições estabelecidas por determinado código, tampouco de interiorizar uma proibição ou interdição primárias. (…) Para Foucault, tanto como para Nietzsche, a moral reorganiza um impulso criativo. Para Foucault, a moral é inventiva, requer inventividade, e além disso tem um custo. No entanto, o si-mesmo engendrado pela moral não é concebido como agente psíquico de autocensura. Desde o princípio, a relação que o eu vai assumir consigo mesmo, como vai se engendrar em resposta a uma injunção, como vai se formar e que trabalho vai realizar sobre si mesmo – tudo isso é um desafio, quiçá uma pergunta em aberto. A injunção força o ato de criar a si mesmo ou engendrar a si mesmo, ou seja, ela não age de maneira unilateral ou determinística sobre o sujeito. Ela prepara o ambiente para a autocriação do sujeito, que sempre acontece em relação a um conjunto de normas impostas. A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido.

Se nessa luta a capacidade de ação, ou melhor, a liberdade, funciona de alguma maneira, é dentro de um campo facilitador e limitante de restrições. Essa ação ética não é totalmente determinada nem radicalmente livre. Esta luta com as condições não escolhidas da vida – uma ação – também é possível, paradoxalmente, graças à persistência dessa condição primária de falta de liberdade.” (BUTLER, Relatar a Si Mesmo, 2015, p. 29)

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Dar um relato de si mesmo é tarefa complexa justamente pois um ser humano não cabe num relatório, e ademais ninguém é bom juiz em causa própria. As dificuldades acumulam-se umas sobre as outras até formar uma montanha que nos obstaculiza a vista lúcida: como é possível a gente ser verdadeiro numa narrativa sobre nós mesmos se há tanto, afogado no passado, que já esquecemos, ou que nunca pudemos experimentar de fato? Quem é que pode relatar como foi sua experiência no útero da mãe, ou descrever o que sentiu após a gloriosa junção, microscópica mas repleta de consequências, de um espermatozóide com um óvulo? Muitas das experiências que constituem os nossos corpos estão para além de qualquer capacidade de “resgate” pelo nosso cérebro atual. Butler afirma que “a história deste corpo não é inteiramente narrável”, “o corpo tem uma história da qual não posso ter recordações” (p. 54):

“Não posso estar presente numa temporalidade que precede minha própria capacidade de autoreflexão, e qualquer história que eu possa dar sobre mim tem de levar em consideração essa incomensurabilidade constitutiva… Isso quer dizer que minha narrativa começa in media res, quando já aconteceram várias coisas que me fazem possível na linguagem e fazem possível minha história na linguagem. Eu sempre recupero, reconstruo e encarrego-me de ficcionalizar e fabular origens que não posso conhecer. (…) O relato que faço de mim mesma é parcial, assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva. Não posso explicar exatamente por que surgi dessa maneira, e meus esforços de reconstrução narrativa são sempre submetidos à revisão. Há algo em mim e de mim do qual não posso dar um relato. Mas isso quer dizer que, no sentido moral, eu não sou responsabilizada por aquilo que sou e faço? Se descubro que, apesar de meus melhores esforços, ainda resta certa opacidade e que não posso relatar a mim mesma totalmente para o outro, seria isso um fracasso ético? (…) Nessa afirmação de transparência parcial, existe a possibilidade  de reconhecer uma relacionalidade que me vincule à linguagem  e ao tu de maneira mais profunda do que antes?” (BUTLER, op cit, p. 56)

Se o mérito de um filósofo também decorre da profundidade das perguntas que ele é capaz de formular, considero que Judith Butler conseguiu passar com louvores no teste: ela coloca-nos questões assombrosas, daquelas capazes de deixar o sujeito insone e boquiaberto a refletir pelas madrugadas. De fato, quando perscrutamos demoradamente a questão do auto-conhecimento e do relato-de-si, trombamos com obstáculos intransponíveis, dificuldades epistemológicas, impossibilidades existenciais, todas decorrentes de estarmos embarcados no fluxo de um rio cujo princípio e fim não podemos enxergar.

Esta “cegueira” quanto à verdade sobre nós só pode ser parcialmente corrigida pelos avanços de nossa audaz auto-inspecção, porém jamais chegaríamos a bom termo nesta jornada caso abandonássemos a consideração das normas morais, dos paradigmas de comportamento, que estão dados em uma determinada época, formas de subjetivação que podem ser acatadas ou contestadas, aceitas ou resistidas, mas que de todo modo constituem-nos até mesmo quando vivemos para revolucioná-las. Donde a importância do procedimento genealógico, na ética, que Nietzsche não inaugurou, mas que levou a graus extremos e intensos de criticidade, e que figuras como Michel Foucault e Gilles Deleuze / Félix Guattári irão continuar, re-trabalhando o legado da Genealogia da Moral, de Além de Bem e Mal, de Assim Falava Zaratustra etc.

O espírito livre de que Nietzsche tanto falava, prenunciado pelas figuras dionisíacas na tragédia grega, encarnado na figura trágico-lúdica de Zaratustra, é afinal alguém em quem ética e estética deram-se as mãos e que dançam uma ciranda criativa em que o Übermensch está no horizonte como uma espécie de estrela-guia. Síntese de criança, camelo e leão – ingenuidade acrítica mas criadora, conformismo aos fardos impostos pela civilização, ousadia libertária de contestação do que nos é exigido… – o espírito livre, dionisíaco e zaratustriano, não é crédulo do conhecimento de si, ou seja, não acredita jamais possuir por completo a verdade de si mesmo. A ética nietzschiana é muito mais a do perene esforço de auto-superação, inclusive dos limites do nosso auto-conhecimento, do nosso alter-conhecimento, do nosso mundo-conhecimento, e jamais de repouso na suposta resposta certa, verdadeira, imutável, possuível de uma vez para sempre.

É justamente a noção de uma identidade, imóvel, possuível, diamantina, que o pensamento de Judith Butler tanto esforça-se para pôr em crise. Ela quer refletir sobre a possibilidade de uma “ética baseada em nossa cegueira comum”, uma ética que passaria pelo “reconhecimento de que não somos, em casa ocasião, os mesmos que nos apresentamos no discurso”: “Para mim, suspender a exigência da identidade pessoal, ou, mais especificamente, da coerência completa, parece contrariar certa violência ética, que exige que manifestemos e sustentemos nossa identidade pessoal o tempo todo e requer que os outros façam o mesmo.” (p. 60)

Devemos reconhecer, com humildade, os limites do conhecimento no campo relacional: nunca te conheço nem nunca me conheces por completo, e isto faz o desafio e o charme dos encontros e das convivências. Não é a transparência perfeita, mas a opacidade parcial que constitui o campo minado e o palco iluminado para as aventurosas incursões do amor e da amizade. A philia e a sophia só se praticam em meio à borrasca desta viagem que fazemos pelo rio da vida neste bote tão frágil que é este corpo mortal. Butler sugere uma ética onde saibamos experimentar os limites de nosso mútuo saber: “isso pode constituir uma disposição tanto da humildade quanto da generosidade: terei de ser perdoado por aquilo que não posso conhecer totalmente e terei obrigação semelhante de perdoar os outros, que também são constituídos com uma opacidade parcial em relação a si mesmos.” (p. 61)

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“Se a identidade que dizemos ser não nos captura e marca imediatamente um excesso e uma opacidade que estão fora das categorias da identidade, qualquer esforço de fazer um relato de si mesmo terá de fracassar para que chegue perto de ser verdade. Quando pedimos para conhecer o outro, ou pedimos para que o outro diga, final ou definitivamente, quem é, é importante não esperar nunca uma resposta satisfatória. Quando não buscamos a satisfação e deixamos que a pergunta permaneça aberta e perdura, deixamos o outro viver, pois a vida pode ser entendida exatamente como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos dar.” (BUTLER, p. 61)

Para pôr em crise todos os sistemas que impõe rigidez identitária, Butler procede de modo bastante Heraclítico, mas destacando não apenas a fluência do sujeito em meio ao rio imparável dos eventos no tempo, mas também o fato de que não há sujeito que exista desvinculado da teia de alteridade: “sou invariavelmente transformada pelos encontros que vivencio; o reconhecimento se torna o processo pelo qual eu me torno outro diferente do que fui e assim deixo de ser capaz de retornar ao que eu era… O encontro com o outro realiza uma transformação do si-mesmo da qual não há retorno.” (p. 41) Assim, o que está em questão é uma ética da despossessão de si, em que o sujeito não acredita-se “dono” de uma identidade, mas aventureiro navegante da imprevisível e mutante ciranda do viver-com-outros. Pois viver é sempre conviver e fluir.

Talvez existam mesmo janelas de conexão entre o que diz Judith Butler e a ética em Paulo Freire, onde somos enxergados como seres inconclusos e conectíveis, onde a importância do diálogo está justamente num avançar contras as trevas de opacidade que tendem a nos deixar em situação de mútua estranheza e gélida solidão. Também Condorcet, um dos luminares da pedagogia iluminista na França revolucionária, falará na nossa condição humana como a de sujeitos perfectíveis, mas nunca perfeitos; e a educação ética seria justamente  destinado a nos fazer trilhar a estrada do aperfeiçoamento perene que jamais repousará na perfeição suprema. Nietzsche não está longe: é uma corda sobre o abismo que devemos atravessar, e não se sabe de ninguém que tenha conseguido atravessar como equilibrista a corda sobre o abismo ao estagnar na imobilidade.

Albert Einstein também dizia algo similar: viver é como andar de bicicleta e para não perder o equilíbrio é preciso estar sempre em movimento. O conviver, parece sugerir Butler, também é assim: é preciso dar-se permissão e permitir a outrem que estejam despossuídos de si, abertos assim à aventura de mudar, já que a mudança não nos impede de nos reconhecer, ainda que conheçamos os limites de nosso mútuo conhecimento. As metamorfoses ambulantes cantadas por Raul Seixas não podem nunca dormir na sensaboria, denunciada em “Medo da Chuva”, de acreditarem-se como pedras quando são rios. O psicólogo Reichiano brasileiro J.A. Gaiarsa falará muitas maravilhas sobre o tema, apelando em uma de suas obras-primas para a antinomia entre A Estátua e a Bailarina.

 Em seu posfácio à obra de Butler, Vladimir Safatle tenta sintetizar essa ética em que “minha opacidade em relação a mim mesmo é uma forma de abertura àquilo que, no outro, implica-me sem que eu possa controlar, abertura àquilo que,  no outro, desfaz minhas ilusões de autonomia e controle. (…) Com Butler o sujeito moral aparece claramente como aquele capaz de assumir uma heteronomia sem sujeição, como diz Jacques Derrida, de se impulsionar a uma processualidade contínua própria ao que não se estabiliza completamente em imagem alguma da vontade.” (SAFATLE, p. 195)

Despossuir-se é abrir-se à outridade, esta belíssima palavra cunhada por Octavio Paz. É uma ética do deixar-se tecer pelos encontros, o avesso do solipsismo e do individualismo do auto-encerramento, mas que têm no cerne da sua reflexão crítica a problematização do tema do reconhecimento, sua dificuldade, seus desafios, sua tão frequente catástrofe, manifesta na violência das crises de reconhecimento, da recusa de reconhecimento, da subjugação e humilhação do outro em práticas racistas, homofóbicas, xenofóbicas etc. Safatle, um dos que mais tem feito no Brasil para sublinhar a importância de Judith Butler no cenário global contemporâneo, diz que esta ética “permite a Butler operar como quem diz: dos travestis e queers aos palestinos apátridas e aos prisioneiros de Guantánamo – um só problema.” (p. 196)

O relato de si, se quiser fugir ao solipsismo de um quimérico indivíduo isolado, tem que tornar-se nada menos que uma inspecção da posição do sujeito na teia de relações na qual ele está necessariamente imbricado. Falar sobre si sem falar do meio social onde se vive, dos vínculos que se tem, dos intercâmbios materiais e simbólicos que se dão neste espaço entre-outros, não é falar sobre si verdadeiramente, mas forjar o equívoco enganador de uma mônada sem relação, algo que não existe senão na imaginação autista de alguns.

A própria presença em nós de uma linguagem, de uma capacidade de expressão e interlocução, já é sinal de nossa necessária sociabilidade, de nossa pertença a um espaço-tempo específico, e alguém que fosse privado do convívio com seus semelhantes, criado no isolamento completo, como o Kaspar Hauser cuja crônica cinematográfica impressionante foi realizada por Werner Herzog, emergeria desta experiência solitária com sérios handicaps, desprovido dos meios linguísticos de relatar a si mesmo e de, assim, perceber-se como partícipe de um network social que o envolve, que o condiciona e é por ele condicionado, que o determinada mas é por ele determinado etc.

“Quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse ‘si mesmo’ já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um teórico social.” (BUTLER, p. 18)

Quaisquer que sejam as circunstâncias em que realizamos um relato de si – em um diário, em um divã psicanalítico, em um tribunal… – o que sempre emerge dele é a dependência em que  a identidade mutável encontra-se dos outros; não há identidade definível em absoluta independência de sua imbricação numa particular teia de outridade. Essa intrínseca relacionalidade do sujeito é que torna todo relato de si também um problema ético-moral, ou seja, uma averiguação sobre os efeitos de nossos ditos e atos sobre os universos afetivos daqueles com os quais nos relacionamos: escrever um diário, narrar um nó emocional ao psicanalista, explicar ao júri no tribunal o que foi feito, é sempre mergulhar nas angustiosas questões relacionadas à responsabilidade pela felicidade e sofrimento de outrem que possam ter como causas, diretas ou mediadas, a ação às vezes semicega do sujeito que se move na inescapável matrix relacional.

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Para além das violências concretas, físicas, como infligir dor ao outro ao dar-lhe uma pancada com um toque de baseball, há aquilo que Butler chama de violência ética. Franz Kafka foi um gênio na descrição destas, como Butler sabe bem desvelar, e um conto como “O Veredito” serve como parábola para o poderio que uma violência ética pode desencadear: o protagonista Georg é condenado pelo próprio pai à morte por afogamento – “e Georg, como se movido pela força da declaração, sai correndo de casa e salta sobre o parapeito de uma ponte. É claro, a declaração de tem de apelar a uma psique disposta a satisfazer o desejo do pai de ver o filho morto… Georg deve assumir  a condenação como princípio de sua própria conduta e participar da vontade que o incita a se atirar para fora de casa.” (p. 66)

O que soa como absurdidade forjada pela imaginação pungente e atormentada de Kafka – autor que, como se sabe, revela todos os dilemas e neuroses de sua relação com a figura paterna em sua Carta ao Pai – parece ser mobilizada por Butler a fim de revelar um exemplo memorável de violência ética em que o sujeito Georg aparece como dependente e vulnerável ao extremo em relação à vontade do genitor. Espécie de deus encarnado – Deus-Pai nos céus, deus-papai na Terra? – o pai aparece aqui como entidade arbitrária e autoritária, mas que Georg não consegue contestar ou contra ela se rebelar; Georg assume a posição de obediência estrita que confunde-se com o masoquismo suicida.

Kafka é um mestre na pintura de sujeitos que estão como que amarrados, sem chance de libertação, na teia-de-aranha de uma matriz relacional insanizante – na qual a aranha acaba sempre por devorá-los como se não passassem de suculentas moscas ou baratas. Ler O Veredito junto com A Metamorfose é uma excelente porta-de-entrada para uma abordagem poética, metafórica e repleta de parábolas para a problemática disto que Butler chama “violência ética” e outros chamam de “violência (ou dominação) simbólica”.

No que diz respeito à psicanálise, Butler também problematiza a noção de que a cura do sujeito complexado ou neurótico possa se dar através da obtenção de uma perfeita compreensão de si, decorrente da confecção de uma narrativa coerente da própria vida. É verdade que a psicanálise, desde sua origem com Freud e Breuer, tem um forte elemento de terapêutica da verbalização, talking cure, que concebe como libertadora a prática de realizar um relato de si que ocasione uma espécie de “conquista”, por parte do consciente, deste vasto território incógnito e ameaçador do inconsciente. Há algo em Freud do racionalista que crê nos poderes redentores da razão compreensiva – algo, é bem verdade, que faz parte do legado iluminista e que, antes disso, era também forte em Spinoza (“não chorar, não rir, não lamentar, mas compreender”). Butler comenta, sempre problematizante:

“Dentro de alguns círculos, doutrinas e práticas psicanalíticas, um dos objetivos declarados da psicanálise é oferecer ao cliente a chance de formar uma história sobre si mesmo, de relembrar o passado, entrelaçar os eventos ou as vontades da infância com eventos posteriores, tentar dar sentido, por meios narrativos, à vida que passou, aos empasses encontrados vez ou outra e ao que ainda está por vir. Com efeito, argumenta-se que o objetivo normativo da psicanálise é permitir que o cliente conte uma história única e coerente sobre si mesmo, de modo a satisfazer a vontade de conhecer a si próprio, ou melhor, de conhecer a si próprio em parte por meio de uma reconstrução narrativa na qual as intervenções do analista ou terapeuta contribuem de diversas maneiras para recriar e retramar a história. Roy Schafer defender essa posição…

É claro, aprender a construir uma narrativa é prática crucial, principalmente quando pedaços descontinuados da experiência permanecem dissociados entre si em virtude de condições traumáticas. Minha intenção não é subestimar a importância do trabalho narrativo na reconstrução de uma vida que, de modo geral, sofre de fragmentação e descontinuidade. Não se deve subestimar o sofrimento que pertence às condições de dissociação. (…) No entanto, a conexão demasiada pode levar a formas extremos de isolamento paranoico. De todo modo, se uma vida necessita de alguma estrutura narrativa, não se pode deduzir que todas as vidas tenham de ser traduzidas de forma narrativa. Tal conclusão transformaria um requisito mínimo de estabilidade psíquica no objetivo primeiro do trabalho analítico.” (p. 72)

Tentarei traduzir o que Butler quis dizer: a noção de que narrar a própria vida é o todo da terapia parece algo suspeito de excessivo racionalismo, algo que Nietzsche acusaria de “socratismo”, calcado na noção de que o auto-conhecimento, aqui concebido como capacidade de forjar uma narração-de-si translúcida e coerente, é o que basta para a saúde psíquica. Sem subestimar a importância da narratividade, é preciso denunciar nesta perspectiva um certo excesso de verbalismo, uma concepção da saúde psíquica que tende a deixar o corpo um pouco nas sombras, como se fôssemos essencialmente entes verbais, e não corpos libidinosos e com ânsias corpóreas que estão para além da linguagem. Se fosse verdade que a narrativa de si é a panacéia psicoterapêutica, seríamos levados a concluir que beijos, abraços e orgasmos pouco ou nada tem a contribuir com a vida feliz do sujeito, o que é obviamente uma falácia. Nisto sou visceralmente Reichiano.

Para Wilhelm Reich, a terapia tem que ser intensamente corporal e relacional, não pode fechar-se no verbalismo. É perfeitamente plausível que um sujeito saiba realizar um relato de si racional e coerente, e no entanto permaneça profundamente neurótico pois apegado de modo excessivo à couraça de seu caráter. O que o sujeito são necessita não é somente narrar-se, mas encontrar uma teia de relações onde possa satisfazer-se emocional e sexualmente. Narrar-se numa vida desprovida de orgasmos, contar histórias coerentes sobre si mas não ter seu corpo beijado nem abraçado por ninguém, só pode ser um deserto e um pesadelo. No Brasil, acredito que Gaiarsa tenha sido um de nossos mais sábios pensadores da antinomia normal e patológico, e o interesse de sua obra consiste não só em sua apropriação criativa extremamente fértil do pensamento e das práticas de Reich, mas na sua capacidade de afirmar que os atuais paradigmas de normalidade é que são neuróticos (a “normopatia”), e que a sanidade está do lado daquelas práticas normalmente ditas “contra-culturais”, de liberação sexual, afetiva, corporal.

Não quero com isso subestimar a importância do domínio simbólico e reduzir-nos a corpos tarados, libidinosos, que só querem gozar. A obra de Butler fornece um mergulho profundo nos meandros da questão do reconhecimento, que é descrito, parece-me, como uma necessidade psíquica humana básica e muitas vezes insatisfeita. A nossa frequente incapacidade mútua para nos relacionarmos em regime de empático reconhecimento decorre também de causas sociais, de ideologias introjetadas, como aquelas que pretendem recusar o devido reconhecimento a outros a quem se atribui determinada raça ou etnia, determinada orientação sexual ou corporalidade desviante.

O racismo, a homofobia, a xenofobia, são as montanhas que obstaculizam o caminho do reconhecimento empático, mas também a noção de identidade como sujeito idêntico a si mesmo é uma trava grave em nossas relações. Como procurei mostrar, Butler aposta numa ética que seria mais saudável justamente por pôr em crise as identidades fixas, tidas por imutáveis; uma ética em que nos reconhecemos melhor justamente pois nos permitimos ser metamorfoses ambulantes. Uma ética que está para além da caretice estreita e limitante de um sujeito que só aceita relacionar-se com aqueles que considera seus iguais: por exemplo, o homem branco, heterossexual e de primeiro mundo que mantêm distância de todos os negros, homossexuais e terceiro-mundistas com medo de contaminar-se com uma outridade que considera tóxica ou inferior. Estes tipos de elitismo, isolacionismo, aristocratismo, merecem ser tratados como patologia, por mais “normais” que nos pareçam…

Ao invés de ir ao encontro do outro exigindo dele uma identidade fixa e claramente delimitada, uma orientação sexual precisa, uma etnia ou raça perfeitamente reconhecível, uma postura rapidamente catalogável no âmbito da normalidade, mais vale estar no mundo, entre outros, com uma atitude de abertura à diversidade humana e a todo o colorido das posturas queer. Como destaca Vladimir Safatle, “o termo ‘queer’ aparece no inglês do século XVI para designar o que é ‘estranho’, ‘excêntrico’, ‘peculiar’. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada como xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final dos anos 1980, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo da palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria endereçada e que procura excluir.

Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro momento das lutas por reconhecimento de minorias. Momento não mais centrado na defesa de alguma identidade particular aos homossexuais, mas na identificação de si com o que parece expulso do universo da reprodução ‘normal’ da vida. De onde se seguiu a produção do sintagma ‘Teoria Queer’, enunciado primeiramente pela feminista italiana Teresa de Lauretis em The Practice of Love: Lesbian Sexuality and Perverse Desire (Bloomington, Indiana, 1994).

Desta forma, Butler pode sintetizar uma crítica do capitalismo enquanto forma social baseada na organização a partir do princípio de identidade que anima a figura do indivíduo. Ela se baseará na possibilidade de constituição de relações intersubjetivas fundadas na desarticulação de um princípio de identidade definido como posse… Como se a afirmação da despossessão fosse estratégia maior para toda e qualquer crítica do capitalismo como forma de vida. E é na escuta da experiência sexual que aprendemos inicialmente a viver despossuídos.” (SAFATLE: p. 178)

Laerte

No Brasil, uma figura emblemática para estas discussões sobre gênero, sexualidade e identidade é certamente Laerte, que muito além do crossdressing ou do “travestismo”, parece ter embarcado em uma viagem existencial ousada e aventurosa em busca de viver e criar para além das imposições estreitas das fôrmas caretas de normalidade. A genialidade da arte Laertiana está no modo conciso, pedagógico, irônico, sagaz e crítico com que esta obra põe em questão a imposição social de padrões de conduta baseados na dominação masculina, heterossexual, branca – dominação esta que funciona como uma espécie de mega-máquina-de-moer-diversidade e que merece que mobilizemos contra ela toda a potência de nossa revolta criativa.

Em uma espécie de resenha em quadrinhos do livro “Judith Butler e a Teoria Queer”, de Sara Salih (Ed. Autêntica), Laerte oferece uma excelente introdução ao âmbito da queerdade e da ética e política a ela conexas. Já passou da hora de percebermos, na sociedade, a sabedoria convivencial que há na desconstrução da noção de identidades possuíveis e no aniquilamento de velhas e mofadas classificações sobre o normal e o patológico. A invenção de si, no espaço entre-outros em que estamos condenados à nossa liberdade, será tão mais sábia quanto mais despossuídos de preconceitos  e mais desagarrados de identidades fixas formos capazes de sermos. Se joga na relação, sem pré-concepção, e deixe o outro, como ti, ser metamorfose ambulante e sujeito transindividual em contínua reinvenção!

– Carli, Goiânia, 28/11/16

RESUMO DA ÓPERA – Por Laerte:

 

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LEIA TAMBÉM:

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Daniel Pereira

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JUDITH BUTLER – “Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética”
(Editora Autêntica, 2015, 200 pgs)
Tradução: Rogério Bettoni || Posfácio: Vladimir Safatle

SINOPSE VIA EDITORA AUTÊNTICA: “Butler nos mostra neste livro como é difícil relatar a si mesmo e como essa falta de autotransparência e narratividade é crucial para um entendimento ético do ser humano. Em um diálogo brilhante com Adorno, Lévinas, Foucault e outros pensadores, Butler nos oferece uma crítica do sujeito moral, argumentando que o sujeito ético transparente e racional é um construto impossível que busca negar a especificidade do que é ser humano. Só podemos nos conhecer de forma incompleta, e apenas em relação a um mundo social mais amplo que sempre nos precedeu e moldou de maneiras que não somos capazes de apreender inteiramente. Se somos opacos a nós mesmos, de que maneira o ato ético pode ser definido pela explicação que damos de nós? Um sistema ético que nos considera responsáveis por nosso pleno autoconhecimento e nossa consistência interna não nos inflige um tipo de violência ética, levando a uma cultura de autocensura e crueldade? Ao reformular a ética como um projeto em que ser ético significa tornar-se crítico das normas que nunca escolhemos, mas que guiam nossas ações, Butler ilumina o que significa para nós, criaturas falíveis, criar e compartilhar uma ética da vulnerabilidade, da humildade e da responsabilidade.”

ASSISTA:
CONFERÊNCIA MAGNA COM JUDITH BUTLER | I Seminário Queer
SESC Vila Mariana – SP | Setembro de 2015
(Legendas em PORTUGUÊS, INGLÊS e ESPANHOL)

 

[Encontro de Culturas Txt 16] Sabenças da Infância: as ensinanças lúdicas da oficina de Thâmile Vidiz no XVI ECTCV

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A X Aldeia Multiétnica e o XVI Encontro de Culturas também são espaço de congregação lúdica e união cirandeira no entrelaçamento das culturas. Foto: Santiago Asef.

INFÂNCIA QUE REVIVE

Como parte integrante do XVI ECTCV, a oficina “Sabenças da Infância” de Thâmile Vidiz explorou o universo do lúdico, suas práticas e saberes, suas graças e charmes, numa jornada de reconexão com as raízes

por Eduardo Carli de Moraes para o XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros

A oficina “Sabenças da Infância”, com Thâmile Vidiz, animou o Espaço Petrobrás na quarta-feira, 27 de julho, como parte da programação do XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. O projeto tem como um de seus objetivos possibilitar que a diversidade das tradições e culturas de infância se revelem na criação e recriação de brincadeiras, num espaço lúdico onde os jeitos-de-jogar se entremesclam. Por que não misturar os modos de brincar tão conhecidos dos brasileiros (como as cobras-cegas ou os jogos de “o que é, o que é?”) com jogos vindos de outras civilizações (como a confecção artesanal das bonequinhas quitapenas da Guatemala)?

Brincadeiras, mímicas, canções, narrativas, trava-línguas, cabras-cegas, unidunitês, jogos de adivinhar, dentre outros elementos, deram o tom desta vivência que foi destinada a todas as idades, inclusive as que desejam uma reconexão com o frescor perdido da infância. Durante a oficina, uma maioria de adultos e adolescentes, acompanhados por três crianças, buscaram reencontrar-se com uma espontaneidade e uma graça que o correr dos anos às vezes trata de aniquilar. Como disse Carl Gustav Jung, infelizmente temos a tendência a “nascer como originais e morrer como cópias”.

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Apesar do clima de leveza e descontração, de jovialidade e muitos risos, a oficina de Thâmile Vidiz deu muito o que pensar sobre o valor do lúdico no processo de aprendizado: um trava-língua é excelente instrumento para desenvolver habilidades linguísticas, virtuosismo no trato com o verbo falado, podendo servir como primeiros passos no processo de desenvolvimento de futuros rappers, repentistas, radialistas, rapsodos.

Os jogos-de-adivinhar também tem a serventia de aguçar a curiosidade e botar os miolos para funcionar. Diante de um “o que é, o que é”, a mente sai em busca da resposta para o mistério de decifrar e nisto se exercita alegremente, desenvolvendo aptidões novas e colocando em movimento uma espécie de divertida vasculhação do mundo e seus mistérios: “Quem é que vive com os pés na cabeça? É o piolho! Quem é que dá muitas voltas e não sai do lugar? É o relógio! Quem é que cai de pé e corre deitado? É a chuva! Quem é que tem mais de 10 cabeças e não sabe pensar? A caixa de fósforos! Quem é que corre a casa e vai dormir no canto? A vassoura!”.

Quitapenas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância... Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo...  SAIBA MAIS

Quitapenas criadas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância. Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo… SAIBA MAIS!

Um dos auges da oficina de Thâmile Vidiz foi a confecção das quitapenas, pequeninas bonecas de origem nos povos indígenas da Guatemala. De fácil fabricação artesanal – você não precisa de muito mais do que palitos de fósforo, linhas para costura e muita criatividade para enfeites –, as pequenuchas quitapenas são brinquedos que cabem na palma da mão.

Como explicou Thâmile, o folclore conta que quando você não consegue pegar no sono, pois está aflito com preocupações, pode contar os teus problemas para a quitapena, depois guardá-la debaixo do travesseiro, e pronto: a pena se mandou. Segundo as lendas muito populares na cultura guatemalteca, a insônia será enxotada e as angústias serão aliviadas pelo simples fato de narrarmos nossos males para a microboneca. Eis um ótimo substituto – e muito econômico! – para o divã do psicanalista e os dispendiosos ouvidos de aluguel que são os praticantes do ofício psicanalítico.

Vivenciar a oficina “Sabenças da Infância” leva a pensar que, apesar da leveza e da graça com que faz e acontece, o lúdico é coisa séria na história. Em um estudo muito interessante, publicado em 1938, Johan Huizinga propôs que seria mais adequado que mudássemos o nome da espécie de homo sapiens para homo ludens. Afinal de contas, nada no percurso pregresso da humanidade, nem nada no nosso presente, referenda a avaliação de que sejamos sábios (sapiens). E tudo no nosso passado e no nosso presente indica que em toda parte, em qualquer latitude onde haja gente, culturas jogam, brincam, cantam, dançam. Em suma, congregam as pessoas com os cimentos invisíveis do lúdico.

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Em seu livro (acesse o ebook em PDF), Huizinga argumenta, de modo bem convincente, que o jogo é algo comum a todas as culturas, o traço de união que as congrega, uma espécie de universal concreto. Há quem jogue capoeira, há quem prefira o futebol; há quem toque violão, há quem prefira ficar no faz-de-conta ou no air guitar; tem quem prefira correrias e atletismos, e há os que são mais de um xadrez cerebral. De todo modo, não existe povo sem jogo, todo tipo de gente inventa sua ludicidade. E as artes, em sua raiz, também estão conectadas ao jogar, a ponto de Huizinga diagnosticar que a cultura, num sentido amplo, tem no lúdico, no “jogo”, um de seus nascedouros e uma de suas fontes mais importantes.

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana'” (Huizinga, “Homo Ludens”, 1980, p.33).

Vale notar que seria difícil quantificar a magnitude da riqueza cultural brasileira que emerge do âmbito do lúdico: não faltam artistas brincalhões e geniais por meio da história de nossas artes: lembremos somente, de modo sumário, d’Os Mutantes, de Tom Zé, do Patu Fu, de Oswald de Andrade, Manoel de Barros, Stanislaw Ponte Preta, de Henfil, Millôr Fernandes, Laerte, Angeli etc.

Quem acha que sabedoria é coisa de velhos e só existe em gente de cabelos brancos, pôde repensar este dogma a partir da oficina de Thâmile Vidiz. Ela nos revelou a amplidão das “sabenças da infância”, práticas e jogos que servem para congregar, transpondo os abismos da alteridade numa ciranda onde o eu transcende seu isolamento rumo a ser parte-de-nós. E o melhor: através do lúdico, empreendemos este processo de construção de pontes na companhia de risos e sorrisos. É também a sabença de Cartola: “A sorrir eu pretendo levar a vida / Pois chorando eu vi a mocidade… perdida.”

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Fotos: Pedro Henriques no XVI ECTCV